sábado, 9 de dezembro de 2023

A chance de Lula

 Por Murillo Victorazzo

Dentre as tradições da política externa brasileira que atravessaram governos de diferentes conotações ideológicas, duas são basais: a preocupação em manter os Estados Unidos distantes militarmente da América do Sul e a busca por exercer a liderança da região, papel inato do país dado seu tamanho, população, localização estratégica e força econômica relativa. Tradições relegadas apenas nos raríssimos e fracassados alinhamentos automáticos à superpotência praticados pelos ex-presidentes Dutra, Castelo Branco e Bolsonaro. É também traço histórico do Brasil ser o fiador da estabilidade do subcontinente, área reconhecida internacionalmente como "zona de paz", por, desde o final do século XIX, não ter histórico de guerra entre suas nações, exceto o conflito entre Peru e Equador, na década de 40.

Todas essas marcas passaram a estar ameaçadas desde que o ditador venezuelano Nicolas Maduro deu início a uma série de medidas que visam anexar o território guianês de Essequibo, emulando assim outros autocratas que, fragilizados internamente, procuraram em um inimigo externo o estímulo ao nacionalismo capaz de unir a população em torno de si. De uma tacada só, Maduro colocou a região sob crise incomum e importou para cá um embate entre potências capaz de desestabilizá-la profundamente. Crises, contudo, são oportunidades. E essa pode ser uma ótima para quem tem especial prazer pelo protagonismo nos palcos internacionais, como o atual presidente brasileiro.

A última semana foi repleta de atos que elevaram a tensão na América do Sul. A realização do plebiscito destinado a legitimar a aventura do ditador, a distribuição de mapas oficiais com o território já sob domínio de Caracas e a elaboração uma de lei para torná-lo província venezuelana ( a província da "Guiana Essequiba") vieram acompanhadas da criação, sob o comando de um general, de uma "zona de defesa integral" na fronteira com Essequibo.

Em resposta, os Estados Unidos anunciaram, na quarta-feira, dia 6, exercícios militares em conjunto com as débeis forças de defesa guianesas ( cerca de apenas 4 mil homens). Sobrevoarão em especial o território em disputa. Maduro, por sua vez, declarou que viajará a Moscou este domingo, dia 9, a fim de encontrar-se com Vladimir Putin, seu notório aliado. Rússia, aliás, grande fornecedora de armas para a Venezuela, com quem já realizou treinamentos militares no Caribe.

Essequibo representa cerca de 70% do território da Guiana. Lá vivem quase 300 de seus 800 mil habitantes, Território rico em ouro e diamante, voltou a ser reivindicado pela Venezuela em 1966, quando o país vizinho deixou de ser colônia britânica. Georgetown, por seu lado, considera as fronteiras ratificadas desde o Painel de Arbitragem de Paris, em 1899. A disputa, contudo, ganhou força a partir de 2015, quando no local foram descobertos poços de petróleo, explorados desde então pela multinacional norte-americana ExxonMobil. Foi após o governo guianês leiloar, em agosto, nova leva de bloco do combustível que Caracas convocou o plebiscito.

Instância mais alta da ONU para resolução de conflitos interestatais, a Corte Internacional de Justiça (CIJ) ainda analisa o mérito do litígio, provocada pela Guiana a validar a arbitragem de 1899. No entanto, dias antes do plebiscito, os juízes, por unanimidade, haviam proibido Caracas de alterar unilateralmente o status atual da região. Maduro, porém, não só não reconhece a jurisdição da CIJ como, em uma das perguntas da consulta, perguntou à população se a Venezuela deveria ou não reconhecê-la. Metade dos eleitores aptos a votar deram-lhe a retumbante vitória por 95%, o que alimenta diversas teorias e interpretações.

Não se sabe até aonde Maduro irá. A Guiana já declarou que pode invocar os artigos 41 e 42 da Carta da ONU, dispositivos que autorizam sanções ou ações militares dos Estados membros para manter ou restaurar a paz e a segurança internacionais. O objetivo do ditador venezuelano é iminentemente político. A entrada de Washington em cena vai ao encontro de seu objetivo: a "ameaça imperialista", seu eterno mantra, torna-se mais palpável, grande oportunidade para atrair setores não conservadores descontentes com seu governo. Embora críticos a maneira como se desenvolveu o plebiscito, a oposição venezuelana também considera direito de seu país reivindicar Essequibo.

Um conflito externo é ainda excelente álibi para adiar as eleições presidenciais, marcadas para o ano que vem após negociações envolvendo Brasil e Estados Unidos, um processo que incluiu a suspensão das sanções econômicas norte-americanas contra a Venezuela. Certeza por hora apenas uma: Maduro atraiu para a America do Sul poderosos (e nuclearizados) atores extrarregionais - tudo o que Brasília sempre buscou evitar.

A histórica rejeição brasileira à presença norte-americana no subcontinente vai além do antiamericanismo visceral inerente a setores da esquerda brasileira. Tem muito mais a ver com geopolítica e a necessidade de manter a superpotência distante da região a partir da qual o Brasil, como líder, busca projetar poder perante o mundo. É o papel de uma potência regional. Foi por essa razão que o ex-presidente Fernando Henrique recusou apoio ao Plano Colômbia, projeto dos Estados Unidos de financiar e enviar tropas para treinar o Exército colombiano na "guerra às drogas". A ditadura militar, apesar do apoio político de Washington e sua cooperação no combate às guerrilhas de esquerda, tampouco se mostrava favorável à presença de militares norte-americanos, especialmente quando se tratava da região amazônica.

Entre as décadas de 50 e 80, a principal ameaça teórica de conflito bélico no subcontinente deu-se entre Brasil e Argentina. As academias militares brasileiras dispendiam tempo estudando estratégias voltadas à Bacia do Prata. Ao contrário de atualmente, os comandos militares da região Sul mereciam atenção especial. A construção de Itaipu elevou as preocupações argentinas, momento no qual se escalou a tensão entre os dois países. A aproximação se iniciou com a queda das duas ditaduras militares. Detentor de grande parte da costa ocidental do Atlântico Sul, foi o Brasil, em 1986, durante o governo Sarney, quem propôs a criação da Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul (ZPCAS), iniciativa logo apoiada pelo então governo "hermano" de Raul Alfonsín. Do lado sul-americano, aderiu também o Uruguai, além de 20 países africanos.

Transformada em resolução da ONU - com o voto contrário dos Estados Unidos, que consideram a zona de paz com contornos geográficos mal delimitados, a ZPCAS, na prática, limita-se a um fórum que busca evitar a proliferação nuclear e incentivar a cooperação regional, inclusive em segurança e defesa, entre seus membros. Tinha como objetivo implícito afastar a presença militar de países externos a ela, em um ambiente de fim de Guerra Fria, quando Washington e Moscou tentavam manter o mundo dividido em duas áreas de influências.

Segundo a típica interpretação antiamericanista, Washington, diante do escasso hard power brasileiro (força bélica) e a nossa pouca afeição por engajamentos militares, aproveitaria a crise para "fincar o pé" no nosso "quintal". A realidade, entretanto, é diferente. Envolvido nas guerras da Ucrânia e Gaza, tudo o que o presidente norte-americano Joe Biden não deseja é desgastar-se em outra zona de conflito. Faz tempo que a América Latina ocupa espaço secundário na política externa norte-americana, apesar de toda celeuma que causa a Venezuela na direita do país. Defender os interesses de suas empresas, contudo, é imperativo a qualquer país. Biden já pediu a intermediação do Brasil. Não é de hoje, aliás, que Washington confia em Lula para segurar impulsos de ditador venezuelano. O conservador George W.Bush, com quem o petista tinha boas relações, considerava-o o "irmão" moderado de Hugo Chavez, o "adulto na sala".

O diálogo, porém, não esmorece o intuito do Itamaraty de afastar a superpotência da região. Na reunião de cúpula do Mercosul, realizada na quinta-feira, dia 7, Lula propôs a declaração conjunta na qual o bloco alerta que "ações unilaterais devem ser evitadas" e ofereceu Brasília para sede das reuniões entre as partes. Ao pedir pela participação da Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac) nas negociações, deixou implícito não desejar a intervenção das Organizações dos Estados Americanos ( OEA), onde os norte-americanos têm muita força.

É de se esperar que, caso o conflito escale militarmente, o Conselho de Segurança da ONU volte a mostrar a paralisia habitual, vista recentemente nas votações sobre as guerras da Ucrânia e Gaza. A depender da resolução proposta, haverá veto dos Estados Unidos ou da Rússia. Os atores regionais precisarão atuar, e neste caso Lula encontra-se em posição privilegiada, tanto pelo peso do Brasil no subcontinente quanto pela proximidade partidária com Maduro.

Apesar do histórico de complacência com o regime chavista, o presidente brasileiro sinaliza entender os riscos que a crise gera para seu governo. Por mais que os conflitos na Europa e no Oriente Médio despertem emoções no Brasil e Lula não tenha obtido êxito na tentativa de influenciá-los, o ônus foi baixo para ele. Cenário bem diferente de uma guerra em nossas fronteiras, onde os efeitos colaterais iriam além do revés para as tradicionais pretensões de nossa diplomacia. Haveria consequências práticas para os brasileiros da região. Roraima é um estado que, além de contar com diversas terras indígenas (assunto tão caro à esquerda), já encara os custos de acolher os refugiados da decadência econômica venezuelana, fluxo que tenderia aumentar, agora também podendo incluir guianeses. É ainda o único estado não conectado ao Sistema Interligado Nacional (SIN), dependendo muitas vezes da importação de energia venezuelana.

Militares e especialistas ressaltam que, diante das densas florestas que caracterizam a fronteira entre Venezuela e Guiana, estradas em território brasileiro seriam os acessos mais fáceis à Essequibo, o que leva alguns aventarem a hipótese de que, para uma incursão em larga escala, tropas venezuelanas teriam que passar por dentro do país. "Por terra, a opção da Venezuela seria se deslocar pela Ruta 10 e ingressar no Brasil, descendo até a BR-174", diz Ronaldo Carmona, professor de geopolítica da Escola Superior de Guerra (ESG) à BBC Brasil. Nesse caminho, perto da fronteira entre Roraima e Essequibo, encontra-se a Terra Indígena Raposa Serra do Sol.

O Brasil jamais aceitaria ceder território às aventuras de Maduro, o que, se por um lado, é um empecilho ao ditador, pode representar uma inédita tensão entre Caracas e Brasília. O Exército brasileiro já dobrou o pequeno contingente na área ( 200 militares) e deslocou 16 veículos blindados para um pelotão de fronteira localizado na cidade roraimense de Pacaraima.

Há 15 anos, revelou o jornalista Jamil Chade em sua coluna no UOL, Lula, em seu segundo mandato, já temia que o então ditador venezuelano Hugo Chávez invadisse a Guiana. É o que mostram documentos da diplomacia norte-americana revelados pelo grupo WikiLeaks. Segundo a CNN Brasil, o presidente teria externado a auxiliares impaciência com Maduro, ameaçando romper com ele caso a retórica dê lugar às armas - cenário, por enquanto, pouco provável. Os custos para Venezuela são muito altos: além das consequências políticas de violar o direito internacional para um país periférico ( Caracas não é Moscou ou Washington), a guerra imporia mais gastos a uma economia em frangalhos que aparenta dar alguns sinais de sobrevida após o levantamento das sanções norte-americana.

No entanto, mexer com nacionalismos é um barril de pólvora que muitas vezes sai do controle de quem os estimulou. Pessoas podem agir por conta própria, forçando líderes a fazer o que não planejavam. Após realizar o plebiscito, até onde Maduro pode ignorá-lo? Segundo a Folha de São Paulo, em novembro, antes, portanto, da consulta, emissários do venezuelano disseram ao governo brasileiro que, dependendo do resultado, ele poderia "ser forçado pelo povo" a agir.

Neste sábado, Guiana e Venezuela anunciaram uma reunião entre os dois presidentes em São Vicente e Granadinas na próxima quinta-feira. Lula foi convidado a ir como observador. Em entrevista exclusiva à GloboNews, o presidente guianês, Irfaan Ali, disse esperar que o Brasil "tenha um papel de liderança". A última guerra na América do Sul, em 1982, explodiu por culpa de um ditador em apuros internos que buscava no nacionalismo sua sobrevivência política. Foi quando o almirante Gualtieri jogou a Argentina em um conflito insano contra o Reino Unido em torno das ilhas Malvinas. Racionalmente não fazia sentido algum.

Perigando tornar-se um Galtieri de esquerda, Maduro já deixou claro não se importar com o aliado petista e ignorar a liderança brasileira na região. Não teria corrido para os braços de Putin caso pensasse o contrário. Da pior maneira, Lula e a militância petista talvez enfim tenham que admitir que Maduro é um autocrata - e, como todo autocrata, não é confiável. Antes tarde do que nunca. A bola está contigo, Lula.