quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Déficit de Dilma

Por Josias de Souza (UOL, 27/11/2014)

Agora é oficial: reeleita, Dilma Rousseff aplicará algumas das medidas impopulares que acusava o rival Aécio Neves de tramar. No primeiro contato da nova equipe econômica com os repórteres, esclareceu-se que o governo abandonará a criatividade contábil, priorizará o equilíbrio fiscal e deixará de torcer o nariz dos empresários que quiserem fazer parcerias com o Estado. Foi um recomeço alvissareiro. Mas há na cenografia da transição um déficit de Dilma Rousseff.

Durante a campanha eleitoral, Dilma teve um surto de loquacidade. Falou pelos cotovelos. Dizia-se que ela própria anunciaria, numa breve aparição, a chegada de Joaquim Levy e de Nelson Barbosa. Mas a presidente não deu as caras. Pena. Após passar a campanha dizendo que seu governo era Flamengo, seria bom se explicasse por que foi buscar seu principal auxiliar econômico no vestiário do Vasco.

Nas suas manifestações inaugurais, já sob refletores, Levy e Barbosa tocaram violino para o mercado. Num instante em que o governo guerreia no Congresso para tapar artificialmente o rombo de 2014, o novo titular da Fazenda disse, na primeira frase, que restabelecerá o superávit primário nas contas públicas. Deu os percentuais: economia de 1,2% do PIB em 2015, 2% em 2016 e 2017.

Além de mostrar a ponta da tesoura, Levy informou que molhará a camisa pela elevação das taxas de poupança e investimento do país. Foi ecoado por Barbosa, que anunciou a prioridade às parcerias com o setor privado. E quanto aos programas sociais? Levy e Barbosa responderam o óbvio: para que os programas continuem fluindo, a economia precisa estar em ordem. Pode haver diminuição no ritmo de expansão dos programas, não recuos.

Mantido no BC, Alexandre Tombini declarou, sem floreios, que a devolução das contas públicas aos trilhos do rigor fiscal ajudará no seu esforço para trazer a inflação para os arredores do centro da meta oficial, que é de 4,5%. Nada daquele lero-lero segundo o qual a carestia roçando o teto de 6,5% é sinônimo de cumprimento da meta.

Encenada com uma semana de atraso, a cenografia da guinada foi tisnada pela ausência de Dilma. Numa hora dessas, não fica bem a presidente se trancar no seu silêncio frio, que por vezes passa a ideia de hostilidade ou indiferença. No amor ou no governo, nada é pior do que a indiferença.

É certo que Dilma não morre de amores pela ortodoxia personificada por Joaquim Levy. Mas já que a presidente optou por retirá-lo da diretoria do Bradesco, seria bom que mantivesse as aparências. No regime democrático, a autoridade tem que falar. Tem que dar satisfação. Quando a autoridade faz o oposto do que disse que faria, aí mesmo é que as explicações tornam-se imperiosas.

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Homem de 'mercado'

Por Delfim Netto* (Folha de S.Paulo, 19/11/2014)

Há certamente alguma coisa muito errada num país em que o ministro da Fazenda "precisa" ser escolhido pelo setor financeiro. O capitalismo "financeiro" não é, e é incrível que pretenda ser, um fim para si mesmo. Sua arrogância é tal e tamanha que o leva a esquecer porque existe.

Um dia –antes que se apropriasse do setor real da economia e o de poluir com seu excesso de imaginação e derivativos–, ele foi fundamental para promover as inovações e os investimentos que estimularam o crescimento econômico e a prosperidade geral.

Por duas vezes no mundo, nos anos 20 e nos 80 do século passado, o fundamentalismo monetário, tornou artigo de fé o "mercado perfeito que se auto-regulava". E colhemos duas crises mundiais pelas mesmas causas: a sua profunda imoralidade e o delírio do risco alavancado quando desregulado. Agora chega!

Primeiro, porque não há controle eficaz quando o agente da ação acumula a função de ser seu próprio fiscal. Todos combatem com razão, o aparelhamento das agências reguladoras feito pelo PT com seus "companheiros" de passeata. Todos defendem a escolha de agentes profissionalmente "competentes, diligentes e independentes".

Ninguém defende que os membros da Anatel "devem" ser indicados pelas empresas de telecomunicações! Já devíamos ter aprendido que a tentativa de "captura do fiscal pelo fiscalizado" é problema universal ligado à natureza humana e deve ser prevenido.

Segundo, porque devemos aceitar como um axioma que um "homem do mercado" conhece necessariamente o funcionamento do mercado e a "última" teoria monetária (supondo que ela exista e está bem consolidada)?

Seguramente ele sabe menos sobre as implicações macro e microeconômicas das medidas monetárias do que, por exemplo, um inteligente e honesto profissional que vem durante anos tentando encontrar relações estáveis entre as manobras da taxa de juro real e seus efeitos sobre a taxa de câmbio real. Ou entre os condicionamentos que a "dominação fiscal", o excesso de demanda pública e a política salarial distributivista, impõe sobre a potência da taxa de juro real de longo prazo. 

Pelo contrário, o mais provável é que a miopia do "homem do mercado" o leve a não ver nada além das minúsculas "opões" especulativas abertas por sua própria ação, o que, do ponto de vista macroeconômico, é de uma pobreza lamentável.

Tome seu tempo, senhora presidenta. Escolha livremente, com cuidado e segurança, na administração pública, na academia ou mesmo no mercado, o substituto do ilustre ministro Guido Mantega, que pagou um alto preço por sua fidelidade ao partido e ao seu governo.

*Antonio Delfim Netto, ex-ministro da Fazenda (governos Costa e Silva e Médici), é economista e ex-deputado federal. Professor catedrático na Universidade de São Paulo

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Mais que uma demissão, uma outra eleição

Por Murillo Victorazzo

Em finais de mandatos, com governantes reeleitos, trocas de cadeiras em ministérios e secretarias são não apenas absolutamente naturais como, quase sempre, fundamentais. Eleições alteram a correlação de forças dentro da base aliada. Partidos coligados perdem ou ganham votos, traduzidos nas bancadas no Congresso. Dentro mesmo das siglas, grupos e lideranças se fortalecem ou enfraquecem. O governo, se quiser governar, precisa refletir o novo cenário. Diante desta conjuntura, o pedido de demissão de Marta Suplicy, ministra da Cultura, pasta que está longe de estar entre as mais politicamente importantes, poderia ser uma notícia banal. Mas não é.

Uma nova roupagem ajuda ainda a rejuvenescer uma administração que, embora reconduzida ao poder pela maioria da população, traz consigo o desgaste natural de anos no poder. Quando se carrega nas costas crises políticas ou econômicas que catalizam a fadiga de material inerente ao tempo, torna-se ainda mais crucial. Se não é garantia de uma guinada de conteúdo real, uma nova embalagem, pelo menos no curto-prazo, cria expectativas de melhoras, um fôlego novo ao velho governante. O governo Dilma se encaixa com perfeição nesses dois cenários.

Seja por saberem - ou desconfiarem - que não ficarão em um segundo mandato ou por uma gentileza protocolar com o(a) presidente(a), a fim de facilitar sua tarefa, alguns ministros se antecipam e pedem demissão. Uns com a esperança de serem renomeados, outros cientes que sua estadia na Esplanada chegou ao fim. Não foi o caso de Marta.

Senadora eleita pelo estado mais rico e populoso do país, com mais de oito milhões de votos, a ex-prefeita da maior cidade brasileira é nome forte dentro do PT. Voltar para sua cadeira no Senado em um momento em que, com a saída de Eduardo Suplicy, a bancada paulista na Casa será formada por dois tucanos de alta plumagem - José Serra, seu tradicional adversário, e Aloísio Nunes, candidato a vice de Aécio -, faz sentido tanto reforçar a base governista como o partido. As razões que a levaram a se demitir de maneira tão constrangedora para o governo, porém, revelam o oposto.

Marta, como se diz no jargão popular, nunca "foi com o santo" de Dilma. A recíproca é mais que verdadeira. Antipatia mútua previsível sendo elas duas mulheres geniosas - seus inimigos prefeririam dizer prepotentes. A animosidade piorou quando Marta mostrou ser uma das principais entusiastas do "Volta, Lula". Sua preferência pelo ex-presidente se tornou pública ao organizar um jantar preparado para incentivar a candidatura do líder-maior dos petistas. Dilma engoliu seco, mas a anotou em seu caderninho preto. Na campanha, quando se fortaleceu, retaliou.

Alguns "Dilmistas" afirmam que a paulista fez questão de não se engajar para valer na campanha da reeleição. Na reta final, com Dilma se recuperando nas pesquisas, tentou entrar em campo. Tarde demais. Na última semana de campanha, revelam repórteres que cobriam de perto a agenda da presidente, em uma carreata na periferia paulistana, Marta foi vetada pelo presidente do PT, Rui Falcão, de subir no jipe que levava Dilma. Forçou a barra, subiu, mas Falcão soltou desaforos posteriormente em reuniões internas da Executiva do partido.

Se a volta de Marta ao Senado, a princípio, poderia servir aos interesses de Dilma e do PT, o modo como a conduziu escancarou a divisão interna no partido. Por mais que sua saída fosse esperada e, informalmente, decidida, formalizá-la em uma carta divulgada em rede social, enquanto a presidente voava para a Austrália, já seria de mau gosto. Quando nela a demissionária diz desejar que a presidente "seja iluminada ao escolher uma nova equipe econômica, que resgate a credibilidade e confiança em seu governo", a indelicadeza ganha significado político subliminar.

Ao espicaçar Dilma, em um momento amplamente desfavorável ao governo, Marta a enfraquece ainda mais e serve de porta-voz do ex-presidente Lula, que tenta derrubar a resistência da presidente ao nome de  Henrique Meireles para o Ministério da Fazenda. Mais do que isto, dá mostras que 2018 já bate na porta do PT - com o agravante de, ao contrário das últimas eleições, não haver um candidato natural no partido - exceto, é claro, se Lula desejar um terceiro mandato.

As informações sobre até que ponto Lula almeja voltar são conflitantes, e os quatro anos, tempo longo em política, torna os rumores ainda mais incertos. Alguns dizem que o ex-presidente, curado de um câncer, não se decidiu ainda por desconhecer seu estado de saúde em 2018, quando terá 73 anos. Dona Marisa e filhos prefeririam por este motivo que o marido se mantivesse apenas nos bastidores. O temor de que um terceiro governo fosse menos exitoso, manchando seus oito anos anteriores no Planalto, no qual saiu com 80% de aprovação, também pesaria.

Outros garantem que a tentativa de influenciar mais o segundo governo Dilma seria a prova de que a saudades do Alvorada falou mais alto. Fontes de um jornal afirmam que, ao contrário do dito acima, a esposa seria a maior entusiasta da volta. Já se leu que Lula, em um de seus conhecidos arroubos, teria desabafado que "se eles (a oposição) me encherem muito o saco, eu topo  (ser candidato)".

Caso  a paz de São Bernardo dos Campos fale mais alto, a postura de Marta será lembrada como primeiro sinal do tamanho da briga interna pelo qual o PT passará para escolher seu candidato. Sem uma presidente com prioridade de tentar reeleição e sem algum nome que desponte desde agora como opção viável e unificadora, os grupos e tendências internas da sigla tentarão cacifar seu lado.

Se Dilma surpreender e revigorar seu governo, chegando à sua sucessão com alta popularidade, terá forças para, no mínimo, seu nome preferido ser o mais forte para representar um partido que estará há 16 anos com o timão do país à mão. De todo modo, por este nome precisar ser construído dentro e fora do partido, seja quem ele for, a disputa será grande. Diante deste quadro, aliás, a candidatura Lula, menos por vontade própria  e mais para unificar o partido, poderá se impor como necessidade vital.

Mas, em um cenário mais provável, com sua pupila em progressiva decomposição, mal aprovada pela população ao final de seu governo, estaria Lula, a boia de salvação petista, disposto a correr o risco de encabeçar uma derrota muito mais possível do que em anos anteriores do PT? Ou, em caso de expectativa de derrota, sem o ex-presidente do páreo, o fratricídio resultaria na escolha de um "boi de piranha"?

Marta já bateu o tambor anunciando que irá azucrinar sua correligionária presidente até o limite que a mantenha longe da oposição. Oposição que, ainda que fortalecida, corre o risco de gastar também energias em cizânias internas. Ao contrário deste ano, quando milagrosamente escolheram com certo consenso o nome de Aécio Neves e se uniram em torno dele, os tucanos podem reprisar o velho filme que os fragilizou nas eleições de 2006 e 2010, o embate entre mineiros e paulistas.

Dono de 51 milhões de votos e de uma tribuna no Senado da qual pretende reforçar o papel de líder da oposição, Aécio, cujo grupo político foi desalojado do governo mineiro pelo PT, terá no governador paulista, Geraldo Alckimim, reeleito facilmente em primeiro turno, um forte obstáculo ao seu desejo de tentar novamente chegar ao Planalto em 2018. Como este processo se dará, só o tempo dirá.

O consenso em relação ao candidato do partido fez o PT sempre sair na frente e menos desgastado com sequelas do processo de escolha. Mesmo o "Volta, Lula" se deveu a uma sensação de debilidade da candidata natural,a presidente, não a um desejo de outro postulante. O próximo pleito tende a ser diferente, o que causa arrepios aos militantes de um partido que, para piorar, enfrenta desgaste crescente perante a opinião pública.

Se já não bastassem o escândalo de corrupção envolvendo a Petrobrás, a impressionante quantidade de números negativos na economia, uma oposição eleitoralmente revigorada, os aliados peemedebistas costumeiramente atrapalhando mais que tucanos e demistas, o próprio PT dá mostras de que jogará contra sua presidente. Em um círculo vicioso, quanto mais o quadro político e econômico se agravar, fragilizando-a ainda mais, mais os ditos aliados a pressionarão, realimentando esta fragilidade.

Nem começou e o segundo mandato de Dilma fica cada vez mais com cara de fim de festa. Tudo com vistas a 2018.