segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

Pela TV, o Brasil viu seu lado mais arcaico

Por Murillo Victorazzo

As cenas já entraram para a História do Brasil. Embora não se deva esquecê-las, descrever o que se viu no dia 8 de janeiro seria repetitivo. Mas ainda são úteis as inúmeras reportagens sobre o perfil dos golpistas que - portando uma enorme faixa a favor de "intervenção militar" - destruíram  as sedes dos três Poderes da República. Ao dar rosto a eles, ajudam-nos a confirmar as impressões acerca da base mais fiel do ex-presidente Jair Bolsonaro, o "bolsonarismo raiz": militares, policiais, evangélicos e setores do empresariado e de grupos rurais. 

Como emblemático exemplo, em um dos relatos publicados pela Folha de São Paulo, a esposa de um entusiasta de Bolsonaro conta como seu marido se radicalizou após tornar frequente idas a um clube de tiro. O casamento não resistiu à campanha eleitoral, período no qual ele começou a se revelar mais agressivo e desqualificar as opiniões da esposa: por não ter "experiência de vida de um empresário", isto é, não ser dona de bens de produção, ela não teria legitimidade para opinar sobre os rumos do país. Após a vitória de Lula, foi além: culpou-a pelas invasões de fazendas que iriam acontecer daqui para frente. Empresários e comerciantes não poderiam mais ganhar dinheiro, e portanto, teria ela que se responsabilizar pelo sustento da casa.

Por mais pitoresco que seja para uns, estarrecedor para muitos, o raciocínio desse bolsonarista não é produto de um alucinado ególatra. Ao contrário, vem de muito longe. Em seu clássico ensaio "A práxis liberal no Brasil" (1978), Wanderley Guilherme dos Santos, um dos principais nomes da Ciência Política brasileira, falecido quatro anos atrás, descreve as convenientes interpretações sobre o liberalismo dadas pelas elites econômicas para  justificar, desde o Império, suas práticas históricas e resguardar seus interesses.

No debate sobre participação política no embrionário Brasil independente, a busca por igualdade de direitos - traço basal de qualquer liberalismo que mereça esse nome - foi relegada em prol da ideia de que a sociedade política deveria ser formada apenas por quem gerava riqueza. Remetendo ao marido bolsonarista, seriam eles os únicos capazes de "ações adequadas à preservação da propriedade". Um dos pais do liberalismo, John Locke considerava como único papel dos governos a proteção da vida, liberdade e propriedade privada, direitos que seriam naturais, isto é, uma lei da natureza, não humana, anterior ao Estado. Sendo assim, em um país eminentemente rural, apenas entre os fazendeiros encontrava-se a fonte de legitimidade para conduzir a nação. Decidiu-se então pelo voto censitário, que marginalizou a vasta maioria da população, mesmo não escravos, até a primeira Constituição republicana, em 1891. 

A instrumentalização do liberalismo não parou aí. Nada mais antiliberal do que a escravidão, deveria ser óbvio se falamos de liberdade. No entanto, as oligarquias rurais da época, narra Wanderley, não hesitaram em colocar os escravos, antes de tudo, como posse, um bem como outro qualquer, o que tornava qualquer mínima regulação do Estado - o que dirá a abolição! - um ataque àquele seu direito natural.

A mesma elite, porém correu para os braços estatais quando, abolida a escravidão, viu-se obrigada a atrair imigrantes como mão de obra. Diante da proibição dos governos italiano e alemão após denúncias da condição semiescrava dos primeiros a chegar ao Brasil, fazendeiros clamaram por normas governamentais que estabelecessem as condições pelas quais poderiam firmar contratos com os novos empregados. Pressionaram também por financiamento para a instalação dos estrangeiros. Uma forma de diminuir custos e oferecer aos europeus um selo de credibilidade, em busca da formação desse novo mercado de trabalhadores livres. 

"A intervenção estatal foi reclamada para que o sistema econômico funcionasse de acordo com as linhas liberais formais, da mesma maneira que se havia exigido que o Estado permanecesse fora das relações econômicas - como um Estado liberal deveria permanecer - para dar, ao sistema escravocrata, carta branca liberal", resume Wanderley.

Um dos principais intérpretes do pensamento social brasileiro, Oliveira Vianna, consultor jurídico do Ministério do Trabalho entre 1932 e 1940, durante o qual foi voz ativa na elaboração da legislação trabalhista da Era Vargas, defendia a inviabilidade de um sistema político liberal eficaz no país sem antes se construir aqui uma sociedade liberal. O caráter antiliberal da sociedade brasileira, sustentava ele, encontrava raízes na nossa colonização: grandes propriedades de terra familiarmente apropriadas, isoladas umas das outras, o que levava a vida local não depender do "mundo externo", inibindo assim trocas - logo a criação de mercados amplos. Não existindo um caminho natural para a sociedade almejada, seria necessário um regime autoritário cujo programa econômico e político imposto fosse capaz de demolir as barreiras a ela.
Na tipologia de Wanderley, Oliveira Vianna foi um dos expoentes do "autoritarismo instrumental", pensamento, segundo o autor, encontrado desde o início da História independente do Brasil e que se diferenciava dos "liberais doutrinários", aqueles que acreditavam ser suficiente uma reforma institucional para se consolidar uma sociedade liberal. No entanto, no período pós-1945, o antivarguismo visceral dos liberais doutrinários abrigados na UDN fez com que até mesmo eles abandonassem o apreço pelo Estado democrático de Direito, em outras palavras a democracia liberal. 

A sigla entrou para a História por não se ruborizar em difundir retóricas golpistas. Não vendo legitimidade no arcabouço social e político liderado por Vargas - "um mar de lama" -, não se viam mais obrigados a respeitar as regras do jogo: "O senhor Getúlio Vargas não pode ser candidato. Se for, não pode ser eleito. Se eleito, não pode tomar posse. Se tomar posse, não pode governar", discursou Carlos Lacerda, a voz mais estridente do udenismo, no início da campanha eleitoral que levaria de volta ao Catete seu figadal inimigo, em 1950.

 Não precisa ser um astuto observador para notar as semelhanças com o que vimos, lemos e ouvimos desde novembro. O fim daquele episódio, em 1954, acabou com um tiro no peito. De forma também violenta, depôs-se outro trabalhista, em 1964. Em 1955, Lott, um marechal legalista, abortou o plano de deposição udenista-militar contra o presidente eleito Juscelino Kubitschek, político do oligárquico PSD, bastante distante de um perfil esquerdista. 

"De 1945 a 1964, a UDN e seus aliados tentaram evitar que os presidentes eleitos assumissem. Quando não conseguiram, tentaram forçar a intervenção militar", afirma Wanderley. Quando acharam que haviam chegado ao poder com a deposição de Jango, não tardaram a se decepcionar. Ao contrário do propagado pelos generais, o golpe logo mostrou-se não ser o artifício provisório útil para afastar as esquerdas do jogo e abrir campo para a vitória de Lacerda nas eleições presidenciais de 1965. Não só também foram vítimas de cassações e prisões, como, após breve período de três anos, viram o liberalismo ser marginalizado também como política econômica pelos militares.

Nada, porém, que fosse suficiente para setores do empresariado deixarem de apoiar o lado mais obscuro e antiliberal do regime. A partir de coletas na Fiesp e em reuniões promovidas pelo dono do Banco Mercantil,  dirigentes e executivos de Itaú, Scania, Ford, General Motors, Ultragás, entre outros,  não hesitaram em financiara famigerada Operação Bandeirante (Oban), centro de inteligência, prisão, tortura e execução subordinada ao letal Centro de Informação do Exército (CIE). Apoio que não cessou nem após todos os grupos guerrilheiros serem dizimados, na primeira metade da década de 70.

A histeria anticomunista juntava-se ao oportunismo de negócios. "Há um novo arranjo, não democrático, entre Estado e sociedade, pelo qual os grupos dominantes, entre eles, com papel predominante, setores empresariais nacionais e estrangeiros, articulam-se com a burocracia do Estado. Em lugar dos partidos, funcionam anéis que ligam e solidarizam os interesses de grupos privados e de setores das empresas do estado e do próprio estado", escreveu o à época sociólogo Fernando Henrique Cardoso em " A esfinge fantasiada", artigo publicado na revista Opinião em janeiro de 1973. 

De liberal de fato, muito pouco, portanto, havia nesse arranjo. Apenas uma distorcida forma de privatização: a privatização do aparelho estatal - inclusive de segmentos do monopólio da violência-, progressivamente a serviço de interesses pessoais e empresariais. Em cores fortes e maniqueístas, como é comum na ficção, Gilberto Braga, em "Anos Rebeldes", personificou a promiscuidade do capital com a ditadura no machista e autoritário empresário Fábio Brito (José Wilker) Seu espanto ao ver as marcas da tortura na própria filha, Heloisa (Cláudia Abreu), é uma das cenas marcantes da emocionante minissérie global. Transtornado, mescla sentimento de culpa, culpabilização da vítima e tentativa de negar a realidade. Uma incômoda semiótica do regime. 

O varguismo não foi capaz de romper com a estrutura anacrônica do Brasil rural. Fazia parte do jogo de alianças com as oligarquias do PSD. Até Oliveira Vianna havia encontrado nela a raiz do gene antiliberal brasileiro. Uma reforma agrária, portanto, deveria ser de interesse para qualquer liberal: mais proprietários de terra legalizados, mais mercado, mais consumo, mais concorrência, mais renda. Entretanto, setores da classe média e alta urbanas preferiram ecoar a retórica das oligarquias rurais - estas dispostas a manter intocados seus privilégios de quatro séculos-, quando Jango propôs as Reformas de Base: era o caminho para o socialismo, gritaram. Hoje, não coincidentemente, na gritaria contra os mesmos espantalhos ideológicos, voltamos a notar o parco (ou cínico) conhecimento político dessas classes que se arvoram  politizadas.

Briga por terras, precárias condições de trabalho, grilagem, garimpo e madeireiros ilegais. Esse mesmo setor atrasado da economia rural ( à época de Jango claramente preponderante) esteve presente também nas cenas golpistas desde o anúncio da derrota de Jair Bolsonaro. Peões e caminhoneiros financiados para fechar rodovias; tiros contra a polícia no interior do Pará e Mato Grosso; fazendeiros financiando viagens a Brasilia. Não por acaso, um dos autores do atentado a bomba fracassado em Brasília era um empresário que, além de gerente de posto de gasolina, atuava do ramo dos transportes de madeira e produtos agrícolas na Amazônia - e, que surpresa, registrado como CAC (colecionador, atirador profissional ou caçador)...

Exposta na última semana, a tragédia humanitária na reserva Yanomami tampouco é coincidência. Sim, a desnutrição não é novidade na região, mas a ordem de grandeza e a política de omissão deliberada e estímulo à invasão dessas terras são inéditas - pelo menos desde a redemocratização, em 1985 e a Constituição de 1988. Pipocam documentos com pedidos de ajuda e recomendações de órgãos ambientais, Judiciário e organismos internacionais sobre o quadro dramático. Todos ignorados. Não faltam nem informes mostrando garimpeiros armados se utilizando, pasmem, da própria sede da FUNAI naquelas reservas. Com direito a helicópteros clandestinos.

Não foram poucas as vezes que o ex-presidente pressionou "fiscais xiitas" que combatem o trabalho análogo à escravidão nas zonas rurais. "Atrapalhavam quem produz", não cansou de papagaiar. Não se assemelha ao "liberalismo" dos fazendeiros do Império e suas concepções a respeito do direito à propriedade privada? Acusações iguais atingiram funcionários do IBAMA e ICMBio, aparelhados por policiais e enfraquecidos financeiramente. Recordar o desmonte da área, embora necessário, é igualmente repetitivo. Ao bolsonarismo, restam as falsas equivalências e as fake news sobre a origem venezuelana desses indígenas.

As relações de poder nos últimos quatro anos são notórias. Assim como as cenas da Praça dos Três Poderes, essas também são crônicas de uma morte anunciada. Tratou-se com naturalidade um presidente visitar garimpo ilegal, entre abraços e sorrisos com criminosos da área. O Ministério da Defesa chegou a negar apoio logístico a operações contra essas práticas na região. O ministro do Meio Ambiente, vejam, do Meio Ambiente!, não se envergonhou por transportar integrantes desses grupos em jato da FAB. Ministro, aliás, investigado por ligação com esquema ilegal de madeira. 

Os elos políticos atuais se unem à concepção de desenvolvimento predatório da ditadura militar. Moldados na caserna daquela época, Bolsonaro e Mourão sempre viram nos povos indígenas um obstáculo ao que entendem como "progresso" e à "segurança nacional". Se há dúvidas jurídicas sobre o dolo na tragédia atual, não faltam provas do papel criminoso das Forças Armadas no genocídio indígena na ditadura militar. Em seu livro "Brasil, uma biografia",  as historiadoras Lilian Schwarz e Heloisa Starling rememoram o relatório de cerca de cinco mil páginas, escondido pelo regime e revelado pela Comissão da Verdade, em 2015, com casos detalhados de matanças de tribos inteiras, tortura, prostituição, trabalho escravo, sevicias, apropriação de recursos do patrimônio indígena: 

"Caçadas humanas com metralhadoras, dinamites jogadas de aviões, inoculações propositais de varíola em indígenas isolados, doações de açúcar misturado à estricnina. Os índios estavam posicionados entre os militares e a realização do projeto estratégico de ocupação do território brasileiro concebido pela ESG (Escola de Superior de Guerra ) e o IPES ( Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais) - e pagaram um preço alto por isso". 

Financiado pelo governo norte-americano, o IPES, oficialmente, era um centro de estudos conservador fundado, em 1961, por empresários cariocas e paulistas e que contava com a participação de alguns militares. Nos bastidores, porém, serviu com um polo conspirador que bancou não apenas campanhas de desestabilização do governo Jango e propaganda anticomunista como grupos de extrema-direita, chegando a estocar armas deles em sua sede. Entre os integrantes, o general Golbery do Couto Silva, o sombrio cérebro do regime militar, e nomes que viriam ocupar amplamente o aparelho estatal daquele período, em especial a área econômica, como Mario Henrique Simonsen e Octavio Gouvêa de Bulhões.   

Em seu ensaio, Wanderley mostra que, no Brasil, a formação do Exército como instituição de Estado veio antes do surgimento de uma burguesia como ator politico organizado, o que o impermeabilizou às ideias liberais. A influência do positivismo, cuja marca é a crença em uma vanguarda de "sábios" que sabem o que é melhor para o país, ajuda a explicar o, digamos, ceticismo quanto à democracia liberal e a autoimagem de superioridade moral, gerencial e intelectual que permeia os quartéis. Um corpo exterior à sociedade que se vê como mais patriotas do que os civis e, portanto, legítimo porta-voz dos "interesses nacionais", quando na verdade são apenas seus. Nas últimas duas décadas, alguns pontos do liberalismo econômico ganharam  espaço entre eles, desde que não alcancem o que entendem ser "setores estratégicos".

Por muitos tempo, os militares fizeram as vezes "de uma espécie de suprema corte, que, em ultima análise, dirimia as dúvidas ´constitucionais´ dos conflitos politicos civis sempre que esses alcançavam intensidade  suficiente para ameaçar  o pacto constitucional básico". Não foi fácil, com a redemocratização, olharem-se no espelho e não poderem atuar mais como um Poder Moderador, poder imperial extinto formalmente na primeira constituição da República - cuja proclamação, aliás, foi o primeiro golpe de Estado liderado pelo Exército. 

À época de seu texto, nos últimos anos da ditadura, Wanderley se mostrava pouco otimismo com a aceitação pela caserna do jogo institucional da democracia liberal, jogo reforçado pela Constituição de 1988, na qual o Judiciário foi empoderado. Um histórico que esclarece o porquê deste Poder ser seu alvo frequente. Nos trintas anos que separaram a nova Carta e as crises pós-impeachment de Dilma, novas gerações de fardados aparentavam ter compreendido o papel constitucional das Forças Armadas e o silêncio exigido sobre assuntos políticos para oficiais da ativa, segundo os próprios regulamentos. 

Com os brios feridos pela instauração, em 2015, da Comissão da Verdade, Bolsonaro e uma turma de generais da reserva, saudosos do passado, aproveitaram-se do histeria antipolítica trazida pela Lava-Jato, para equivocadamente catapultarem novamente a política para dentro dos quartéis. Comodamente, porém, sem permitirem a contrapartida dos julgamentos políticos e jurídicos decorrentes: propagam ser instituição de Estado, mas as críticas inerentes a quem participa de um governo em cerca seis mil cargos civis comissionados e se deixa instrumentalizar por ele são refutadas como tentativa de "destruição de imagem" por parte de "esquerdistas" rancorosos de tão impoluta organização.  

Em "Psicologia da massas e análise do eu" (1921), Sigmund Freud cita o Exército ( aqui no sentido de todas forças militares, inclusive a polícia) e a Igreja como os dois exemplo de massas artificiais. Esse tipo de massa exige algum tipo de ação coercitiva para não se desintegrarem e são regidas por uma relação paternal na qual se acredita que os líderes amam igualmente os liderados. Na Igreja, Jesus Cristo; no Exército, o general, ainda que neste existam hierarquias. Um sentimento de família se forma ("Irmãos em Cristo"; "Família militar"; "Família Naval" são termos bastante utilizados nesses grupos), trazendo consigo, contudo, certa intolerância àqueles que fogem às visões de mundo dessas massas. 

Em ambas as massas, a neurose acerca de um inimigo (o "diabo", o "comunismo", "agentes externos") e o pânico da desintegração reforçam o forte senso de identidade, "a mais precoce entre as ligações emocionais", diz Freud. Explica-se a razão do inigualável espírito de corpo das forças de segurança e porque a instrumentalização dessas duas massas sedimentou uma realidade paralela em defesa de um líder - o "mito" - visto como um "homem simples", um "patriota" ou o "enviado de Deus", como tantos pastores insistiram em pregar em cultos durante a eleição. Era uma luta do bem contra mal. O mal não é adversário, é inimigo; tem que ser aniquilado, não apenas derrotado. 

Quando o debate político é condicionado por identidades tão arraigadas assim, ele torna-se turvo. O quadro piora quando alcança religiões, onde o mundo é interpretado não  através de ideias, mas de dogmas e crenças. As redes sociais e os segmentados grupos de "zaps" potencializam o viés de confirmação. Não por acaso, recente pesquisa do instituto Quaest mostrou que, entre os evangélicos, dobra o percentual dos que acreditam terem sido fraudadas as últimas eleições e aprovam "intervenção militar" para alterar o resultado. "Guerras santas" não são raras na História. Outro levantamento, este do Instituto de Segurança Pública, indica que 40% dos policiais consideram legítimas as pautas defendidas na invasão da Praça dos Três Poderes - e pouco mais de 60% admitem algum grau de conivência da PM brasiliense.

Em seu livro " Eles em nós: retórica e antagonismo político no Brasil do século XXI", o  professor de Literatura Idelber Avelar qualifica o bolsonarismo como expressão distorcida e ilegítima do "rompimento de antagonismos políticos" represados desde a redemocratização. O extremismo, afirma ele, arrebatou parte da sociedade porque apareceu, a partir das "Jornadas de Junho" de 2013, como a alternativa para expressar frustrações e inseguranças. O medo sempre foi matéria-prima manipulada por líderes reacionários, nostálgicos de um passado idealizado. Essa explosão, no entanto, de tão insuflada descambou para a antinomia, "um antagonismo que não pode ser resolvido, superado ou sintetizado". Um Brasil em que, mais do que discordâncias, não há uma linguagem comum entre adversários. “Em uma situação acentuadamente antinômica, o sistema retórico do jogo político tende a funcionar por diferendos”.

Líderes populistas, define Pierre Rosanvalon em seu livro "O século do populismo", são percebidos por seus simpatizantes não como representante do "povo" (aspas muito necessárias) mas sua encarnação. Bolsonaro é um dos exemplos citados. Diante da ameaça do "progressismo", o RESSENTIMENTO une-se ao forte senso de PERTENCIMENTO. Estimuladas, afirma Freud, essas massas psicológicas adquirem um sentimento de invencibilidade que lhes permitem entregar-se a ideias e atos que, sozinhos, provavelmente não teriam ou fariam. Daí a negação da derrota e a reação violenta.

É claro, e é importante frisar, que aqui não se trata de generalizar grupos sociais, que, embora coesos, não são homogêneos. Bom exemplo é, aliás, a própria esposa entrevistada na matéria da Folha: uma policial civil eleitora do PT e crítica à fetichização da arma pela extrema-direita. "Era um entra e sai de armas todos os dias em casa. Um hobby que o encantava muito. E isso me incomodava muito", lembra ela, crítica da presença de crianças nesses clubes de tiros: "Via que muita gente deixava as crianças verem os pais atirando. Não me sinto à vontade por que não gosto nem que meu filho tenha armas de brinquedo. A minha fica num cofre. O risco do armamento para menores que vivem na casa é enorme".

Igualmente é preciso ressaltar que a cúpula das Forças Armada, se lenientes com os acampamentos e, internamente críticos ao STF e PT, pelo menos, não se deixaram levar pelo insano golpismo - embora, ao que parece, mais por restrições internacionais do que apreço pelo resultado das urnas e a democracia liberal. Se deixaram correr os acontecimentos para ver até aonde poderiam ir, apenas o distanciamento histórico nos revelará. O fato indubitável é que vastos setores da caserna, sob o manto do seletivo discurso moral, ainda apresentam grande dificuldade em aceitar o controle civil e restringir-se ao militarismo profissional. Preferem não enxergar que também a eles faz mal sua politização: “Quando a política entra no quartel por uma porta, a disciplina sai pela outra”. A célebre frase é de autoria do general Bevilacqua à época da imposição do AI-5 – ele mesmo compulsoriamente “aposentado” como ministro do STM por criticar aquele instrumento ditatorial.

Tampouco se pretende afirmar que todos os que participaram daquela atabalhoada tentativa de golpe de Estado pertenciam a esses grupos citados. Muito menos apontar o dedo para todo eleitor de Bolsonaro, até porque grande parte deles não são bolsonaristas na acepção ideológica do termo. Correram para o ex-presidente por diversos fatores. Também não é objeto desse texto corroborar com estigmas sobre todo o empresariado e ruralismo nacional. Trata-se de mostrar a gênese do bolsonarismo, e esta gênese é o lado mais reacionário do tripé de forças dominantes que formataram as desigualdades políticas, sociais e econômicas do Brasil no decorrer dos séculos: elite rural - Exército - Igreja. 

É o Brasil arcaico, que se viu nele porque ele sempre assim pensou o mundo, a começar por sua reveladora masculinidade frágil, que o leva ser o esteio de uma legião de “machões” sutil ou escancaradamente refratários a pautas de gênero: a “ditadura gayzista” e as “feminazis”. Um Brasil que se apropria da defesa da liberdade para legitimar a lei do mais forte. Nesse ponto, os últimos quatro anos foram úteis para dar nitidez as nuances do liberalismo. Como Christian Cyril Lynch, um dos principais especialistas em Pensamento Político Brasil, conceitua em seu artigo “‘Nada de NOVO sob o Sol’: teoria e prática do neoliberalismo brasileiro”, viu-se bem a diferença entre os neoliberais (ou "libertários") e os liberais democráticos. 

Empedernidos discípulos de Herbert Spencer, Friederich Hayek e Ludwig Von Mises, os neoliberais são, segundo Lynch, um "híbrido de liberalismo e conservadorismo" que considera o livre mercado o objetivo principal de uma ordem liberal; o único gerador da ordem social. Por ser este mercado fruto de uma "ordem espontânea", cega, indiferente à identidade dos agentes econômicos, toda desigualdade decorrente seria legítima. Justiça distributiva, alardeava Hayek, levava à ineficiência e tirania. Deste modo, a lógica econômica deve se sobrepor à dinâmica política, desprezada como “politicagem”, um raciocínio que explica a retórica antipolítica e a roupagem "técnica" de expoentes desse grupo, como o partido (nem tão) NOVO, o bolsonarismo de sapatênis. Uma abordagem rasa do liberalismo como sinônimo de ausência de qualquer regulação estatal, defesa dogmática de privatizações e diminuição indiscriminada de impostos.

Se a liberdade de mercado é parte das liberdades modernas, o foco sobre a liberdade política, "aquela plasmada na forma dos direitos e das garantias constitucionais", distingue o liberalismo democrático dos neoliberais. No pensamento internacional, pode-se dizer que são seus expoentes os britânicos Leonard Hobhouse e Thomas Green, além do norte-americano John Rawls, mais contemporâneo. No Brasil, além de nomes mais antigos como Rui Barbosa e Afonso Arinos, deixou grande obra o diplomata e sociólogo José Guilherme Merquior, morto em 1991. 

Em seu ensaio "O argumento liberal" (1983), Merquior reverbera a concepção de liberdade social de Hobhouse - "escolher linhas de ação que não envolvam dano a outrem” ( comparem com a narrativa bolsonarista durante a pandemia e o entendimento acerca de liberdade de expressão) - e, conforme afirmara Green, considera valiosa a liberdade que seja meio para um fim maior, o bem comum:  "A coerção estatal não é o único obstáculo à liberdade. Barreiras econômicas e sociais também o são, o que torna legítimo, para removê-las, o recurso à ação do Estado". A partir dessas premissas, sustenta que "não há legitimidade fora do ideal democrático", o que supõe a universalidade da cidadania, mas não apenas em relação a direitos civis e políticos: "Não é só a segurança do indivíduo que se consagra; é também o seu direito de participação política - para não falar de certos DIREITOS SOCIAIS".  

Rawls, em sua "A teoria da Justiça" (1971), em contraste com Hayek, afirma que legítimas são apenas as desigualdades decorrentes após a atuação de instituições que restrinjam os efeitos deletérios do poder econômico e permitam a igualdade de oportunidades. Concentração de recursos econômicos, ensinou Robert Dahl, é inversamente proporcional à ampliação de direitos políticos - ou seja, é a antítese do liberalismo democrático. E direitos políticos vão muito além de votar; tem a ver com estímulo à organização da sociedade civil nas mais diversas arenas (movimentos sociais, ONGs etc) e o acesso delas ao Estado, como, por exemplo, através de conselhos ministeriais, esses extintos ou enfraquecidos nos últimos quatro anos. 

O bolsonarismo nada tem a ver com esse tipo de liberalismo. Como todo movimento populista, coloca-se como a voz de um “povo-uno” e, no combate incessante às intituições, vê seu líder pairando sobre elas. Numa concepção minimalista de democracia, uma vitória eleitoral basta para dar salvo-conduto a maiorias - portanto, a Jair -, ignorando a definição elementar de regimes liberais: igualdade de direitos fundamentais para todos e freios e contrapesos institucionais. Simbólicas são frases como “Eu autorizo”, ecoada ao clamarem por intervenção militar, e “Não tem essa historinha de Estado laico não. O Estado é cristão e a minoria que for contra, que se mude”, dita por Bolsonaro em campanha. 

Sintomaticamente, eles se intitulam os autênticos liberais, enquanto tacham como "new left" os liberais democráticos que não embarcaram em sua reacionária nau, como Simone Tebet, Armínio Fraga, Edmar Bacha, Elena Landau, entre outros nomes de expressão ou não. Ícone do neoliberalismo brasileiro, Roberto Campos justificou seu apoio à ditadura militar como necessário fortalecimento do Executivo para passar as "reformas modernizadoras" de corte libertário. Uma justificativa que nos remete aos "autoritários instrumentais". Não por acaso, recorda Lynch:

"A adesão de Paulo Guedes e seus admiradores ao bolsonarismo representa somente a manifestação, nos dias de hoje, do genótipo característico dos neoliberais brasileiros, de natureza plutocrática e oligárquica. Basta lembrar que no passado apoiaram as ditaduras dos marechais Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto, a oligárquica República Velha e o regime militar de 1964 durante pelo menos dez anos. Como diz o Eclesiastes, não há nada de novo sob o sol…".

O debate político brasileiro atual, como se vê, precisa ser estudado também pela psicologia social e linguística. Pesquisa sobre “Polarização Política no Brasil” realizada em novembro de 2022 pelo Instituto Locomotiva, a pedido da ONG Despolarize, revela que quase 20% dos brasileiros se dizem de “extrema direita”. Um percentual relevante, que, ainda mais se somado aos (ainda) envergonhados, deveria ser levado a sério. E, acreditem, aqueles que tentam resumir o ocorrido a mero vandalismo ou procuram terceirar responsabilidades para o governo atual, são fortes candidatos a se juntarem a esse perigoso número. 

Talvez por temerem fortalecer o PT, não se lembram, ou fingem, que o antiesquerdismo patológico, no Brasil e no mundo, sempre serviu de fermento para inúmeras atrocidades praticadas por regimes e movimentos - sempre em nome da "liberdade" e da "propriedade"...

terça-feira, 10 de janeiro de 2023

Era só juntar os pontos

Por Murillo Victorazzo

Não custa nada recordar, embora possa ser repetitivo. Logo entenderão a razão. O "mito" gritou anos atrás, em programa de TV, que nada se resolvia sem guerra civil. A ditadura matara pouco. Deveríamos “completar o trabalho” matando uns 30 mil. Paras as câmeras, pouco tempo depois, defendeu com assustadora naturalidade o fuzilamento do então presidente da República Fernando Henrique, por ver na privatização da Vale um "atentado à segurança nacional". Sempre colocou um torturador do DOI-CODI como ídolo, a ponto de homenageá-lo em voto pelo impeachment de uma presidente que fora torturada. 

O filho, na campanha eleitoral de 2018, discursou que "bastava um soldado e um cabo" para fechar o STF, enquanto o pai, sem a mínima evidência, garantia que, se não fossem “fraudes”, teria vencido no primeiro turno. Instado a mostrar algo que sustentasse a acusação, recorreu até ter que usar do contorcionismo jurídico para nada dizer. Ainda em seu primeiro mandato como deputado já levantara suspeitas assim. À época mirava nos votos em papel e via como solução o embrionário projeto das urnas eletrônicas. “Não querem informatizar as eleições. Os militares terão 30 mil votos e só serão computados três mil”, discursou em plenário em 1993. Um anos antes da votação de 2022, afirmou que só perderia caso houvesse irregularidades no TSE. Às vésperas do primeiro turno, ousou assegurar que, se não tivesse cerca de 60% dos votos, “algo estranho ocorreu”. A gente que acompanha futebol sabe bem o que um cartola pretende quando vai à CBF protestar contra a escolha de determinado árbitro ou acusa, antes do partida, o adversário de praticar “antijogo” ou ser “ sempre beneficiado”.
 
Como presidente, jamais reprovou faixas com elogios a AI-5 e pedidos de fechamento da Suprema Corte em manifestações a seu favor. O típico silêncio conveniente. Em discursos coléricos, xingou ministros dessa mesma Corte, ameaçando não respeitar ordem judicial. Confrontados, seus simpatizantes relativizavam: eram meras "frases mal colocadas". Em seu governo, levou ao paroxismo a fetichização das armas, indo muito além do debate científico sobre limites para POSSE delas. Trouxe para dentro dos quartéis a política, ignorando os conhecidos males que a instrumentalização de forças de segurança acarreta.
 
Após sua derrota ano passado, seus militantes fecharam estradas, queimaram pneus, atiraram contra policiais. Quase como mantra, ficaram dois meses gritando que Lula "não subiria a rampa DE JEITO NENHUM". Tudo novamente sob seu silêncio. Influenciadores de direita e comentaristas da Jovem Pan reverberavam. Postavam em suas redes contagens regressivas para um "levante". Nunca se viu levante feito com flores, muito menos intervenção militar, o que pediam em acampamentos em frente a quartéis.
 
Mês passado, enquanto convenientemente arrumava suas malas para a Flórida, na noite após a diplomação do presidente eleito, outros tantos simpatizantes seus tentaram invadir a sede da Polícia Federal e vandalizaram ruas e carros da capital federal. Poucos dias depois, uma bomba em um caminhão de combustível foi desativada perto do aeroporto. O autor, eleitor seu, confessa que era para provocar o caos, obrigar a decretação do Estado de sítio e assim evitar a posse de Lula.

Na última semana, inúmeras mensagens nos canais bolsonaristas no Telegram elevaram explicitamente o tom: "cansamos de jogar nas quatro linhas", "vai ter sangue", "não levem os filhos", "é pra tomar o Congresso". No último domingo, o neto do ditador comentarista da Jovem Pan, enquanto via a imagem da tentativa de ruptura institucional na Praça dos Três Poderes, vibrava: " Quando a saliva acaba, o ‘povo’ usa a força". Segundo a polícia, estava planejado também a ocupação de refinarias, típico ato de quem almeja golpe de Estado.

Mas eis que, de repente, a direitona e alguns “isentões” ficaram surpresos. Passaram a se dizer indignados ou, pasmem, culpar "infiltrados" - mesmo com vídeos gravados por bolsonaristas conhecidos na esgotosfera e dirigentes do PL, todos orgulhosamente presentes na cena do crime. Puxa, como poderíamos imaginar que acabaria assim? Simples, bastava juntarem os pontos... Continuam, porém, sem nem a decência de admitirem o que seu mito insuflou por décadas e seus correligionários praticaram. Ou é o tal “estado de negação” freudiano, ainda mais comum em fanatizados? Seja como for, é esperar demais de uma galera capaz de boicotar máscara e vacinação em meio a uma pandemia. 

segunda-feira, 9 de janeiro de 2023

A crônica da morte anunciada

Por Murillo Victorazzo

Não foi mero vandalismo, é preciso frisar. Foi atentado ao Estado democrático de Direito, tentativa de ruptura institucional. Não foi um fato isolado, basta lembrar atos ocorridos em dezembro. Não foi espontâneo; é urgente se descobrir os financiadores. Portanto, não me venham com falsas equivalências. Violência política como fim em si mesmo tem nome.

Não relativizem, não foi “o povo brasileiro”. Mas, se lhes faltam cérebro, esses terroristas, golpistas, fascistoides têm, pelo menos, alguma coragem. Mais desprezível ainda são os que estão há dois meses omissos ou estimulando, clara ou disfarçadamente, nas redes sociais, no conforto de seus sofás. Entre eles, claro, o mais covarde, o responsável maior, o mentor, aquele que - há muitos anos - incentiva o ódio às instituições e a descrença no sistema eleitoral - independente de ser Lula o adversário. Também através da instrumentalização das forças de segurança, “governou” assim. Está desde o dia 30/12 foragido na Flórida.

O PT sempre considerou golpe o impeachment de Dilma. Algumas pessoas da direita arrotavam que a esquerda não sairia pacificamente do poder. Que quebraria e invadiria ruas e palácios. Nada aconteceu. O bolsonarismo sempre fez o que acusava os outros de fazer.

Nunca se tratou do debate natural entre direita e esquerda. Era óbvio que ultrapassava o direito à liberdade de expressão. É a crônica da morte anunciada. Pior, a busca pelos criminosos se tornará, no universo paralelo bolsonarista, “perseguição” da “ditadura comunista”…