sexta-feira, 29 de março de 2024

Religião e política, ontem e hoje

Murillo Victorazzo*

Religião e política, ainda que de formas distintas, sempre estiveram correlacionadas, sendo quase sempre instrumentalizadas uma pela outra. Mesmo nas antigas civilizações indígenas, na América, ou africanas, imperadores e reis eram considerados deuses, semideuses ou representantes deles. No entanto, é na Idade Média que a religião torna-se o centro político e ideológico das sociedades europeias.

Durante os cerca de mil anos daquela era marcada pela descentralização feudal, a Igreja católica não só se encontrava no topo da ordem sociopolítica como detinha o monopólio do saber. “Assim como a lua empresta do sol o seu brilho, o rei recebe da igreja seu esplendor”, disse o papa Inocêncio III no início do século XIII. Transição entre feudalismo e capitalismo, a Idade Moderna rompe com essa lógica, o que, porém, não significará a dissociação completa entre Coroa e fé.

Ainda na Baixa Idade Média, no século XIV, estudos, descobertas e obras na filosofia, cultura e ciências começam a romper a hegemonia intelectual cristã, tendência que se solidifica com o Renascimento no dois séculos posteriores. O conhecimento, a partir de então, não servia mais como canal auxiliar para a leitura das Escrituras, a fim de se desvendar a palavra de Deus, e passava a emergir de “necessidades da vida cotidiana comum” (Valverde, 2003). 

A Revolução Científica derruba o geocentrismo, o que, ao se oporem a interpretações literais da Bíblia, torna seus expoentes, como Copérnico e Galileu Galilei, alvos da Inquisição de Roma. A Terra não ser o centro de um Universo  a partir de então visto como diverso e infinito diminuía a importância do homem, principal criação de Deus e feito em sua imagem e semelhança - dentre eles, por consequência, Jesus. O “novo conceito de verdade” ameaçava assim os pilares do sistema. “Ao lado da verdade revelada, haverá agora uma verdade da natureza, autônoma, com sua própria linguagem e leis, ao alcance do homem”. (Falcon, 2014, p.12)

O heliocentrismo repercutiu em diversos campos do conhecimento, cuja secularização significou o fim da tutela da teologia. Em oposto à visão teocêntrica medieval, o humanismo, um dos principais traços renascentistas, defendia a capacidade da razão humana em transformar a realidade natural e política. Refletindo essa nova concepção, Maquiavel teoriza uma nova relação entre ética e política, na qual a eficácia da ação política se sobrepõe a idealizações éticas medievais.

Não por acaso, o Renascimento, em paralelo ao declínio do poder papal, tem como pano de fundo o crescimento do poder político dos monarcas e do poder econômico da burguesia embrionária, de onde sai grande parte dos mecenas do movimento. Durante o período, “com o aparecimento dos ciclos burgueses de acumulação, surgiu uma interação constante entre as necessidades criadas pelo desenvolvimento dos meios de produção, por um lado, e a evolução da ciência, por outro”. (Valverde, 2003).

Nesse mesmo contexto, em protesto especialmente contra as vendas de indulgência por uma Igreja considerada corrompida e “parasita”, Martinho Lutero dá início, em 1517, à Reforma Protestante. Marx e historiadores marxistas entendem a cisão como “filha” da novo modelo econômico que surgia – o capitalismo. As religiões, segundo eles, eram “filhas do seu tempo”, mais concretamente filhas da economia, “mãe universal de toda sociedade humana”. (Delumeau, 2014, p.103) Assim, por ser ligada às estruturas feudais, o clero católico havia sido superado pela ascendente economia urbana burguesa – uma consequência, conforme diz o materialismo histórico, da evolução linear inevitável da História. E todas as guerras religiosas dos séculos XVI e XVII teriam sido lutas de classe “dissimuladas por uma capa religiosa”. (Delumeau, p.104).

Outros historiadores, contudo, refutam essa interpretação por verem mais nuances no movimento. Para eles, a Reforma se deu por uma conjunção de fatores socioeconômicos catalisadores específicos a cada lugar. No entanto, com causas primordialmente religiosas e disseminada por todas as classes sociais. Na França, por exemplo, foi conduzida por artesões e camponeses, enquanto, na Itália, berço renascentista e onde a burguesia era mais forte à época, não prosperou. Os abusos do clero se somavam à miséria e injustiça: “Na Bíblia não buscavam unicamente a doutrina da salvação pela fé, mas também a prova da igualdade original de todos os homens”. (Delumeau, p.107) Um movimento fruto de uma “vontade de renovação espiritual” decorrente de uma época onde o individualismo realizava grandes progressos. “Os fiéis sentiram a necessidade de uma teologia mais sólida e mais viva que aquela ensinada por um clérigo pouco instruído e rotineiro”. (Delumeau, p.112)

Seja como for, essa teologia nascente teve consequências políticas e econômicas. Lutero ajudou a colocar abaixo a ordem medieval na qual a Igreja encontrava-se no topo da hierárquica. Para ele e seus seguidores, não havendo nenhum intermediário entre o homem - dono de sua livre consciência - e Deus, o povo deveria ocupar essa posição, abrindo espaço também para o rebaixamento do clero em relação à Coroa. Uma nova ordem sociopolítica surgia resultante da religião. 

Tão ou mais importante foram as consequências das ideias de João Calvino, outro expoente da Reforma. Considerado um dos três pais fundadores da sociologia, Max Weber, em sua clássica obra “A ética protestante e o espírito do capitalismo” sustenta que o calvinismo, por sua valorização do trabalho, a defesa da vida frugal e a não condenação do lucro – para Roma, fruto do pecado da usura - foi alicerce para o desenvolvimento do sistema econômico ascendente.

Ao contrário do catolicismo, para o qual o trabalho, embora indispensável para a reprodução da humanidade, era indesejável, um castigo, pois advinha da condenação pelo pecado original, Calvino o entende como exaltação à “obra criadora divina”. Cada fiel recebia um “dom” de Deus e deveria colocá-lo em prática. Ao valorizá-lo, justificava o acúmulo de capital consequente. “O lucro é encarado como fruto do esforço do cristão para agradar a Deus através do seu trabalho”. (Maspoli, 2002) A riqueza era uma benção de Deus, porém a Ele pertence: “O crente é apenas um mordomo de Senhor aqui na terra, evitando a luxuria e os prazeres mundanos. A única fonte divina de prazer é o trabalho”. (Maspoli, 2002). O modo de vida protestante - seu ethos -, isto é a formação de poupança e o estímulo ao empreendedorismo, teria, deste modo, sido fundamental para a expansão do capitalismo.

Weber, em seu livro escrito no início do século XX, analisava as raízes da Revolução Industrial, momento quando o capitalismo alcança dimensões e características diferentes das do embrionário capitalismo comercial da época da Reforma. Calvino não se atém às questões sobre posse dos meios de produção e venda da força de trabalho, sendo também por isso controverso assegurar algum intuito prévio de legitimar o capitalista. "O calvinista ama trabalhar porque assim glorifica a Deus. O capitalista ama trabalhar porque assim obtém lucro", compara o teólogo presbiteriano Gerson Leite de Moraes em entrevista à BBC Brasil. No entanto, é indiscutível a aversão da burguesia à Igreja católica, “ociosos” que se interpunham entre eles e Deus. “Que trabalhem em vez de receber dízimo de quem labuta”. (Fevbre, 2014, p.118) Almejando ou não, Calvino serviu ao interesses da classe ascendente e dela se serviu, pois, como diz Fevbre (p.112), “os pregadores da Reforma não precisavam de apoio político para atrair seus partidários, mas era necessário para consolidar seus ataques iniciais”.

O crescimento do capitalismo ocorreu concomitantemente ao das religiões protestantes; crescimento que resultou em guerras nas quais interesses políticos se mesclavam a religiosos. Um exemplo é a Guerra dos 30 anos, eclodida em 1618 no Sacro Império Romano-Germânico. O conflito, que se iniciou como um levante dos estados germânicos protestantes contra o imperador católico, que descumprira garantias de liberdade religiosa, ultrapassou fronteiras e ganhou contornos essencialmente políticos, colocando em lados opostos monarcas da mesma religião. 

A vitória inicial do imperador representava seu fortalecimento político e territorial, o que alterava o equilíbrio de poder europeu, desbalanceamento preocupante não apenas monarcas protestantes mas principalmente o rei católico da França, cujo chanceler era inclusive um cardeal, o notório Cardeal Richelieu, um dos arquitetos do Absolutismo. 

A derrota do Sacro-Império após a entrada na guerra dos franceses, apoiados pelos Países Baixos e escandinavos, representou um ponto de inflexão na História e nas relações internacionais. A Paz de Vestefália, assinada em 1648, é considerada o gene do Direito Internacional, pois marca a oficialização de um sistema de equilíbrio de poder, a diplomacia permanente e a consolidação dos soberanos Estados nacionais modernos.

Oito anos antes, na Inglaterra, dava-se início a Revolução Inglesa, processo histórico emblemático por significar a construção da primeira monarquia parlamentar. O estopim de sua primeira fase, a Revolução Puritana (1640), foi a cobrança de impostos pelo rei Carlos I sem a anuência do Parlamento, formado basicamente pela burguesia. A guerra civil que se sucedeu representava o choque entre a ordem feudal que ainda perdurava e uma classe social ascendente. “O aumento da riqueza nacional não cabia mais naquela ordem”. (Selke; Ellos, 2017) Ao mesmo tempo, contudo, continha traços religiosos: os parlamentares eram calvinistas (“puritanos”), enquanto o monarca, um anglicano casado com uma católica e próximo ao Papa. Com a execução de Carlos I, assume o poder sob a forma de uma república ditatorial o “puritano” Oliver Crowell. Sua morte, em 1658, leva à “Restauração monárquica”, embora com poderes reais mais restritos.

O Absolutismo havia ficado para trás, mas, quando Jaime II assume a Coroa após a morte de seu irmão Carlos II, os atritos com o Parlamento ressurgem: tentativas de isentar católicos de impostos e distribuir-lhes cargos no governo fazem os parlamentares “puritanos”, temerosos também por entenderem as atitudes do novo monarca como pressão pela volta de poderes absolutistas, a conspirar por sua derrubada. A subida ao trono dos protestantes Guilherme de Orange e Maria Stuart através da Revolução Gloriosa marca a consolidação definitiva da monarquia constitucional, simbolizada pela Lei dos Direitos (Bill of rights) que os novos reis tiveram que assinar de serem coroados, em 1689. 

Entre outros pontos, a declaração exigia aprovação parlamentar para aumento de impostos e proibia o monarca de expropriar propriedade privada e coibir a liberdade de expressão. Simbolizava, portanto, maior poder político à burguesia e a vitória de seus valores liberais. Por outro lado, era não apenas a fragilização do rei e da aristocracia rural como da Igreja Luterana, braço auxiliar do Absolutismo inglês – “o direito divino dos reis”.

Se, ao final da Idade Média, a burguesia, diante da fragmentação feudal prejudicial ao comercio, aliara-se ao reis a fim de maior centralização política e administrativa, a Idade Moderna retrata a necessidade burguesa de romper com o regime que ajudara a criar mas que passara a ser empecilho ao livre mercado. O liberalismo foi a base teórica que a sustentou nesse processo e teve em John Locke seu principal ideólogo.

Para Locke, o Estado não deve impor uma religião oficial, sendo a fé uma escolha individual e voluntária. A religião, que na era medieval fora o topo da hierarquia sociopolítica, recebendo os reis o “esplendor” da Igreja, como afirmou Inocêncio III, e depois, em uma relação simbiótica com a Coroa, legitimara o Absolutismo, perdia assim, mais do que muito de seu poder político, sua conexão com a estrutura estatal. A partir dessa visão, a constituição de Estados laicos tornou-se progressivamente traço essencial das democracias contemporâneas.

É impossível a dissociação completa entre política e religião. Mesmo inconscientemente os cidadãos mais religiosos acabam por ver o mundo sob a ótica de algumas interpretações de sua fé. E é aqui que essa interligação se torna perigosa, pois, como se viu, quando dogmas religiosos entram na esfera política, eles acabam instrumentalizados e distorcidos por agentes políticos, mesmo os travestidos de religiosos. Além do passado, o Brasil atual é repleto de exemplos, com líderes evangélicos agindo de forma oposta  à defesa de Lutero por vida frugal, livre consciência do homem e elo direto com Deus, em posturas que nos remetem a às do clérigo medieval. Fatos históricos e presentes corroboram Emir Sader (2010), quando ele afirma que “Estados religiosos desembocam em visões ditatoriais – até mesmo totalitárias”. O Irã está aí hoje para provar.

A laicidade é a garantia de direitos individuais e coletivos para todos. “Ninguém deve ter mais direitos ou ser discriminado por suas opções individuais ou coletivas, desde que não prejudique os direitos dos outros”. (Sader, 2010). É importante lembrar: “Quem não conhece a História está condenado a repeti-la”, disse, ainda no século XVIII, o filósofo Edmund Burke.

* Murillo Victorazzo é jornalista, com Especialização em Política & Sociedade ( Iesp-UERJ) e MBA em Relações Internacionais ( FGV-Rio)


Referências bibliográficas:

Delumeau, J. As causas da Reforma. In Marques, A.M; Berutt, F.C; Faria, R.M (Orgs). História moderna através de textos. São Paulo: Contexto, 2014

Falcon, F. J.C. Introdução à História Moderna. In: Marques, A.M; Berutt, F.C; Faria, R.M (Orgs). História moderna através de textos. São Paulo: Contexto, 2014

Febvre, L. A Alemanha de 1517 e Lutero. In: Marques, A.M; Berutt, F.C; Faria, R.M (Orgs). História moderna através de textos. São Paulo: Contexto, 2014

Maspoli, A. O pensamento de João Calvino e a ética protestante, aproximações e contrastes, 2002. Disponível em: Untitled Document (mackenzie.br)Links para um site externo.

Sader, E.. Política e Religião, 2010. Disponível em: Emir Sader: Política e religião - VermelhoLinks para um site externo.

Selke, R.; Ellos, N. História social e econômica moderna. Curitiba: Intersaberes, 2017

Valverde, A.J.R. Humanismo, ciência, cotidiano - sob o Renascimento. Margem, São Paulo, jun.2003
Religião e política, ainda que de formas distintas, sempre estiveram correlacionadas, sendo muitas vezes instrumentalizadas uma pela outra e vice-versa. Mesmo nas antigas civilizações indígenas, na América, ou africanas, imperadores e reis eram considerados deuses, semideuses ou representantes deles. No entanto, é na Idade Média que a religião torna-se o centro ideológico das sociedades europeias. A Igreja católica detinha o monopólio do saber e a preponderância do poder político, em uma época marcada pela descentralização feudal. “Assim como a lua empresta do sol o seu brilho, o rei recebe da igreja seu esplendor”, disse o papa Inocêncio III no início do século XIII. Transição entre feudalismo e capitalismo, a Idade Moderna rompe com essa lógica, o que, porém, não significará a dissociação completa entre coroa e fé.


Ainda na Baixa Idade Média, no século XIV, estudos, descobertas e obras na filosofia, cultura e ciências começam a romper a hegemonia intelectual cristã, tendência que se solidifica com o Renascimento no dois séculos posteriores. O conhecimento, a partir de então, não servia mais como canal auxiliar para a leitura das Escrituras, a fim de se desvendar a palavra de Deus, e passava a emergir de “necessidades da vida cotidiana comum” (Valverde, 2003). A Revolução Científica derruba o geocentrismo, o que, ao se oporem a interpretações literais da Bíblia, leva seus expoentes como Copérnico e Galileu Galilei a entrarem em choque com Roma. A Terra não ser o centro de um Universo agora visto como infinito sacava também a importância do homem – inclusive Jesus - como criação em imagem e semelhança de Deus. O “novo conceito de verdade” revelado por Galileu ameaçava os pilares do sistema. “Ao lado da verdade revelada, haverá agora uma verdade da natureza, autônoma, com sua própria linguagem e leis, ao alcance do homem”. (Falcon, p.12)

O heliocentrismo repercute em diversos campos do conhecimento, cuja secularização significava o fim da tutela da teologia. Em oposto à visão teocêntrica medieval, o humanismo, um dos principais traços renascentistas, defendia a capacidade da razão humana em transformar a realidade natural e política. Refletindo essa nova concepção, Maquiavel teoriza uma nova relação entre ética e política, na qual a eficácia da ação política se sobrepõe a idealizações éticas medievais.

Não por acaso, o Renascimento, em paralelo ao declínio do poder papal, tem como pano de fundo o crescimento do poder político dos monarcas e do poder econômico da burguesia embrionária, de onde sai grande parte dos mecenas do movimento. Durante o período, “com o aparecimento dos ciclos burgueses de acumulação, surgiu uma interação constante entre as necessidades criadas pelo desenvolvimento dos meios de produção, por um lado, e a evolução da ciência, por outro”. (Valverde, 2003).

Nesse mesmo contexto, em protesto especialmente contra as vendas de indulgência por uma Igreja considerada corrompida e “parasita”, Martinho Lutero dá início, em 1517, à Reforma Protestante. Marx e historiadores marxistas entendem a cisão como “filha” da novo modelo econômico que surgia – o capitalismo. As religiões, segundo eles, eram “filhas do seu tempo”, mais concretamente filhas da economia, “mãe universal de toda sociedade humana”. (Delumeau, p.103) Assim, por ser ligada às estruturas feudais, o clero católico havia sido superado pela ascendente economia urbana burguesa – uma consequência, conforme diz o materialismo histórico, da evolução linear inevitável da História. E todas as guerras religiosas dos séculos XVI e XVII teriam sido lutas de classe “dissimuladas por uma capa religiosa”. (Delumeau,104).

Outros historiadores, contudo, refutam essa interpretação por verem mais nuances no movimento. Para eles, a Reforma se deu por uma conjunção de fatores socioeconômicos catalisadores específicos a cada lugar. No entanto, com causas primordialmente religiosas e disseminada por todas as classes sociais. Na França, por exemplo, foi conduzida por artesões e camponeses, enquanto, na Itália, berço renascentista e onde a burguesia era mais forte à época, não prosperou. Os abusos do clero se somavam à miséria e injustiça: “Na Bíblia não buscavam unicamente a doutrina da salvação pela fé, mas também a prova da igualdade original de todos os homens”. (Delumeau, p.107) Um movimento fruto de uma “vontade de renovação espiritual” decorrente de uma época onde o individualismo realizava grandes progressos. “Os fiéis sentiram a necessidade de uma teologia mais sólida e mais viva que aquela ensinada por um clérigo pouco instruído e rotineiro”. (Delumeau, p.112)

Seja como for, essa teologia nascente teve consequências políticas e econômicas. Lutero ajudou a colocar abaixo a ordem medieval na qual a Igreja encontrava-se no topo da hierárquica social. Para ele e seus seguidores, não havendo nenhum intermediário entre o homem - dono de sua livre consciência - e Deus, o povo deveria ocupar essa posição, abrindo espaço também para o rebaixamento do clero em relação à Coroa. Uma nova ordem sociopolítica surgia resultante da religião. Tão ou mais importante foram as consequências das ideias de João Calvino, outro expoente da Reforma. Max Weber, em sua clássica obra “A ética protestante e o espírito do capitalismo” sustenta que o calvinismo, por sua valorização do trabalho, a defesa da vida frugal e a não condenação do lucro – para Roma, fruto do pecado da usura - foi alicerce para o desenvolvimento do sistema econômico que começava a surgir.

Ao contrário do catolicismo, para o qual o trabalho, embora indispensável para a reprodução da humanidade, era indesejável, pois advinha da ideia de condenação pelo pecado original, Calvino o entende como exaltação à “obra criadora divina”. Cada fiel recebia um “dom” de Deus e deveria colocá-lo em prática. Ao valorizar o trabalho, legitimava o acúmulo de capital consequente. “O lucro é encarado como fruto do esforço do cristão para agradar a Deus através do seu trabalho”. (Maspoli, 2002) A riqueza era uma benção de Deus, porém a Ele pertence: “O crente é apenas um mordomo de Senhor aqui na terra, evitando a luxuria e os prazeres mundanos. A única fonte divina de prazer é o trabalho”. (Maspoli, 2002). A formação de poupança e o estímulo ao empreendedorismo presente no modo de vida protestante – seu ethos – teria, por isso, sido fundamental para a expansão do capitalismo.

Weber, em sua obra escrita no início do século XX, analisava as raízes da Revolução Industrial, momento quando o capitalismo alcança dimensões e características diferentes das do embrionário capitalismo comercial da época da Reforma. Calvino não se atém às questões sobre posse dos meios de produção e venda da força de trabalho, sendo também por isso controverso assegurar algum intuito prévio de legitimar o capitalista. "O calvinista ama trabalhar porque assim glorifica a Deus. O capitalista ama trabalhar porque assim obtém lucro", compara o teólogo presbiteriano Gerson Leite de Moraes em entrevista à BBC Brasil. No entanto, é indiscutível a aversão da burguesia à Igreja católica, “parasitas” que se interpunham entre eles e Deus. “Que trabalhem em vez de receber dizimo de quem labuta”. (Fevbre, p.118) Almejando ou não, Calvino serviu ao interesses da classe ascendente e dela se serviu, pois, como diz Fevbre (p.112), “os pregadores da Reforma não precisavam de apoio político para atrair seus partidários, mas era necessário para consolidar seus ataques iniciais”.

O crescimento do capitalismo ocorreu concomitantemente ao crescimento das religiões protestantes; crescimento que resultou em guerras nas quais interesses políticos se mesclavam a religiosos. Um exemplo é a Guerra dos 30 anos, eclodida em 1618 no Sacro Império Romano-Germânico. O conflito, que se iniciou como um levante dos estados germânicos protestantes contra o imperador católico, que descumprira garantias de liberdade religiosa, ultrapassou fronteiras e ganhou contornos essencialmente políticos, colocando em lados opostos monarcas da mesma religião. A vitória inicial do imperador representava seu fortalecimento político e territorial, o que o equilíbrio de poder europeu, desbalanceamento que preocupava não apenas monarcas protestantes mas principalmente o rei católico da França, cujo chanceler era inclusive um cardeal. A derrota do Sacro-Império após a entrada na guerra dos franceses, apoiados pelos Países Baixos e escandinavos, representou um ponto de inflexão na História e nas relações internacionais. A Paz de Vestefália, em 1648, marca a oficialização de um sistema de equilíbrio de poder, a diplomacia permanente e a consolidação dos soberanos Estados nacionais modernos.

Oito anos antes, na Inglaterra, dava-se início a Revolução Inglesa, processo histórico emblemático por significar a construção da primeira monarquia parlamentar. O estopim de sua primeira fase, a Revolução Puritana (1640), foi a cobrança de impostos pelo rei Carlos I sem a anuência do Parlamento, formado basicamente pela burguesia. A guerra civil que se sucedeu representava o choque entre a ordem feudal que ainda perdurava e uma classe social ascendente. “O aumento da riqueza nacional não cabia mais naquela ordem” (Selke; Ellos, 2017) Ao mesmo tempo, contudo, continha traços religiosos: os parlamentares eram calvinistas (“puritanos”), enquanto o monarca, um anglicano casado com uma católica e próximo ao Papa. Com a execução de Carlos I, assume o poder sob a forma de uma república ditatorial o “puritano” Oliver Crowell. Sua morte, em 1658, leva à “Restauração monárquica”, embora com poderes reais mais restritos.

O Absolutismo havia ficado para trás, mas, quando Jaime II assume a Coroa após a morte de seu irmão Carlos II, os atritos com o Parlamento ressurgem: tentativas de isentar católicos de impostos e distribuir-lhes cargos no governo fazem os parlamentares “puritanos”, temerosos também por entenderem as atitudes do monarca como pressão pela volta de poderes absolutistas, a conspirar pela derrubada de Jaime II. A ascensão dos protestantes Guilherme de Orange e Maria Stuart através da Revolução Gloriosa marca a consolidação definitiva da monarquia constitucional, simbolizada pela Lei dos Direitos (Bill of rights) que os novos reis tiveram que assinar antes de subir ao trono em 1689. Entre outros pontos, a declaração previa a exigência de aprovação parlamentar para aumento de impostos e proibia o monarca de expropriar propriedade privada e coibir a liberdade de expressão. Simbolizava, portanto, maior poder político à burguesia e a vitória de seus valores liberais. Por outro lado, não apenas a fragilização do rei e da aristocracia rural como da Igreja Luterana, braço auxiliar do Absolutismo inglês – “o direito divino dos reis”.

Se, ao final da Idade Média, a burguesia, diante da fragmentação feudal prejudicial aos seus negócios, aliara-se ao reis a fim de maior centralização política e administrativa, a Idade Moderna retrata a necessidade burguesa de romper com o regime que ajudara a criar mas que passara a ser empecilho a sua livre acumulação de capital. O liberalismo foi a base teórica que a sustentou nesse processo e tinha em John Locke seu principal ideólogo. Para ele, o Estado não deve impor uma religião oficial, sendo a fé uma escolha individual e voluntária. A religião, que na era medieval fora o topo da hierarquia política, recebendo os reis o “esplendor” da Igreja, como afirmou Inocêncio III, e, em uma relação simbiótica, legitimara o Absolutismo, perdia assim, se não totalmente, muito de sua conexão com a estrutura estatal. A partir dessa visão, a constituição de Estados laicos tonou-se progressivamente traço primordial das democracias contemporâneas.

É impossível a dissociação completa entre política e religião. Mesmo inconscientemente os cidadãos mais religiosos acabam por ver o mundo sob a ótica de algumas interpretações de sua fé. E é aqui que a correlação se torna delicada, pois, como se viu, quando dogmas religiosas entram na esfera política, eles acabam instrumentalizados e distorcidos por agentes políticos, mesmo os travestidos de religiosos. O passado e o Brasil atual são repletos de exemplos, com líderes religiosos evangélicos agindo de forma oposta a defesa de Lutero por vida frugal, livre consciência do homem e elo direto com Deus. Fatos históricos e presentes corroboram Emir Sader (2010), quando ele afirma que “Estados religiosos desembocam em visões ditatoriais – até mesmo totalitárias”.

A laicidade é a garantia de direitos individuais e coletivos para todos. “Ninguém deve ter mais direitos ou ser discriminado por suas opções individuais ou coletivas, desde que não prejudique os direitos dos outros”. (Sader, 2010). É importante lembrar: “Quem não conhece a História está condenado a repeti-la”, disse, ainda no século XVIII, o filósofo Edmund Burke.



Referências bibliográficas:

Delumeau, J. As causas da Reforma. In Marques, A.M; Berutt, F.C; Faria, R.M (Orgs). História moderna através de textos. São Paulo: Contexto, 2014

Falcon, F. J.C. Introdução à História Moderna. In: Marques, A.M; Berutt, F.C; Faria, R.M (Orgs). História moderna através de textos. São Paulo: Contexto, 2014

Febvre, L. A Alemanha de 1517 e Lutero. In: Marques, A.M; Berutt, F.C; Faria, R.M (Orgs). História moderna através de textos. São Paulo: Contexto, 2014

Maspoli, Antonio. O pensamento de João Calvino e a ética protestante, aproximações e contrastes, 2002. Disponível em: Untitled Document (mackenzie.br)Links para um site externo.

Sader, Emir. Política e Religião, 2010. Disponível em: Emir Sader: Política e religião - VermelhoLinks para um site externo.

Selke, R.; Ellos, N. História social e econômica moderna. Curitiba: Intersaberes, 2017

Valverde, Antonio J.R. Humanismo, ciência, cotidiano - sob o Renascimento. MARGEM, SÃO PAULO, No 17, P. 63-71, JUN. 2003.

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domingo, 25 de fevereiro de 2024

Entre a política e o direito, militantes brasileiros emulam adoração fascista

Murillo Victorazzo*

Após a moralmente absurda, historicamente equivocada e politicamente imprudente comparação com o Holocausto judeu, Lula, na sexta-feira, dia 24, recuou fingindo não recuar. Ou melhor, voltou à posição oficial do Brasil desde quando apoiou a denúncia sul-africana contra Israel na Corte Internacional de Justiça (CIS). Não mencionou as atrocidades nazistas, mas reafirmou, em tom exaltado, que o que Israel comete hoje em Gaza é genocídio. As falas presidenciais serviram, como não poderia deixar de ser no Brasil atual, para insuflar as torcidas ideologicamente organizadas com suas habituais palavras de ordem.

Genocídio é um termo cunhado em 1944 pelo jurista judeu polonês Raphael Lemkin, à época conselheiro do Departamento de Estados norte-americano. Influenciado pela barbárie dos campos de concentração e extermínio nazistas, Lemkin buscava reunir em um conceito toda a gama de massacres deliberados contra grupos específicos ocorridos desde a Antiguidade. Quatro anos depois, a Convenção da ONU para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio normatizou o conceito como " intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso". Suas práticas se expressam através de homicídio, "ofensas graves à integridade física ou mental", "sujeição intencional do grupo a condições de vida com vista a provocar a sua destruição física, total ou parcial", esterilização forçada ou outras imposições destinadas a impedir nascimentos oriundo do grupo e transferência, à força, de crianças.

Em 1998, ao criar o Tribunal Penal Internacional (TPI), o Tratado de Roma tipificou em seu artigo 6º a mesma definição. Mais conhecido como Tribunal de Haia, o TPI é um tribunal permanente e independente, voltado a julgar indivíduos ( líderes políticos e militares de países ou organizações) - diferente da CIS, que é um órgão da ONU destinado a julgar contenciosos interestatais ou atos de um Estado. A definição dos crimes é a mesma nas duas cortes. A jurisdição do TPI, contudo, se limita aos 124 países que o ratificaram, como o Brasil, em 2002. Não é o caso de Israel, Estados Unidos, China, Rússia e Índia. Em 2015, a Autoridade Palestina (AP) aceitou ser signatária.

Como se pode deduzir, genocídio não significa "apenas" um plano premeditado de eliminação física de um povo, mas também a destruição de seus fundamentos culturais, sociais e econômicos. No entanto, a exigência de se provar a premeditação permite que debates jurídicos sejam influenciados pela lógica das relações internacionais. Até hoje, por exemplo, o assassinato e a deportação de cerca de 1,5 milhão de armênios praticados, entre 1915 e 1923, pelo Império Turco Otomano são  pontos nevrálgicos da política externa de Ancara. Apesar de juridicamente o TPI e a CIS não retroagirem, o governo turco não admite a acusação de genocídio, mesmo que o bárbaro crime seja praticamente consenso entre historiadores. Para a Turquia, as mortes teriam sido consequência do contexto da Primeira Guerra Mundial e a decorrente implosão do império.

Em muito por ser a Turquia membro da OTAN, apenas em 2021, em meio à aproximação do presidente Recep Erdoğan com Rússia, a Casa Branca passou considerar genocídio o extermínio armênio. "Se os EUA quiserem piorar nossas relações, é uma decisão deles", ameaçou o chanceler turco na ocasião. Países como o Reino Unido e Israel ainda não reconhecem o crime. Em 2015, o Senado brasileiro aprovou resolução em "solidariedade" ao povo armênio, sem, porém, citar o termo genocídio. O cuidado com as palavras não impediu a Turquia de chamar de volta seu embaixador em Brasilia e convocar o embaixador brasileiro em Ancara para "esclarecimentos". Na linguagem diplomática, atitudes que sinalizam tensionamento nas relações diplomáticas bilaterais. Semana passada, os governos de Brasil e Israel recorreram a esses gestos após, em retaliação à comparação feita Lula, o governo de Benjamim Netanyahu considerar o presidente brasileiro persona non grata.

Polêmica semelhante acontece com o Holomodor ("A Grande Fome"), assassinato em massa ocorrido na Ucrânia entre 1932 e 1933. Alguns poucos estudiosos ainda resistem assegurar a natureza deliberada das cerca de três milhões de mortes por fome. Para eles, a catástrofe teria sido consequência da equivocada política econômica do ditador Josef Stalin, que visava, com expropriações e confisco de grãos, acumular receitas para a urgente industrialização do país. Entretanto, vasto número de historiadores, como o britânico Timothy Snyder, não têm dúvida de que tratou-se sim de um plano premeditado de Stalin e a cúpula do PCUS, a fim de exterminar agricultores resistentes à coletivização de suas terras. Reforçam essa interpretação os milhões de camponeses deportados para campos de trabalho forçado, os gulags siberianos.

Em seu livro "Terras de Sangue", Snyder descreve seus argumentos em detalhes de deixar o leitor atônito, perguntando-se a que ponto pode chegar a frieza humana por poder e ideologias. Destruir a "identidade ucraniana", ressaltam, ademais, esses especialistas, era objetivo de Stalin desde sua chegada ao poder, em 1924, a começar pela imposição da língua russa, a dissolução da igreja nacional e o expurgo da elite intelectual do país. Professor de História da City University, em Nova York, Eric Weitz, em entrevista à BBC, levanta outra questão. Para ele, a falta de consenso sobre o Holomodor tem também a ver com uma lacuna conceitual que permaneceu aberta por pressão justamente de Stálin, líder soviético à época da assinatura da Convenção sobre Genocídio: a não inclusão de grupos políticos e classes sociais. O "Holocausto ucraniano", como alguns denominam, continha como alvo fundamental uma classe específica, os kulaks, espécie de pequena burguesia agrária.

Seja como for, Moscou, mesmo após o fim do regime soviético, ainda refuta a acusação, classificando-a como "interpretação nacionalista" de Kiev. Menos de 30 países consideram oficialmente genocídio aquelas mortes em massa. Entre o fim da União Soviética e o início deste século, período que marcou a hegemonia unipolar norte-americana, mexer com brios russos por fatos acontecidos 70 anos antes não era prioridade para o Ocidente, disposto então a boas relações com o Kremlin do liberal Boris Yeltsin e depois, no início, de seu sucessor Putin. Não por acaso, somente em 2018, a Casa Branca reconheceu o traço genocida do Holomodor, sendo seguida por Alemanha, França e Reino Unido, além de outros sete países europeus, justamente após o esgarçamento das relações europeias com a Rússia em função da invasão à Ucrânia. Em 2022, foi a vez do Senado brasileiro aprovar projeto de lei reconhecendo.

Além da criação do TPI e da tipificação de genocídio, o Tratado de Roma define também crimes contra a humanidade e de guerra. Os primeiros se caracterizam por um ataque intencional "sistemático ou generalizado" contra uma população civil, não necessariamente em contexto de guerra. Inserem-se neste caso, entre outros, homicídio doloso, deportação ou transferência forçada de uma população; tortura; agressão e escravatura sexuais, prostituição forçada, gravidez forçada, esterilização forçada, desaparecimento forçado e o crime de apartheid.

Os crimes de guerra envolvem violações graves à Convenção de Genebra (1949), reguladora dos conflitos bélicos. Além de homicídio doloso e tortura, estão entre elas "tratamento desumano", deportação ilegal, "destruição ou a apropriação de bens em larga escala, quando não justificadas por quaisquer necessidades militares e executadas de forma ilegal e arbitrária"; "dirigir intencionalmente ataques a bens civis (que não sejam objetivos militares) e a pessoal, instalações, material, unidades ou veículos que participem de missão de manutenção da paz ou de assistência humanitária".

O caráter genocida do Hamas é indiscutível. Em sua própria declaração de fundação, afirmam explicitamente desejar a eliminação de Israel. O grupo terrorista não é um Estado, o que torna impossível ações contra ele na CIJ. Não sendo o TPI órgão da ONU, Estados não costumam recorrer a este tribunal diretamente, embora qualquer individuo ou grupo possa. Em novembro passado, familiares de vítimas do atentado de outubro apresentaram denúncia contra líderes da organização por crimes de guerra, contra humanidade e genocídio. 

Apesar de ser um tribunal de último recurso, intervindo apenas quando as autoridades nacionais não podem ou não querem instaurar um processo, o procurador do TPI, Karim Khan, já havia afirmado que todas as denúncias seriam aprofundadas, sendo provavelmente acrescentadas a uma investigação apresentada pela AP em 2019 por supostos crimes israelenses contra o Direito Internacional Humanitário cometidos em 2014. A procuradoria é obrigada a investigar todos os lados envolvidos. No entanto, equipes do TPI não conseguiram entrar nem Gaza nem em Israel - que, não sendo membro do tribunal, recusa-se a reconhecer sua jurisdição.

O sadismo fundamentalista dos terroristas resultou em 1.200 mortes de civis e 240 reféns. Crianças, mulheres, idosos. Mas parece não haver mais dúvidas de que Israel ultrapassou seu legítimo direito à defesa. O Hamas, é preciso ressaltar, pois muitos parecem esquecer, não é sinônimo do povo palestino, nem mesmo os de Gaza. Não é, aliás, nem a representação oficial desse povo, a cargo da AP, na prática com domínios limitados à Cisjordânia e liderada pelo Fatah, partido secular adversário do Hamas. Desde 2012, a AP tem assento na ONU como "Estado-observador não membro". 

Não se sabe exatamente o número de mortes em Gaza e, entre elas, quantos eram civis e quantos membros do Hamas. É verdade que dados difundidos pelo Ministério da Saúde de Gaza não são confiáveis, sendo o órgão controlado pelo grupo terrorista, mas governos ocidentais e ONG trabalham com números similares: mais de 30 mil vítimas fatais, cerca de 70% mulheres e crianças. Nesta quarta-feira, dia 28, os Estados Unidos, pela primeira vez, divulgaram sua - assustadora - estimativa: perto de 25 mil crianças e mulheres perderam suas vidas. A imprensa israelense já admitira ser menos que 10 mil os mortos envolvidos com o terrorismo.

Não param de surgir notícias sobre restrições à entrada de ajuda humanitária (justificadas por receio de contrabando que fortaleça o Hamas), falta de alimentos, remédios, além da destruição de hospitais e campos de refugiados. Funcionários de organizações humanitárias e da ONU foram alvejados fatalmente pelas tropas de Netanyahu. Israel já usou bombas de grau de destruição maior e em proporção muito superior às usadas pelos Estados Unidos no Iraque e Afeganistão em tempo similar de guerra. Segundo a ONU, cerca de dois milhões de palestinos estão em condições famélicas.

A intencionalidade sempre é o ponto de interrogação. É ela o que define os crimes, não números, é importante frisar. As características urbanas de Gaza e o modus operandi do Hamas complicam a distinção entre civis e terroristas: um local pobre e de altíssima densidade demográfica, com ruelas onde criminosos e inocentes têm que conviver sobre túneis -esconderijo e sob o arbítrio de um organização que é a primeira a nada fazer para distingui-los. Ao contrário. Para o governo radical de direita de Netanyahu, os ataques a bens civis e as chocantes mortes de crianças se explicam pela presença de terroristas no local e por eles fazerem inocentes de escudos humanos.

Entretanto, mesmo que se acredite que todas as mortes civis sejam efeitos colaterais de métodos terroristas, faz sentido apelar para o famigerado "fins que justificam os meios"? É legítimo agir a qualquer custo na captura ou homicídio de um terrorista, ainda mais ciente de que ideologias, especialmente as que se apropriam de religiões, não morrem por ataque militar? É ilusório crer na total destruição militar do Hamas através das armas. A cada inocente morto, especialmente crianças, mais seus familiares se radicalizam, em uma espiral de extremismo que faz o jogo do terrorismo. Este, por sinal, sempre foi o objetivo da organização ao lançar o abjeto ataque de outubro. Na prática, o que se vê é uma forma imoral e sangrenta de enxugar gelo.

Emissário da Casa Branca ao Oriente Médio, Jake Sullivan afirmou recentemente que o fato de o Hamas usar civis como escudo humano "não diminui a responsabilidade [de Israel] perante a lei internacional de fazer tudo ao alcance deles para proteger civis". Khan, em entrevista à BBC em novembro, acrescentou: "Em relação a cada casa, a qualquer escola, qualquer hospital, qualquer igreja, qualquer mesquita, esses lugares estão protegidos, a menos que o status de proteção tenha sido perdido. O ônus de provar que esse status foi perdido cabe àqueles que disparam a arma, o míssil ou o foguete em questão".

Defensores de Israel, para refutar a pecha de genocídio, afirmam que a guerra terminaria imediatamente se o Hamas soltasse os reféns e que, se Netanyahu quisesse a eliminação dos palestinos, já o teria feito, dada a disparidade militar, inclusive armas nucleares. Pode ser. No entanto, ao invadir Gaza, Netanyahu colocou como meta a completa destruição do grupo terrorista e é ingênuo imaginar que seria viável politicamente dolo tão escancarado. Se por menos, o primeiro- ministro já se encontra sob crescente pressão... A pusilanimidade com quem lidou com genocídio em Ruanda, em 1994, deixou remorsos na comunidade internacional, e, embora falhas, as normas internacionais hoje são mais intrusivas. Se não evitam, criam barreiras. Em janeiro, Netanyahu recusou a proposta de paz que envolvia a troca dos reféns pelo fim da invasão e, em respostas a comentários de Biden sobre a criação do Estado palestino, afirmou que tais pressões se devem por ter impedido "durante anos o estabelecimento de um Estado palestino que representaria um perigo existencial para Israel”.

Israel forçou a remoção de centenas de milhares de palestinos do norte de Gaza e agora prepara-se para invadir Rafah, ao sul, justamente onde os desalojados se abrigaram. Impedidos de fugirem para o Egito, que teme a desestabilização interna caso abra incondicionalmente sua fronteira, esse contingente de inocentes encontra-se emparedado por todos os lados. A anunciada incursão militar é uma tragédia humanitária anunciada. Tão anunciada que União Europeia, Estados Unidos, Australia e Canadá deram declarações oficiais pressionando Netanyahu a desistir dela. Aventa-se proposta de resolução de iniciativa norte-americana contra. "A ofensiva terrestre em Rafah pode ter consequências devastadoras. O fracasso em garantir cuidados especiais para mais de um milhão de civis na área causaria sérios danos aos próprios interesses de Israel. Israel precisa ouvir seus amigos", disse a ministra das Relações Exteriores australiana, Penny Wong.

No último dia 21, o secretário-geral da Médicos Sem Fronteiras, Christopher Lockyear, fez forte discurso no Conselho de Segurança da ONU. Acusou Israel de fazer uma "guerra de punição coletiva, sem regras, a qualquer preço". "Mais de 1,5 milhão de pessoas estão encurraladas em Rafah. Pessoas que foram violentamente forçadas a irem para esta faixa de terra no sul de Gaza estão arcando com as consequências da campanha militar israelense", declarou, revelando que comboios da organização haviam sido atacados pelo Forças de Defesa de Israel (FDI): "Atacaram nossos comboios, detiveram nossos funcionários e destruíram nossos veículos com tratores. Hospitais foram bombardeados e invadidos. Um dos abrigos onde estavam nossos funcionários foi atingido. Ou este padrão de ataques é intencional ou é um indicativo de incompetência negligente".

Em entrevista ao site "Consultor Jurídico", a advogada Sylvia Steiner, única brasileira a ter sido juíza do TPI, não hesita em garantir que Israel está "infringindo regras do Direito Internacional Humanitário" - embora tenha muitas dúvidas quanto a genocídio. A afirmação encontra eco no Alto Comissário da ONU para os Direitos Humanos. "A punição coletiva por Israel de civis palestinos também é um crime de guerra, assim como a evacuação forçada de civis", disse o holandês Volker Türk. De grupos terroristas nada se espera, mas de Estados, especialmente os que se jactam ser uma democracia liberal, espera-se respeito a regras. Do contrário, nivelam-se aos seus algozes.

Compreende-se, portanto, o clamor crescente contra a reação israelense e, nesses casos, é compreensível o rompimento da tradicional parcimônia brasileira no trato com Tel Aviv. Neutralidade, aliás, rompida, em sentido oposto, no governo Bolsonaro, quando o ex-presidente tentou levar a embaixada brasileira em Israel para Jerusalem, em claro objeção à resolução da ONU de 1948 a respeito da criação de dois Estados independentes. Lula optou por apoiar a ação sul africana na CIS e dobrar a aposta na acusação de genocídio - mais forte politicamente e mais grave juridicamente, porém bem mais difícil de ser comprovada sob a luz do direito.

Lula sabe que o tempo do Direito, especialmente das cortes internacionais, é distinto do da política, e pressões políticas se servem de interpretações políticas. E aqui não há nenhum sentido depreciativo a elas. Ao contrário. A CIS, em avaliação preliminar, se não arquivou a denúncia, tampouco mandou parar os ataques israelenses, embora alertando sobre o “risco plausível de danos irreversíveis e imediatos à população”. Os juízes também determinaram que fossem tomadas pelo governo israelense "todas as medidas em seu poder" a fim de evitar-se violações da Convenção sobre Genocídio. Tel Aviv considerou uma vitória: se pedem para evitar, é porque não se cometeu genocídio. O outro lado também se satisfez: se não arquivou, é porque indícios de crime há. 

A corte, na verdade, caracteriza-se pela prudência e, por tal, expressa-se através de medidas cautelares. Israel, de todo modo, já avisou que ignora seus julgamentos. A ausência de força coercitiva própria de instituições internacionais como a CIS e o Conselho de Segurança da ONU é sempre estímulo a transgressores do Direito Internacional. Os efeitos práticos de suas condenações frequentemente acabam restritos a constrangimentos políticos e julgamentos morais da opinião pública -de forma distinta ao TPI, que, embora lento e raro, já levou à cadeia líderes genocidas e criminosos de guerra,

A atitude do governo brasileiro não se deve a supostas relações do PT com o Hamas, como o chorume verbal da extrema direita propaga nas redes socias e no Congresso Nacional. Historicamente o governo brasileiro só aceita classificar uma organização como terrorista caso assim seja reconhecida pela ONU. É o caso, por exemplo, do Boko Haram, Al-Qaeda e Estado Islâmico. O critério independe da coloração ideológica do inquilino do Planalto: nem mesmo o governo Jair Bolsonaro o alterou, apesar das bravatas em redes sociais e entrevistas. 

Com poucas exceções, países em desenvolvimento tendem agir em função da ONU por terem como princípio basal a valorização do multilateralismo. São nessas instâncias que os mais pobres conseguem mais destaque, Além deles, Suíça e Noruega (que há anos visa mediar o conflito) também evitam o rótulo oficial, em caminho oposto ao de Estados Unidos, Reino Unido, Japão, Canadá, Austrália e nações da União Europeia. O fato do Hamas ser também um partido político e, principalmente, ter ostensivo apoio do Irã, são barreiras a alteração do entendimento no Conselho de Segurança, onde seria vetada por Rússia ou China, parceiras de Teerã. Porém, uma organização não precisa ser considerada terrorista para que seus líderes sejam julgados em tribunais internacionais.

A terminologia formal não impediu o Brasil de, na cadeira da presidência do conselho à época do atentado, propor resolução que condenava os "atos terroristas". O tom contra Israel foi progressivamente aumentando de outubro para cá. Tom que se explica pelos caminhos que Tel Aviv optou, mas também um pouco pelo raso antiamericanismo patológico que persiste em setores da esquerda brasileira - e especialmente pelo anseio em obter a simpatia de países árabes e muçulmanos na busca pela liderança do "Sul Global". 

Não é nova a ideia de que o Brasil, como potência média, deve conduzir uma coalizão de países em desenvolvimento para aumentar as concessões dos países mais ricos. Assim foi nos dois primeiros governos de Lula, quando a estratégia permitiu ganhos concretos. Além de conduzir uma integração regional que trouxe ganhos econômicos e políticos, cacifando o país na esfera internacional como líder regional, "o Brasil conseguiu abrir mercados, com aumentos expressivos nas trocas comerciais", recorda Matias Spektor, professor de Relações Internacionais da FGV, ao portal Brazil Journal.

Mas a dinâmica do sistema internacional hoje é outra, e, para que concessões sejam obtidas, é necessária a mesma exitosa interlocução alcançada com os mais ricos na década retrasada. Ao aparentar, nas palavras de Spektor, "esticar as cordas", Lula arrisca-se inviabilizá-la. A diferença entre o veneno e o remédio é a dose, e o presidente brasileiro parece acometido de inúmeras overdoses retóricas - não apenas sobre a questão palestina.

É verdade que, ao contrário do propagado pela oposição interna, a nauseante comparação com o Holocausto judeu não causou tensões maiores com os líderes ocidentais. Instados por Netanyahu a repudiarem-na, nenhum chefe de governo emitiu declarações oficiais, muito menos alguma frase indignada. Apenas dias depois, quando perguntados em entrevistas, membros dos governos norte-americanos, alemão e norueguês, como obviamente não poderia deixar de ser, disseram, em tom protocolar, discordar dele. “Temos uma discordância real sobre isso. E amigos podem ter discordâncias reais e profundas", ponderou o secretário de Estado dos Estados Unidos, Antony Blinken, após reunião com Lula. Em seu perfil no X, Blinken reforçou: "Nossas relações estão mais fortes do que nunca". Um certo exagero, dadas discordâncias em outras agendas, mas sintoma do esforço em minimizar o ocorrido. O chefe da diplomacia da União Europeia, Joseph Borrel, passou pano ainda maior: "Está claro que Lula não queria fazer uma comparação com Gaza e o que os alemães e outros fizeram“.

As preocupações com os rumos que Israel vem tomando explicam o tom complacente. Criar nova zona de atrito com o Brasil por causa da verborragia lulista seria contraproducente. O país, pelo menos por enquanto, ainda pode ajudar na busca por paz, dada sua interlocução privilegiada com os países árabes, embora o canal com Tel Aviv esteja, pelo menos a curto prazo, destruído. Balancearam corretamente os significados diferentes da fala e do crime. Se não ajudou, não prejudicou as relações com o Ocidente.

O pouco impacto nas relações internacionais, entretanto, não torna a declaração menos absurda. Discursos políticos muitas vezes pecam pela precisão conceitual e abusam de hipérboles. São instrumentos inerentes a líderes políticos em suas tarefas de convencimento sobre suas decisões políticas. Discorde-se ou não, fazem parte do jogo. Mas há limites para essas hipérboles. Ultrapassa-os quando um chefe de Estado atinge traumas profundos de alguém ou de um povo. A fala de lula foi deplorável não tanto pela gigantesca distinção dos números - afinal, genocídios não se provam por ordem de grandeza  - ou por ignorar especificidades dos métodos nazistas, cujas câmaras de gás dos campos de extermínio foram seu paroxismo mais visível. Não se trata de dar pesos diferentes a vidas humanas, "companheiros".  Foi deplorável por ser provocativa a todo um povo, não a seu governante.

Quem se aprofundou um pouco sobre os horrores da Alemanha nazista sabe o quão sem sentido é a comparação. A sistematização da barbárie, toda a política econômica de um país com pretensões imperiais voltada a sustentar e sustentar-se daquela máquina de mortes e escravidão. Os requintes de crueldade covarde na figura dos sonderkommandos, judeus selecionados obrigados, em troca da promessa de sobrevivência ( na realidade, alguns meses de vida a mais apenas), a serem os responsáveis por colocar em prática todo o brutal processo dos compos de extermínio: da recepção na estação de trens, passando pelo acionamento das câmaras de gás até o recolhimento dos corpos transfigurados para cremação.

Mas, acima de tudo, Lula abusou do direitos a hipérboles porque utilizou-se de uma barbárie cujas vítimas foram judeus como espelho para um evento onde judeus seriam os carrascos. Ao instrumentalizar politicamente sentimentos tão intrínsecos a eles, ofendeu todos eles, inclusive os muitos que nele votaram. Ao contrário do que a claque petista argumenta, o alvo, querendo ou não, ultrapassou Netanyahu. Entidades judaicas brasileiras que se levantaram contra Bolsonaro, como os “Judeus pela Democracia” e a Associação Brasil- Israel, emitiram notas de repúdio.

Em defesa de seu líder, militantes petistas preferiram inverter a discussão, apelando para suposto eurocentrismo: "o Holocausto é visto como excepcional porque envolve brancos", "Não se fala nada sobre o que Leopoldo II fez no Congo". No adestramento, são incapazes de notar ( ou fingem) que foi o próprio Lula quem reforçou o apagamento de outros genocídios ao afirmar que "o que está acontecendo na Faixa Gaza não existe em nenhum outro momento histórico", exceto "quando Hitler resolveu matar os judeus". Logo a esquerda, tão ciosa - e com razão - com o extermínio de raças e etnias na África e America Latina. 

Os nazistas não inventaram alguns de seus métodos genocidas. Houve sim inspiração em ideias e práticas colonialistas dos séculos anteriores. Mas o Holocausto foi o seu aprimoramento industrial, com técnicas cruelmente mais eficazes permitidas pelo século XX. A reação da militância estrelada, e talvez alguns nem notem, inspira-se no pilar do antissemitismo nazista: um suposto poderio político e financeiro dos judeus, que, como comunidade homogênea e articulada internacionalmente, lhes permitiria privilégios na defesa de seus interesses. Dominam o mundo, de empresas à "mídia", passando por instituições, discursava colericamente Hitler. Quem não se lembrou da Alemanha da década de 30 ao ouvir José Genoíno achar "interessante"  o "boicote a determinadas empresa de judeus"?

Afora o debate acerca do colonialismo inerente à criação de Israel, sempre houve antissemitismo em setores mais dogmáticos da esquerda, por, junto ao antiamericanismo doentio, esses setores comungarem da visão nazista de que os judeus representam a plutocracia. A diferença é que o ditador nazista culpava os judeus tanto pelos males do capitalismo financeiro como pela expansão do internacionalismo social democrata e do bolchevismo, seu inimigo visceral. Boa parte das lideranças e alguns ideólogos comunistas eram judeus ( Leon Trostsky era judeu, Karl Marx havia sido filho de judeus, por exemplo), o que incentivava a ilação.

 O que leva alguém, diante de mil inocentes barbaramente assassinados, preferir relativizar atentado terrorista com falas como "E o que Israel faz?", "É resistência!”? Sim, antissemitismo dogmático, não apenas "antissionismo" - assim como há, em setores da direita, islamofobia travestida de aversão ao terrorismo. Além da visão olavista do Islã como ameaça ao "Ocidente", pastores neopentecostais pregam uma versão bíblica acerca da origem do conflito entre palestinos e israelenses: segundo o Velho Testamento, Issac, o filho legítimo de Abraão, seria o pai do povo judeu, enquanto Ismael - o filho bastardo - o pai do povo árabe. Não é difícil deduzir as consequências práticas da suposta falta de legitimidade dos árabes perante Deus.

A fala de Lula e a reação da militância assustam por virem de quem tanto defende “lugar de fala". "Na dúvida, vale a pena perguntar pro judeu se ele se sente tocado, ofendido ou afetado por esse tipo de uso do Holocausto. Judeus não definem quando alguém pode ou não usar o Holocausto, mas definem quando alguém está sendo antissemita", escreveu em seu perfil no X o jornalista judeu brasileiro João Koatz Miragaya, que vive em Israel, é eleitor de Lula e forte crítico da direita israelense.

Assessor para assuntos internacionais de Lula, o embaixador Celso Amorim, principal ideólogo da política externa brasileira, garantiu ter sido "uma boa chacoalhada emocional" a fala de Lula. Mais do que megalomaníaca, é, ademais, uma obtusa percepção. A comparação com Holocausto ofuscou os crimes de guerra em Gaza, ao trazer para o centro do palco debates históricos em vez das mortes presentes, e vitimizou o enfraquecido governo reacionário de Netanyahu, que, por outro lado, dada sua reação circense, acabou por mostrar seu verdadeiro caráter. Acuado, dada as provas cada vez mais explícitas de sua tentativa de golpe de Estado, o bolsonarismo ganhou de mão beijada a chance de partir para o ataque, a ponto de 142 deputados assinarem um ridículo pedido de impeachment. Dobraram a aposta no golpismo, escancararam sua natureza.

Não precisa ser um grande jurista para saber que, por pior que seja a fala, em nada afeta a "soberania nacional" e que o sentido de "hostilidade" a outro país, como previsto na lei, não inclui eventuais críticas a suas ações. Do contrário, o próprio Bolsonaro deveria ter caído antes de completar seu primeiro ano de mandato. Ou esquecemos os impropérios direcionados aos governos de Venezuela, Argentina, Cuba, Chile e China? Apenas nas cabeças toscas e sonsas da extrema direita cabe ver ameaça de guerra entre Brasil e Israel. O principio da não intervenção aborda conflitos internos, princípio mandado às favas, equivocadamente ou não e também sob a justificativa dos direitos humanos, quando Bolsonaro apoiou as sondagens de invasão à Venezuela feita por Trump e reconheceu Juan Guaidó como presidente em 2019. É verdade, contudo, que possíveis pontes com o eleitorado evangélico ficaram ainda mais obstruídas .

Ao modular, na última sexta-feira, sua fala, Lula implicitamente sinalizou ter entendido o equívoco cometido. Na terça-feira, dia 27, dissimulou ao afirmar não ter utilizado a palavra Holocausto. Mas a que remete as mortes de Hitler contra judeus, Excelência? Descontado o cinismo, demonstrou novamente querer recuar sem pedir desculpas. Em sinalização aos judeus em geral, também na última terça-feira, lembrou seu perfil no X que foi, em 2010, o primeiro presidente brasileiro a visitar o Estado de Israel, "quando ninguém visitava" e reforçou seu alvo: "Nunca misturo a atitude de um povo com as ações de um governante. E o que eu quero dizer em alto e bom som: o primeiro-ministro de Israel está praticando um genocídio contra mulheres e crianças". Atendo-se à posição oficial, concorde-se ou não com a denúncia brasileira, e nela também há custos, legitimidade política - o que não denota necessariamente embasamento jurídico - a ação tem.

Jogar suas fichas na dúvida do genocídio também arrisca ofuscar a certeza dos crimes de guerra, estes sim cada vez consensuais entre líderes mundiais. Israel, por sua vez, parece não se importar com nada. Ao contrário, ministros fazem questão de deixar claro que, se as práticas não são genocidas, a essência de muitos o é. Nada mais genocida do que dizer que "o povo palestino é um povo inventado" e a sua liberdade de ir e vir pouco importa, como afirmou, na última semana, o ministro da Segurança Nacional, Itamar Ben Gvir, repetindo o que dissera meses atrás o ministro da Finanças, Bezalel Smotrich. 

Não é de hoje que políticos israelenses, a fim de se escudarem de críticas, também fazem menções à barbárie nazista. O ministro do Patrimônio, Amichai Eliyahu, no último sábado, afirmou que o presidente norte-americano Joe Biden, ao pressionar pela criação do Estado da Palestina, estaria levando Israel a "um novo holocausto". Será ele acusado de banalização antissemita? O mesmo Elyahu que, em novembro, considerara uma "opção" o uso de bomba nuclear em Gaza e afirmara ser um “erro” oferecer ajuda humanitária aos habitantes de Gaza, pois não existiam “não-combatentes” na região. Todos continuam ministros. Acuado por um julgamento de corrupção, baixa popularidade e maioria parlamentar instável, que o torna refém de seus parceiros fundamentalistas, Netanyahu, nesses casos, prefere o silêncio.

Membros do partido de Netanyahu, o Likud, e das legendas extremistas de Smotrich e Ben Gvir não se furtam em relacionar toda população palestina ao Hamas, sem vergonha de desumanizá-la em comparações com animais. Em outubro, Nissim Vaturi, parlamentar do Likud, disse que era preciso "apagar Gaza da face da Terra". Declarações que não apenas infringem a determinação da CIJ para que políticos israelenses evitem retóricas incendiárias que estimulem genocídio. Especialista em sistema penal internacional no Instituto de Estudos Internacionais de Genebra, Paola Gaeta vai além. Em entrevista ao jornalista João Paulo Charleaux, publicada na “Folha de São Paulo”, Gaeta afirma que declarações assim podem ajudar na produção de provas de crime, pois o artigo 3º da Convenção de 1948 prevê condenação por "incitamento, direto e público ao genocídio". Seria preciso comprovar os reflexos diretos nas tropas e se há clara diretriz do governo, pondera ela.

Esse rosário de declarações extremistas se somam a décadas de ocupação ilegal da Cisjordânia - ilegalidade constatada formalmente pela CIS muitos anos atrás -, privações de direitos na região que remetem, segundo ONGs, a apartheid, a promessa recente do governo israelense de construir mais três mil assentamentos no território ocupado e abusos contra civis em incursões antigas nos territórios palestinos. "A impunidade de décadas por violações generalizadas e sistemáticas dos direitos humanos encorajou Israel na sua recorrência e intensificação de crimes internacionais na Palestina”, acusou o embaixador da África do Sul em Haia, Vizdomuzi Madonsela.

O conjunto da obra estimula a acusação de genocídio. Pode fortalecer o discurso de sexta-feira de Lula, compreendido, no mínimo, como recurso para chamar a atenção da gravidade do caso. Mas a posição de Lula perde força moral por uma hipocrisia implícita: a omissão perante as ações de Putin na Ucrânia. Ainda que se possa evocar a diferença de intensidade das tragédias, são inúmeras as denúncias de crime de guerra pelo Exército russo. Putin, por sinal, às vésperas de invadir o país vizinho declarou, de forma semelhante a Ben Gvir, que "a Ucrânia é um país inventado". Não se viu nenhuma indignação no Planalto e Itamaraty; preferiram expressões protocolares como "é preciso investigar". Quando, mais tarde, surgiram denúncias de crime perpetrados também pelas forças de Zelensky, reforçaram o discurso da neutralidade. O pior viria em março passado: após o TPI condenar o autocrata russo por deportação ilegal de crianças ucranianas, acusação levada à Corte por ONGs e uma investigação da ONU, Lula chegou a afirmar que Putin não seria preso caso desembarcasse no Brasil.

Como a Rússia não reconhece o tribunal, a prisão do atual autocrata do Kremlin só é possível caso ele saia de seu país. Porém, o Brasil, como signatário do Tratado de Roma, havendo-o internalizado em sua legislação, é obrigado a cumprir as sentenças. Lula recuou depois, mas levantou a hipótese de o Brasil sair do TPI. Para ele e seu então ministro da Justiça, Flávio Dino, a ausência de potências como Estados Unidos, Rússia e China no tribunal causaria um "desbalanceamento" de suas decisões. Um argumento pra lá de discutível para quem diz defender o multilateralismo e os direitos humanos e que está longe de explicar a condenação. Como já dito, pouco importa a ordem de grandeza.

A empatia seletiva foi ecoada pela militância petista e seu apêndices, que desde a invasão russa, contaminados pelo antiamericanismo patológico, variam entre a simpatia disfarçada sob o véu da falsa neutralidade ( “assunto complexo”, “ Zelensky também não é santo”, como se o caráter do presidente ucraniano anulasse haver um país agressor e outro agredido, destruído e cuja população é a que morre), e a defesa explícita de Moscou na “ luta contra o imperialismo do Ocidente”.

Hipocrisia vista do outro lado da politica brasileira. Bolsonaro como presidente, visitou Putin horas antes da invasão da Ucrânia, quando o mundo já estava na contagem regressiva para a guerra, e disse ser "solidário" à Rússia. O mesmo Bolsonaro que, em seu primeiro ano de governo, afirmou naturalmente: "Fui, mais uma vez, ao Museu do Holocausto. Nós podemos perdoar, mas não podemos esquecer". Em 2021, recebeu em seu gabinete no Planalto, com direito a sorrisos efusivos para fotos, Beatrix von Storch, vice-presidente do AfD, partido extremista de raízes explicitamente neonazistas. Neta de um ministro de Hitler, Beatriz é figura desprezada pelas lideranças ocidentais ( exceto provavelmente a primeira-ministra italiana). Nenhuma ou pouquíssima comoção...

Neto de judeus que fugiram da perseguição nazista, o ex-ministro da Educação Abraham Weintraub comparou, em 2020, uma ação da Polícia Federal referente ao inquérito dos "atos antidemocráticos" à “Noite dos Cristais”, episódio ocorrido na Alemanha de 1938 no qual uma série de ataques a sinagogas e propriedades judaicas resultou na morte de cerca de 90 judeus. À época, o Instituto Brasil-Israel reagiu. “É risível e trágico: aqueles que incorporam a linguagem e a estética nazista agora acusam os outros da mesma coisa para se vitimizarem. Apenas parem. Vocês ofendem a memória das verdadeiras vítimas do nazismo e não enganam ninguém”. Na sociedade em geral, nenhuma comoção com a grave comparação. Alguns supostos liberais até aplaudiram-na.

A direita liberal, "isentões e diversos membros da comunidade judaica normizaram, ainda em 2018, um candidato cujo slogan de campanha era "Deus, Pátria e Família" - o lema do integralismo, a versão brasileira e de vertente católica do fascismo que, entre as décadas de 30 e 50, chegou a reunir entre 600 mil e um milhão de filiados. Em seu livro "O fascismo em camisas verdes - do integralismo ao neointeralismo", Leonardo Pereira Gonçalves e Odilon Caldeira Neto recordam a moção de aplauso a Gumercindo Rocha Dórea proposta, em 2017, pelo hoje deputado Carlos Jordy, uma das principais vozes do bolsonarismo fluminense, à época vereador por Niterói. Dória, morto em 2021, ao 96 anos, foi membro da Ação Integralista Brasileira (AIB) e dono de uma editora que divulgava livros integralistas. Gustavo Barroso, um dos fundadores da AIB, é considerado até hoje o principal intelectual antissemita brasileiro. Em discurso, Jordy declarou: "Embora eu não seja integralista, esse movimento teve importância muito grande para nosso pais. Vivíamos sob ameaça do comunismo". Representante de Dórea no evento no Legislativo niteroiense, Breno Zarranz foi assediado para fotos por Flávio Bolsonaro.

Dois anos depois, a então ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves nomeou como assessor especial Paulo Fernando Melo Costa, então presidente do diretório do Distrito Federal da Frente Integralista Brasileira (FIB) , embora hoje nas franjas da sociedade, atualmente a principal organização neointegralista do país. Em sua campanha para deputado federal, Costa recebeu apoio entusiasmado de Damares Alves, que, em áudio divulgado pelo jornal "O Tempo", justificou-o, admitindo que a FIB tem "pautas muito parecidas" com as dela e minimizou: “O movimento integralista, pelo que conheço, defende Deus, Pátria, Família e essa é a minha bandeira".

Em 2015, Carlos Bolsonaro convidou o professor Marco Antônio Santos para discursar na Câmara dos Vereadores carioca em defesa do Escola sem Partido. Santos apareceu na Câmara usando bigode e cabelo típicos de Hitler, além de vestido com uniforme semelhante ao do Exército alemão, repleto de broches como a Cruz de Ferro nazista. Foi proibido de discursar pela Mesa Diretora da Casa por estar travestido de ditador nazista. Mesmo assim, Jair Bolsonaro, presente à sessão, aceitou tirar fotos ao seu lado. Basta um "google" para constatar a bizarra foto. Em 2016, quando se candidatou a vereador pelo PSC, Santos recebeu doação de pouco mais de mil reais do então colega de partido Flávio Bolsonaro.

O mesmo Jair , que, em 2011, foi homenageado por grupos neonazistas por ser "o único deputado que bate de frente com esses libertinos e comunistas" em uma vão do MASP após dar declarações homofóbicas. Agradeceu, não refutou. Nada a surpreender vindo de quem, em 1995, defendeu estudantes do Colégio Militar gaúcho que haviam escolhido Hitler como o personagem histórico mais admirado. Em discurso na Câmara, o então deputado, preferiu, como sempre, atacar a "grande mídia, um tanto servil". Os alunos, disparou com a naturalidade de sempre quando defende barbaridades, teriam entendido que, "de uma forma ou outra", o ditador alemão soubera impor "ordem e disciplina". Enfim, no mínimo, um repositório de banalizações.

O mesmo bolsonarismo, dizendo-se cristão, ousa comparar as prisões de janeiro de 8 de janeiro de 2013 a campos de concentração e veem como "preço" inevitável do conflito as milhares de mortes de crianças e mulheres, incorporando acriticamente as justificativas de Netanyahu. Para eles, criticar os excessos do primeiro-ministro israelense é "defender terrorista". Bolsonaro, sua esposa e aliados neopentecostais instrumentalizam - olha aí essa palavra de novo - de forma religiosa o conflito. Não exaltam a Israel real, diversa e progressista em relação a aborto, drogas, casamento homoafetivo e cuja capital reconhecida por quase toda comunidade internacional é a rica e cosmopolita Tel Aviv. Defendem a Israel bíblica, região do "povo escolhido por Deus".

Flertando com o extremismo de Ben Gvir e assemelhados, esses líderes evangélicos afirmam que a retomada pelos judeus da "Terra Santa" - e aqui se inclui também Gaza e Cisjordânia - é condição profética para a Segunda Vinda de Cristo. A valorização do Antigo Testamento, de onde se extraem os textos da Torá judaica, relegando o Novo Testamento, no qual se encontra o evangelho de Jesus Cristo, chama a atenção de estudiosos. Não importa que, para os judeus, Jesus Cristo seja um falso profeta. O que importa são as vantagens políticas sacadas dessa interpretação.

É preciso admitir, que, enquanto o Hamas tiver força política e militar, a paz não estará garantida na região. A eliminação de Israel é sua essência, o que, no entanto, não deve significar permissão a Israel para manter-se nos territórios ilegalmente conquistados e agir alheio ao direitos internacional e humano. Eventos históricos estão aí para que aprendamos com eles, identificando os processos que culminaram na barbárie antes que novos aconteçam, mas comparações provocativas só servem para criar cizânias em vez de soluções.

Lula apostou alto na acusação de genocídio. O futuro dimensionará a denúncia e o lugar do presidente brasileiro no conflito. Algumas certezas há, no entanto. A primeira é que Netanyahu e seu gabinete são criminosos de guerra. A segunda, que há em curso, em setores da opinião publica, uma normalização do desprezo com que militares e políticos israelenses lidam com milhares de vidas civis palestinas, seja por dolo ou negligência. E a terceira é: assim como há empatia seletiva, há histeria seletiva, com falsas equivalências entre falas ofensivas e crimes de guerra.

Entre palavras de ordem tiradas de seus almanaques ideológicos e repetidas como papagaios, parcelas da direita e esquerda mostram não querer entender o mundo nem buscar consensos. Desejam apenas reverberar seus mantras. Moldar a realidade a partir de suas preconcepções, não o contrário. Horas depois da verborragia de Lula sobre o Holocausto, uma hastag levantada pela militância petista entrou nos trending topics: "Lula tem razão". O mesmo predicado utilizado por bolsonaristas na defesa de seu mito em redes sociais. Na Itália da década de 20, cartazes pelas ruas do país continham os dizeres "Mussolini ha sempre ragione” - em português, "Mussolini tem sempre razão"...

*Murillo Victorazzo é jornalista, com MBA em Relações Internacionais (FGV-Rio) e Especialização em Política & Sociedade (Iesp-UERJ)

sábado, 9 de dezembro de 2023

A chance de Lula

 Por Murillo Victorazzo

Dentre as tradições da política externa brasileira que atravessaram governos de diferentes conotações ideológicas, duas são basais: a preocupação em manter os Estados Unidos distantes militarmente da América do Sul e a busca por exercer a liderança da região, papel inato do país dado seu tamanho, população, localização estratégica e força econômica relativa. Tradições relegadas apenas nos raríssimos e fracassados alinhamentos automáticos à superpotência praticados pelos ex-presidentes Dutra, Castelo Branco e Bolsonaro. É também traço histórico do Brasil ser o fiador da estabilidade do subcontinente, área reconhecida internacionalmente como "zona de paz", por, desde o final do século XIX, não ter histórico de guerra entre suas nações, exceto o conflito entre Peru e Equador, na década de 40.

Todas essas marcas passaram a estar ameaçadas desde que o ditador venezuelano Nicolas Maduro deu início a uma série de medidas que visam anexar o território guianês de Essequibo, emulando assim outros autocratas que, fragilizados internamente, procuraram em um inimigo externo o estímulo ao nacionalismo capaz de unir a população em torno de si. De uma tacada só, Maduro colocou a região sob crise incomum e importou para cá um embate entre potências capaz de desestabilizá-la profundamente. Crises, contudo, são oportunidades. E essa pode ser uma ótima para quem tem especial prazer pelo protagonismo nos palcos internacionais, como o atual presidente brasileiro.

A última semana foi repleta de atos que elevaram a tensão na América do Sul. A realização do plebiscito destinado a legitimar a aventura do ditador, a distribuição de mapas oficiais com o território já sob domínio de Caracas e a elaboração uma de lei para torná-lo província venezuelana ( a província da "Guiana Essequiba") vieram acompanhadas da criação, sob o comando de um general, de uma "zona de defesa integral" na fronteira com Essequibo.

Em resposta, os Estados Unidos anunciaram, na quarta-feira, dia 6, exercícios militares em conjunto com as débeis forças de defesa guianesas ( cerca de apenas 4 mil homens). Sobrevoarão em especial o território em disputa. Maduro, por sua vez, declarou que viajará a Moscou este domingo, dia 9, a fim de encontrar-se com Vladimir Putin, seu notório aliado. Rússia, aliás, grande fornecedora de armas para a Venezuela, com quem já realizou treinamentos militares no Caribe.

Essequibo representa cerca de 70% do território da Guiana. Lá vivem quase 300 de seus 800 mil habitantes, Território rico em ouro e diamante, voltou a ser reivindicado pela Venezuela em 1966, quando o país vizinho deixou de ser colônia britânica. Georgetown, por seu lado, considera as fronteiras ratificadas desde o Painel de Arbitragem de Paris, em 1899. A disputa, contudo, ganhou força a partir de 2015, quando no local foram descobertos poços de petróleo, explorados desde então pela multinacional norte-americana ExxonMobil. Foi após o governo guianês leiloar, em agosto, nova leva de bloco do combustível que Caracas convocou o plebiscito.

Instância mais alta da ONU para resolução de conflitos interestatais, a Corte Internacional de Justiça (CIJ) ainda analisa o mérito do litígio, provocada pela Guiana a validar a arbitragem de 1899. No entanto, dias antes do plebiscito, os juízes, por unanimidade, haviam proibido Caracas de alterar unilateralmente o status atual da região. Maduro, porém, não só não reconhece a jurisdição da CIJ como, em uma das perguntas da consulta, perguntou à população se a Venezuela deveria ou não reconhecê-la. Metade dos eleitores aptos a votar deram-lhe a retumbante vitória por 95%, o que alimenta diversas teorias e interpretações.

Não se sabe até aonde Maduro irá. A Guiana já declarou que pode invocar os artigos 41 e 42 da Carta da ONU, dispositivos que autorizam sanções ou ações militares dos Estados membros para manter ou restaurar a paz e a segurança internacionais. O objetivo do ditador venezuelano é iminentemente político. A entrada de Washington em cena vai ao encontro de seu objetivo: a "ameaça imperialista", seu eterno mantra, torna-se mais palpável, grande oportunidade para atrair setores não conservadores descontentes com seu governo. Embora críticos a maneira como se desenvolveu o plebiscito, a oposição venezuelana também considera direito de seu país reivindicar Essequibo.

Um conflito externo é ainda excelente álibi para adiar as eleições presidenciais, marcadas para o ano que vem após negociações envolvendo Brasil e Estados Unidos, um processo que incluiu a suspensão das sanções econômicas norte-americanas contra a Venezuela. Certeza por hora apenas uma: Maduro atraiu para a America do Sul poderosos (e nuclearizados) atores extrarregionais - tudo o que Brasília sempre buscou evitar.

A histórica rejeição brasileira à presença norte-americana no subcontinente vai além do antiamericanismo visceral inerente a setores da esquerda brasileira. Tem muito mais a ver com geopolítica e a necessidade de manter a superpotência distante da região a partir da qual o Brasil, como líder, busca projetar poder perante o mundo. É o papel de uma potência regional. Foi por essa razão que o ex-presidente Fernando Henrique recusou apoio ao Plano Colômbia, projeto dos Estados Unidos de financiar e enviar tropas para treinar o Exército colombiano na "guerra às drogas". A ditadura militar, apesar do apoio político de Washington e sua cooperação no combate às guerrilhas de esquerda, tampouco se mostrava favorável à presença de militares norte-americanos, especialmente quando se tratava da região amazônica.

Entre as décadas de 50 e 80, a principal ameaça teórica de conflito bélico no subcontinente deu-se entre Brasil e Argentina. As academias militares brasileiras dispendiam tempo estudando estratégias voltadas à Bacia do Prata. Ao contrário de atualmente, os comandos militares da região Sul mereciam atenção especial. A construção de Itaipu elevou as preocupações argentinas, momento no qual se escalou a tensão entre os dois países. A aproximação se iniciou com a queda das duas ditaduras militares. Detentor de grande parte da costa ocidental do Atlântico Sul, foi o Brasil, em 1986, durante o governo Sarney, quem propôs a criação da Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul (ZPCAS), iniciativa logo apoiada pelo então governo "hermano" de Raul Alfonsín. Do lado sul-americano, aderiu também o Uruguai, além de 20 países africanos.

Transformada em resolução da ONU - com o voto contrário dos Estados Unidos, que consideram a zona de paz com contornos geográficos mal delimitados, a ZPCAS, na prática, limita-se a um fórum que busca evitar a proliferação nuclear e incentivar a cooperação regional, inclusive em segurança e defesa, entre seus membros. Tinha como objetivo implícito afastar a presença militar de países externos a ela, em um ambiente de fim de Guerra Fria, quando Washington e Moscou tentavam manter o mundo dividido em duas áreas de influências.

Segundo a típica interpretação antiamericanista, Washington, diante do escasso hard power brasileiro (força bélica) e a nossa pouca afeição por engajamentos militares, aproveitaria a crise para "fincar o pé" no nosso "quintal". A realidade, entretanto, é diferente. Envolvido nas guerras da Ucrânia e Gaza, tudo o que o presidente norte-americano Joe Biden não deseja é desgastar-se em outra zona de conflito. Faz tempo que a América Latina ocupa espaço secundário na política externa norte-americana, apesar de toda celeuma que causa a Venezuela na direita do país. Defender os interesses de suas empresas, contudo, é imperativo a qualquer país. Biden já pediu a intermediação do Brasil. Não é de hoje, aliás, que Washington confia em Lula para segurar impulsos de ditador venezuelano. O conservador George W.Bush, com quem o petista tinha boas relações, considerava-o o "irmão" moderado de Hugo Chavez, o "adulto na sala".

O diálogo, porém, não esmorece o intuito do Itamaraty de afastar a superpotência da região. Na reunião de cúpula do Mercosul, realizada na quinta-feira, dia 7, Lula propôs a declaração conjunta na qual o bloco alerta que "ações unilaterais devem ser evitadas" e ofereceu Brasília para sede das reuniões entre as partes. Ao pedir pela participação da Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac) nas negociações, deixou implícito não desejar a intervenção das Organizações dos Estados Americanos ( OEA), onde os norte-americanos têm muita força.

É de se esperar que, caso o conflito escale militarmente, o Conselho de Segurança da ONU volte a mostrar a paralisia habitual, vista recentemente nas votações sobre as guerras da Ucrânia e Gaza. A depender da resolução proposta, haverá veto dos Estados Unidos ou da Rússia. Os atores regionais precisarão atuar, e neste caso Lula encontra-se em posição privilegiada, tanto pelo peso do Brasil no subcontinente quanto pela proximidade partidária com Maduro.

Apesar do histórico de complacência com o regime chavista, o presidente brasileiro sinaliza entender os riscos que a crise gera para seu governo. Por mais que os conflitos na Europa e no Oriente Médio despertem emoções no Brasil e Lula não tenha obtido êxito na tentativa de influenciá-los, o ônus foi baixo para ele. Cenário bem diferente de uma guerra em nossas fronteiras, onde os efeitos colaterais iriam além do revés para as tradicionais pretensões de nossa diplomacia. Haveria consequências práticas para os brasileiros da região. Roraima é um estado que, além de contar com diversas terras indígenas (assunto tão caro à esquerda), já encara os custos de acolher os refugiados da decadência econômica venezuelana, fluxo que tenderia aumentar, agora também podendo incluir guianeses. É ainda o único estado não conectado ao Sistema Interligado Nacional (SIN), dependendo muitas vezes da importação de energia venezuelana.

Militares e especialistas ressaltam que, diante das densas florestas que caracterizam a fronteira entre Venezuela e Guiana, estradas em território brasileiro seriam os acessos mais fáceis à Essequibo, o que leva alguns aventarem a hipótese de que, para uma incursão em larga escala, tropas venezuelanas teriam que passar por dentro do país. "Por terra, a opção da Venezuela seria se deslocar pela Ruta 10 e ingressar no Brasil, descendo até a BR-174", diz Ronaldo Carmona, professor de geopolítica da Escola Superior de Guerra (ESG) à BBC Brasil. Nesse caminho, perto da fronteira entre Roraima e Essequibo, encontra-se a Terra Indígena Raposa Serra do Sol.

O Brasil jamais aceitaria ceder território às aventuras de Maduro, o que, se por um lado, é um empecilho ao ditador, pode representar uma inédita tensão entre Caracas e Brasília. O Exército brasileiro já dobrou o pequeno contingente na área ( 200 militares) e deslocou 16 veículos blindados para um pelotão de fronteira localizado na cidade roraimense de Pacaraima.

Há 15 anos, revelou o jornalista Jamil Chade em sua coluna no UOL, Lula, em seu segundo mandato, já temia que o então ditador venezuelano Hugo Chávez invadisse a Guiana. É o que mostram documentos da diplomacia norte-americana revelados pelo grupo WikiLeaks. Segundo a CNN Brasil, o presidente teria externado a auxiliares impaciência com Maduro, ameaçando romper com ele caso a retórica dê lugar às armas - cenário, por enquanto, pouco provável. Os custos para Venezuela são muito altos: além das consequências políticas de violar o direito internacional para um país periférico ( Caracas não é Moscou ou Washington), a guerra imporia mais gastos a uma economia em frangalhos que aparenta dar alguns sinais de sobrevida após o levantamento das sanções norte-americana.

No entanto, mexer com nacionalismos é um barril de pólvora que muitas vezes sai do controle de quem os estimulou. Pessoas podem agir por conta própria, forçando líderes a fazer o que não planejavam. Após realizar o plebiscito, até onde Maduro pode ignorá-lo? Segundo a Folha de São Paulo, em novembro, antes, portanto, da consulta, emissários do venezuelano disseram ao governo brasileiro que, dependendo do resultado, ele poderia "ser forçado pelo povo" a agir.

Neste sábado, Guiana e Venezuela anunciaram uma reunião entre os dois presidentes em São Vicente e Granadinas na próxima quinta-feira. Lula foi convidado a ir como observador. Em entrevista exclusiva à GloboNews, o presidente guianês, Irfaan Ali, disse esperar que o Brasil "tenha um papel de liderança". A última guerra na América do Sul, em 1982, explodiu por culpa de um ditador em apuros internos que buscava no nacionalismo sua sobrevivência política. Foi quando o almirante Gualtieri jogou a Argentina em um conflito insano contra o Reino Unido em torno das ilhas Malvinas. Racionalmente não fazia sentido algum.

Perigando tornar-se um Galtieri de esquerda, Maduro já deixou claro não se importar com o aliado petista e ignorar a liderança brasileira na região. Não teria corrido para os braços de Putin caso pensasse o contrário. Da pior maneira, Lula e a militância petista talvez enfim tenham que admitir que Maduro é um autocrata - e, como todo autocrata, não é confiável. Antes tarde do que nunca. A bola está contigo, Lula.

terça-feira, 14 de novembro de 2023

Rio de Janeiro: a idealização e o paroxismo brasileiro

Por Murillo Victorazzo

Fundada por Estácio de Sá a fim de proteger o território além-mar português de recorrentes tentativas de invasões francesas, o Rio de Janeiro, de uma pequena cidade colonial mal planejada, apertada entre morros e o mar, foi progressivamente se tornando a principal cidade do país. Alçada a sede do Vice-Reino do Brasil em 1763, esse protagonismo se potencializou com a chegada da família real portuguesa em 1808 e sua consequente transformação em capital do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. O novo status significou o início de profundas transformações urbanas na cidade. Ocorridas por todo século XVIII até chegar ao início do século passado, essas intervenções refletiam um projeto político de nação. Com elas, entretanto, realçavam-se contradições e desigualdades sociais, uma marca que não cessaria com o tempo.

A chegada da Corte representou não apenas o início da formação de uma nova nação, mas também a construção de um império na América. As mudanças já eram visíveis nos dois meses que antecederam a chegada de Dom João VI: edificações foram desocupadas, e as casas mais requintadas requisitadas para receber a família real e a burocracia que com ela chegava - uma máquina administrativa inflada por cargos recém-criados apenas para atender recém-chegados desprovidos de renda garantida. “Alguns proprietários se defendiam da ‘invasão de fidalgos` simulando ou mesmo realizando obras perfeitamente dispensáveis. Obras eternas...”, lembram Lília Schwartz e Heloisa Starling em seu livro "Brasil, uma biografia" (2015). 

Alargaram-se ruas para a passagem de veículos de maior porte da nobreza e, com a abertura dos portos ao livre-comércio, rompendo com o “pacto colonial”, produtos e empreendimentos estrangeiros se difundiram rapidamente na cidade, diversificando o comércio local. O novo cenário atraía imigrantes, que cada vez mais passaram a incorporar à cidade novos hábitos cotidianos.

Em 1808, a cidade tinha, segundo estimativas, cerca de 60 mil habitantes, sendo metade escravos. Doze anos depois, dos 90 mil moradores, 38 mil eram cativos. “Tratava-se desde Roma da maior concentração de escravos, com a particularidade de que, no Rio de Janeiro, seu número se equilibrava com as dos descendentes europeus (...) O Rio de Janeiro parecia uma cidade da costa d´África, com desfile de grupos de diferentes origens que portavam orgulhosamente escarificações e marcas da nação no rosto e corpo”, afirmam Schwartz e Starling.

Simultaneamente, pela importância de seu porto, escoadouro dos principais produtos de exportação do país e de localização estratégica no oceano Atlântico, a cidade, antes mesmo de tornar-se capital, já era a principal via de ligação com a Europa. Com o novo status, tornava-se ainda mais a porta de entrada não apenas de produtos e mão de obra mas especialmente das ideias iluministas que pulsavam no Velho Continente. 

Era essa a cidade que, segundo a nobreza instalada e a elite, precisava “civilizar-se” a fim de condizer com o papel de capital de um vasto império transatlântico. Arquitetura é ideologia, e esta se refletiria em projetos para modernização urbana da cidade. “A vinda da família real foi o primeiro momento em que a ideia de civilização começaria a ser articulada ao território da cidade”, diz Amanda Carvalho em seu artigo "Rio de Janeiro a partir da chegada da Corte: planos, intenções e intervenções no século XIX" (2014).

Se, até 1810, o monarca se preocupara mais com medidas administrativas, a partir de 1811, o foco passou a ser esse “banho de civilização”, iniciado com a criação do Horto Botânico, o Real Teatro São João e, em 1816, a Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios. No mesmo ano, chegou a Missão Artística Francesa, formada por pintores, arquitetos, escultores, artesãos, entre outros artistas. 

No entanto, assim como a multiplicidade cultural, o ideal “civilizatório” não se limitou ao período joanino. Ao contrário, foi a marca do Rio de Janeiro imperial e do início republicano. O intuito era tornar a capital uma “Europa Tropical”, o que levou a cafeterias elegantes, bailes, teatros, palacetes, calçamento com paralelepípedos, iluminação à gás, bonés puxados a burros, amplas avenidas retas e bem iluminadas, parques públicos bem arborizados e madames e cavalheiros trajados com tecidos e modelos europeus dividirem o mesmo espaço com as estruturas escravistas que sustentavam a economia brasileira. 

Em um emaranhado cultural que contava com gente de diversas nacionalidades europeias, ganhou proeminência a cultura francesa, não por acaso origem de grande parte dos pensadores iluministas “A Rua do Ouvidor transformava-se no símbolo direto dessa nova urbanidade, segundo a qual se pretendia viver nos trópicos como nos bulevares europeus (...) O modelo era a Paris burguesa, contudo a realidade local oscilava entre bairros elegantes e ruas onde só se notava o trabalho escravo e dos libertos”, sendo essas muitas vezes ruelas mal iluminadas e com esgoto a céu aberto, explicam Schwartz e Starling.

Nesse longo processo de reforma urbana, o grande marco foi a construção, em 1905, da Avenida Central (hoje Avenida Rio Branco). Cortando de “mar a mar” a Cidade Velha, a obra demoliu cerca de 700 edificações. Também marcantes foram as implosões dos morros do Castelo e Senado, justificadas como necessárias para o “embelezamento, salubridade e ventilação” da cidade, e a canalização do mangue na Cidade Nova, em paralelo à abertura de uma larga e longa avenida, a atual Avenida Presidente Vargas.

Por todo o século XVIII, em meio a tamanhas transformações, o contraste entre o real e o idealizado se viu ainda mais flagrante, por mais que, para a Corte,  nas palavras de Schwartz e Starling, “o mundo escravo e o mundo do trabalho deveriam ser não só transparente como silenciosos". Em 1849, o Rio de Janeiro continuava a ser a maior concentração urbana de escravos no mundo desde o fim do Império Romano, em uma proporção de 41% da população. No núcleo central da Corte, onde se encontrava seus principais prédios públicos e o comércio mais importante do país, dos 206 mil habitantes, 79 mil - 38% - encontravam-se escravizados, trazendo consigo todo tipo de violência, da simbólica à física, decorrente desse sistema.

Segundo Carvalho, a pretensão civilizatória, diante do cenário real, obrigava “a marginalização da estética e das práticas que não conseguiam refletir essa mudança”. Como porta de entrada do país, as classes mais baixas precisaram ser afastadas no centro geográfico de poder da cidade. Assim foi com a demolição, para a abertura da Avenida Central, de inúmeros cortiços, fonte de insalubridade para o então prefeito Pereira Passos. Essas moradias coletivas de precárias condições sanitárias foram brilhantemente retratadas em uma das obras mais clássicas da literatura brasileira, "O Cortiço", de Aloísio Azevedo, escrito em 1890. 

As camadas mais pobres deveriam ir para os subúrbios – que já tinham uma rede de transporte público - ou para as favelas, já existentes desde 1897. O choque entre esses dois lados do Rio de Janeiro reforçava o que Sandra Pesavento, em seu livro "O Imaginário da Cidade – Visões Literárias do Urbano" (1999), chama de “aspecto metonímico da reforma urbana” – o embelezamento de um detalhe da cidade, expondo a relação entre o ´ser´ e o ´parecer`”.

Como capital, a modernização do Rio de Janeiro significava a modernização de uma nação em processo de construção. O Rio de Janeiro levaria o Brasil ao “caminho da civilização”, diz Pesavento. Em uma sociedade majoritariamente analfabeta, acrescenta Carvalho, a iconografia se apresentava como “importante instrumento para construção e fortalecimento da pátria local”. Contudo, além de idealizar uma cidade que estava longe de refletir sua realidade, o Rio de Janeiro em construção pouco tinha a ver com o país real que pretendia representar. As cidades brasileiras eram ilhas cercadas de um ambiente rural onde imperavam a escravidão, o latifúndio, o mandonismo dos oligarca rurais e a religiosidade. A antítese das ideias liberais.

O desejo de montar um aparato laico em relação as artes e a intenção de impor uma nova cultura artística” iam de encontro à tradição do país. Por exemplo, visto em muitas das edificações e obras produzidas na capital, o estilo neoclássico francês, instrumento da Revolução Francesa, contrapunha-se ao barroco de cunho católico, tradicional no Brasil a partir do interior mineiro, região que ganhara relevância econômica graças ao “ciclo do ouro”. Sua proximidade com o porto carioca, aliás, havia sido uma das razões do crescimento em importância da almejada "Paris tropical".

O Rio de Janeiro oitocentista representava uma capital litorânea que mirava a Europa enquanto dava as costas para o interior, ainda que os insumos de sua força econômica viessem de lá. Mas o Brasil urbano era uma miragem. As capitais representavam menos de 10% da população em 1890, sendo 60% desse contingente concentrado em Rio de Janeiro, Salvador e Recife. 

“Percebe-se, portanto, ao mesmo tempo a importância da corte como centro irradiador, mas também seu caráter de exceção. A moda era para poucos. A escravidão e o abandono do habitante do Brasil profundo eram e seriam até o final do reinado de Pedro II as grandes contradições de seu império que se pretendia civilizado”, argumentam Schwartz e Starling. Contradições que pouco se alterariam com a Abolição e as primeiras décadas República, durante as quais a estrutura socioeconômica permaneceu praticamente a mesma.

Se o intuito das elites e da nobreza fora o apagamento do Brasil real, a realidade se sobrepôs ao reforçar desigualdades e violências. O Rio de Janeiro, ao mesmo tempo que em muitos aspectos diferenciava-se do Brasil, continha em si os principais males do país. Idealizada como marco civilizatório nacional, até mesmo pelas restrições administrativas intrínsecas ao fato de ser capital federal ironicamente não foi a primeira região brasileira a abolir a escravidão, posto ocupado pelas “longínquas” províncias do Ceará e Amazonas quatro anos antes da Lei Áurea. 

Provavelmente o melhor retrato das especificidades contraditórias cariocas se deu no porto da cidade, em muito responsável por sua elevação à principal cidade do país. Por lá chegaram os ideais liberais do “Século das Luzes”, mas também por lá chegavam os escravos, principal símbolo do Brasil arcaico. Porto este que foi o maior mercado de cativos do mundo, recebendo, em menos de um século, um dos quatro milhões de escravos desembarcados no Brasil durante os cerca de 300 anos de escravidão. 

Assim como a beleza natural inigualável, a "Cidade Partida" a que se referiu Zuenir Ventura em seu livro homônimo (1994) está no gene carioca. Nela, o imaginário continua a se confrontar com o real. Desde sempre, em maior ou menos intensidade, o Rio de Janeiro, gostem ou não ainda o cartão postal do Brasil, foi o projeto almejado e, nas virtudes e nos defeitos, o paroxismo do país. Seja ou não sua capital. A "cidade maravilha, purgatório da beleza e do caos" cantada por Fernanda Abreu.