quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Novo ministro terá difícil missão de recuperar prestígio do Itamaraty

Por Mariana Schreiber (UOL/BBC Brasil, 31/12/2014)

O atual embaixador brasileiro em Washington, Mauro Vieira, assume o cargo de ministro das Relações Exteriores em um momento delicado para o Itamaraty, de crescente insatisfação do corpo diplomático com o desprestígio do órgão dentro do próprio governo.

No Itamaraty desde os anos 70, ele foi anunciado nesta quarta-feira para substituir o atual chanceler Luiz Alberto Figueiredo, que ocupará seu posto na capital americana. Vieira será empossado amanhã, junto com os demais 38 ministros que acompanharão a presidente Dilma Rousseff em seu segundo mandato.

Segundo analistas, o novo chanceler terá a difícil missão de estabelecer uma boa comunicação com a presidente e aumentar a importância da política externa no governo Dilma. Após ganhar prestígio e se expandir durante os governos Lula, o ministério teria sido colocado de lado no primeiro mandato da atual presidente, perdendo relevância política e peso no orçamento federal.

"O Itamaraty está marginalizado no momento. Está subutilizado e muito enfraquecido", afirma Oliver Stuenkel, professor de Relações Internacionais da Fundação Getulio Vargas.

Os recursos destinados ao Itamaraty cresceram em ritmo menor que as despesas do governo federal nos últimos anos, o que reduziu sua relevância no orçamento. A fatia do Ministério das Relações Exteriores (MRE) nos gastos totais federais (somadas a despesas dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário) caiu de 0,17% em 2008 para 0,11% em 2014 (considerando os valores empenhados, ou seja, liberados, até dia 23 de dezembro).

Em valores absolutos, os recursos destinados ao MRE cresceram 25% neste período, para R$ 2,6 bilhões neste ano. Já o gasto federal total praticamente dobrou no período, com uma alta de 96% para R$ 2,473 trilhões.

O crescimento dos recursos seria insuficiente para bancar a expansão da estrutura do Itamaraty, que no governo Lula abriu 77 novas embaixadas, consulados e representações, um aumento de mais de 50% ante os 150 existentes até então. Na semana passada, o jornal Folha de S.Paulo revelou que a falta de recursos levou o MRE a atrasar o pagamento de aluguéis em pelo menos cinco postos no exterior. Além disso, funcionários teriam ficado três meses sem receber auxílio-moradia.

"Há uma certa preocupação nesse campo. O Brasil prometeu, sobretudo aos países em desenvolvimento da África, participar do seu desenvolvimento, e já se sabe que nas capitais africanas o Brasil não tem meios para concretizar essa diplomacia. Então, seria uma diplomacia oca, sem capacidade de realizar os projetos que foram lançados", critica José Flávio Saraiva, professor de Relações Internacionais da Universidade de Brasília.

Stuenkel observa que a política externa não tem papel de destaque no governo Dilma como tinha no de Lula e isso afeta a capacidade de atuação do ministério porque "a moeda de poder em Brasília é a atenção da presidente".

Se o Itamaraty não é visto como órgão prestigiado, explica, receberá menos recursos do Ministério do Planejamento e menos atenção de outros ministérios, que passam a exercer função do Itamaraty, como as negociações de comércio exterior.

Mauro Vieira, que antes de assumir o mais alto posto em Washington em 2010 foi embaixador em Buenos Aires por quase sete anos, tem reconhecida experiência diplomática para assumir a função de chanceler. A dúvida, ressalta Stuenkel, é se terá força política para elevar o prestígio do Itamaraty junto ao Planalto.

"O novo ministro vai ter que ter capacidade política. Os dois anteriores (Figueiredo e seu antecessor, Antônio Patriota) não conseguiram estabelecer um canal com a presidente. É uma das posições mais difíceis porque a expectativa é muito grande e a tropa (o corpo diplomático) esta muito desanimada", afirmou.

Os dois professores consideram que a forma de governar da presidente, muito centralizada em si própria, engessa a política externa. "A classe diplomática está amuada porque as decisões praticamente não são tomadas no Itamaraty. É preciso garantir ao novo ministro uma autoridade internacional. O atual chanceler, apesar de excelente diplomata, não pôde trabalhar", disse Saraiva.

Em um momento em que o Brasil perdeu espaço no comércio global e fechará o ano com déficit na balança comercial pela primeira vez desde 2000, aumentaram as críticas também a uma suposta falta de atuação do Itamaraty na abertura de mercados para as empresas lá fora. Um dos motivos apontados para a saída do atual ministro Alberto Figueiredo seria sua pouca experiência na área de comércio exterior.

O presidente da Associação de Comércio Exterior do Brasil, José Augusto de Castro, defende "um Itamaraty mais voltado para o comércio". "Nós sentimos que o mundo hoje tem uma diplomacia comercial e nós continuamos com uma diplomacia diplomática. As chancelarias do mundo deixaram de cuidar apenas da parte institucional do país para também cuidar da parte comercial, pois tudo hoje são acordos, sejam bilaterais ou multilaterais", afirma.

Na sua avaliação, a abertura dos mercados forçaria o governo a adotar medidas estruturais que elevem a competitividade brasileira, como reforma tributária e melhoria da infraestrutura.

Já o professor da FGV Oliver Stuenkel considera que o poder do Itamaraty nesta área está superestimado. "Tem gente que diz que o Brasil precisa de um caixeiro viajante como o Lula que possa vender o Brasil lá fora. Mas isso não existe, o mercado não funciona assim. A conquista de mercados é muito mais em função da capacidade da indústria brasileira de competir internacionalmente", afirma.

Para Stuenkel, o Itamaraty precisa se comunicar melhor com a sociedade brasileira para tornar mais claro o seu papel. Na avaliação dele, o órgão pode ser muito importante também na agenda doméstica, utilizando acordos internacionais nas áreas de direitos humanos e ambiental para pressionar por melhores políticas internas.

"O próximo chanceler tem que dar ênfase à interação com as ONGs, com os jornais, com o mundo acadêmico, com a sociedade civil em geral. Hoje em dia ninguém se importa com a situação ruim do Itamaraty porque não é clara qual sua importância", disse.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

Dia 2/12: Salve o samba!


"Eu vou ficar, no meio do povo, espiando. Minha escola perdendo ou ganhando. Mais um carnaval. Antes de me despedir, deixo ao sambista mais novo o meu pedido final: não deixa o samba morrer, não deixa o samba acabar. O morro foi feito de samba, de samba para gente sambar".

 Dia 2 de dezembro, dia nacional do samba! O samba me deu amigos, o samba já me serviu de terapia. Quantas vezes meio pra baixo uma quadra não me animou?! O samba é a sintetização do brasileiro em música: alegre, criativo, irreverente, agrega pessoas.

 Aos que não gostam, azar o deles! Aos meus amigos do samba, um parabéns pra nós!!! E aos mestres-bambas, uma reverência!

Minha mãe

Hoje dia 2, algumas décadas atrás - certamente bem mais do que ela gostaria,por isso é melhor não especificar quantas -, nascia a mulher que foi, é e sempre será a mais importante da minha vida, posto que só se verá ameaçado caso, um dia, tenha uma filha (afinal, dizem que, por maior que seja o amor de um filho por seus pais, sempre será menor do que o deles por sua cria. Não sei). A única que sempre me dedicou amor incondicional e a quem sempre dedicarei o mesmo. Amor recíproco interminável.

Taí, se a relação mãe e filhos já é especial, acho que nada se compara a ligação de um filho homem com elas -para desgraça das noras..rs...

O tempo passará, e seu colo será ainda o melhor lugar do mundo para desabafar, receber carinho e atenção. Envelhecerei e ela continuará rindo das besteiras que falo, me olhando boba, como se fosse ainda a criança da foto. 

Crescer em harmonia perto da mãe é uma dádiva. Quando se tem uma mãe com a minha, só posso agradecer a Deus todos os dias.  Quantas olheiras e fios de cabelos brancos lhe dei, e, como resposta, ainda mais amor e compreensão ganhei. 

Mãe, parabéns!!!!!!!!!!!! Tudo, mas tudo, tudo, tudo de bom nesta vida, não apenas pela mãe que é, mas por ser este ser humano tão lindo e especial! Como pode caber em apenas 1.60m tanta bondade, solidariedade, disposição de cuidar e de ajudar os outros - alguns, às vezes, nem tão íntimos dela? 

Muita,muita,muita,muita, mas muuuuuita saúde!!! Te amo demais!!!

quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Déficit de Dilma

Por Josias de Souza (UOL, 27/11/2014)

Agora é oficial: reeleita, Dilma Rousseff aplicará algumas das medidas impopulares que acusava o rival Aécio Neves de tramar. No primeiro contato da nova equipe econômica com os repórteres, esclareceu-se que o governo abandonará a criatividade contábil, priorizará o equilíbrio fiscal e deixará de torcer o nariz dos empresários que quiserem fazer parcerias com o Estado. Foi um recomeço alvissareiro. Mas há na cenografia da transição um déficit de Dilma Rousseff.

Durante a campanha eleitoral, Dilma teve um surto de loquacidade. Falou pelos cotovelos. Dizia-se que ela própria anunciaria, numa breve aparição, a chegada de Joaquim Levy e de Nelson Barbosa. Mas a presidente não deu as caras. Pena. Após passar a campanha dizendo que seu governo era Flamengo, seria bom se explicasse por que foi buscar seu principal auxiliar econômico no vestiário do Vasco.

Nas suas manifestações inaugurais, já sob refletores, Levy e Barbosa tocaram violino para o mercado. Num instante em que o governo guerreia no Congresso para tapar artificialmente o rombo de 2014, o novo titular da Fazenda disse, na primeira frase, que restabelecerá o superávit primário nas contas públicas. Deu os percentuais: economia de 1,2% do PIB em 2015, 2% em 2016 e 2017.

Além de mostrar a ponta da tesoura, Levy informou que molhará a camisa pela elevação das taxas de poupança e investimento do país. Foi ecoado por Barbosa, que anunciou a prioridade às parcerias com o setor privado. E quanto aos programas sociais? Levy e Barbosa responderam o óbvio: para que os programas continuem fluindo, a economia precisa estar em ordem. Pode haver diminuição no ritmo de expansão dos programas, não recuos.

Mantido no BC, Alexandre Tombini declarou, sem floreios, que a devolução das contas públicas aos trilhos do rigor fiscal ajudará no seu esforço para trazer a inflação para os arredores do centro da meta oficial, que é de 4,5%. Nada daquele lero-lero segundo o qual a carestia roçando o teto de 6,5% é sinônimo de cumprimento da meta.

Encenada com uma semana de atraso, a cenografia da guinada foi tisnada pela ausência de Dilma. Numa hora dessas, não fica bem a presidente se trancar no seu silêncio frio, que por vezes passa a ideia de hostilidade ou indiferença. No amor ou no governo, nada é pior do que a indiferença.

É certo que Dilma não morre de amores pela ortodoxia personificada por Joaquim Levy. Mas já que a presidente optou por retirá-lo da diretoria do Bradesco, seria bom que mantivesse as aparências. No regime democrático, a autoridade tem que falar. Tem que dar satisfação. Quando a autoridade faz o oposto do que disse que faria, aí mesmo é que as explicações tornam-se imperiosas.

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Homem de 'mercado'

Por Delfim Netto* (Folha de S.Paulo, 19/11/2014)

Há certamente alguma coisa muito errada num país em que o ministro da Fazenda "precisa" ser escolhido pelo setor financeiro. O capitalismo "financeiro" não é, e é incrível que pretenda ser, um fim para si mesmo. Sua arrogância é tal e tamanha que o leva a esquecer porque existe.

Um dia –antes que se apropriasse do setor real da economia e o de poluir com seu excesso de imaginação e derivativos–, ele foi fundamental para promover as inovações e os investimentos que estimularam o crescimento econômico e a prosperidade geral.

Por duas vezes no mundo, nos anos 20 e nos 80 do século passado, o fundamentalismo monetário, tornou artigo de fé o "mercado perfeito que se auto-regulava". E colhemos duas crises mundiais pelas mesmas causas: a sua profunda imoralidade e o delírio do risco alavancado quando desregulado. Agora chega!

Primeiro, porque não há controle eficaz quando o agente da ação acumula a função de ser seu próprio fiscal. Todos combatem com razão, o aparelhamento das agências reguladoras feito pelo PT com seus "companheiros" de passeata. Todos defendem a escolha de agentes profissionalmente "competentes, diligentes e independentes".

Ninguém defende que os membros da Anatel "devem" ser indicados pelas empresas de telecomunicações! Já devíamos ter aprendido que a tentativa de "captura do fiscal pelo fiscalizado" é problema universal ligado à natureza humana e deve ser prevenido.

Segundo, porque devemos aceitar como um axioma que um "homem do mercado" conhece necessariamente o funcionamento do mercado e a "última" teoria monetária (supondo que ela exista e está bem consolidada)?

Seguramente ele sabe menos sobre as implicações macro e microeconômicas das medidas monetárias do que, por exemplo, um inteligente e honesto profissional que vem durante anos tentando encontrar relações estáveis entre as manobras da taxa de juro real e seus efeitos sobre a taxa de câmbio real. Ou entre os condicionamentos que a "dominação fiscal", o excesso de demanda pública e a política salarial distributivista, impõe sobre a potência da taxa de juro real de longo prazo. 

Pelo contrário, o mais provável é que a miopia do "homem do mercado" o leve a não ver nada além das minúsculas "opões" especulativas abertas por sua própria ação, o que, do ponto de vista macroeconômico, é de uma pobreza lamentável.

Tome seu tempo, senhora presidenta. Escolha livremente, com cuidado e segurança, na administração pública, na academia ou mesmo no mercado, o substituto do ilustre ministro Guido Mantega, que pagou um alto preço por sua fidelidade ao partido e ao seu governo.

*Antonio Delfim Netto, ex-ministro da Fazenda (governos Costa e Silva e Médici), é economista e ex-deputado federal. Professor catedrático na Universidade de São Paulo

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Mais que uma demissão, uma outra eleição

Por Murillo Victorazzo

Em finais de mandatos, com governantes reeleitos, trocas de cadeiras em ministérios e secretarias são não apenas absolutamente naturais como, quase sempre, fundamentais. Eleições alteram a correlação de forças dentro da base aliada. Partidos coligados perdem ou ganham votos, traduzidos nas bancadas no Congresso. Dentro mesmo das siglas, grupos e lideranças se fortalecem ou enfraquecem. O governo, se quiser governar, precisa refletir o novo cenário. Diante desta conjuntura, o pedido de demissão de Marta Suplicy, ministra da Cultura, pasta que está longe de estar entre as mais politicamente importantes, poderia ser uma notícia banal. Mas não é.

Uma nova roupagem ajuda ainda a rejuvenescer uma administração que, embora reconduzida ao poder pela maioria da população, traz consigo o desgaste natural de anos no poder. Quando se carrega nas costas crises políticas ou econômicas que catalizam a fadiga de material inerente ao tempo, torna-se ainda mais crucial. Se não é garantia de uma guinada de conteúdo real, uma nova embalagem, pelo menos no curto-prazo, cria expectativas de melhoras, um fôlego novo ao velho governante. O governo Dilma se encaixa com perfeição nesses dois cenários.

Seja por saberem - ou desconfiarem - que não ficarão em um segundo mandato ou por uma gentileza protocolar com o(a) presidente(a), a fim de facilitar sua tarefa, alguns ministros se antecipam e pedem demissão. Uns com a esperança de serem renomeados, outros cientes que sua estadia na Esplanada chegou ao fim. Não foi o caso de Marta.

Senadora eleita pelo estado mais rico e populoso do país, com mais de oito milhões de votos, a ex-prefeita da maior cidade brasileira é nome forte dentro do PT. Voltar para sua cadeira no Senado em um momento em que, com a saída de Eduardo Suplicy, a bancada paulista na Casa será formada por dois tucanos de alta plumagem - José Serra, seu tradicional adversário, e Aloísio Nunes, candidato a vice de Aécio -, faz sentido tanto reforçar a base governista como o partido. As razões que a levaram a se demitir de maneira tão constrangedora para o governo, porém, revelam o oposto.

Marta, como se diz no jargão popular, nunca "foi com o santo" de Dilma. A recíproca é mais que verdadeira. Antipatia mútua previsível sendo elas duas mulheres geniosas - seus inimigos prefeririam dizer prepotentes. A animosidade piorou quando Marta mostrou ser uma das principais entusiastas do "Volta, Lula". Sua preferência pelo ex-presidente se tornou pública ao organizar um jantar preparado para incentivar a candidatura do líder-maior dos petistas. Dilma engoliu seco, mas a anotou em seu caderninho preto. Na campanha, quando se fortaleceu, retaliou.

Alguns "Dilmistas" afirmam que a paulista fez questão de não se engajar para valer na campanha da reeleição. Na reta final, com Dilma se recuperando nas pesquisas, tentou entrar em campo. Tarde demais. Na última semana de campanha, revelam repórteres que cobriam de perto a agenda da presidente, em uma carreata na periferia paulistana, Marta foi vetada pelo presidente do PT, Rui Falcão, de subir no jipe que levava Dilma. Forçou a barra, subiu, mas Falcão soltou desaforos posteriormente em reuniões internas da Executiva do partido.

Se a volta de Marta ao Senado, a princípio, poderia servir aos interesses de Dilma e do PT, o modo como a conduziu escancarou a divisão interna no partido. Por mais que sua saída fosse esperada e, informalmente, decidida, formalizá-la em uma carta divulgada em rede social, enquanto a presidente voava para a Austrália, já seria de mau gosto. Quando nela a demissionária diz desejar que a presidente "seja iluminada ao escolher uma nova equipe econômica, que resgate a credibilidade e confiança em seu governo", a indelicadeza ganha significado político subliminar.

Ao espicaçar Dilma, em um momento amplamente desfavorável ao governo, Marta a enfraquece ainda mais e serve de porta-voz do ex-presidente Lula, que tenta derrubar a resistência da presidente ao nome de  Henrique Meireles para o Ministério da Fazenda. Mais do que isto, dá mostras que 2018 já bate na porta do PT - com o agravante de, ao contrário das últimas eleições, não haver um candidato natural no partido - exceto, é claro, se Lula desejar um terceiro mandato.

As informações sobre até que ponto Lula almeja voltar são conflitantes, e os quatro anos, tempo longo em política, torna os rumores ainda mais incertos. Alguns dizem que o ex-presidente, curado de um câncer, não se decidiu ainda por desconhecer seu estado de saúde em 2018, quando terá 73 anos. Dona Marisa e filhos prefeririam por este motivo que o marido se mantivesse apenas nos bastidores. O temor de que um terceiro governo fosse menos exitoso, manchando seus oito anos anteriores no Planalto, no qual saiu com 80% de aprovação, também pesaria.

Outros garantem que a tentativa de influenciar mais o segundo governo Dilma seria a prova de que a saudades do Alvorada falou mais alto. Fontes de um jornal afirmam que, ao contrário do dito acima, a esposa seria a maior entusiasta da volta. Já se leu que Lula, em um de seus conhecidos arroubos, teria desabafado que "se eles (a oposição) me encherem muito o saco, eu topo  (ser candidato)".

Caso  a paz de São Bernardo dos Campos fale mais alto, a postura de Marta será lembrada como primeiro sinal do tamanho da briga interna pelo qual o PT passará para escolher seu candidato. Sem uma presidente com prioridade de tentar reeleição e sem algum nome que desponte desde agora como opção viável e unificadora, os grupos e tendências internas da sigla tentarão cacifar seu lado.

Se Dilma surpreender e revigorar seu governo, chegando à sua sucessão com alta popularidade, terá forças para, no mínimo, seu nome preferido ser o mais forte para representar um partido que estará há 16 anos com o timão do país à mão. De todo modo, por este nome precisar ser construído dentro e fora do partido, seja quem ele for, a disputa será grande. Diante deste quadro, aliás, a candidatura Lula, menos por vontade própria  e mais para unificar o partido, poderá se impor como necessidade vital.

Mas, em um cenário mais provável, com sua pupila em progressiva decomposição, mal aprovada pela população ao final de seu governo, estaria Lula, a boia de salvação petista, disposto a correr o risco de encabeçar uma derrota muito mais possível do que em anos anteriores do PT? Ou, em caso de expectativa de derrota, sem o ex-presidente do páreo, o fratricídio resultaria na escolha de um "boi de piranha"?

Marta já bateu o tambor anunciando que irá azucrinar sua correligionária presidente até o limite que a mantenha longe da oposição. Oposição que, ainda que fortalecida, corre o risco de gastar também energias em cizânias internas. Ao contrário deste ano, quando milagrosamente escolheram com certo consenso o nome de Aécio Neves e se uniram em torno dele, os tucanos podem reprisar o velho filme que os fragilizou nas eleições de 2006 e 2010, o embate entre mineiros e paulistas.

Dono de 51 milhões de votos e de uma tribuna no Senado da qual pretende reforçar o papel de líder da oposição, Aécio, cujo grupo político foi desalojado do governo mineiro pelo PT, terá no governador paulista, Geraldo Alckimim, reeleito facilmente em primeiro turno, um forte obstáculo ao seu desejo de tentar novamente chegar ao Planalto em 2018. Como este processo se dará, só o tempo dirá.

O consenso em relação ao candidato do partido fez o PT sempre sair na frente e menos desgastado com sequelas do processo de escolha. Mesmo o "Volta, Lula" se deveu a uma sensação de debilidade da candidata natural,a presidente, não a um desejo de outro postulante. O próximo pleito tende a ser diferente, o que causa arrepios aos militantes de um partido que, para piorar, enfrenta desgaste crescente perante a opinião pública.

Se já não bastassem o escândalo de corrupção envolvendo a Petrobrás, a impressionante quantidade de números negativos na economia, uma oposição eleitoralmente revigorada, os aliados peemedebistas costumeiramente atrapalhando mais que tucanos e demistas, o próprio PT dá mostras de que jogará contra sua presidente. Em um círculo vicioso, quanto mais o quadro político e econômico se agravar, fragilizando-a ainda mais, mais os ditos aliados a pressionarão, realimentando esta fragilidade.

Nem começou e o segundo mandato de Dilma fica cada vez mais com cara de fim de festa. Tudo com vistas a 2018.

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Política externa no Brasil: simplificação e ausência em debates televisivos

Por Murillo Victorazzo

Faltando quatro dias para a eleição que definirá quem segurará o timão da nau brasileira pelos próximos quatro, muito se discutiu -talvez não no tom e complexidade desejável -sobre corrupção, economia e infra-estrutura. Comparações entre governos houve aos montes. Desconstrução da imagem pessoal de candidatos, ainda mais. No entanto, uma das principais ferramentas de desenvolvimento de um país nos dias de hoje passou ao largo de todos os encontros entre presidenciáveis: a política externa.

Sem contar com o encontro da próxima sexta-feira na Rede Globo, o último -e principal - desta eleição, três debates televisivos foram realizados no segundo turno. No primeiro, outros quatro. Em nenhum deles, nem um segundo sequer foi gasto para se debater o assunto. 

A falta de espaço na sociedade brasileira para se discutir as diretrizes de relacionamento do país com o resto do mundo é notória. Nas eleições anteriores, não foi diferente. O insulamento do Itamaraty, a histórica pouca capacidade e/ou vontade de projeção de poder do país, com suas elites pouco dispostas a bancar os custos que uma postura pró-ativa neste campo obriga, explica este nosso perfil. 

Ainda que, com a globalização, a maior inserção econômica do país, a ascensão de pautas nas quais o Brasil tem potencial para ser protagonista, como meio ambiente e energia, o debate tenha ganhado mais força na academia e setores da sociedade civil, política externa ainda é um tema alienígena para o eleitorado. Não apenas entre os menos instruídos. A classe média e alta, com exceções, não a coloca como critério de escolha de voto.

A chegada do PT ao poder atraiu um pouco mais os holofotes para o assunto. Único partido que, para o bem e para o mal, tinha uma estrutura interna dedicada para valer a discussões nessa área, impôs, no Planalto, um viés político à esquerda às decisões do Itamaraty. Bastou para a crescente corrente antipetista entre os chamados formadores de opinião se levantar em palavras de ordens.

Se, por um lado, o ranço antiamericano patológico, resíduos da Guerra Fria, pautou muitas decisões dos governos Lula e Dilma, a retórica paranoica típica daquela época norteou as críticas destes setores da população à política externa petista. O que antes era o movimento comunista internacional agora, para eles, se tornara "expansão bolivariana". O Brasil estaria à reboque de Hugo Chavez e aliados a ditadores como o cubano Fidel Castro e o então presidente iraniano Mahmoud Ahmadinejad. 

Para os petistas, a Era Lula/Dilma é a libertação dos anos "neoliberais" de FHC, dominados pela "submissão e pelo alinhamento automático aos interesses norte-americanos". Para o outro lado, ela é meramente uma visão "terceiro mundista" que objetiva fortalecer os inimigos do capitalismo liberal. Tudo praticado e defendido atualmente no Itamaraty visaria a combater os EUA. 

Mesmo que se admita haver pitadas, em maior ou menor intensidade, destes dois polos nas duas políticas externas, a simplificação dualista através de frases de efeito não explica nem, muito menos, ajuda a vislumbrar a melhor maneira do Brasil se inserir no mundo, potencializando ganhos políticos e principalmente econômicos. 

A busca pela autonomia, refutando a adesão total ao norte-americanismo, é, com brevíssimas exceções, traço perene entre nossos formuladores de política externa. Mais recentemente, foi assim com FHC, foi assim com o PT. O que os diferencia são as nuances através da qual acreditavam chegar lá. 

Atualmente tal busca passa por um debate sereno sobre como destravar o Mercosul, afim de não ficarmos tão presos às idiossincrasias de alguns de nossos vizinhos, sem se esquecer da importância do bloco e de toda América do Sul  na projeção de poder do país perante os mais ricos. Entra aí também o papel a ser exercido pela Unasul.

Do mesmo modo, como nos relacionar com a Aliança do Pacífico, avançar para um acordo econômico com a União Europeia, estreitar relação com os Estados Unidos - querendo ou não, a maior potência do mundo -, sem nos afastar dos emergentes, expressos nos Brics? Será que o princípio multilateralista de fortalecer a OMC, ainda mais agora que seu diretor-geral é brasileiro, inviabiliza a procura por mais acordos bilaterais?

Seria desejável ainda lembrar que negociar com diferentes quando em troca se pretende pragmaticamente algo maior para o país não é ser igual a eles. Que criticar a maior potência pode não ser antiamericanismo, assim como se aproximar dela pode não ser alinhamento automático. Aliás, verniz antiamericanista e soberanista, no sentido de manter afastados os EUA da nossa região e ser temeroso com acordos mais intrusivos, não é exclusividade da esquerda.

Tal visão encontra eco na formação de nossos diplomatas, ainda no Instituto Rio Branco, e se reflete no ceticismo com intervenções militares para fins humanitários (é claro que isto nada tem a ver com a absurda defesa de diálogo com grupos como o Estado Islâmico). Estaria, por sinal, nossa sociedade disposta a arcar com as despesas inerentes a uma vaga permanente no Conselho de Segurança da ONU?

Tampouco é peculiaridade do governo atual oscilar entre pragmatismo e princípios. Saber onde e como usar cada um, se o objetivo for apenas o  "interesse nacional", é  tarefa para poucos. Certamente um dos pontos mais cruciais de uma política externa. A dosagem diferencia o veneno da vacina.

Esperar que tais assuntos merecessem tempo e espaço como nos EUA, onde a cada quatro anos, um debate entre presidenciáveis é dedicado apenas a questões internacionais, seria enorme contrassenso. Seria desconhecer o papel que a elas cabem na maior economia e força bélica do mundo. Guerras elegeram e derrotaram presidentes lá.  Também seria utópico querer que temas tão complexos para o público geral fosse discutido com a profundidade que merece. É inviável. 

No entanto, dá certo desânimo ouvir em redes sociais, rodas de amigos e até na imprensa eles se resumirem a  platitudes, palavras de ordens e ranços ideológicos, à esquerda e à direita, preconcebidos. Não por acaso, ver as únicas menções ao assunto em todos os debates presidenciais até aqui -quando houve -foram breves, indiretas e superficiais.

 Assim foi quando o tucano Aécio Neves criticou o sigilo dos investimentos no porto de Mariel, em Cuba, afirmou que apenas nas "ditaduras amigas" dos petistas é o governo, e não instituições, quem investiga, e insinuou que poderia até cortar relações com países vizinhos produtores de cocaína. Da parte da candidata a reeleição, pior: apenas a defensiva a estas acusações.

Isso sem recordar o patético momento protagonizado pelo caricato e indigente mental Levir Fidelix, que, parecendo estar em 1964, disse temer que o país estivesse caminhando para ser uma nova Cuba. Chegou ao ponto de acusar a candidata do PSOL, Luciana Genro, de ter ido àquele país para treinar guerrilha.

Em um ambiente eleitoral tão polarizado como o atual, a disputa partidária simplifica de forma binária as questões, ainda mais num país pouco afeito à política externa. Inevitável. Mas não se pode crer que mais discussões, em quantidade e qualidade, sejam impossíveis. 

terça-feira, 21 de outubro de 2014

Marco Aurélio Garcia, assessor de Dilma: 'Para nós, América do Sul é um grande ativo'

Por Lamia Oualalou (Opera Mundi/UOL, 18/10/2014)

Assessor especial da Presidência da República para Assuntos Internacionais desde 2003, Marco Aurélio Garcia considera que a “opção sul-americana” foi o principal traço da política externa dos governos de Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff. Garcia refuta a ideia de que a América do Sul poderia se desenvolver mais rapidamente se os países aumentassem o número de acordos de livre-comércio e garante que a diplomacia tem sido conduzida levando em conta o projeto nacional de desenvolvimento do PT. O assessor defendeu novamente o posicionamento do atual governo em relação às intervenções militares implementadas sem o apoio da ONU e no recente conflito entre Israel e Palestina.

Opera Mundi: Quais foram as principais mudanças na política externa brasileira introduzidas nos últimos 12 anos?
Marco Aurélio Garcia: Em primeiro lugar, a opção sul-americana. Precisávamos fazer uma escolha: o Brasil queria ser, isoladamente, um polo na nova ordem global em construção, ou buscaria ocupar um lugar de destaque nela, junto aos nossos vizinhos? Para nós, América do Sul é um grande ativo. A região dispõe de território vasto com uma biodiversidade opulenta e desconhecida. Ela tem uma enorme riqueza energética, em um mundo carente de energia. Temos grandes reservas de petróleo e gás e um potencial hidroelétrico considerável. O acervo mineral contempla todas as revoluções industriais, da primeira, com o ferro, até a última, com o lítio. Do ponto de vista da agricultura, a América do Sul tem a vocação de ser o celeiro do mundo, com altos níveis de produtividade. Finalmente, é uma zona de paz e democracia, onde os poucos contenciosos de fronteira estão sendo resolvidos.

OM: A integração com os países vizinhos já era uma prioridade dos antecessores do presidente Lula, com o Mercosul. O que mudou?
MAG: Quando nós ganhamos as eleições, o Mercosul já estava em pé, mas tinha como única aspiração ser uma união aduaneira. Mas nós descobrimos que havia dificuldades para fazer do livre-comércio um ponto de articulação da América do Sul. Já existia a CAN (Comunidade Andina de Nações), o Chile desenvolvia tratados de livre-comércio com EUA e outros, e tinha o Caricom (Comunidade do Caribe), ou seja, quatro regimes comerciais. Equalizá-los era impossível, isso implicaria, por exemplo, uma diminuição das tarefas do Mercosul e um aumento das do Chile, não era o caso. Era evidente que tínhamos que projetar fora do comércio pontos de união, que pudessem conviver com regimes comerciais diferenciados, ainda que estivéssemos pressionando um processo de convergência tarifaria. Na nossa visão, a integração tinha que ser física, energética e produtiva. É o que aconteceu na Ásia, é assim que avançou a região, não com livre-comércio.

OM: A criação da Unasul (União das Nações sul-americanas) foi uma reação à proposta norte-americana da ALCA?
MAG: Com a criação da Unasul, nós nos abrimos para outra perspectiva de integração. Um dos êxitos do Lula pessoalmente foi de conseguir colocar esta questão da integração acima de diferenças ideológicas da região. A gente tinha divergências muito claras com o governo [Alvaro] Uribe, na Colômbia, por exemplo. E, no entanto, ele aceitou. Acho que esta orientação de uma integração que contemple a diversidade política é de fundamental importância. Nós também tomamos algumas iniciativas mais políticas e polêmicas que ainda não são totalmente implementadas, mas que pelo menos são consignadas, como o Conselho de Defesa Sul-Americano.

OM: Qual é o lugar de Cuba nas estruturas regionais da América Latina?
MAG: O tema cubano tem sofrido uma importante evolução na América Latina e no Caribe. Toda a região mantém relações com a ilha. Seu governo desenvolve programas de cooperação relevantes, sobretudo na área social, e sua ativa diplomacia tem contribuído para encontrar soluções de consenso para as complexas questões internas de alguns países, como evidencia o fato de Havana sediar hoje as negociações entre o governo colombiano e as Farc. Por pressão dos EUA, as chamadas “Cúpulas das Américas”, que são coordenadas pela OEA, continuam excluindo Cuba. Houve um impasse na última, em Cartagena, porque a maioria dos países queria que Cuba fosse. Foi decidido que Cuba não viria, mas que seria a última vez. Aliás, Havana já está convidada para a próxima sessão em Panamá, no ano que vem. Agora a bola está com os EUA. Obama terá que decidir se vai ou não.

OM: Outro eixo importante da política externa nos últimos 12 anos foi o desenvolvimento de uma nova política no Oriente Médio. Foi especialmente o caso em maio 2010, quando o Brasil tentou, junto com a Turquia, uma mediação com o Irã acordo sobre a questão nuclear. Mas o acordo foi totalmente ignorado pelas potências ocidentais e novas medidas coercitivas foram adotadas contra o Irã no mês seguinte. Quatro anos depois, que conclusões tira deste episodio?
MAG: Se você comparar a proposta que nós, o Brasil e a Turquia, fizemos naquele momento, e que o Irã aceitou, com o que está em discussão agora, você percebe que teria sido muito melhor fechar um acordo naquela hora. Foi derrubado porque alguns países acharam que não são assuntos nos quais podemos nos meter. Cuidar do Paraguai, da Venezuela, tudo bem, mas aqui, não, aqui é briga de cachorro grande. E, ainda, eu me lembro que, na véspera da votação das sanções no Conselho de Segurança, um representante dos EUA me telefonou, pedindo que o Brasil votasse as sanções, um absurdo. Tive muito orgulho de ver na televisão a nossa embaixadora votar contra, assim como o embaixador da Turquia. Esta história deixou muito claro para mim o fato que as grandes potências, e não somente os EUA, têm uma grande dificuldade de lidar com países emergentes. Não percebem que a correlação de forças de quando foi formado o Conselho de Segurança não existe mais.

OM: Na época do presidente Lula, a diplomacia brasileira parecia muito mais mobilizada na região, especialmente na questão palestina. O Brasil desistiu de tentar trazer alguma contribuição ao dialogo Israel-Palestina?
MAG: Foi o único tema especifico sobre o qual a Dilma falou duas vezes no discurso na ONU. A prova de nosso interesse é que nós tomamos a iniciativa de chamar o embaixador israelense, - fomos muito criticados- e esta decisão foi seguida por um número razoável de países com distintas orientações políticas. Por mais restrita que seja a posição de Israel, eles se deram conta que cometeram um erro, com o Brasil inclusive, quando um porta-voz chamou o nosso país de “anão diplomático”. O presidente de Israel pediu desculpas e isso mostrou o ridículo de todos aqueles que procuraram caracterizar o gesto do Brasil como inconsequente.

OM: Na tribuna da ONU, a presidente Dilma criticou os bombardeios na Síria contra o Estado Islâmico. Mas qual é a alternativa?
MAG: A presidenta criticou o uso da força em geral quando não autorizado pelo Conselho de Segurança e no caso especifico da Síria. Não temos a menor ambiguidade em relação ao terrorismo, que é um horror que ofende todos nossos valores republicanos, éticos e morais. Mas não podemos ser sempre confrontados com a última expressão de uma série de erros, porque neste caso vamos legitimar esses equívocos e provavelmente cometer mais um. Tudo isso começou quando foi tomada a decisão, contra a ONU, de intervir militarmente no Iraque. Não era um modelo de democracia, mas vivia mais ou menos em equilíbrio do ponto de vista da coexistência das comunidades. Hoje é um caos, há um nível de violência incrível, com um número de mortos espantoso. Isso é o resultado desta intervenção unilateral, assim como da irresolução da crise palestina. O papel que o Brasil pode ter é o que um país democrático terá numa organização multilateral respeitável que é a ONU. Nós não estamos propondo dialogo com terroristas, estamos propondo um diálogo no marco das Nações Unidas para resolver este problema. Se a ONU votar uma resolução sobre o uso da força, nós apoiamos. Nós somos tão respeitosos da ONU que nós aplicamos as sanções contra o Irã, apesar de nossos interesses econômicos e de não achar que seja uma solução.

Rubens Barbosa, assessor de Aécio: 'Brasil não ficará amarrado ao Mercosul'

Por Lamia Oualalou (Opera Mundi/UOL, 18/10/2014)

Um eventual governo Aécio Neves, do PSDB, que enfrenta a presidenta Dilma Rousseff, do PT, no segundo turno das eleições brasileiras, daria início a uma revisão profunda do Mercosul e uma revisão do seu tratado, para permitir ao Brasil negociar, sozinho, acordos de livre-comércio. Essa é uma das mudanças que adianta o ex-embaixador Rubens Barbosa, coordenador do programa de governo tucano para a política externa. Assegurando que, com Aécio, o Brasil voltaria à uma “política externa pragmática, fugindo das ideologias”, o diplomata de carreira, que foi embaixador em Washington e coordenador do Mercosul por três anos, considera que a “projeção internacional do Brasil diminuiu durante os quatro últimos anos”, pois Dilma “despreza política externa”, o que coloca o Itamaraty em uma das piores crises da história. Ainda assim, Barbosa elogia o discurso da presidente na última Assembleia Geral da ONU.

Opera Mundi: Qual é o balanço que o senhor faz da política internacional dos últimos doze anos?
Rubens Barbosa: Não é muito positivo. Em primeiro lugar, queria destacar a partidarização, a ideologização da política externa. Isso criou muitas dificuldades para o Brasil, especialmente nas negociações comerciais. Nestes doze últimos anos, o Mercosul retrocedeu, está sem rumo, sem estratégia e totalmente isolado. Nesta época toda, negociamos três acordos comerciais: com Israel, Egito e a Autoridade Palestina. Politicamente, é importante, mas, economicamente, é uma irrelevância para o Brasil. Eu analiso a política externa brasileira em termos de resultados e, na minha visão, o desempenho é negativo.

OM: O senhor acha que na época do governo de Fernando Henrique Cardoso a política externa não tinha ideologia? Ou era apenas uma ideologia diferente?
RB: Em termos de política externa, o Itamaraty sempre foi acima das ideologias e dos partidos, defendendo o interesse do Brasil. Era uma política de Estado, com grande continuidade. Na época de FHC, a integração regional e o interesse na África e no Oriente Médio também eram prioridades. O problema agora é que as ênfases foram diferentes, por causa da visão de mundo do PT, de pobre contra rico, de Norte contra Sul.

OM: A visão de mundo do PSDB não influía na política externa?
RB: Não, era a continuidade de uma política social-democrata, sempre atrás de uma política independente, sem ideologia, apenas a defesa do Estado brasileiro. Com o PT, as coisas mudaram. As afinidades ideológicas prevaleceram. E se deu prioridade às relações Sul-Sul, deixando em segundo plano os países desenvolvidos. Nós perdemos oportunidades de negócio e acesso à tecnologia. Apesar das políticas ampliadas em relação à África e ao Oriente Médio, percentualmente o comércio continua marginal. Se estivesse dando certo, não ia criticar, mas não foi bom para o Brasil em termos políticos e econômicos. O Brasil se isolou, sobretudo nos últimos quatro anos, e perdeu a projeção externa no governo da Dilma. É verdade que ela teve que se dedicar à política econômica interna. De outro lado, ela despreza a política externa. O Itamaraty foi esvaziado, está numa das maiores crises da sua história. Aliás, um dos eixos de nossa política seria revalorizar o Itamaraty como principal formulador da política externa, como diz a Constituição. Hoje não é assim, tem fontes fora do Itamaraty, especialmente o assessor especial Marco Aurélio Garcia, que interfere diretamente na concepção da política externa do país. Não é possível que fique competindo assim, tendo uma função até mais importante que o próprio Itamaraty.

OM: Qual seriam as medidas internacionais implementadas pelo governo se o Aécio Neves fosse eleito?
RB: Vamos fugir da ideologia, ter uma política pragmática. Ao contrário do PT, nós vamos reequilibrar a política externa, dando uma importância equivalente aos países desenvolvidos e aos países em desenvolvimento. O problema é que o Brasil não sabe o que quer, em relação aos EUA, à China, aos Brics, à Europa... Uma das prioridades é conseguir um acordo com a União Europeia e conversar com os Estados Unidos e o Japão. Depois vamos ter uma ênfase renovada na defesa da democracia e dos direitos humanos.

OM: Concretamente, qual seria a mudança? Por exemplo, isso mudaria a relação com Cuba?
RB: Como disse, vamos tratar todos os países sem nenhuma influência ideológica. Mas quando o presidente norte-americano vai à China, ele trata de comércio, mas também menciona os direitos humanos. Quando Luiz Felipe Lampreia era chanceler do FHC, ele foi a Cuba e se referiu a esta questão, viu a oposição...Mas não estou dizendo que vamos fazer isso, é um detalhe que não foi discutido com Aécio.

OM: O senhor considera a prioridade dada à América Latina um erro?
RB: Já existia, é claro que a região é muito importante para o Brasil. O problema é que esta questão ideológica fez o governo deixar de defender os interesses das empresas brasileiras. A Argentina, por exemplo, está deixando de pagar as nossas empresas e está colocando medidas protecionistas contra nós. A mesma coisa com a Venezuela. Em nome da afinidade ideológica, o governo não critica, nem protesta. Isso vai mudar com a gente. Nós vamos defender o interesse do Brasil em primeiro lugar e vamos ver como podemos acomodar os interesses dos outros, sem brigar.

OM: Qual papel teria o Mercosul na política externa de um governo Aécio Neves?
RB: O Tratado de Assunção previa a liberalização do comércio entre os países membros. E nestes últimos dez anos o que aconteceu foi o contrário. Os quatro países originais tomaram medidas contra o tratado. Depois veio a entrada da Venezuela sem cumprir o protocolo de adesão, o Brasil aceitou isso. E agora a entrada da Bolívia sem nenhuma negociação, só por razões ideológicas. E tem que lembrar a suspensão do Paraguai por um ano, por razões ideológicas também. Tudo isso desfigurou o Mercosul como instrumento de promoção das exportações do Brasil. O crescimento do comércio na região foi feito apesar do Mercosul, por causa do dinamismo do setor privado brasileiro. Vamos ter que mudar as regras.

OM: De que maneira?
RB: Não quero entrar em detalhes, porque vamos ter que conversar com os parceiros, não vamos tomar nenhuma medida unilateral. Vamos ter que modificar uma resolução do Mercosul para permitir que os países possam negociar individualmente. Por exemplo, o Brasil quer fechar um acordo com a União Europeia. Se a Argentina não puder, ela poderá voltar a negociar depois, mas nós vamos adiante. Hoje não é possível, por isso tem que mudar o tratado. Se os parceiros não quiserem acompanhar o Brasil, vamos examinar outras opções. O governo poderá inclusive pensar em voltar para uma área de livre-comércio. Todas as opções estão na mesa. O Brasil não vai mais ficar amarrado ao Mercosul.

OM: O senhor acha que seria bom o Brasil negociar uma área de livre-comércio nas Américas, como já foi cogitado pelos EUA no passado e descartado em 2005 pelo Mercosul?
RB: Não interessa ao Brasil agora, tem que corrigir toda a economia aqui, a perda de competitividade das empresas brasileiras, o custo Brasil. Ninguém está pensando em um acordo deste tipo.

OM: Qual é a sua avaliação da Unasul?
RB: Foi uma criação importante, criou um foro político para a América do Sul, que é a zona mais importante para o Brasil. O problema é que a Unasul também foi contaminada por questões ideológicas. E temos que avançar em alguns temas específicos. Por exemplo, o Brasil está muito preocupado pelo tráfico de drogas e de armas, e até o governo atual está fazendo uma política correta com um esforço dos militares e das polícias nas fronteiras, muito porosas, que temos com Colômbia, Peru, Bolívia e Paraguai. Aécio já disse que, com ele na Presidência, o Brasil vai querer que estes países tomem medidas para defender a fronteira. Se eles quiserem plantar coisas lá, problema deles, não vamos interferir. Mas queremos que eles impeçam o trânsito de drogas e armas. Aécio foi mais longe: se os países não fizerem este trabalho, o Brasil vai reexaminar a colaboração com estes países.

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

A escolha de Marina

Por Matias Spektor* (UOL, 03/09/2014)

Crescem as apostas sobre a política externa de um eventual governo Marina Silva. Nos corredores da Esplanada dos Ministérios e nas embaixadas estrangeiras de Brasília, nos comitês de campanha e nas consultorias de risco de São Paulo, proliferam cenários prospectivos.  Como sempre, o foco é nos nomes que viriam a compor a equipe diplomática da candidata eleita: o ministro das Relações Exteriores, a secretaria-geral do Itamaraty e a assessoria internacional do Palácio do Planalto.

As listas de possíveis candidatos têm de tudo. Há embaixadores que conhecem a candidata e outros que nunca a viram, intelectuais fiéis a ela, personalidades públicas simpáticas à causa e políticos profissionais capazes de engordar uma possível base aliada. Se existe algum pré-requisito para ser levado em conta é partilhar da crença dominante em campo marinista de que a política externa brasileira precisa ser resgatada do marasmo em que se encontra. Segundo essa visão, o país teria hoje uma posição pior do que tinha há quatro anos.

No marinismo também existe a crença de que política externa não se limita a afetar a economia brasileira, mas também impacta a distribuição de direitos políticos, econômicos e sociais numa sociedade que continua sendo obstinadamente desigual como a nossa. No entanto, o consenso entre quem apoia a candidata termina por aí.

Dentre os correligionários, há movimentos sociais que esperam uma guinada progressista em direitos humanos, mudança do clima, desenvolvimento sustentável e não proliferação nuclear. Eles convivem com aquelas vozes que defendem a adoção de compromissos internacionais de cunho liberal com vistas a tirar o país do atraso, lembrando, em tom e estilo, o primeiro governo FHC. O que une esses grupos é a visão segundo a qual a diplomacia do PT, nesses quesitos da agenda internacional, teria se mostrado lenta, acovardada, antiquada ou simplesmente ambígua.

Por outro lado, há uma parte do movimento pró-Marina que teme qualquer compromisso internacional que possa comprometer a autonomia nacional diante das grandes potências. "Não dá para trocar a defesa do nacionalismo pelo cosmopolitismo financiado pelas ONGs da Noruega", ouvi de uma pessoa que usou ironia sem estar falando de brincadeira.

O recém-lançado programa de governo de Marina dá um passo no sentido de dar mais voz aos primeiros grupos. Resta saber se a candidata, eleita, teria o interesse e a capacidade de manter essa escolha. Uma reversão não é implausível. Afinal, o trecho de política externa no programa divulgado não foi produto de ampla consulta à militância nem de um ajuste de posições entre PSB e Rede. O material estava pronto antes mesmo de a candidata virar cabeça de chapa.

É por isso que o mercado de apostas sobre a equipe de política externa promete continuar aquecido até os resultados da eleição

*Matias Spektor é doutor pela Universidade de Oxford e ensina relações internacionais na FGV.

terça-feira, 9 de setembro de 2014

Política externa de Obama posta à prova

Por David Sanger ( The New York Times, 04/09/2014))

Com o discurso que fez na Estônia na quarta-feira, declarando que a defesa reforçada dos EUA aos países mais vulneráveis da Otan vai continuar "pelo tempo que for preciso" para deter a Rússia, o presidente Barack Obama agora comprometeu seu país com três projeções importantes do poderio norte-americano: uma "virada" ampla em direção à Ásia, uma presença mais robusta na Europa e uma nova batalha contra extremistas islâmicos, que, ao que parece, provavelmente vai se intensificar.

Autoridades dos EUA reconhecem que esses três compromissos assumidos certamente vão atrapalhar os planos de Obama de reduzir o orçamento do Pentágono antes do término de seu mandato, em 2017. Eles também contrariam uma doutrina crucial de seu primeiro mandato: que o uso de alta tecnologia e apenas uma "pegada leve" de forças militares são capazes de deter potências ambiciosas e combater terroristas.

Os compromissos podem muito bem reverter um dos princípios chaves de suas duas campanhas presidenciais: que o dinheiro antes gasto no Iraque e Afeganistão seria investido em "construção da nação em casa". O acúmulo de novas iniciativas de defesa deixa aberta a questão de até que ponto Obama está engajado em reverter a desconfiança, presente desde a Europa até o Oriente Médio e a Ásia, de que os Estados Unidos vive uma era de recuo.

Em suas viagens na Europa esta semana e na Ásia neste outono americano, o presidente enfrenta um desafio duplo: convencer aliados e parceiros dos EUA que não pretende deixar vácuos de poder espalhados pelo mundo para serem preenchidos por adversários, e, ao mesmo tempo, convencer a população americana que conseguirá enfrentar cada um desses conflitos nascentes sem mergulhar os EUA de volta em outra década de grandes engajamentos militares e grande número de baixas.

"Está ocorrendo um desnível crescente entre o discurso e a política", disse Richard N. Haass, presidente do "think tank" Council on Foreign Relations e representante sênior dos EUA durante a queda do Muro de Berlim, em 1989, e novamente quando a guerra do Iraque se aproximava, 12 anos atrás. "Se somamos os recursos necessários para implementar a virada em direção à Ásia, o reengajamento com o Oriente Médio e o aumento de nossa presença na Europa, vemos que isso não pode ser feito sem dinheiro e capacidade adicionais. O mundo mostrou ser um lugar que exige muito mais do que esta Casa Branca previu alguns anos atrás."

Assim, não surpreende que, em um momento em que Obama ainda está respondendo às críticas por ter dito na semana passada que "ainda não temos uma estratégia" para combater o grupo Estado Islâmico, ele agora precisa de várias estratégias, cada uma delas adaptada a problemas que, no último ano, ganharam complexidades surpreendentes.

Para enfrentar os mais de 10 mil combatentes do Estado Islâmico (EI), ele terá que encontrar uma maneira de fazer frente a um tipo diferente de grupo terrorista, um grupo determinado a usar as técnicas mais brutais possíveis para tomar conta de territórios que ficaram sem controle forte na esteira da primavera árabe. A campanha aérea dos EUA contra alvos do EI no Iraque não chega perto dos custos da invasão e ocupação do Iraque, mas as armas, combustível e outras despesas já somam custos previstos de cerca de US$225 milhões por mês, segundo fontes do Pentágono.

O grupo Estado Islâmico "não é invencível", disse Matthew G. Olsen, diretor do Centro Nacional de Contraterrorismo, em palestra dada no Brookings Institution na quarta-feira, e ainda não é para os EUA o tipo de ameaça direta representada pela Al Qaeda antes dos ataques de 11 de setembro de 2001. O grupo "é brutal e letal", ele disse, e derrotá-lo vai exigir um compromisso de longo prazo de um tipo que Obama evidentemente não previa no início deste ano.

Na Rússia do presidente Vladimir Putin, Obama se vê diante de uma potência em declínio -afetada por uma população decrescente, nacionalismo estridente e uma economia altamente dependente das exportações de petróleo-que, segundo ele aposta, não conseguirá satisfazer a sede de poder de Putin. Mas as posições divergentes discutidas na administração americana dizem respeito a quão diretamente e onde traçar o limite -e, não surpreendentemente, em Tallinn, Estônia, na quarta-feira, Obama definiu como limite as fronteiras da própria Otan. Resta a saber se Putin acredita nele.

Na China, Obama enfrenta um desafio de tipo inteiramente distinto: uma potência ascendente, dotada de recursos crescentes e o sentimento de que este é o momento de a China reafirmar sua influência na Ásia, de uma maneira que não faz há centenas de anos. Aqui, o que surpreendeu Obama é a agressividade com que o presidente chinês, Xi Jinping, vem abraçando os esforços para lançar reivindicações territoriais contra o Japão, Coreia do Sul, Vietnã e Filipinas, ao invés de concentrar sua atenção na economia doméstica.

"Isto (a postura chinesa) nos pegou de surpresa, e há muita discussão sobre como reagir", disse há algumas semanas um ex-integrante da equipe de segurança nacional de Obama. A frase pode aplicar-se a cada um dos desafios que Obama tem pela frente. E ela revela por que a administração está tendo tanta dificuldade em explicar como esta combinação de problemas vai afetar seus planos futuros.

O secretário da Defesa, Chuck Hagel, foi levado a seu cargo em parte para buscar maneiras de reduzir o setor militar, especialmente depois de ser concluída a missão oficial de combate no Afeganistão, este ano. Mas Hagel não tem conseguido ou não quer deixar claro quais serão as implicações de longo prazo dessa redução.

Tradução: Clara Allain (UOL)

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Ator frequente da política nacional, o imponderável volta a entrar em cena

Por Murillo Victorazzo

Gerações após gerações, os brasileiros se viram diante de tragédias ou fatos imponderáveis que alteraram, de repente, o curso mais previsível do país. Nossa História é repleta de casos assim. Mortes surpreendentes de líderes impactaram profundamente a alma e o xadrez político da nação. João Pessoa, Vargas, Tancredo foram os mais significativos. Outros, como Jânio e Collor, com seus atos inesperados e espantosos, colocaram não suas vidas, mas as das instituições democráticas em xeque. O primeiro não só as debilitou como abriu espaço para a ruptura total três anos depois. A morte precoce do jovem presidenciável Eduardo Campos entra, agora, para a impressionante lista.

Gostassem ou não de Campos, é inegável que ele era um dos principais líderes políticos do Brasil. Um dos maiores nomes da nova geração. Perdendo ou ganhando em outubro, os debates sobre o rumos do país passariam obrigatoriamente por ele e pelo partido que presidia nos próximos anos. Muitos inclusive arriscavam a afirmar que sua candidatura agora era, antes de tudo, um "laboratório" para 2018.

Neto de Miguel Arraes, um dos símbolos da resistência à ditadura militar, o pernambucano tinha no sangue o gosto pela articulação e pelo debate. Sem entrar no julgamento de defeitos e virtudes de sua personalidade, ou se era o melhor nome para a Presidência, aliava tal dom vindo de berço com a uma prática de gestão que sinalizava, pelo menos, ter algo de bom. Sua reeleição como governador em 2010, quando, ao conquistar 83% dos votos, tornou-se o recordista proporcional de voto daquela eleição, era um indício.

Neste momento, qualquer assertiva eloquente sobre as consequências para o pleito é arriscada. Mas não se pode negar que o destino aparenta ter colocado no colo da ex-senadora Marina Silva a chance de tornar a disputa ainda mais acirrada. Ela, que, no turbilhão das manifestações de 2013, despontava como principal beneficiária da onda de indignação ética.

Ao ter o registro de seu partido negado pelo TSE, Marina optou por se entrincheirar no PSB, aceitando ser vice do todo poderoso do partido e deixando órfã essa parcela do eleitorado. Campos via nela a força motriz para aglutinar em torno de si esse sentimento. Por mais que tentasse, sua trajetória impedia que se colasse nele a imagem do outsider. Até que ponto ela conseguiria transferir votos pra ele até outubro, agora, ficará no terreno das suposições. O contrafactual não encontra espaço na História.

A tragédia pode alçar Marina novamente à condição de depositária das esperanças dos que não viam em nenhum dos três postulantes credibilidade suficiente para sedimentar a "nova política". Alguns arriscam que a comoção tem potencial de reforçar ainda mais seu nome. Não se sabe, até pelas contradições internas da aliança do PSB com a Rede e toda consequente repercussão nos palanques regionais. Certeza apenas do aumento da imprevisibilidade da eleição.

De todo modo, caso se confirme sua candidatura e as expectativas sobre ela, Aécio Neves certamente terá um caminho mais árduo rumo ao segundo turno. E a presidente Dilma, trabalho ainda maior para se reeleger.  Tucanos e petistas compartilham do susto e da preocupação com o novo cenário. De alijada do processo eleitoral à presidente. Por que não? Marina, assim, encarnaria a frase atribuída a Tancredo Neves: "A presidência é destino".

Mais do tudo, porém, mais do que a perda do Eduardo Campos político, a morte inesperada e estúpida de um pai de cinco filhos, ainda aos 49 anos e na linha ascendente de sua trajetória profissional, sempre deverá ser motivo de tristeza, choque e comoção. Todos perplexos com as "pegadinhas" da vida e da História. De novo.

segunda-feira, 28 de julho de 2014

100 anos é hoje

Por Murillo Victorazzo

Vinte e oito de julho. Cem anos atrás começava a I Guerra Mundial. Com a invasão da Sérvia pelo Império Austro-Húngaro, iniciava-se o que muitos historiadores chamam de "A Grande Guerra". Afinal, o conflito entre aliados e nazistas e fascistas, na década de 40, antes de tudo, teve ali suas raízes. A humilhação alemã fomentou o revanchismo nacionalista de Hitler.

O fim dos impérios Austro-Húngaro e Turco-Otomano e o redesenho geográfico da Europa plantaram as sementes de muitos dos conflitos atuais. O que vemos hoje no Oriente Médio é o mais doloroso dos exemplos. Para entender o hoje, tem que saber o ontem. O resto são platitudes e/ou PRÉ-conceitos.

E que "bom" que, apesar de tudo, barbárie nos tempos atuais são mortes na casa dos milhares. Os tempos dos milhões (a IGM custou cerca de 10 milhões de vidas; a IIGM, mais de 50 milhões) se foram, graças a Deus  - e à tecnologia e normatização dos conflitos e da ordem internacional.

sexta-feira, 25 de julho de 2014

Uma certeza: política nas redes sociais,não

Por Murillo Victorazzo

Os anos de Facebook me deram uma certeza: sim, amo política, tanto a nacional como a internacional. Trabalho, trabalhei, estudo, estudei, li, leio desde garoto o assunto. Mas não gastarei, nem tenho gasto há vários meses, meu tempo sobre o assunto nas redes sociais. Infelizmente, com exceções, elas só serviram para transformar temas sérios, complexos, em uma espécie de papo de botequim futebolesco com verniz "antenado". 

Abomino os ignorantes no ramo que se acham conhecedores profundos e, como argumentação, repetem apenas palavras de ordem, frases de efeito, ou preconceitos. Ironicamente, sem notar suas próprias ignorâncias, gritam que "só ignorante" - no sentido preconceituoso e classista da palavra, ou seja, pobre - para aprovar isso ou aquilo.

Gente que veste a camisa de um lado, ou contra outro, como se fosse seu time em final de campeonato: de forma dogmática e, consequentemente, obtusa, cega. Que pouco lê, ou lê um só segmento editorial e de imprensa, quando não apenas o título e o lead, e, mesmo assim, torna-se papagaio dele. Alguns se tornam discípulos de articulistas que arrotam ódios e neuroses em proselitismos ideológicos exacerbados. Outros são paranoicos, obcecados, que veem fantasmas do passado em tudo, "debatendo" sob o ângulo e com termos da polarização da década de 60. 

Pessoas que compartilham baixarias ou difamações de internet só porque não curtem determinado lado. Parecem seguir a velha fórmula maquiavélica: os fins justificam os meios. Que veem o mundo de forma maniqueísta, dicotômica, binários que são. Nuances não são com eles, o que, por si só, demonstra a dificuldade de refletir racionalmente, não apenas com paixões, ódios ou pré-concepções. Muitos, radicaloides de esquerda ou de direita. 

Gente que pouco conhece a História e até pouco tempo não se interessava por estes assuntos, mas agora vem vociferar "teses", sem o mínimo de capacidade de contextualizar, comparar. Quem não tem memória política - seja por ter vivenciado ou por ter lido, estudado - é incapaz de analisar. Porque o hoje é reflexo do ontem. Que acha que elogiar algo de um lado é "pertencer" a ele. Ou o contrário: criticar determinada postura de um é ser eleitor, simpatizante, do outro. 

Não sou o dono da verdade, e sei que quem me conhece entenderá que nada tem de presunçoso este meu comentário. Alguns poderão até ver um "muro" na minha posição. Tudo bem, se desprezar dogmas e fundamentalismos - seja religioso, partidário ou ideológico-, evitar "paixonites", arroubos, hipérboles, superlativos, é subir no muro, eu ficarei lá prazerosamente. 

Tenho minha visão de mundo. Sei o tipo de país, de Estado, que desejo ter. De relações políticas, sociais, econômicas e internacionais que gostaria de ver aplicadas. Aquele que se aproximar dela em determinado momento ou assunto merecerá meu elogio, minha defesa e/ou meu voto. Nunca alinhamento prévio automático, contra ou a favor de partidos, pessoas ou países, a ponto de não reconhecer eventuais méritos ou razões daqueles por quem menos simpatizo. E, justamente por isto, longe de ideias vindas das extremidades do espectro político.

Pessoalmente, trocarei sempre ideias com os amigos sobre ela. Nas redes sociais, infelizmente não. Já tive o desprazer de tentar, e o resultado foi frustrante.

quinta-feira, 17 de julho de 2014

Inesquecível

Apesar da CBF, uma Copa para se orgulhar de ser brasileiro

Por Murillo Victorazzo

O sonho de menino de assistir a uma Copa em seu país terminou. Terminou porque se tornou realidade. Uma realidade que de tão boa e esperada parece ter durado somente um final de semana, não um mês. É sempre assim. Aquele gostinho de quero mais; a sensação de que poderia tê-la aproveitado com ainda mais intensidade permanecerá para o resto da vida, assim como as inúmeras imagens, histórias, polêmicas que a festa propiciou.

A festa começou com o receio de retumbante fracasso, para nós, anfitriões, fora dos gramados, e alta expectativa de sucesso dentro deles. Trinta dias depois, a constatação seria a oposta. Aeroportos, trânsito e estádios funcionaram normalmente. Erros pontuais aconteceram obviamente, assim como em todas as demais edições. O brasileiro deu show de alegria, receptividade e foi, em toda imprensa internacional e pelos turistas que vieram, eleito o grande vencedor.

Já a Seleção...  Considerada uma das favoritas, fracassou para a História não apenas por não levar o sonhado Hexa. Felipão e seus jogadores estão para sempre marcados como protagonistas do maior vexame visto pelo mundo de uma equipe anfitriã. A maior derrota canarinho. Os humilhantes 7x1 para a Alemanha foram a intragável cereja do bolo mofado e mal preparado nos oferecido em todas as partidas anteriores.

Exceto o primeiro tempo contra a Colômbia, em momento algum se viu ali um time. Muito menos uma seleção pentacampeã mundial que jogava diante de seu povo. O gol contra de Marcelo logo no início do primeiro jogo parece ter sido o anúncio da tragédia.

Aquele que achar que pode explicar em apenas uma frase os motivos do papelão  ou não sabe nada de futebol ou é um tremendo boquirroto. Ou os dois. Eles foram inúmeros, de diversos aspectos: técnico, tático e emocional. Todas entrelaçadas, causa e consequência uma das outras simultaneamente. A decisão do terceiro lugar, contra a Holanda foi emblemática. Mudaram os jogadores, continuaram os mesmo erros.

Ainda haverá quem ache que o jogo de terça foi um lapso, como Felipão e Parreira. Ou que foi "vendido", como alguns debiloides que difundem pela internet  atualizações de teorias da conspiração passadas. A certeza é que, mesmo com a ressalva de que a atual safra de jogadores está inegavelmente abaixo das de outras épocas, talvez esta tenha sido a Seleção Brasileira mais mal treinada em Copa do Mundo que se tenha visto.

Em menos de um mês, Felipão e CBF conseguiram queimar 100 anos de prestígio da camisa mais vitoriosa, admirada e até então temida do futebol mundial. E pior: justamente em casa. Tão pavoroso quanto seu trabalho na competição, foi a cegueira, a incapacidade e o cinismo do treinador na tentativa de se defender e explicar o fracasso da seleção dona da casa. A coletiva após a derrota para os holandeses foi de causar náusea.

Afora nossa desgraça, a Copa foi um sucesso também dentro das quatro linhas. Alta média de gols, show de inúmeros goleiros, revelações como James Rodrigues, partidas bem jogadas, dramáticas, resultados inesperados, superações. Como não se emocionar com Argélia e Costa Rica, por exemplo?

Um jornalista estrangeiro disse que os jogadores, enfeitiçados pela alegria, gentileza e paixão pelo futebol bem jogado do brasileiro, só poderiam, em retribuição, nos proporcionar partidas assim. Se recordarmos que a Copa de 90, na Itália, país que preza a defesa em detrimento do ataque, foi a pior em qualidade e números de gol, não soa exagero a declaração. A cruel ironia é exatamente o nosso time ter destoado...

Nenhuma seleção mereceu mais este título do que a Alemanha. Por sua atitude dentro e fora de campo. Show de tática, talento e simpatia, respeitando os anfitriões, por parte do time e dos torcedores. Se pensado como marketing ou espontâneo, não importa. A vontade dos alemães de interagir com os brasileiros, conhecê-los e retribuir a afável  hospedagem foi outra marca desta Copa.

O Itamaraty e a diplomacia alemã não fariam melhor trabalho de venda de imagem, de soft power, do que o feito por nós, brasileiros, nesta Copa fora de campo e o feito pela seleção campeã dentro e fora das quatro linhas. E de estreitamento na relação entre os dois. Admiração, empatia e respeito mútuos, querendo ou não, apesar de tudo, entre as duas camisas mais importantes do futebol. Não por coincidências as únicas a vencerem no continente da outra.

Outro legado intangível, provavelmente anotado pelo Itamaraty, foi a integração sul-americana.  Brasileiros e vizinhos se relacionaram de modo nunca visto. Parecia que começavam a se conhecer depois de tantos anos, apesar de tão próximos. O termo "hermanos" finalmente fez sentido, exceto quando se tratava de alguns argentinos. Neste caso, quando o assunto é futebol, a tarefa de aproximação é hercúlea. Depois das músicas provocativas por parte deles e da torcida canarinho pelos alemães na final provavelmente, sem falar das brigas, é ainda mais.

Infelizmente, porém, alguns preferiram realçar a derrota no campo e esquecer o sucesso fora dele para destilar velhos estereótipos a cerca do brasileiro. Em sua coluna no Globo, Ancelmo Góis foi direto:

"Estava escrito nas estrelas que a fragorosa derrota para a Alemanha iria reacender o ânimo dos portadores do complexo de vira-latas, aqueles que acham o Brasil um país chinfrim e invejam os países dos outros, notadamente os EUA e Europa. Para eles, a vitória alemã é o triunfo da organização, da competência, da seriedade, da disciplina sobre a malandragem, preguiça e bagunça do outro. Se esse raciocínio fosse aceitável, Inglaterra e Espanha, para citar países que não passaram pela primeira fase, seriam indolentes. Ao contrário de Colômbia, Costa Rica e Argélia. A própria Alemanha contava 24 anos que não vencia uma Copa. É um jogo."

Como esses brasileiros, certos que a organização da Copa seria a concretização de seus complexos, viram-se sem discurso, apelaram para outra  área cujo passado logo lhes desdiz. Cinco vezes vencemos com talento, planejamento e trabalho, em proporções diferentes, dependendo da época. Desta vez, nenhum destes fatores houve em qualidade suficiente para honrar a mais mística das seleções.

O futebol brasileiro precisa ser reformulado. O fracasso em 2006 e 2010 sinaliza para esta necessidade. Dormimos em berço esplêndido, lastreados pela supremacia de anos anteriores, reconhecida pelo mundo inteiro. Mas invocar, neste momento, estigmas preconceituosos contra o próprio país é problema de caráter. Ou profunda ignorância.

Em seu último comentário no SporTV, após a final, o ex-zagueiro da Seleção Ricardo Rocha não resistiu e chorou, orgulhoso pelo que fizemos como povo, organização, e revoltado com o papelão de nossos jogadores e comissão técnica. Aquele choro resumiu meu estado de espírito no fim da tão esperada e agora inesquecível festa.

Sempre me lembrarei do belga que, conversando comigo, na praia de Copacabana, interrompeu-me para dizer, não rindo como se fosse jogar palavras ao vento, mas sereno e em tom de reverência, com um olhar que passava sinceridade e respeito: "I love your country, my friend". Eu, com o coração explodindo de satisfação, só consegui responder: "Thank you. Me too".

Apesar do Felipão, de vários dos 23 jogadores e da CBF, tudo que vi e ouvi nestes últimos 30 dias me deixou ainda mais orgulhoso de ser brasileiro. Podem me chamar de piegas, mas eu sou assim. E isto não tem nada a ver com ufanismo. É apenas saber reconhecer nossos problemas, mas enaltecer nossas virtudes, nossos acertos. Quem procurar amar só a perfeição nunca amará, pois ela não existe...

terça-feira, 15 de julho de 2014

O conveniente anacronismo espanhol

Por Murillo Victorazzo

Fragilizado por problemas de diferentes ordens, o rei da Espanha, Juan Carlos de Borbón, abdicou, mês passado, em favor do filho, Felipe- ou Felipe VI, como passará a ser chamado. O novo monarca é reconhecido como preparado para suceder o pai. Mas, diante de tamanha adversidade política, econômica e social por que passa o país, muitos ressaltam que a transição pode vir a ser o vácuo desejado para os que desejam a república e os que sonham com a independência de suas regiões, como catalães e bascos. Teria sido aberta a "Caixa de Pandora" da realeza espanhola?

Ano após ano, as monarquias vêm sofrendo desgastes, com suas legitimidades colocadas em dúvida por parcelas cada vez mais significativas das sociedades em que vigoram. Um movimento mais do que compreensível, haja vista ser difícil explicar para as novas gerações as vantagens de ser súdito de alguém, e não quem delega poderes a um representante com mandatos limitados.

Não parece fácil convencer, principalmente os mais jovens, ser justo reverenciar, sem ferramentas de cobrança alguma, alguém que, além de tudo, não alcançou a chefia de Estado por seus atributos pessoais, muito menos pela vontade da maioria da população. Está lá apenas por pertencer a uma família que há séculos - quando a noção de representatividade era outra e a distinção entre Estado e governante, pouco clara -  foi ungida como acima das outras.

As poucas democráticas imagem e posição ( para os padrões contemporâneos) das famílias reais são ainda resquícios do Direito Divino absolutista, pelo qual o monarca governava pela vontade de Deus. Ele era o "escolhido" e, portanto, seu descendente também o seria após sua morte. Somente a Ele o rei deveria prestar contas até o final de seus dias.

Os reis perderem poderes, as monarquias, pelo menos nas nações desenvolvidas, tornaram-se constitucional - ou seja, com Parlamentos, primeiros-ministros e freios e contrapesos entre os Poderes. Mas a noção de "excepcionalidade" que os envolve permaneceu de certa forma no senso popular e na estrutura estatal dos países em questão.

A mesma imagem, em consequência, traz consigo outra: por estar acima de todos, ser um símbolo permanente do Estado, imune e à parte de disputas partidárias, o rei tem legitimidade (e até o dever) para se portar como neutro nas mediações de crises. Pela mesma lógica, é visto também como garantia da unidade nacional.

Assim, em um país como a Espanha, de histórico imperial mas pouca coesão interna, traço expresso no separatismo latente de algumas de suas regiões, ninguém melhor do que um rei para manter o status quo do centralizador regime de Francisco Franco após sua morte. Assim pensou o próprio ditador e seus aliados na hora de, já beirando os 80 anos, ter que ser escolhido seu sucessor.

Com o falecimento do "el generalísimo", como era conhecido o líder do cruel regime que oprimiu o país por 39 anos, Juan Carlos de Borbón - neto de Afonso XIII, rei deposto com a instauração da Segunda República, em 1931 - assumia, em 1975, o trono. Estava reinstaurada a monarquia na Espanha. Era a garantia de manutenção dos pilares do ultraconservador e católico franquismo.

Mas, dono da Coroa, Juan Carlos não seguiu à risca o imaginado por Franco. Ao convocar eleições diretas para a elaboração de uma nova Constituição, renunciava através dela a muito de seus poderes. A nova Carta reservava à Coroa apenas a Chefia de Estado - seu papel seria o de representação perante o exterior, chefe supremo das Forças Armadas e, principalmente, fiador da estabilidade institucional do país.

A Espanha, a partir de então, tinha um Parlamento independente e forte e, na Chefia de Governo, um presidente de gobierno  (nome lá dado para o que outros países parlamentaristas chamam de primeiro-ministro), designado pela maioria parlamentar oriunda da vontade popular.

Seu pulso na tentativa de golpe em 1981, quando militares franquistas insatisfeitos invadem armados o Parlamento, carimbou ainda mais em sua imagem o perfil de democrata e estabilizador do país. Relegava-se ao esquecimento seu apoio passado à ditadura franquista.

Embora essencialmente conservador, de modo a evitar rupturas especialmente à esquerda, o processo por ele conduzido levou a Espanha a ser uma das mais modernas, ricas e sólidas democracias do mundo. Um prestígio que foi se perdendo nos últimos anos por diversos motivos simultâneos.

Por não ser o chefe de governo, responsável pela gestão da política econômica, Juan Carlos poderia  passar quase incólume pela severa crise econômica que atinge o país nos últimos anos, se não tivesse ela se tornado, mais do que tudo, o estopim para o estouro da latente insatisfação popular com todo o sistema político vigente. Incluí-se aí toda a classe política, vista como corrupta,e o arcabouço da União Europeia, do qual o rei fora um dos maiores entusiastas.

O movimento dos "Indignados", formado basicamente por jovens, e a expressiva votação de siglas eurocéticas nas eleições para o Parlamento europeu mês passado refletiram a profunda contrariedade dominante, em maior ou menor grau, em toda sociedade espanhola.  As urnas debilitarem os dois principais partidos, PP e PSOE, jogando no córner o tradicional bipartidarismo do país. Um  significativo "não" ao status quo tão bem moderado e defendido pelo monarca.

Neste cenário, com o país sob severo arrocho fiscal, alta taxa de desemprego e recessão, os gastos reais tornavam-se abusivos para boa parte da população. Indignação realçada com a luxuosa viagem do rei à África, em 2012, a fim de participar do supérfluo hobby de caçar elefantes.

Quase ao mesmo tempo, estourava o escândalo de corrupção envolvendo Iñakli Urdangarin, marido de sua filha, a infanta Cristina. Suspeitas de desvio de dinheiro público para a fundação presidida por Urdangarin levaram o genro real aos tribunais. Extratos bancários mostraram que parte do capital da instituição sem fins lucrativos fora utilizado para pagar as volumosas despesas pessoais do casal, como, por exemplo, sapatos de 900 euros.

Indiciada também no por fraude fiscal e lavagem de dinheiro, Cristina entrou para a História espanhola como a primeira descendente de um rei a depor na presença de um juiz. No dia de seus depoimento, centenas de manifestantes antimonarquia se puseram à frente do tribunal. Um deles dava o tom dos descontentes: “A nossa monarquia é uma instituição arcaica, medieval e está totalmente protegida por uma máfia. É a pedra angular da corrupção que há neste país”.

Não por acaso, assim que se soube da abdicação, milhares de espanhóis de diferentes cidades foram às ruas para festejar e pedir um referendo sobre o fim da monarquia. Na Cataluña, onde a crise já servira para estimular a convocação de  uma consulta popular sobre independência por parte do governo regional, posteriormente barrada por Madrid,  a mobilização foi ainda maior.

Pesquisa divulgada no jornal El País, de Madrid, mostrou que o referendo conta com o apoio da maioria da população, 62%. Porém, caso convocado, apenas 36% votariam pela república, contra 49% simpáticos à manutenção da atual forma de governo. Revelou ainda que a popularidade de Juan Carlos,depois de meses de queda, voltou a subir. Um certo paradoxo sintomático.

São números que, pelo menos inicialmente, sinalizam para o acerto da decisão do "rei da transição democrática". Por mais anacrônica que seja, por mais fragilizada que esteja, talvez a monarquia ainda seja a mais segura - quem sabe a única - forma de manter a estabilidade do país.

Uma republica acirraria disputas partidárias e regionais em uma  nação que enfrenta tantos obstáculos políticos e socioeconômicos. O vácuo de poder sempre é perigosamente incerto. Um rei jovem oxigenaria o regime e, como no passado, seria a viga da unidade nacional. Juan Carlos pode ter acertado de novo, ao apostar no receio popular de rupturas imediatas. O tempo dirá.

quarta-feira, 11 de junho de 2014

Rumo ao Hexa, Brasil!

Por Murillo Victorazzo

Faltam menos de 24 horas pra eu realizar um sonho, o sonho de todo brasileiro apaixonado por futebol: ver uma Copa do Mundo em meu país, assistir a minha seleção em um estádio repleto de brasucas fazendo a festa que só nós sabemos fazer, provando que aqui futebol não é um mero esporte, é traço da nossa identidade nacional e recurso de projeção internacional.

 Frases assim podem soar como clichês, mas, gostem ou não os falsos intelectuais, os radicalóides, os demagogos, os mal intencionados e os que, para o azar deles, odeiam ser o que são - brasileiros -, são a pura verdade. E nelas não há lado negativo algum. O discurso preconceituoso sobre "o ópio do povo", se algum dia fez sentido, hoje passa longe da realidade.

"Nós ´vivemos` o futebol; os outros apenas o jogam". "Descobri o cretino fundamental no futebol. Ele é aquele que não tem orgulho do seu país ter ganho tantas honrarias no futebol. Tem brasileiro apenas escrito em seu passaporte. Em todo lugar tem esse tipo de pessoa". Ninguém melhor que Nélson Rodrigues soube expressar a ligação do brasileiro com nosso esporte mais popular e ridicularizar os que, remando contra a maré, achavam ser mais "antenado".

Ele sabia que se orgulhar da seleção não é achar que futebol é a coisa mais importante do mundo, muito menos ignorar as mazelas sociais e políticas do país. Pobre daqueles que veem o mundo como um jogo de soma zero: aqueles que precisam desprezar e condenar o secundário para se achar mais cidadão nas preocupações com o fundamental; que acham que festejar o banal é ignorar o essencial. Tudo tem seu tempo.

Podem me chamar de tudo, menos de "alienado", e justamente por isto garanto: futebol e política - DUAS DAS MINHAS GRANDES PAIXÕES - não se misturam. Os que tentaram misturar, pelo menos nos regimes democráticos, sempre fracassaram.

Indignações quanto a promessas não cumpridas, corrupção e obras atrasadas a gente deposita na urna. Protestos, todos temos o direito de fazer; nunca os pautarei. Mas boicotar ou impedir outros de participar de uma festa, de um megaevento esportivo de tamanha repercussão internacional, é bem diferente.

Pelas ruas já cheias de turistas e bandeiras do Brasil em número cada vez maior nas janelas e nos carros, arrisco dizer: turma do "não vai ter Copa", vocês perderam. Camisa e bandeira já a postos. Ansiedade e emoção aumentando. Rumo ao Hexa, Brasil!!!! Paulistada, a abertura é com vocês. Na final, deixa conosco. O Maraca garante!



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segunda-feira, 2 de junho de 2014

"Brasil e EUA vivem hoje uma relação de paranoia mútua", afirma publisher da "Foreign Policy"

Por Raul Juste Lores  (UOL, 02/06/2014)

Brasil e EUA precisam resolver suas "paranoias" recíprocas se quiserem ter uma parceria mais produtiva. "Hoje, quando os dois presidentes se encontram, só falam de ninharias", diz o publisher da revista "Foreign Policy", influente publicação americana sobre assuntos internacionais, David Rothkopf, 58.

Crítico duro do governo Barack Obama, apesar de ser democrata, Rothkopf acha que Brasil e EUA têm visões "caricaturais" um do outro e que a memória da Guerra Fria tem peso excessivo. "Se a China desacelerar, se houver uma seca de capitais rumo aos emergentes, o que [a presidente Dilma Rousseff] vai fazer?", pergunta. Seu próximo livro, a ser lançado em outubro, será sobre a política externa de Bush e Obama "na era do medo". Ele recebeu a Folha em seu escritório em Washington.

Folha - O Brasil pode ficar isolado se os dois blocos comerciais estimulados pelos EUA, com a Europa e com os países do Pacífico, saírem do papel?
David Rothkopf - Não parece que ninguém do governo brasileiro esteja preocupado com isso, senão fariam algo. Dilma vai enfrentar muitos problemas domésticos em relação à economia. Se a China desacelerar, se os estímulos à economia americana forem reduzidos, se houver seca de capitais rumo aos emergentes, o que ela vai fazer? Ela não mostrou apetite pela arena global. O Brasil tem seguido a política de fazer seus próprios negócios, desde que não sejam negócios com os Estados Unidos.

Folha - Por quê?
Rothkopf - Todo país é colorido por sua história e tem suas paranoias. O Brasil é paranoico em ser dominado pelos EUA. Tem uma reação negativa anormal a qualquer projeto de cooperação com os EUA. Como meu irmão é casado com brasileira, minha mulher já trabalhou lá e tenho muitos amigos brasileiros, acho que posso ser franco. Já os EUA são paranoicos com a ascensão brasileira e regularmente suas políticas na região querem deixar o Brasil de fora.

Folha -Depois da crise causada pela espionagem da NSA (Agência de Segurança Nacional dos EUA), o sr. vê a possibilidade de reconstruir a confiança? 
Rothkopf - Se hoje os dois líderes se encontram, vão falar sobre o quê? Só de ninharia. Não conseguimos falar nem de liberar os vistos reciprocamente, nem de facilitar alfândega. O melhor momento recente foi a relação entre [George W.] Bush e Lula. Veja só. Lula fez algo admirável, construindo em cima das fundações deixadas por Fernando Henrique Cardoso, que estabilizou a economia. Transformou o Brasil em um ator global. Se eu fosse os EUA, cansado de guerras e querendo ter novos aliados no mundo, priorizaria essa gigante democracia no nosso hemisfério, com quem compartilhamos a diversidade cultural. Mas Dilma não é Lula.

Folha - É comum detectar antiamericanismo de um lado e um antiesquerdismo do outro. Vai demorar essa aproximação?
Rothkopf - A memória da Guerra Fria tem um papel grande demais nos dois lados. Temos um problema aqui nos EUA: muitos dos nossos latino-americanistas foram educados na Guerra Fria e têm uma atitude automática contra a esquerda. Tratam igual, seja Cristina [Kirchner], [Evo] Morales, [Rafael] Correa, seja quem estiver à frente da Venezuela. Onde estão hoje os líderes inovadores da América Latina? Na esquerda. Lula foi talvez o mais importante lider latino-americano dos últimos cem anos, e a reação inicial a ele foi negativa. Hoje, há um líder mais inovador do que [José] Mujica?

Folha - Do lado americano, é comum a reclamação de que o Brasil não se comporta como aliado, abstendo-se na crise da Ucrânia ou da Síria. O acordo com o Irã é lembrado até hoje.
Rothkopf - O Irã foi "nonsense" (absurdo), mas Brasil e Turquia estavam por trás do acordo, e fizemos as pazes com a Turquia rapidinho por termos interesse. E olha que [Recep Tayyip] Erdogan não era tão legal quanto pensávamos. Mas, se Dilma for reeleita, ela tem de pensar em como será a relação com Hillary Clinton ou com Jeb Bush, os favoritos para a sucessão de Obama. Há oportunidades para cooperação em ciência, energia, mudança climática.

Folha - Mas não parece que a América Latina esteja entre as prioridades do governo Obama.
Rothkopf - Há 20 crises simultâneas, então só o que é problema vira prioridade. É a política velha, por inércia.

Folha - O mundo parece dar um suspiro de alívio quando um presidente americano, como Obama, diz preferir a diplomacia ao uso da força. Por que o sr. acha que não devemos comemorar?
Rothkopf - Podemos celebrar o fim do uso exagerado da força dos anos Bush, mas Obama faz um governo minimalista. A menor ação possível, criando a ilusão de fazer muita coisa. Precisamos de uma combinação de diplomacia, pressão política e econômica, cooperação militar, ação legal, ação multilateral.

Folha - Obama não está de mãos atadas por uma opinião pública que não quer saber de guerra nem de intervenções no exterior e por um Congresso onde ele não tem maioria?
Rothkopf - Não precisava ser binário –ou usamos força ou não fazemos nada. O povo americano não quer mais guerra, mas quer que o país lidere, que o mundo não se torne mais perigoso, que não sejamos cúmplices por inação pelo massacre na Síria. Ou pelo crescimento do terrorismo, ou por encorajar [Vladimir] Putin, ou por a China invadir vizinhos ou ilhas. Falta liderança, energizar a opinião pública, identificar objetivos, convencer aliados. Obama é cauteloso demais e sem experiência de política externa. Sua equipe se tornou ainda mais fraca, com menos poder, no segundo mandato que no primeiro. Centraliza tudo na Casa Branca.

Folha - Quando os EUA falam em contenção de China ou Rússia, não acaba provocando reação de ambos, por se sentirem "cercados" pelos EUA?
Rothkopf -A "contenção" é maior que os EUA admitem, mas menor do que os chineses reclamam. Os vizinhos da China não têm uma relação tão boa e não a querem como chefe por lá. É uma questão de avançar nossos interesses, de proteger nossos aliados. A China tem uma estratégia, dá a volta ao mundo com o talão de cheques na mão, cria interdependência. Nós não temos estratégia.

Folha - Os EUA perderam a moral para denunciar a pirataria cibernética chinesa?
Rothkopf - Ambos espionam e admitem. Os EUA dizem "vocês roubam segredos industriais para dar às suas empresas, nós cuidamos da segurança nacional", mas a China retruca que os EUA querem benefícios comerciais e que espionaram a [empresa] Huawei. Na Guerra Fria, o preço do conflito ficou tão alto com a possibilidade de guerra nuclear que não lutamos porque seria a destruição. Já os ataques cibernéticos, assim como os drones, sem humanos, são baratos demais. O perigo é não pararem nunca. Em que ponto veremos que fomos longe demais?

Folha -  A crise da NSA também demonstrou como os governos ainda conhecem pouco a segurança digital?
Rothkopf - Não há tanta gente no governo, especialmente em altos cargos, que entenda o mundo cyber. Sete bilhões de pessoas terão celular, e o fluxo de dados já é mais importante que o de capital. Privacidade é uma nova prioridade, e não temos uma doutrina cibernética, nem debate, nem normas globais.

domingo, 18 de maio de 2014

A cultura estratégica russa e a anexação da Crimeia: O Império contra-ataca?

Por Marcos Degaut*  (Mundorama.net, 10/05/2014)

A anexação da Crimeia pela Rússia, em março de 2014, e a disposição do presidente russo, Vladimir Putin, em fazer uma incursão militar na Ucrânia, para garantir a incorporação da região ao país parecem ter pego de surpresa muitos analistas políticos e formuladores de políticas.

Mais uma vez, em meio a especulações sobre as verdadeiras intenções do país, tem  crescido o medo de que posições agressivas na política externa de uma Rússia imperialista se deva à ideia de reconstrução de um império. O objetivo seria conseguir assim algum tipo de superioridade estratégica sobre o Ocidente ou adquirir maior influência política na arena internacional.

No entanto, pode-se argumentar que os interesses estratégicos da Rússia são mais modestos. O país não está interessado em reviver uma nova Guerra Fria. Falta-lhe não só os meios políticos, econômicos e militares para fazê-lo como também vontade, já que tem mais a perder do que a ganhar na implementação de uma política de confronto com as principais potências do mundo.

Na verdade, o que é visto como uma agressão irracional contra a Ucrânia é apenas mais um capítulo da longa história de equívocos do Ocidente no entendimento de quais forças motrizes estão por trás do comportamento da política externa russa. Este pode ser explicado pela natureza duradoura da cultura estratégica do país. Sim, as especificidades do fato foram surpreendentes, embora não imprevisíveis.

Compreender tal cultura é de extrema importância para  formuladores de políticas, estudiosos e analistas, pois ajuda explicar  padrões regulares de comportamento dos Estados. Ajuda-nos a entender a lógica de sua percepção  sobre o cenário global e a vizinhança mais próxima, o que influencia sua política externa e por que tende a se comportar de determinada maneira. 

Em artigo de 1998, Michael Desch argumenta que a cultura estratégica pode não só explicar a defasagem entre mudanças estruturais e alterações no comportamento estatal como também "por que alguns Estados comportam-se irracionalmente e sofrem as consequências de não conseguirem se adaptar às limitações do sistema internacional".

Tendo em vista que esta cultura é produto da experiência histórica, Estados diferentes têm diferentes culturas estratégicas.Todas enraizadas nas experiências de formação do Estado e influenciadas, em algum grau, pelas características filosóficas, políticas, culturais e cognitivas dele e de suas elites.

A literatura sobre o assunto, geralmente, apresenta duas abordagens distintas na análise de cultura estratégica. A mais aceita é a que a define em termos de estratégia militar e uso da força nas relações internacionais. Haveria uma predisposição cultural fortemente correlacionada a determinado comportamento ou pensamento militar, sendo este derivado da história, da geografia, dos mitos e símbolos nacionais, das tradições políticas e instituições do país, entre outras fontes.

Cultura estratégica não é, no entanto, apenas um produto da cultura militar, e esta não é a única área onde sua influência é sentida. Ela também influencia as tradições e práticas políticas e de política externa do país, razão pela qual a segunda abordagem ampliou o conceito e incluiu variáveis como as econômicas e diplomáticas nos caminhos para atingir os objetivos dos Estados.

São, portanto, fatores determinantes na formação da cultura estratégica de um país não apenas a maneira como o poder político é adquirido e utilizado mas também como ele vê e aborda o mundo exterior. Por sua vez,  metas de política externa,  que refletem identidades e interesses, são definidas por justamente por ela.

Nesta linha de pensamento, o Comando Sul dos Estados Unidos (SOUTHCOM) define cultura estratégica como "a combinação de influências internas e externas com experiências – geográficas, históricas, culturais, econômicas, políticas e militares – que molda a maneira de um país entender sua relação com o resto do mundo e como um Estado se comportará na comunidade internacional".

Deste modo, a perspectiva de um país a cerca de seu papel no sistema international e sua percepção de segurança também são parte de sua cultura estratégica. Assim, para fins operacionais, a cultura estratégica pode aqui ser compreendida como uma profunda predisposição cultural a um particular comportamento ou pensamento estratégico.

De fato, a Rússia exibe uma propensão ao uso da força na busca por seus objetivos estratégicos. No entanto, apesar da cultura estratégica poder ser considerada razoavelmente estável no que diz respeito à percepção predominante de ameaça e à busca  pelo status de grande potência, algumas mudanças foram acontecendo após o colapso da União Soviética. Mais visivelmente, tem diminuído a percepção da força militar como única fonte de poder, enquanto o papel do poder econômico se tornou mais importante.

Isso certamente não significa que a Rússia desistiu da força militar como fonte de poder e influência política, uma ferramenta importante nas suas relações internacionais. Ela  ainda é a base institucional do Estado. No entanto, o desenvolvimento econômico também se tornou importante força motriz por trás de sua política externa.

Não podemos esquecer, contudo, que, por sua própria natureza, a Rússia é um país de revisionista. O estado russo nasceu e expandiu-se em semipermanente estado de guerra. Ao longo da história, dos tempos imperiais à era soviética, a noção de que seus território e recursos eram alvos de Estados vizinhos e inimigos bélicos expansionistas não apenas moldaram a percepção russa de ameaça como também contribuíram para forjar um forte nacionalismo, traço integrante da identidade nacional do país

A cultura estratégica do país e sua aspiração à grande potência são, portanto, fundadas sobre uma quase obsessiva percepção de ameaça generalizada à soberania russa e sua integridade territorial, além de exacerbado nacionalismo, centrado na influência global, na segurança e nos interesses do país.

A repressão aos movimentos separatistas na Chechênia e no Daguestão, a incursão militar na Geórgia em 2008, a recente anexação da Crimeia e o aparente apoio a movimentos separatistas nas regiões ucranianas orientais, mais especificamente nas cidades de Donetsk, Lugansk e Kharkov, seguem claramente esse padrão, já reforçado em julho de 2008, quando o então presidente Andrei Medvedev aprovou um novo "conceito de política externa" para o país, cujos principais objetivos eram "garantir a segurança nacional, preservar e fortalecer sua soberania e integridade territorial e alcançar posições fortes de autoridade no mundo".

Outros elementos também contribuem para moldar a cultura estratégica russa, tais como o estilo profundamente enraizado de liderança autoritária  e a cultura política militarizada. Na verdade, a cultura política russa tem profunda influência sobre sua cultura estratégica. Ela é em si muito "marcial"ou harmoniosa com os valores militares nos quais o princípio do kto-kovo (literalmente, "quem-quem)  se baseia : quem domina quem, a partir do poder coercitivo ou do status ditado pela autoridade superior".

Este pressuposto implica que as elites políticas russas tendem a ver elementos da democracia como meros instrumentos políticos a serem usados para manipular e controlar pessoas e governos mais fracos, a fim de perseguir e alcançar os interesses do país e em benefício da autoridade central.

Em grande medida, a política externa russa espelha sua cultura política. A tradição kto-kovo tem implicações nas relações internacionais do país, pois representa uma tendência a ver Estados e atores estrangeiros como inimigos, aliados transitórios ou idiotas úteis a serem manipulados 

Isso ajuda a explicar a opção preferencial por acordos bilaterais no desenvolvimento de sua estratégia multipolar no nível das grandes potências. Através deles, a Rússia forma uma variedade de coligações, em detrimento do sistema de instituições internacionais.

Esta perspectiva também explica a crescente pressão sobre Armênia, Azerbaijão, Bielorrússia, Moldávia, Geórgia, Cazaquistão, e também a Ucrânia, para juntarem-se à União da Eurásia, bloco comercial desenhado por Moscou com o intuito de vincular a Rússia aos seus vizinhos mais próximos, contrabalançando a influência econômica da União Europeia na região.

Superado o período caótico que se seguiu ao colapso da União Soviética, as lideranças russas manifestam sistematicamente o desejo de devolver à nação o status de grande potência, importante fator de condução na política externa russa.. Sob este prisma, elas têm agido. O país não só quer aumentar e projetar sua influência e poder em sua região como pretende ser um ator mais significativo na arena internacional. Um impulso improvável de ser arrefecido.

As lideranças parecem ver o mundo basicamente pela ótica realista, na qual a busca pelo equilíbrio de poder é permanente. Para eles, a missão da Rússia é promover o surgimento de um mundo multipolar, a fim de conter e contrabalançar a magnitude do poder americano.

Os principais elementos da cultura estratégica russa – combatividade, competitividade, assertividade política e uma posição firme contra o que é percebido como a maior ameaça à sua segurança e ambições, os Estados Unidos – estão presentes na renovada aspiração ao status de grande potência.

Ao mesmo tempo, devido à sua cultura estratégica, a Rússia se manterá reagindo ao que é percebido como ameaça a sua integridade territorial, influência e valores. Continuará sendo particularmente sensível às tentativas de EUA e União Europeia de não apenas incluírem em uma comunidade de segurança coletiva países que já foram parte de sua esfera de  influência, mas também de promover a economia de mercado e a democracia liberal nestas áreas.

Putin deixou claro que  está pronto para gastar seu capital político e significativos recursos militares e econômicos na defesa do direito de proteger o que vê como "espaço vital" e  interesses da Rússia. E desde a anexação da Península da Criméia, agora um fato consumado, quando não enfrentou nenhuma oposição internacional séria, apenas leves protestos diplomáticos, uma análise da cultura estratégica do país indica que outras aventuras semelhantes podem estar por vir. 

Exceto, obviamente, se Estados Unidos e demais potências ocidentais descobrirem uma efetiva maneira de tornar tais ações mais custosas para a Rússia sem aumentar os riscos de um confronto militar direto.

*Marcos Degaut is estudante de pós-doutorado em Segurança Internacional na Universidade da Flórida Central
(tradução livre do blog)