sábado, 25 de setembro de 2021

Sem Merkel, Macron busca liderar o projeto franco-alemão militar e a "paz perpétua" europeia

Por Murillo Victorazzo

É um clichê provocador brincar que, de tão importante, cidadãos do mundo todo deveriam poder votar nas eleições presidenciais dos Estados Unidos. Mas, fosse verdade,  pela mesma razão, a maior parte dos europeus mereceria o mesmo direito nas escolhas para a chefia de governo alemã -especialmente a deste domingo, que indicará o substituto de Angela Merkel.  

Foi, porém, um francês, o político e economista Jean Monnet, o inspirador do projeto de integração europeia. Suas digitais estão na "Declaração Schuman",  ponto de partida para a criação da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA) em 1951, embrião da atual União Europeia (UE). 

Primeiro presidente da comissão executiva do órgão, Monnet defendia a manutenção sob uma única autoridade reguladora de toda a produção franco-alemã desses dois recursos, vitais para o fornecimento de energia e a indústria bélica. Partia da premissa de que, se França e Alemanha, tantas vezes em lados opostos em guerras que varreram o continente, os compartilhassem  e monitorassem conjuntamente, novos conflitos armados seriam evitados. 

A ideia não tardou  em ser bem vista também por Itália, Holanda, Bélgica, Luxemburgo. Com o acordo, os países signatários se comprometiam a zerar as taxas de importação e exportação no mercado intrabloco desses dois produtos estratégicos. 

Antes mesmo de a Segunda Guerra terminar, em 1943, Monnet  já deixava claro o que pensava a respeito do futuro:  "Não haverá paz na Europa se os Estados forem reconstituídos com base na soberania nacional (...). Os países europeus são demasiado pequenos para garantir aos seus povos a prosperidade e o desenvolvimento social necessários. Os Estados europeus devem constituir-se numa federação". 

Sete anos depois, o chanceler francês, Robert Schuman, dava o primeiro passo para o longo e tortuoso processo associativo. Estendia a mão ao antigo inimigo com a declaração que levava seu nome, redigida por Monnet: "A Europa não surgirá de repente nem por meio de uma simples junção. Ela surgirá por meio de medidas concretas que promovam, antes de tudo, a solidariedade. A unificação da Europa exige que se ponha fim à oposição de séculos entre França e Alemanha".

No entanto, séculos de sangue derramado não são apagados facilmente, ainda mais quando entra em cena a autonomia militar. Lançado pelo governo francês quase ao mesmo tempo da CECA, a Comunidade Europeia de Defesa (CED),  vista como um passo além na integração, foi abortada pelo Parlamento do país, em 1954. Proposta pelo presidente René Pevlen, a CED contava com o estímulo dos Estados Unidos e Reino Unido, preocupados com fortalecimento crescente do poderio soviético e temerosos que Moscou se arriscasse sobre suas áreas de influência ocidentais. 

Desde a queda do Reich nazista, então há pouco mais de cinco anos, a Alemanha Ocidental estava proibida de armar-se. De acordo com sua Constituição, cabia às forças de ocupação britânica e norte-americana sua defesa.  Diante da pressão de Londres e Washington,  porém, a reorganização do seu Exército passou a ser discutida, não sem gritos de ceticismo e alerta nos dois lados da fronteira franco-alemã. 

Entre os alemães ocidentais, setores à esquerda da sociedade e a Igreja se posicionaram contra. Argumentavam que tornava ainda mais distante a sonhada reunificação do país. Assim também pensava  a Alemanha Oriental, que via no projeto uma via aberta para a guerra entre "irmãos". Os franceses, ainda se refazendo do trauma da ocupação nazista, igualmente se dividiram. 

A proposta de criação de um exército europeu ocidental,  com participação de Itália, França, Bélgica, Holanda, Luxemburgo e Alemanha Ocidental, foi ratificada pelas casas legislativas de todos os países envolvidos, exceto a Assembleia Nacional francesa, justamente o país proponente. A assustadora memória dos tanques e soldados de Hitler pelas ruas de Paris falou mais alto. 

A morte precoce da CED era apenas o primeiro sinal das dificuldades que se anunciavam para a integração militar europeia, além de tudo, desestimulada pela conveniência de, em um contexto de Guerra Fria, deixar a defesa da região a cargo da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte).

Embora significasse delegar responsabilidade a um país fora do continente, o perfil pouco intrusivo da organização não causava melindres soberanistas. Seus custos financeiros, ademais, recaíam basicamente nas costas dos Estados Unidos, obrigados a absorvê-los. sob o risco de,  caso contrário, verem sua principal área de influência se mover para os soviéticos. Não por acaso, um ano depois, permitiu-se à Alemanha Ocidental não apenas a reorganização de suas forças armadas como sua admissão na aliança militar norte atlântica. 

A Europa, assim, podia concentrar-se em sua reconstrução econômica e financiamento de políticas sociais, prioridades que  lhe tiravam qualquer busca por projeção de poder. A pouco disposição em  envolver-se em conflitos fora da região ou com atores não-estatais permaneceu com o tempo, reforçando a pouca utilidade de se pensar em criar aparatos bélicos comuns.

Como se vê, embora intrínsecamente fincado na relação franco-alemã, o projeto europeu tem DNA francês, o que não o impediu  de ganhar contornos diferentes quando a balança de poder regional se alterou  A pujança da economia alemã, potencializada com a reunificação do país em 1990, alçou Berlim ao centro principal da União Europeia. Hoje, os alemães são donos do quarto maior PIB do mundo, 50% maior do que o francês, o segundo do bloco.

Nesse contexto, o fim dos 16 anos de Merkel como primeira-ministra alemã abre dúvidas sobre a condução da União Europeia daqui para frente. A atuação firme, sóbria e moderada da alemã, especialmente após as crises econômica de 2008 e dos refugiados, em 2015, deu ao poderoso bloco a sua cara, indo além da influência natural de qualquer chefe de governo alemão. Algo que, a curto-prazo, nenhum de seus possíveis sucessores conseguirá ter, seja ele o social-democrata Olaf Scholz, seu ministro das Finanças, Armin Laschet, seu correligionário democrata-cristão.

Embora muitos analistas considerem que, por hora, o manejo só conseguirá ser feito conjuntamente, é nítido o esfregar de mãos de Emmanuel Macron, sem também, em uma Europa pós-Brexit, Boris Johnson para contrabalança-lo. “As eleições alemãs estão sendo vistas na França como uma oportunidade para uma reinicialização, na qual quem entrar terá menos estatura do que Macron”, disse Nicholas Dungan, do Atlantic Council em matéria veiculada no "Estadão".

O presidente francês passou anos delineando sua visão para a Europa e nela, além de reformas na zona do euro e uma política comum de asilo, destaca-se pressionar Bruxelas por um sistema de defesa único. Os traumas nazistas ficaram para trás e, nos últimos anos, foi Berlim quem hesitou em avançar no assunto. "No início da próxima década, a Europa deve ter uma força de intervenção conjunta, um orçamento de defesa comum e uma doutrina única para ação", disse ainda em seu primeiro ano de mandato, em 2017. Em janeiro próximo, ele assumirá a presidência rotativa do Conselho da UE.

O cenário mundial do momento parece jogar a favor de seus desejos de devolver à França o papel de principal ideóloga da integração europeia. Além da ausência de Merkel e de Johnson ( com o qual seria impossível chegar a um acordo sobre Exército comum), o presidente norte-americano, Joe Biden, vem involuntariamente ajudando.

Ao por em prática uma desastrosa e unilateral retirada de tropas do Afeganistão e principalmente bancar um contrato de venda de submarinos de propulsão nucleares para a Austrália, em detrimento do acordo que este país tinha com a França para compra de 12 submarinos convencionais, Biden entregou a Macron o discurso da necessidade de independência estratégica do continente. 

Um discurso com razão de ser. O gosto de traição vai além dos prejuízos financeiros. O acordo, que permitirá a Austrália construir submarinos com tecnologia norte-americana e inclui ainda áreas como inteligência artificial e cibersegurança, formaliza a cooperação em defesa existente há décadas entre Estados Unidos, Reino Unido e Austrália. Essa nova aliança militar (AUKUS), nascida para conter a crescente presença militar da China no Indo-Pacífico, sinaliza que Biden não poupará esforços no embate prioritário com Pequim. Nem que afete aliados tradicionais.

 A convocação do embaixadores franceses em Washington e Canberra deu a dimensão do estrago nas relações entre esses países e de como será instrumentalizado por Macron, que conta também com o argumento fiscal: seria um enorme desperdício de recursos manter 27 forças militares diferentes com 27 arsenais e conjuntos de equipamentos distintos.

É óbvio, no entanto, que a completa integração  militar europeia está longe de se concretizar.  Muitas barreiras se encontram à frente de Macron, a começar por seu próprio país, único membro do bloco a deter armas nucleares. A ideia de colocá-las sob controle de Bruxelas enfrenta previsivelmente forte rejeição interna e já foi várias vezes descartada por ele, que, em abril enfrentará o teste das urnas em busca de sua reeleição. Dificuldades internas sempre fragilizam e tiram o foco. 

É verdade que, sem a Guerra Fria, os Estados Unidos, com outros interesses mais vitais, se vê menos obrigado a ser o guarda-chuva protetor do Velho Continente. Mas tampouco pode abrir mão de sua influência por lá.  Ao mesmo tempo em que a Washington interessa uma União Europeia com maiores responsabilidades, seja em termos materiais, humanos ou financeiro, não lhe interessa ver nascer uma política de defesa única que enfraqueça a OTAN e permita criar um bloco militar antagônico. Pressões sobre membros mais dependentes certamente acontecerão. 

Exemplo foi a Dinamarca tentando colocar panos quentes da furiosa declaração do chanceler francês sobre a AUKUS. Também a Itália quer " uma Europa mais forte, mas dentro da Otan". "Não pensamos como os franceses em relação a isso”, afirmou ao "Estadão" Marta Dassu, ex-vice-ministra de Relações Exteriores da Itália e diretora de assuntos europeus do Aspen Institute

Pensamento igual indicou ter o ministro da Defesa sueco. "Não vejo isso [uma força militar comum] como a linha principal para resolver estes problemas", disse Peter Hulqvist  à Rádio Sueca no início do mês, confrontado sobre a retirada catastrófica de Cabul. Mesmo não pertencendo formalmente à OTAN, o ministro apontou a cooperação com os EUA e o vínculo transatlântico como cruciais para a defesa  europeia.

Por si só, ceder autonomia econômica é bastante diferente de abrir mão de autonomia militar. Questões como compartilhamento de tecnologia, cessão de postos de comando e unificação de doutrinas despertam os brios das corporações fardadas, nas quais conceitos como o de "soberania compartilhada", teorizado por Robert Keohane para caracterizar a UE, suscitam desconfianças. Um tipo de soberania na qual "a autoridade legal em muitas áreas estatais é transferida para a comunidade como um todo, autorizando ações por meio de procedimentos que não envolvem vetos do Estado".

Embora o controle civil sobre militares seja sólido nos países europeus, é sempre mexer em vespeiro lidar com a caserna. Este forte controle, por sinal, exigiu o silêncio militar na constituição de órgãos supranacionais para políticas de outras áreas. Fala mais alto nos quartéis a concepção pluralista de relações internacionais inspirada no filósofo suiço Emer de Vattel,

Segundo Vattel, ainda que, em uma sociedade internacional, países compartilhem valores e obrigações, a intrusividade desta relação precisa ser tênue. O Direito e as instituições internacionais somente são obedecidos se não forem de encontro aos interesses de segurança do Estado, ator absoluto no palco dessa sociedade. Se estes "interesses nacionais" se baseiam na constante busca por recursos de poder (politic power), só se deve admitir integrações que não compliquem tal dinâmica.

Uma concepção dominante mesmo nas Forças Armadas de países onde gerações cresceram em meio a mais de meio século de integração institucional inspirada nas ideias liberais do filósofo alemão Immanuel Kant e sua "federação de repúblicas", cujos fortes compromissos comuns levariam à "paz perpétua". Monnet bebia na fonte kantiana. A União Europeia é um projeto solidarista liberal.

Um projeto de difícil absorção para ética militar, que, como define o filósofo conservador norte-americano Samuel Huntington, “considera o conflito como o padrão universal", sendo "a violência permanentemente enraizada na natureza biológica e psicológica do homem". É fácil notar aqui a influência do filósofo britânico Thomas Hobbes, para quem o "estado natural" dos homens seria a violência, o que os faria tender a entrar constantemente em conflitos uns com os outros na busca de seus objetivos.

Contudo, se, no plano interno, o Leviatã (o Estado) utiliza-se do monopólio do uso legítimo da força para garantir a segurança das pessoas, no plano interestatal, a ausência de um poder superior torna anárquico o sistema, o que o leva a conflitos constantes. A guerra seria seu "estado natural".

 "O homem da mentalidade militar é, por essência, o homem de Hobbes", afirma Huntington. E seu pessimismo advém (e reforça) do "dilema da segurança"- não por acaso também conhecido como o "medo hobbesiano": o aumento da segurança de um Estado acarreta na insegurança do outro, em um círculo vicioso que leva à tensão permanente entre eles.

É esse poder superior supranacional, já existente para outros assuntos, que o liberal Macron indica almejar para a defesa europeia. Mas como essa supranacionalidade se concretizará é a principal questão. A imagem de um superexército manipulado por burocratas anônimos de Bruxelas despertaria rejeição não apenas dentro de quartéis.

É inegável, porém, que, comparada a outros blocos regionais, a interligação na área de defesa e segurança na Europa chegou a um grau que Vattel não imaginaria, como se vê na Política Comum de Segurança e Defesa (PCSD) que normatizou a cooperação na área, com estrutura permanente de comando e controle único para o planeamento e a condução de missões militares unificadas, como as Forças de Paz. 

Outro exemplo é o Fundo Europeu de Defesa, destinado a estimular a indústria de defesa do bloco e financiar pesquisa conjunta. Avanços decorrentes justamente da sensação de ausência de "estado natural" de guerra hobbesiano intrabloco, propiciada pela profunda integração nas demais áreas.

Mas, acima de tudo, é o futuro alemão que indicará para onde vai a integração militar europeia. Se um chanceler alemão fraco abre espaço para a liderança francesa, sua fraqueza significa perda de influência sobre os demais. E Macron precisa da Alemanha, pois nada se faz no bloco sem a concordância do país, independente de quem esteja à frente de Berlim.

Merkel deu declarações conjuntas com Macron a favor da ideia de um Exército europeu, mas, por temperamento ou prioridades, pouco agiu nesse sentido, nem entrou em detalhes sobre prazos. Já em 2007, declarou em entrevista ao jornal popular Bild: "Dentro da própria UE, teremos que nos mover na direção de estabelecer uma força militar comum ". 

Para seus críticos, o esforço contínuo por consensos e concessões mútuas mostrou-se ser o ponto negativo de sua personalidade confiável, traço que teria acarretado decisões demoradas. Esse estilo de abordagem ganhou até seu próprio verbo, “Merkeln”, que significa hesitar ou aguardar - e se difere explicitamente do perfil voluntarioso, arrogante para muitos, do líder francês. 

Seja Scholz ou Lachet, a Alemanha continuará engajada na construção europeia. A intensidade e o estilo, porém são incógnitas, inclusive por dependerem do perfil da coligação majoritária que nascerá. A defesa da completa integração militar está presente em documentos e reuniões do SPD do favorito Scholz, mas a agenda eleitoral de ambos ( e do relevante Partido Verde ) priorizou a mudança climática, salário-mínimo, benefícios sociais, impostos e indefinições fiscais. Um chefe de governo será tanto mais fraco quanto for menos coesa sua base.

Paradoxalmente, a própria raiz kantiana da União Europeia, avessa à projeções agressivas de poder, é um fator inibidor para que a pauta sobre um Exército europeu torne-se prioritária. Mas os desafios defensivos existem, e a agenda internacional muitas vezes se impõe. A ideia da força militar única é vantajosa para os dois principais países do bloco, que inevitavelmente teriam mais peso em sua feição. 

Pelo novo inquilino do edifício da Chancelaria Federal, goste ou não Macron, passa o futuro do projeto franco-alemão pensado por Monnet e seu ideal kantiano de "paz perpétua" - com consequências para além do Velho Continente. 

Legalizando a devastação ambiental no Brasil

 Por Oscar Vilhena Vieira* ( Folha de SP, 25/09/2021)

Como era esperado, o pronunciamento de Jair Bolsonaro na abertura da 76ª Assembleia Geral da ONU, na última terça-feira (21), foi constrangedor. Maquiou dados sobre desmatamento e queimadas, mentiu sobre a corrupção, gabou-se de um inexistente sucesso econômico, além de se auto incriminar pelo apoio ao “tratamento precoce”.

Causaram surpresa, entretanto, os elogios à legislação ambiental brasileira, que “deveria servir de exemplo para outros países”, posto que o presidente e seus auxiliares não têm poupado esforços para bloquear administrativamente a ação dos órgãos de monitoramento e proteção ambiental. Com a chegada de Arthur Lira à presidência da Câmara dos Deputados, o presidente finalmente parece ter encontrado um braço forte disposto a legalizar o que a “exemplar” legislação brasileira hoje considera ilegal.

Entre os projetos de lei com maior potencial de erosão dos direitos socioambientais destacam-se o PL 2633, que trata da regularização fundiária, e o PL 490, voltado a alterar o processo de demarcação de terras indígenas e a imposição de um marco temporal. Ambos atendem predominantemente a interesses da grilagem, do desmatamento e da mineração ilegais.

O PL 3729, por sua vez, flexibiliza o licenciamento ambiental, que é uma ferramenta indispensável a um processo sustentável de desenvolvimento, prevenindo desastres ambientais e a transferência às gerações futuras de atividades econômicas presentes. O objetivo original da proposta apresentada em 2004 era unificar a legislação, garantindo maior segurança jurídica, eficiência e agilidade ao licenciamento ambiental.

O texto aprovado pela Câmara e preste a ser analisado pelo Senado Federal vai, no entanto, na direção oposta daquilo que o Brasil precisa. Dispensou o licenciamento ambiental para diversas atividades potencialmente causadoras de degradação ambiental. Para a maioria das atividades licenciáveis, o projeto criou a Licença por Adesão e Compromisso, mecanismo meramente declaratório que, na prática, esvazia a noção de avaliação ambiental, transformando o auto licenciamento em regra e não mais exceção.

Órgãos públicos ligados à preservação ambiental e patrimonial, como o ICMBio, Funai e Iphan perdem espaço no licenciamento ambiental. Na pior tradição brasileira o projeto premia quem descumpriu a lei, isentando de responsabilidade empreendimentos que já operam sem licença ambiental válida, que deverão apenas solicitar um Licenciamento Ambiental Corretivo. Também isenta de responsabilidade instituições de financiamento, como bancos, pelos eventuais danos socioambientais causados pelos empreendimentos que apoiaram.

A OCDE, em relatório lançado em julho, apontou que a política ambiental brasileira já deixa a desejar: dos 48 requisitos legais analisados pela organização, o Brasil foi considerado como total ou parcialmente desalinhado em 29, ou seja, em 60% do total. Caso o PL 3729 seja aprovado, tal como está, o Brasil perderá ainda mais espaço na luta por investimentos e credibilidade internacional. Também testemunharemos mais desastres ambientais, desmatamento na Amazônia e violações aos direitos humanos.

Cabe ao Senado Federal evitar que mais esse ataque ao nosso sistema de proteção ambiental se consume, se não por respeito ao bem-estar das futuras gerações, ao menos pelo interesse estratégico do Brasil de se reinserir numa posição de liderança num contexto internacional cada vez mais exigente em termos ambientais e climáticos.

* Oscar Vilhena Vieira é professor da FGV Direito SP, mestre em Direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em Ciência Política pela USP.

quinta-feira, 23 de setembro de 2021

Código de Conduta

Por Creomar de Souza* ( MyNews, 23/09/2021)

Expectativa é uma palavra marcante desde os eventos do último 7 de Setembro. De uma tentativa de captura do feriado da Independência, envelopada com um ensaio de putsch tupiniquim, passando por um rascunho de impeachment à construção de um acordo costurado por Michel Temer, a situação política do presidente da República é uma peça teatral digna de nota. 

Se de um lado o apaziguamento dos atores institucionais deu sobrevida ao chefe do Executivo, este, por sua vez, segue se considerando acima das regras do jogo democrático e não deixa de chamar atenção a repetição deste padrão de conduta cada dia mais agressivo entre seus auxiliares mais próximos.

A fácil identificação de um padrão de conduta agressivo por parte de um número considerável de ministros do Governo permite vislumbrar que, mais do que mera repetição, há uma espécie de competição estimulada pelo modelo de gestão de pessoas da Presidência. Isto significa dizer que há o estímulo pessoal do chefe de Governo no sentido de colocar seus ministros em posição de confronto com outros atores políticos ou opositores. 

Esta lógica de confrontação como um elemento de diversionismo tira dos atos agressivos perpetrados por distintos auxiliares o ar de coincidência e demonstra uma lógica de embate com fins de erosão do diálogo político em ambiente democrático.

Partindo desta premissa, alimentada com os acontecimentos observados em Nova York e em Brasília nesta semana, é possível, com o auxílio de autores que se propõem a construir análises cognitivas de processo decisório, compreender que a lógica de embate constante promovida discursivamente pelo presidente tem sido comprada entusiasticamente pelos seus ministros. 

Tal processo, que em momentos anteriores do governo estava restrito aos representantes daquilo que se convencionou chamar de ala ideológica, ganha tração à medida que dois fatores convergem: as limitações impostas ao presidente via processo de acomodação até aqui em curso e a necessidade de defender um governo com claras dificuldades de dar respostas eficazes a problemas concretos.

Estes dois elementos permitem retornar atenção para o último feriado da Independência. Em determinado sentido, é possível dizer que toda a comoção e mobilização gerada pelos apoiadores do presidente tinha como objetivos principais mostrar a viabilidade político-eleitoral de Bolsonaro, ao mesmo tempo que daria dimensão da capacidade de expansão da bolha de suporte ao presidente.

Segundo esta premissa de interpretação da realidade, a maioria silenciosa que dá suporte ao chefe do Executivo invadiria as ruas e daria o combustível necessário ao nascimento de uma democracia direta em que o líder seria o único intérprete legítimo da realidade política.

Passado o momento apoteótico e sobrando apenas a ressaca de respostas institucionais e articulações até aqui não vistas contra si, restou ao governo recorrer a Michel Temer para ganhar tempo. E se esta prorrogação do período de jogo deu ao presidente a possibilidade de seguir sua ambição de desgaste dos outros atores institucionais, ela também tornou evidente o risco de que este assuma para si esta tarefa de maneira exclusiva. E como decorrência direta desta conclusão, em um processo que se assemelha à construção de uma confraria, os ministros parecem tomar para si a responsabilidade de serem mártires da causa do presidente.

Ao assumirem, portanto, um posicionamento que é visto de maneira perplexa por alguns, mas que é efetivamente louvado pelo núcleo duro do governo, é possível conjecturar que estes se colocam em posição de destaque diante da liderança. A questão que cabe, portanto, é saber se tal movimento é motivado por pura fidelidade personalista ou se há uma crença na ideia de que a confrontação tem um fim em si mesma. 

Caso a resposta esteja na primeira das hipóteses, a capacidade de aderência e liderança do presidente criou um núcleo de seguidores que possivelmente não irá esvanecer após o mandato. Porém, se a resposta se encontrar no segundo ponto, possivelmente se desenhará no horizonte um futuro permeado pelo crescimento de tumulto e desordem.

E, neste sentido, quaisquer que sejam os caminhos a serem tomados, de fato se requererá daqueles que desenham o fortalecimento da democracia nacional uma retomada de hábitos mais civilizados. Afinal, como a própria literatura de democratização demonstra, não há estabilidade política que sobreviva a um processo constante de desgaste e incivilidade.

* Creomar de Souza é  cientista político, CEO da Dharma Political Risk and Strategy

terça-feira, 21 de setembro de 2021

Na ONU, Bolsonaro não é levado a sério

 Por Murillo Victorazzo

"O Brasil tem uma forte legislação ambiental", disse Bolsonaro na abertura da Assembleia Geral da ONU. Só não disse obviamente que, desde sua campanha eleitoral, passando por quase três anos de governo, tudo que fez foi gritar contra ela; propor e apoiar projetos no Legislativo e recursos no Judiciário que a enfraquecem; e desmontar as instituições que a fiscalizam. 

Uma legislação que dizia ser "xiita", formulada ao longo das décadas do "socialismo" que só ele e seu grupelho viram por aqui. Os dados dos próprios órgãos de Estado ( que ele não cansa de fragilizar) evidenciam as consequências desse boicote.
 
Não bastante, atacou as políticas de distanciamento social, acusando os governadores, diante de uma plateia repleta de governantes que a praticaram, alguns de forma mais severa, como os governos DIREITISTAS do Reino Unido, Chile e Israel, para dar apenas três exemplos. Ofende indiretamente outros chefes de Estado em um evento feito para estimular a cooperação internacional.

Bolsonaro é refém de seu personagem. Entre a retórica radicaloide de seu mundo paralelo e a realidade, cai em contradição e rompe pontes, com consequências práticas internas e externas. O resultado é o descrédito, o isolamento e a ridicularização internacional. O Brasil não é levado a sério.

sexta-feira, 10 de setembro de 2021

Na marcha à ré de Bolsonaro, as instituições podem mostrar que não são um carro velho

Por Carlos Melo* Estadão, 10/09/2020)

Assim como o sapo de Guimarães Rosa, o recuo do presidente Jair Bolsonaro não foi “por boniteza, mas por precisão”. Dito isso, o recuo merece mais atenção e ponderação a respeito. Não é um recuo como tantos outros. As circunstâncias do presidente e do País mudaram nas últimas semanas. Desta vez, Bolsonaro não depende apenas de si ou da condescendência conveniente dos líderes do Centrão. Depende também de seus maiores adversários: as instituições e as leis.

Antes, é preciso limpar essa área. A sempre repetida locução, de que “apesar de tudo, as instituições estão funcionando”, carece de lógica, razão e base conceitual. Asseverou o Nobel, Douglass North, que instituições garantem a segurança e a previsibilidade, são a base do desenvolvimento econômico e social e para isso se antecipam a problemas previsíveis. Tudo o que tem faltado. Funcionassem, a situação do País seria outra.

Muitas instituições no Brasil – não todas — parecem divididas: em parte, ocupadas pelo bolsonarismo; em parte como trincheira de resistência aos avanços do primeiro. Na melhor das hipóteses, são ambíguas. Numa metáfora imprecisa, funcionam como um automóvel velho: lento e inseguro; carecendo de manutenção, não deixam a certeza de chegar. Não raro, chegam atrasadas ao destino.

Ao recuo de Bolsonaro: nos muitos casos anteriores, após avançar duas casas, o presidente apenas aparentemente cedia, recuando uma casa. Assim avançou muitas vezes se impondo ou constrangeu o tolerante ambiente institucional. Desta vez, Bolsonaro se aventurou a um salto de longa distância: quebrou a cara e, obrigado, empreendeu acelerada marcha à ré, colocando-se atrás de suas linhas.

Para ele, o saldo é bastante negativo. O 7 de setembro não lhe garantiu um único apoio dos que o rejeitavam e fez com que perdesse o tipo de reputação que acalenta na própria base. Nas redes sociais bolsonaristas – o verdadeiro quartel general do presidente – a humilhação partiu de desafetos e aliados. Sobrou-lhe a esfarrapada versão de “um acordo por trás”.

Já o saldo institucional foi positivo, deu-se um salto na mesma proporção dos erros de Bolsonaro. Sendo assim, por que e como as instituições “também” recuariam?

Toda a defesa institucional que se fez argumentava que não eram ações pessoais, mas “império das leis” que agiam contra o presidente e sua base. Não se tratava do ímpeto de Alexandre de Moraes ou Luís Roberto Barroso, mas de posições firmes na aplicação de leis e na crença do papel das instituições, na suprema autoridade da Constituição do Brasil. Preferências políticas e pessoais estariam fora de questão.

E, com efeito, leis e a Constituição foram adotadas em defesa da democracia ou da higidez do sistema de votação. E, não se tratando de livre arbítrio e preferência pessoal, como poderiam os operadores das leis e das instituições atenderem à bandeira branca alinhavada por Michel Temer, cujo reconhecido mérito foi aliviar o país e retirar extremistas das estradas, mas não zerar os processos.

 A princípio, as leis não foram revogadas. Se crimes foram cometidos, como ignorá-los e retroagir no tempo? Não há como as instituições possam recuar. Se o fizerem, darão razão aos críticos dos dez ministros que hoje ocupam o Supremo. Estariam errados desde sempre?

O lamentável episódio de 7 de setembro pode se conformar como excelente oportunidade para aposentar a imagem do automóvel velho. Pode-se retirar dali a força e o desempenho de uma máquina moderna. Não convém ficar à espera do recuo do recuo de Bolsonaro.

* Carlos Melo, cientista político. Professor do Insper.

quinta-feira, 9 de setembro de 2021

O blefe mal dado de Bolsonaro

 Murillo Victorazzo

Se havia alguma dúvida de que as manifestações do dia 7 não saíram como imaginadas por Bolsonaro, o patético e cínico recuo de hoje é a prova cabal. Bolsonaro imaginava algo muito maior, ainda que tenham sidos grandes. Planejou durante meses, com suporte logístico de setores com muito dinheiro, algo que lhe desse a "foto" de um apoio amplamente majoritário da população, capaz de lhe dar legitimidade para, a médio-prazo, tentar colocar em prática seus desejos de romper freios institucionais - em especial quando outubro de 2022 chegar. 
 
Mas, por mais que bolsonaristas choraminguem, a base ideológica e social do presidente ( diferente de aprovação ao governo) HOJE se encontra reduzida a cerca de 1/4 dos brasileiros. Uma minoria nada desprezível, impressionantemente mobilizada, mas cujas imagens são suficientes apenas para mostrar que está vivo politicamente. Não para sustentar suas ameaças.
 
Toda jogada política arriscada tem ônus e bônus.  Bolsonaro ficou no meio do caminho, só com o ônus. O PIB reagiu: setores produtivos exigiram o desbloqueio de estradas, o mercado financeiro gritou, e por consequência, a hipótese impeachment voltou à cena. Acuado e sabendo ainda que os rabos presos seu e de seus filhos avançam na Justiça, teve que dar meia volta.
 
Como farsa, até nisto lembra Jânio Quadros. Aquele outro "outsider" de direta, eleito tendo como símbolo de campanha uma vassourinha anticorrupção, deixou o país boquiaberto com seu pedido de renúncia 60 anos atrás. Imaginava um clamor popular que fizesse o Congresso recusar seu pedido e lhe dar mais poderes. Não teve respaldo. Ao populista de hoje, só restou emitir carta de desculpa escrita por Michel Temer - padrinho de Alexandre de Moraes.
 
O peixe morre pela boca. Bolsonaro está mais refém do que nunca do Centrão. Mas nem Poliana acredita que, desta vez, ele se moderará. Não é a primeira vez que se desdiz. O recuo, na verdade, é apenas um freio de arrumação, contando com contextos mais favoráveis. Sabe, ademais, que, por mais que tenha deixado muitos de sua base atônitos, decepcionados e constrangidos, terá inevitavelmente os votos deles em uma eleição.

 Enquanto isto, continuará a seguir o manual do populista do século XXI: friccionar, esgarçar por dentro e aos poucos, as instituições. E ver no que dá.