domingo, 10 de novembro de 2019

O dia seguinte ao Lula Livre

Por Cláudio Couto* (Nexo, 10/11/2019)

Lula foi o sujeito político constante da política brasileira recente, desde sua primeira vitória presidencial, passando pelos anos de sua sucessora e pela eleição que foi impedido de disputar.

Na primeira fase, figurou o protagonismo inescapável do candidato favorito, a princípio, e do presidente popularíssimo, depois. Na segunda fase, manteve-se pela expectativa inicial de que Dilma lhe cederia vez e, posteriormente, de que ele poderia lhe corrigir os rumos. Na terceira fase, permaneceu por ter sido o candidato mesmo quando não era candidato – “Haddad é Lula” –, nada expressando melhor essa imagem do que a icônica foto do ex-prefeito de São Paulo a espreitar por detrás da máscara do ex-presidente. 

Passada a eleição e empossado Bolsonaro, Lula seguiu presente na campanha do “Lula Livre”, que em meio ao esfacelamento da oposição e, em especial, da esquerda, tornou-se o samba de uma nota só. A sorte dessa oposição é que o governo Bolsonaro fez em boa medida seu trabalho, com suas recorrentes e aparentemente congênitas crises internas. 

Uma vez liberto, o ex-presidente ganha força para atuar como a liderança de que hoje a oposição e a esquerda se veem desprovidas. Para isso, conta com o carisma, a trajetória e a habilidade de negociador. Resta saber como efetivamente se comportará nesse papel. Embora já se tenha o “Lula Livre”, falta ainda o “Lula Inocente”.

Embora essa possa ser uma nova palavra de ordem, é insuficiente para conferir à oposição de esquerda a capacidade de efetivamente se construir como alternativa política real – ainda mais se sucumbir ao messianismo ou ao sebastianismo lulistas. 

Se isto ocorrer, o papel do líder tende a ser não apenas diminuído, mas também arriscado: caso não seja inocentado, dará um abraço de afogado em seu partido e, talvez, até noutros setores da esquerda. Já que não poderá ser candidato se permanecer condenado, a insistência em seu nome tende a dificultar a construção de qualquer alternativa eleitoral em tempo hábil.

O retorno de Lula ao proscênio das articulações políticas da oposição contribui também para o reforço da dinâmica polarizadora entre o bolsonarismo e o petismo. Note-se, porém, que polarização reforçada não implica necessariamente em maior radicalização. A polarização política é inerente à disputa política democrática, contrapondo adversários que se mostram como alternativas claras.

Desde o Plano Real até 2014, a polarização nacional se dava entre o PT – hegemonizando a esquerda – e o PSDB – que angariou um apoio que ia da centro-esquerda à direita tradicional. O “Lulinha paz e amor” de 2002 e a chegada ao governo federal puxaram o PT para a centro-esquerda, deslocando o PSDB cada vez mais para direita. 

Contudo, os seguidos escândalos que afetaram não só ao PT, mas ao conjunto da classe política tradicional, abriram espaço para o surgimento de candidaturas antissistema. À centro-esquerda, Marina Silva ameaçou ser essa candidatura antissistema em sua versão moderada e democrática, mas não vingou. Na extrema-direita, Bolsonaro – nutrido também pelo lavajatismo – apresentou-se como a opção radical e venceu. 

Produziu-se assim uma nova polarização, assimétrica, entre a esquerda moderada, social-democrata e maculada por escândalos de corrupção, dominada pelo PT, e a extrema-direita bolsonarista, com seu neofascismo subletrado, caracterizado por religiosidade antissecular, intolerância, teorias conspiratórias, elogio da violência e ultraliberalismo única e exclusivamente econômico.

Com Lula solto e atuante, o bolsonarismo ganha o pretexto para retomar com força o discurso polarizador antipetista, anti-institucional (vejam-se as críticas ao STF) e pretensamente moralizador. Desvia também o foco, ainda que momentaneamente, dos problemas que afligem o governo, o partido presidencial e a família do presidente. 

Para o bolsonarismo, quanto mais acerbo for esse embate, mais produtivo é seu labor de cerrar fileiras entre a parcela da sociedade que lhe apoia e teme tanto o esquerdismo como a corrupção (ao menos se for a corrupção da esquerda). Resta saber como agirá Lula.

Caso se concretize a disposição de sair da prisão mais à esquerda do que entrou, dificultará a construção de pontes com setores da sociedade que se opõem à extrema-direita no governo, mas não compram o pacote petista completo, sobretudo com seus elementos politicamente mais radicais e economicamente mais duvidosos.

Mesmo no campo da própria esquerda partidária, a construção de alianças não convive bem com hegemonismo petista, que tradicionalmente buscou sujeitar os demais partidos ao seu domínio. Cabe observar também que alguns laços parecem rompidos de forma dificilmente reversível, como no caso do PDT de Ciro Gomes – verdade se diga, em boa parte por responsabilidade deste. 

À oposição, que contou muito até agora com a incompetência do governo, falta uma agenda positiva. Essa agenda não equivale à entronização de uma liderança carismática como Lula – isso pode até mesmo ser um impeditivo para o seu sucesso.

Porém, essa liderança tem a capacidade de costurar essa agenda se usar sua força, mas não se impuser como sendo ela pessoalmente a solução – ainda mais tendo em vista os obstáculos legais que ainda remanescem para sua candidatura. 

Também há a possibilidade de Lula entrar na lógica da polarização encruada, tão ao gosto do bolsonarismo. Se isso ocorrer, abre-se espaço para alguém buscar ocupar o centro (o que inclui a centro-direita e a centro-esquerda).

O desdobrar da luta política brasileira no próximo período depende em boa medida das escolhas que fizer Lula no futuro imediato. No passado recente elas não foram das melhores, como ficou claro na opção por Dilma (alguém desprovido do perfil exigido pelo cargo) e na insistência da própria candidatura (quando ela já não era viável). 

Agora, no esplendor de seus 74 anos, Lula precisará mostrar o quanto aprendeu com os erros para não os repetir. E, claro, precisará convencer os seus a aceitar estrategicamente algo menos do que tudo – como fez ao final da greve de 1979, saindo carregado nos braços pelos seus companheiros de sindicato.


*Cláudio Gonçalves Couto é cientista político, professor do Departamento de Gestão Pública da FGV- Easp.

sábado, 2 de novembro de 2019

Conservadorismo para inglês não ver: das origens britânicas ao caso brasileiro

Por Eduardo Wolf* (Estadão,  25/10/2019)

Imagine o leitor a seguinte agenda de reformas políticas em pleno século XIX: uma ampla reforma eleitoral, garantindo, pela primeira vez, o acesso ao direito de voto a milhões de pessoas; uma lei acabando com as execuções públicas; uma reforma educacional modernizadora (ainda que discreta); um programa de moradias públicas substituindo os antigos cortiços; aprovação de legislação para a promoção da saúde pública. 

Se alguém dissesse que essas reformas todas foram introduzidas por um partido nomeadamente Conservador, seguramente isso causaria estranheza em nossos dias. Mais que isso, se o líder desse Partido Conservador fosse um ardoroso defensor da ideia da promoção do bem-estar dos menos favorecidos na sociedade, uma vez que a fragilidade econômica e social de um grande número de pessoas enfraquece qualquer Nação, é certo que essa informação seria recebida com ainda mais surpresa e espanto no Brasil de hoje.

Essas são, contudo, algumas das grandes reformas sociais promovidas pelo governo conservador do grande líder do Partido Tory no século XIX, Benjamin Disraeli. E não, elas não são inovações pontuais que fogem à regra: na história do conservadorismo britânico, algumas marcas de nascença se fizeram permanentes, e merecem uma breve recapitulação para o leitor brasileiro diante do atual espetáculo de horrores que se assina “conservador” em nosso País.

Como bem sintetizou o filósofo Roger Scruton em seu livro Conservadorismo – um convite à grande tradição, o moderno conservadorismo em sua versão britânica é uma “mentalidade distintamente moderna, modelada pelo Iluminismo”, equilibrando o senso de comunidade com as conquistas do individualismo liberal, que é indissociável, importa frisar, de qualquer acepção moderna do conservadorismo. Como devemos entender esse equilíbrio?

Quando recuamos historicamente para melhor compreender os fenômenos políticos dos últimos quatrocentos anos, nesse arco histórico que chamamos de Modernidade, é preciso lembrar que foi na Inglaterra do século XVII que um gradativo processo de mudanças intelectuais, políticas e institucionais deu início ao que chamamos de liberalismo político. Foi nessa época, que surgiram obras tentando explicar como indivíduos livres escolhem uma boa forma de governo, garantindo-lhe soberania, como veremos no Leviatã (1651), de Thomas Hobbes. 

É nessa época, também, que os Dois tratados do governo civil (1689, mas escritos na década de 1660), de John Locke, demarcam ainda mais o que é o tipo de governo que se considera legítimo: aquele que é fruto do consentimento dos cidadãos, que respeita os direitos à vida, à integridade física, à liberdade e à propriedade, e que assume a forma do governo representativo com a devida divisão dos poderes.

Somemos a isso a sua célebre Carta sobre a tolerância (1689), introduzindo a importante tese de que não deve caber aos Estados e aos governos a determinação da religião dos cidadãos (e, diríamos hoje, de uma concepção moral da vida), e teremos um quadro mais completo: nascia na Inglaterra dos anos de 1600 um conjunto de ideias que chamamos de liberalismo político, ideias essas que são os pilares de todas as modernas concepções de democracia.

Depois de Locke, a fronteira entre a posição liberal e a conservadora se tornou uma fronteira interna ao domínio da soberania popular [i.e., do governo representativo constitucional], e entenderemos o conservadorismo moderno como movimento político apenas se percebermos que alguns elementos de individualismo liberal foram programados nele desde o início. Em particular, conservadores e liberais concordavam sobre a necessidade de governo limitado, instituições representativas e separação dos poderes, além de acreditarem nos direitos básicos do cidadão, que deviam ser defendidos contra a administração de cima para baixo do Estado coletivista moderno.

Quando usamos os termos “conservador” e “liberal” para falar de acontecimentos anteriores a essas grandes transformações que se iniciam no século XVII e culminam no século XIX, fazemos isso de modo anacrônico, de modo que só há sentido nessas expressões graças à significação ampla que tais palavras assumem na linguagem comum. 

Porém, depois desse período, esses termos pouco a pouco passarão a ingressar na corrente da linguagem política para designar realidades bem específicas, e a mais importante deles nos deixa esta lição: a grande transformação política da Modernidade é o liberalismo político, pai das democracias representativas constitucionais modernas, e o conservadorismo surgirá “mais como hesitação no interior do liberalismo do que como doutrina e filosofia em si”, como ensina Scruton. Mas que hesitação é essa?

Quando, no turbulento século XVIII, acontecimentos como a Revolução Americana (1776) e a Revolução Francesa (1789) agitam ideias e instituições, as características mais salientes do conservadorismo moderno, à parte tudo aquilo que ele partilha com o chão conceitual do liberalismo político, começa a se delinear. Podemos encontrar na figura de Edmund Burke, o filósofo e estadista irlandês, e em seus posicionamentos diante desses dois marcantes acontecimentos, o momento fundador da moderna tradição conservadora.

Burke, parlamentar pelo partido Whig (Liberal), apoiou a causa da independência americana, vendo nas postulações dos colonos uma justa reivindicação de seus direitos como cidadãos, violados, na verdade, pelo rei da Inglaterra, que os submetera a taxações sem a devida representação política. No entanto, em face da revolução dos filósofos, a outra, a Revolução Francesa, sua atitude não poderia ser mais diferente: em seu Reflexões sobre a Revolução na França (1790), Burke desferiu um profundo ataque às concepções intelectualistas, abstratas e revolucionárias do iluminismo de tipo francês, que optara por fazer terra arrasada do passado, das tradições e das instituições herdadas, criando um “novo homem” na situação revolucionária. 

Sua obra tornou-se referência por defender uma concepção de política fundada na noção de prudência na política, de ceticismo em matéria de filosofias e de grandes transformações e de permanência de todas as coisas dignas de serem preservadas na experiência das sociedades humanas.

Vale indicar, desde já, que essa marca cética de nascença no conservadorismo moderno nada tem que ver com atitudes niilistas ou descrentes. Antes, trata-se de uma forma de compreender adequadamente os limites do conhecimento político: como viria a observar mais tarde o grande filósofo conservador do século XX, Michael Oakeshott, “governar não é impor uma única moral ou outra direção, tônica ou maneira às atividades de seus governados”, pois a “aprovação ou reprovação moral não fazem parte da função do governo, que não está, de modo algum preocupado com as almas dos homens”, como escreveu em seu excelente A Política da Fé e a Política do Ceticismo

Apenas governos movidos pela “fé” são capazes de suporem-se cruzados numa batalha moral e espiritual pela alma dos cidadãos e da sociedade – e eis tudo o que o conservadorismo britânico mais profundamente rechaça, não importa se no século XVIII com Burke, ou no XX com Oakeshott.

Para Burke, aliás, a liberdade deve ser protegida pela lei, sob a forma de governos constitucionalmente delimitados. Em sua visão, nossas sociedades não são produtos de um contrato social apenas entre os que estão vivos aqui e agora, sendo antes uma grande associação duradoura entre os que já morreram, os que ainda vivem, e os que ainda estão por nascer – é isso que torna a preservação de nossas comunidades algo tão caro ao conservador. Essa preservação se dá não pelo Estado ou pela ação estritamente governamental, mas pela sociedade civil, sob a forma dos “pequenos pelotões”, isto é, pela organização dos cidadãos com base em suas afinidades e nos interesses sociais comuns.

 Contemporâneo de David Hume, nome sempre associado a uma disposição cética para a política, e de Adam Smith, autor à época celebrado por seu livro Teoria dos sentimentos morais, que destacava a importância fundamental da piedade e da compaixão, da benevolência e da empatia, que sintetizou uma marca de todos esses pensadores britânicos do século XVIII: a preocupação com certas virtudes cívicas sem as quais a vida em sociedade fica inviabilizada. É de Adam Smith a famosa afirmação de que “sensibilizar-se muito pelos outros e pouco por nós mesmos”, e que “refrear nosso egoísmo e favorecer nossas afecções benevolentes constitui a perfeição da natureza humana”.

Com essa perspectiva histórica, fica mais fácil compreender por que razão toda aquela lista de reformas sociais do século XIX promovida pelo governo conservador de Benjamin Disraeli, apresentada acima, na abertura deste texto, não deve espantar alguém que conheça a história do conservadorismo britânico. 

Trata-se de certas – é verdade que não únicas – características fundamentais dessa tradição política: o senso de que a reforma é indispensável para a preservação, de que o cuidado com o próximo é um dever moral e social do qual não se pode fugir, de que o pertencimento a uma sociedade ordenada nos brinda com a liberdade ao mesmo tempo que nos onera com a responsabilidade, inclusive, e sobretudo, a responsabilidade para com os mais pobres, e de que o exercício combinado da prudência e do ceticismo afastam o fanatismo político, o sectarismo ideológico e a agitação desagregadora da esfera das práticas respeitáveis. 

Todas essas características são mais do que compatíveis com a vocação conservadora para a preservação das tradições sociais e culturais exitosas e das instituições políticas que permitem que tais tradições floresçam: elas são uma condição para tal realização.

É por essa razão que ao longo do século XX, importantes nomes do conservadorismo britânico farão da defesa dessas características uma tarefa constante, com a ênfase recaindo ora sobre um, ora sobre outro desses elementos. Por exemplo, Winston Churchill, a maior figura do conservadorismo inglês do século passado, foi decisivo na liderança do governo de coalizão durante a II Guerra Mundial para criar um sistema de bem-estar social, incluindo a criação do National Health Service, através da aprovação do Beveridge Report – seu discurso em 21 de março de 1943, “After the War” (“Depois da Guerra”), assume inequivocamente o compromisso com a necessária criação de um estado de bem-estar social de matriz igualitária e com o NHS. 

Mais recentemente, coube a David Cameron – nem de longe um grande político – expressar essa disposição conservadora geral de reformar para preservar, integrar para progredir a que me referi. Em uma convenção do Partido Conservador em 2011, Cameron defendeu a o casamento entre pessoas do mesmo sexo e afirmou o seguinte:

"Sim, é uma questão de igualdade, mas é também sobre algo mais: compromisso. Os conservadores acreditam em laços que nos unem, que a sociedade é mais forte quando fazemos juramentos uns aos outros e nos apoiamos mutuamente. De modo que eu não apoio o casamento gay apesar de ser um conservador. Eu apoio o casamento gay porque eu sou um conservador".

Tomar decisões políticas específicas em contextos políticos determinados não é tarefa fácil, e diante de casos complexos, divisões sempre surgem. Surgiram com Disraeli no século XIX, surgiram com Churchill no século XX e com Cameron no XXI. Pouco importa. A disposição conservadora, nos exemplos que mencionei acima, fez-se presente, com ou sem dissidência, e preservou a comunidade política e social, garantindo-lhe perpetuação e progresso.

Nada dessa matriz conservadora britânica chegou à realidade política brasileira. Apenas para ilustrar a questão, vale recorrer a um episódio frequentemente contado pelo ex-presidente e sociólogo Fernando Henrique Cardoso. Em uma defesa de tese de livre-docência, a autora analisava o pensamento político no Brasil Império quando, referindo-se a certas figuras do conservadorismo do nosso oitocentos, é interrogada pelo examinador, ninguém menos que Sérgio Buarque de Hollanda: “A senhora acha realmente que esses homens do Império eram conservadores, liam Edmund Burke, ou eram apenas atrasados?”. 

A lição contida na pergunta do professor Sérgio Buarque é bastante óbvia: não há nada em comum entre a vigorosa tradição conservadora britânica e o reacionarismo crasso que marca nossa classe dominante escravocrata – não apenas a que se intitulou conservadora – no século XIX. A situação, incômoda por si só, coloca um problema particular para o tema do conservadorismo brasileiro hoje: afinal, que tradição é essa? E mais: o que se quer conservar?

É difícil imaginar que alguém psicologicamente são e intelectualmente capaz vá buscar nos senhores de escravos dos 1800s inspiração para algum pensamento político conservador no Brasil de hoje. Ainda mais grave, no entanto, é o reconhecimento de que, ao longo do século XX, o cenário não é diferente. Afinal, se não entre os conservadores de nome do tempo do Império, onde mais buscar uma origem e uma tradição local que justifique o anseio pela conservação? 

A história do Brasil do século passado mostra-nos posições consistentes daqueles que se chamaram conservadores – consistentemente contrários a qualquer reforma social inclusive, consistentemente inimigos da democracia liberal e das liberdades individuais por ela garantidas, consistentemente aliados dos poderes autoritários que se configuraram em diversos momentos em nossa história, quer na atuação golpista fracassada – como a UDN –, quer no golpismo vitorioso das forças políticas que levaram ao golpe de 1964 e à instalação da ditadura militar que sequestrou vinte anos da história do Brasil.

É verdade que, isoladamente, há nomes importantes das tradições liberal e conservadora dignos de apreço e inequivocamente alheios ao reacionarismo autoritário que acabo de descrever. Nada, contudo, capaz de criar raízes políticas dignas de nota: do protagonismo durante a ditadura militar no exercício do arbítrio e da violência de Estado, os conservadores passaram à resignada posição de coadjuvantes do fisiologismo e da corrupção nos anos da estabilidade democrática, preservando do termo “conservadorismo” apenas sua aplicação na esfera do comportamento e da vida moral. 

Em qualquer quadra histórica que se examine, impõe-se a constatação de que, no Brasil, o conservadorismo não guarda relação alguma com sua origem moderna na tradição britânica, sendo tipicamente um fenômeno de perpetuação de interesses de dominação e de exclusão profundamente antidemocrático. É nessa ausência de uma matriz conservadora própria que floresceu o bolsonarismo, único movimento político assumidamente de direita e conservador a ser bem-sucedido no Brasil desde a redemocratização. 

No embalo da onda populista e nacionalista da direita autoritária que conquistou o poder em inúmeros países nos últimos anos, o bolsonarismo é nuclearmente reacionário, inimigo do Império da Lei, politicamente autoritário e moralmente retrógrado, constituindo-se no exato oposto de toda a tradição conservadora britânica que expus acima. E de nada adianta lamentar que este não é o “bom” conservadorismo, pois é o conservadorismo real que o Brasil produziu, e que não vai desaparecer tão cedo.

* Eduardo Wolf é doutor em Filosofia pela USP e professor do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da PUC/SP. É editor do Estado da Arte

sábado, 24 de agosto de 2019

Refém da própria imagem

Por Murillo Victorazzo

Há 30 anos, começando pelo direitista liberal Collor, passando pelo tucano FHC, os petistas Lula e Dilma e indo até Temer, o Brasil percebeu que manter a postura reativa negacionista da ditadura militar em um área em que tínhamos simultaneamente "calcanhares de aquiles" e fortíssimos ativos, como o meio ambiente, era tiro no pé.

Com nuances entre eles e apesar de momentos de empecilhos políticos internos, passamos a não só participar como moldar as regulamentações internacionais. Sem "hard power", era, por nossa riquíssima biodiversidade, dos poucos "soft powers" nosso. Nenhum debate ambiental em fóruns passou a ser feito sem o nosso protagonismo.

Nessa questão nos tornamos "global players". Assim como no agronegócio, que, ao mesmo tempo, também tornava-se um dos mais competitivos do mundo. Na primeira década deste século, combinamos crescimento em produção agrícola com queda do desmatamento. O selo ambiental brasileiro tinha credibilidade, embora longe de sermos exemplos perfeitos de sustentabilidade em todos nossos biomas.

De quarto lugar no início da década de 90, passamos a décimo maior emissor de gases do efeito estufa. A prova de que desenvolvimento é tecnologia e uso coordenado de terra, não necessariamente mais quilômetro quadrado ocupado.

A melhor maneira de se defender era mostrar, com práticas e normas internas e externas, que integrávamos um comunidade internacional cuja pauta ambiental, seja em países governados à esquerda ou à direita, tornara-se inevitavelmente prioridade. Em um mundo globalizado, há assuntos que, queiram ou não, fogem fronteiras.

Enquanto isso, Bolsonaro fazia do seu mandato parlamentar e candidatura a resistência do reacionarismo. Acusava os outros do que ele era: viés ideológico. Chamava fiscais do IBAMA e ICMBio de "xiitas", gritava contra reservas indígenas e ambientais. Chegou ao absurdo de ameaçar sair do Tratado de Paris, caso eleito - recuou, depois, por pressão da parte mais internacionalizada dos aliados ruralistas.

Como presidente, reforçou o discurso, quis a ruptura, estimulou o desmonte de agências. Penalidades ambientais (que caíram em proporção inversa ao número de queimadas) foram rotuladas de "indústria da multa". Dados científicos foram negados. Cientistas foram levianamente acusados.

Trocaram-se funcionários de carreira por policiais nas chefias de órgãos. Justificava como fim de "aparelhamento" quando ele sim aparelhava. Demonizou ONGs e fundos de cooperação externa. Seu filho senador, aquele amigo do Queiróz, propôs lei que acaba com a reserva legal nas propriedades rurais, um "disparate", segundo presidente de associação de... agronegócio!!

Acuado, nos últimos dias, passou seu Itamaraty a difundir que somos um país com maioria de área florestal e forte legislação na área. Se somos, e é verdade, se deve ao que ele passou a vida inteira combatendo. (aliás, não por coincidência, lembrem-se do memorando interno do Exército que o acusava de garimpagem ilegal)

Agora, pouco importa afirmar que estão exagerando. O presidente da República é refém de sua retórica, de seus atos passados recentes e remotos. Só lhe resta se vitimizar, apelando a teorias soberanistas, muitas vezes paranoicas, tradicionais da caserna. Ou repetir ladainhas sobre imprensa e "esquerda". Não cola.

Números semelhantes anos atrás ocorreram sim, mas estruturas haviam sido estabelecidas para evitar a piora permanente. O patamar, inclusive de exigência, mudara. A reversão da curva de desmatamento e queimadas não começou em janeiro, mas os números preliminares indicam alto acréscimo percentual desde então.

Há preocupações legítimas e genuínas com a Amazônia, que se não é o “pulmão do mundo”, tem, por seu tamanho, rios e biodiversidade, papel expressivo que vai além da troca de gases que envolve o efeito estufa. O que não significa ignorar o interesse de setores agrícolas protecionistas europeus em se aproveitar do caso para prejudicar concorrente.

Por seu obscurantismo, Bolsonaro deu a deixa, a desculpa, que eles tanto gostariam. Tudo o que havíamos conseguido inverter, minimizar, com políticas proativas. Imagem é tudo, já garantia aquele velho comercial.

sábado, 6 de julho de 2019

Obrigado, João. Obrigado, pai

Por Murillo Victorazzo

Samba, samba-canção, samba sincopado, Bossa Nova. A minha brasilidade orgulhosa se alimenta daqui. Aprendi com meu pai. Não me faltam lembranças de minha infância vendo-o se deliciar com Vinicius, Tom, Toquinho, Nara, João e cia. Que imensuravelmente rica esta herança... Saudades de compartilhar com ele, entre goles de um bom malte, a beleza sutil das letras e melodias de um gênero que tanto nos traduz aqui e no exterior.

Só aos craques se permite personalidades antissociais, às vezes, insuportáveis. Nada ofusca a genialidade. Bastam um banquinho e um violão. O que hoje posso mais fazer por João Gilberto a não ser lhe agradecer com aplausos de pé e torcer para as novas gerações nunca relegarem o que a música brasileira, tão admirada no mundo, tem de melhor? A Bossa Nova é atemporal. Agrada a todos. Até porque “no peito dos desafinados também bate um coração”. Muito obrigado, João.

sexta-feira, 24 de maio de 2019

Qual é o problema?

Por Maria Hermínia Tavares de Almeida* (Folha de S.Paulo, 23/05/2019)

“Esse pessoal que divulga isso faz parte do povo. Esse pessoal a quem devemos ser fiéis a eles (sic) e ponto final.”

 No portão do Palácio da Alvorada, de Havaianas, bermuda e duvidosa camiseta da seleção, cada vez mais confortável no uniforme de político populista, Jair Bolsonaro tentou justificar por que resolveu difundir nas redes sociais texto de um consultor de investimentos, segundo o qual o país é ingovernável por conta dos vícios do Congresso, dos políticos e das corporações. Dias depois, o presidente decretou que “o problema do Brasil é a classe política”.

Segundo o pensador alemão Jan-Werner Müller, o populista sempre se apresenta como representante do “verdadeiro povo” contra as elites que controlam e pervertem as instituições democráticas. Se estas foram ocupadas por personagens egoístas e corruptos, não há por que respeitá-las. Já em nome do povo, tudo é permitido: ignorar o Legislativo, desqualificar o Judiciário, desdenhar dos partidos. “Sou o que o povo quer”, já dizia o ainda candidato ao Planalto.

O populista também aceita mal, quando não os rejeita de saída, valores e modos de pensar diferentes dos seus; por isso, estigmatiza e apregoa serem ilegítimas outras ideias. São idiotas úteis os estudantes que protestam nas ruas; mentirosa a imprensa que o critica; formadoras de militantes marxistas as universidades que exercem o seu papel com autonomia; agentes a mando de cobiçosos estrangeiros as ONGs que atuam na Amazônia; criadores de cizânia os defensores das minorias.

Entregue a suas pulsões mais autênticas, o populista fatalmente investirá contra a democracia, por ser avesso aos princípios e às regras que a sustentam.

Nem de longe é razoável acreditar que tenha qualquer compromisso com a democracia o capitão reformado notabilizado pela ameaça de explodir uma bomba caso as reivindicações salariais da tropa não fossem atendidas; o deputado que, ao anunciar seu apoio ao impeachment da presidente Dilma Rousseff, dedicou o voto ao torturador que a martirizara; o candidato em campanha que declarou que seus adversários mereciam ser fuzilados.

Agora, ao atiçar os seus raivosos seguidores nas redes e estimulá-los a sair às ruas em seu apoio, o presidente populista dá mais um passo na tortuosa ofensiva contra as instituições e os seus agentes.

Que ninguém se engane com a fala truncada, o olhar perdido, a modéstia encenada, a visão rudimentar dos graves problemas do país. Na função para a qual não tem qualificação alguma e não cessa de prová-lo, Bolsonaro se ocupa em dividir e destruir. O problema do Brasil é ele.

*Maria Hermínia de Almeida é professora titular aposentada de Ciência Política da USP e pesquisadora do CEBRAP

quarta-feira, 22 de maio de 2019

Morte da democracia virou bordão para atrair imprensa, diz Przeworski

Por Marco Rodrigo Almeida (Folha de S.Paulo, 11/06/2019)

A crise da democracia. No campo da ciência política, é provável que nenhum outro tema tenha sido mais debatido nos últimos quatro, cinco anos. Eventos de natureza e efeitos variados —como a vitória de Donald Trump nos EUA, do brexit no Reino Unido, de Viktor Orbán na Hungria e de Jair Bolsonaro no Brasil, entre outros— levaram a discussão para muito além do mundo acadêmico, despertando um insuspeito interesse popular por teorias políticas. Livros sobre a derrocada do modelo de democracia liberal viraram best-sellers em vários países.

O cientista político Adam Przeworski, 79, não nega a tão propalada crise, mas considera que os prognósticos mais pessimistas de seus colegas não passam de artimanhas para atrair a atenção da imprensa. As ameaças à democracia, diz ele, têm causas históricas profundas, cujas raízes ligam-se a condições econômicas, sociais e culturais. O capitalismo, afirma, impõe os principais limites à democracia, relação conflituosa de solução quase impossível.

Nascido na Polônia no começo da Segunda Guerra Mundial, professor do departamento de ciência política da Universidade de Nova York (EUA), Przeworski é uma das principais referências mundiais no estudo de democracia e eleições.

Numa pesquisa célebre no meio acadêmico, desenvolvida, entre outros, com o brasileiro Fernando Limongi, aponta que a riqueza de um país é fator preponderante para a preservação dos valores democráticos. A partir de determinado nível de desenvolvimento econômico, diz o estudo, a democracia jamais entrará em colapso.

Nos últimos anos, muitos cientistas políticos passaram a dizer que a democracia está morrendo ou corre sérios perigos mesmo em regiões em que suas bases estão mais consolidadas, como EUA e países da Europa Ocidental. O senhor concorda?

Przeworski - , essas declarações destinam-se apenas a atrair manchetes de jornal. É verdade que muitas democracias estão passando por crises de instituições representativas, crises que têm profundas raízes nas condições econômicas, sociais e culturais.  Essas crises podem durar muito tempo e algo terá que mudar, mas acredito que a democracia, como método de escolher governos por meio de eleições, está aqui para ficar.

Em um estudo famoso publicado em 1996, o senhor e seus parceiros concluíram que nenhuma democracia jamais caiu num país cuja renda per capita anual excedesse os US$ 6.055 (o nível argentino em 1976). Isso ainda se mantém?

Przeworski - Isso ainda é verdade. O único país em que a democracia entrou em colapso depois de 1976, com uma renda ligeiramente superior à da Argentina, é a Tailândia. Mas no passado a maioria das democracias foi derrubada pelos militares, que perderam tanto a capacidade como a vontade de se engajar na política.  O que é novo é a subversão da democracia por políticos democraticamente eleitos, uma erosão gradual da democracia por meios constitucionais, como na Venezuela, na Turquia, na Hungria e talvez no meu país natal, a Polônia.

O senhor também percebe uma onda populista em todo o mundo?

Przeworski - Sim, há uma onda populista. Mas não se pode reclamar da persistente e até crescente desigualdade econômica e rejeitar as críticas populistas às instituições representativas tradicionais: se essas instituições estivessem funcionado bem, teríamos menos desigualdade.

O senhor aponta que o desempenho econômico é um fator fundamental para a sobrevivência da democracia. Até que ponto a democracia é dependente do capitalismo?

Przeworski - A relação entre democracia e capitalismo está sujeita a pontos de vista contrastantes. Um reivindica liberdade política, o outro, liberdade econômica. Equiparar os conceitos de “liberdade” nos dois domínios é apenas um jogo de palavras. Observando a história, deveríamos nos surpreender com a coexistência do capitalismo e da democracia. Desde o século 17, quase todos, à direita e à esquerda, acreditavam que a desigualdade econômica não pode coexistir com a igualdade política.

Essas previsões se revelaram falsas. Os partidos da classe trabalhadora que esperavam abolir a propriedade privada perceberam que essa meta é inviável, aprenderam a valorizar a democracia e a administrar as economias quando ganhavam as eleições. Os sindicatos, também originalmente vistos como uma ameaça mortal ao capitalismo, aprenderam a moderar suas demandas.

Já os partidos políticos burgueses e os empresários aceitaram alguma redistribuição de renda. Formou-se um compromisso de convivência, e os governos aprenderam a organizá-lo: regular as condições de trabalho, desenvolver programas de seguridade social e equalizar oportunidades, ao mesmo tempo em que promovem investimentos e neutralizam os ciclos econômicos.

No entanto, esse compromisso está agora quebrado. Os sindicatos perderam muito de sua capacidade de organizar e disciplinar os trabalhadores. Os partidos socialistas perderam suas raízes de classe e, com elas, sua distinção ideológica e política. O efeito mais visível dessas mudanças é o aumento acentuado da desigualdade de renda.

Mas seria possível uma democracia liberal, tal qual a conhecemos hoje, não capitalista?

Przeworski - O capitalismo não é necessário nem suficiente para a democracia. Nós tivemos muitas ditaduras sob o capitalismo. Mas, como acredito que o capitalismo, de uma forma ou de outra, está aqui para ficar, então a possibilidade de uma democracia socialista, por exemplo, é irrelevante.

Qual é o principal problema enfrentado pela democracia liberal hoje? 

Przeworski - Os limites mais importantes da democracia se originam no capitalismo, um sistema no qual as decisões relativas à alocação de recursos produtivos, a investimento e emprego são guiadas pela concorrência de mercado. O capitalismo impõe limites às decisões que podem ser alcançadas pelo processo democrático, limites que vinculam todos os governos, independentemente de sua ideologia.

Como acredito que não há alternativas ao capitalismo, a democracia está condenada a funcionar dentro desses limites. Isso não quer dizer que todos os governos democráticos são os mesmos: há espaços dentro dos limites. Tudo dependerá das condições específicas de cada sociedade e de sua configuração política.

Como você avalia a situação nos Estados Unidos hoje, após a eleição de Trump?
Przeworski - Trump foi bem-sucedido em contornar as normas constitucionais para adotar muitas políticas desastrosas, reduzindo a proteção social, aumentando a desigualdade e afrouxando a legislação sobre o meio ambiente. Sua estratégia política, bastante divisiva, tem sido manter o apoio de sua base. Mas ele não conseguiu consolidar seu poder, talvez por pura incompetência.

E como vê o governo Bolsonaro?

Przeworski - Como Trump, Bolsonaro está buscando uma estratégia política altamente divisora, o que é sempre perigoso. A democracia funciona quando as apostas políticas não são muito altas, quando estar do lado perdedor não é muito doloroso. A responsabilidade dos presidentes democráticos é assegurar à oposição que seus pontos de vista e interesses estão sendo respeitados.

Pesquisadores também apontam que a população está perdendo seu papel decisório para instituições transnacionais e supranacionais, que hoje controlam muitas das principais deliberações políticas, econômicas e sociais. Um efeito negativo disso seria o descontentamento das massas com o sistema de democracia liberal. Como você avalia essa situação?

Przeworsi - Essas instituições de fato limitam atuações de governos e a capacidade de decisão da população. No geral, porém, concordo com aqueles que acreditam que os efeitos das instituições transnacionais e supranacionais podem ser controlados pelos órgãos nacionais. 

Percebe um distanciamento perigoso entre as elites políticas e intelectuais e a população?

Przeworski -Não creio que a divisão seja apenas entre elites e massas, há também profundas divisões nas classes dominantes. Em vários países, as elites que obtêm suas riquezas do capital tendem a ter posições políticas diferentes daquelas que derivam da educação, do meio intelectual. E a população também não é constituída de um bloco apenas. Por isso, diferentes coalizões políticas são possíveis, com diferentes propostas de soluções.

A democracia é ainda o único caminho para a prosperidade econômica?

Przeworski - Nunca acreditei que a democracia gerasse necessariamente desenvolvimento econômico. Toda a pesquisa mostra que, na média, as democracias não crescem mais lentamente que as não democracias, mas não está claro se elas crescem mais rápido.

É possível estipular que condições levam uma democracia a degenerar numa ditadura? E o oposto, quando uma ditadura morre e dá lugar a uma democracia? 

Przeworski - Sim, há uma enorme quantidade de pesquisa que identifica essas condições. A descoberta mais importante ainda é que as democracias sobrevivem em países economicamente desenvolvidos. Mas essas pesquisas se concentram em casos em que transições de regime são eventos claramente definidos, onde algumas linhas claras foram cruzadas.

O perigo hoje é que algumas forças políticas afirmariam com sucesso que a única maneira de remediar crises econômicas, divisões profundamente arraigadas na sociedade ou colapsos da ordem pública é abandonar a liberdade política, unir-se sob um líder forte, reprimir o pluralismo de opiniões. Ou seja, um deslize gradual em direção ao autoritarismo.

O senhor diz que democracias sobrevivem em economias desenvolvidas. Países em desenvolvimento, como o Brasil, estão condenados a turbulências políticas?

Przeworski - Pelos meus cálculos, o Brasil está suficientemente desenvolvido para que a democracia esteja a salvo de um colapso abrupto. Mas as erosões graduais da democracia por meios legais são um fenômeno relativamente novo e ainda não conhecemos seus padrões.

Como percebe o apreço da população pela democracia? Grande parte da sociedade estaria disposta a abrir mão dela em troca de estabilidade financeira, por exemplo?

Przeworski -Acredito que as pessoas valorizam tanto os resultados das políticas, como a prosperidade financeira, quanto a democracia, com diferentes preferências individuais entre os dois. A dificuldade que elas enfrentam é que suas finanças pessoais são algo que experimentam diretamente, enquanto a ameaça à democracia não é diretamente sentida pela maioria, não é fácil de identificar.  Assim, podem ser seduzidas por um Maduro, um Erdogan, um Trump ou um Bolsonaro.  Não acredito, porém, que a ameaça à democracia possa ser identificada por meio de atitudes individuais - certamente não por respostas a perguntas de pesquisa.

A luta pelos direitos das minorias se tornou um fator de acirramento da polarização política e social, de modo a ameaçar a democracia? Como solucionar os conflitos entre direitos individuais, vontade popular e bases institucionais?

Przeworski -Não creio que a luta pelos direitos das minorias seja desestabilizadora, mas penso que a própria linguagem dos direitos pode ser. Nas últimas décadas, muito do que costumávamos considerar como “interesses” foi consagrado como “direitos”.  Os conflitos de interesses são processados ​​por mecanismos políticos, principalmente eleições.

Os direitos, porém, são invioláveis, não sujeitos à política comum. Como então os conflitos de direitos podem ser resolvidos? E os direitos muitas vezes entram em conflito: o direito à propriedade está em conflito com o direito de todos a não morrerem de fome, a liberdade de expressão conflita com o direito de algumas pessoas de não serem chamadas por palavrões. Acho que produzimos muitos direitos e agora nossos sistemas institucionais têm dificuldade em lidar com conflitos entre eles.



segunda-feira, 1 de abril de 2019

O antissemitismo da Ditadura

Por Murillo Victorazzo

Informe reservado do Doi-Codi, de 1976, afirma, entre cinismos e outras barbaridades antissemitas, que os "meios de comunicação do Ocidente estão nas mãos das organizações judaicas, interferindo em todas as comunidades e no processo cultural de cada país, mesmo sendo uma minoria racial e uma sociedade à parte".

"Ao serem hostilizados, se auto-afirmam como uma raça privilegiada por Jeová, cujo destino é a liderança do mundo", completa.

Bolsonaro, o que você tem a dizer sobre esse documento de sua querida ditadura, hoje, no Muro das Lamentações, ao lado de Bibi Netanhyahu????

segunda-feira, 25 de março de 2019

A conspiração e a ultradireita do governo

Por Demétrio Magnoli ( O Globo, 25/03/2019)

Diante de uma lápide, no antigo cemitério judeu de Praga, à sombra da noite, reúnem-se 12 rabinos, representantes das tribos de Israel. O mais venerável toma a palavra. No seu discurso, proclama que “18 séculos pertenceram a nossos inimigos”, mas “o século atual e os futuros pertencerão a nós”. Em seguida, explica que a luta pela hegemonia mundial se desenrolará nos planos político, econômico e religioso, por meio da tomada de controle das finanças, do poder de Estado, dos meios de comunicação e das instituições educacionais.

A estrutura narrativa da conspiração encontra seu paradigma no mito da conspiração judaica, que emerge em romances baratos, artigos fantasiosos de jornal e uma célebre falsificação da polícia czarista russa, na passagem do século 19 para o século 20. O historiador Raoul Girardet segue a trilha desses textos no ensaio “A conspiração”, que faz parte do livro “ Mitos e mitologias políticas ” , publicado em 1986. É um guia inesperado para compreender o que se passa, hoje, no governo Bolsonaro.

A facção ultradireitista do governo, formada por seguidores de Olavo de Carvalho, nutre-se da ideia da conspiração. No lugar dos judeus, o Bruxo da Virgínia coloca os “liberais globalistas” e os “comunistas”, ligados por um pacto de dominação global que almeja destruir as “nações de sangue”. Se a constrangedora visita presidencial aos EUA nos ensina algo, a lição é que a paranoia conspiratória sedimentou-se como convicção fundamental do próprio presidente.

O Bruxo da Virgínia não inventou a versão contemporânea da conspiração mundial. De fato, ele apenas reproduz a tábua da fé da alt-right, a direita nacionalista americana, que tenta organizar um movimento nacionalista internacional. A crença difunde-se entre os fiéis pelo labirinto das redes sociais, em fragmentos de informação descontextualizada, boatos ferozes e acalorados rumores. Uma concha protetora providenciada pela aversão à imprensa profissional isola a seita da torrente de notícias que descortinam a complexidade do mundo.

A conspiração seduz, hipnotiza, encanta os espíritos. Sua narrativa simples, similar às do conto de fadas e do folhetim, oferece explicações completas para fenômenos complexos. Sua força persuasiva floresce no solo da ignorância histórica e da preguiça intelectual. Não é preciso ler, estudar, investigar: a teoria conspiratória eleva qualquer um à condição de sábio. A conspiração é o travesseiro, o lençol e o cobertor dos incultos. O Bruxo da Virgínia, que sabe disso, fez dela o núcleo do seu modelo de negócios.

Depois que deita raízes, a teoria conspiratória é invulnerável à prova negativa — e, inclusive, alimenta-se dela. Postos diante de contestações lógicas ou factuais, os espíritos tomados por ela retrucam que o autor da refutação faz parte da própria conspiração. Experimente sugerir a um “aluno de Olavo” que o keynesianismo fechou caminhos às proposições socialistas. Ele responderá que o interlocutor é um arauto do keynesianismo — isto é, do “marxismo cultural” espraiado nas instituições, na mídia e nas universidades. Nas bolhas das redes sociais, a resposta patética passa como contrarrefutação indiscutível.

Figuras imersas no caldo de cultura da conspiração inclinam-se a fantasiar pequenos complôs cotidianos— e a reagir articulando, eles mesmos, complôs paroquiais. O MEC, comandado por um discípulo do Bruxo da Virgínia, é um microcosmo desse fenômeno. A crônica guerra civil que o paralisa, contrapondo fanáticos “olavetes” a assessores técnicos e militares, evidencia a inviabilidade de um governo submetido ao paradigma conspiratório. Governar exige um mínimo de respeito a regras de administração e alguma estabilidade política. Nada disso é compatível com as quimeras que movem a facção ideológica do bolsonarismo.

“Se continuar assim, mais seis meses e acabou”, pressagiou Olavo de Carvalho sobre o governo Bolsonaro, no jantar em Washington, pouco antes de tomar assento ao lado do presidente. O Bruxo da Virgínia tem os meios para demonstrar o acerto de sua profecia.




quarta-feira, 13 de março de 2019

Socialismo ‘millennial’ nos EUA

Por Fernando Vallespín ( El País, 11/03/2019)

Uma das maiores fraturas políticas atuais, junto com a urbana/rural, é a de gerações. E, mais do que em outros lugares, isto se torna visível no mundo anglo-saxão. Se fossem apurados unicamente os votos dos menores de 25 anos nas últimas eleições legislativas britânicas, o Partido Conservador não teria obtido nem um só assento na Câmara dos Comuns.

 O voto dos jovens, que já tinha sido majoritariamente contrário ao Brexit, foi em massa para o Partido Trabalhista, que vinha se reaproximando das suas bases pelas mãos do imprevisível líder Jeremy Corbyn. Nas eleições de 2017, soube cortejar com acerto as ânsias de ascensão social frustradas pela crise econômica.

Apesar de suas muitas diferenças, nos Estados Unidos encontramos uma tendência parecida. E aqui o mais relevante é observar como os millennials, a geração nascida entre 1981 e 1996, conseguiram romper o tabu do qualificativo de “socialista” nesse país. Uma pesquisa do Gallup mostra que 51% dos jovens têm uma visão positiva do socialismo.

Esse último dado aparece em um amplo artigo da The Economist – destacado já na sua capa – em que se aprecia certa perplexidade quanto ao fenômeno. O semanário britânico chama a atenção para a “ingenuidade” de muitas dessas posições no que se refere ao seu conhecimento sobre a realidade da economia e a política fiscal, mas é compreensivo com tais atitudes, dada a desigualdade galopante, a assimetria na oferta de oportunidades e os problemas ambientais.

No meu entender, entretanto, a condescendência crítica da publicação em relação às possíveis soluções políticas que o novo socialismo norte-americano oferece erra o alvo. Ainda estamos longe de saber se ele tem algum tipo de “programa”, ou se responde mais a elementos expressivos que a outra coisa. A grande pergunta a fazer não é se existe uma nova sensibilidade esquerdista entre os jovens – algo que parece confirmado –, e sim em que se concretizará.

Deixemos agora de lado o que possa ocorrer em outros países democráticos, sujeitos também em parte à mesma dinâmica, e nos concentremos no fenômeno tal como se apresenta nos Estados Unidos, porque é justamente aí que encontramos seus traços mais interessantes.

 É preciso pensar que se trata do único país desenvolvido onde nunca existiu uma tradição socialista propriamente dita, e onde o esquerdismo se aglutinava em torno do difuso qualificativo de “liberal”, mais ou menos equivalente ao nosso “progressista”. Quem ia além e defendia uma maior ruptura com o status quo era tachado de “radical”, sem maior especificação.

O fato de atualmente se recorrer a outro epíteto, “socialista” ou “democrata-socialista”, como gostam de se descrever personagens como a jovem congressista Alexandria Ocasio-Cortez, é, portanto, algo mais que uma curiosidade. Expressa uma tentativa de explorar novos territórios de ação política, não se filiar pura e simplesmente ao socialismo histórico de estirpe marxista.

Aqui é onde se deve buscar sua originalidade, isso de dar as costas ao esquerdismo norte-americano tradicional – ou ao europeu – e tentar abrir outros caminhos. Quais são eles é a grande questão. E não há uma resposta simples. Entre outras coisas, porque tampouco está construindo um relato propriamente dito ao qual possa atrelar uma práxis política.

Constrói das ruínas do frustrado projeto de Obama ou o do próprio Bernie Sanders, que voltará a tentar a sorte nas primárias do Partido Democrata. Mas tampouco se ergue do nada. O movimento Occupy Wall Street deixou atrás de si uma pletora de novas publicações, sites e comunidades de ativistas na rede que continuam em funcionamento, fazendo barulho e ocupando boa parte do espaço público.

A única certeza é que o socialismo norte-americano compartilha as três premissas fundamentais da esquerda do Partido Democrata: a) uma crítica sem paliativos à desigualdade social criada pela economia neoliberal e pelas medidas fiscais dos últimos anos em favor dos que mais têm; b) a acusação aos hiper-ricos e às grandes empresas de ter descuidado das suas obrigações comunitárias e transformado seu enorme poder econômico em contínuos privilégios políticos; e c) a exigência de subverter este estado de coisas com programas sociais expansivos que vão muito além do direito a uma saúde universal.

Se parassem por aqui, entretanto, os socialistas "millennials" seriam identificados apenas como uma ala social-democrata desse partido. Mas seus objetivos parecem mais amplos.Para a maioria dos que se sentem identificados com esse rótulo, a semântica do que é “socialismo” não se deixa reduzir exclusivamente à dimensão convencional.

David Graeber, um anarquista convicto, autor do livro Bullshit Jobs, ao ser perguntado pelo que significa para ele este socialismo millennial, deixou bem claro: “Eu o compararia ao que ocorreu com o feminismo e o abolicionismo na sua época. Trata-se de alterar as percepções morais das pessoas”.

Por isso, não pode deixar de lado as questões identitárias: “Socialismo é feminismo, socialismo é antirracismo, socialismo é LGTBI”. Recordemos que foi nesta necessidade de teimar no identitário e na diversidade – as questões divisoras por antonomásia – que intelectuais como Mark Lilla viram a explicação para o triunfo de Trump. A outra identidade, a branca, sentiu-se também interpelada e, no final, deu no que deu.

O socialismo millennial, seguindo o caminho esboçado por políticos como Sanders e movimentos como o Occupy, voltou para politizar a desigualdade, que já não é mais vista como uma externalidade inevitável. Além disso, os jovens norte-americanos vivem cotidianamente o endividamento decorrente das caras tarifas universitárias e o pagamento dos planos de saúde.

Para atingir o objetivo é preciso mirar nas grandes fortunas, às quais Ocasio, por exemplo, gostaria de impor uma alíquota fiscal de 70%. Aqui a classe média, cujos salários mal se moveram em termos relativos nas últimas quatro décadas, também deveria ser parte da coalizão. A opressão não se articula só a partir de critérios econômicos: abandonar em seu nome a luta pelo reconhecimento de determinadas minorias fica totalmente excluído.

Hoje haveria, além disso, novos desafios que hipotecam nosso futuro e exigem uma ação política imediata. O mais urgente é, certamente, a mudança climática. O Green New Deal seria o instrumento para isso. Não resta alternativa senão reestruturar a economia para alcançar dois fins ao mesmo tempo: eliminar as emissões de gases do efeito estufa e aproveitar esse impulso de reorganização das políticas econômicas para criar uma maior prosperidade para todos, uma nova redistribuição dos recursos.

E há também os novos desafios sobre o emprego derivados da robotização e da aplicação maciça da inteligência artificial. Em contraste indubitável com a sensibilidade norte-americana majoritária, falar de algo como uma renda básica de reinserção deixou de ser tabu. Se muitos jovens caem rendidos perante esta nova forma de “socialismo”, isto se deve em grande parte a que as questões e os desafios do futuro encontraram finalmente um espaço na agenda da política cotidiana.

A experiência acumulada de todo o esquerdismo mostra que o mundo real não se deixa impressionar por quem trata de questioná-lo. Devem passar para o primeiro plano as disputas relativas ao “que fazer?”, e a estratégia necessária para traduzir os objetivos em políticas efetivas. E é aqui que o socialismo millennial se encontra com os maiores problemas.

Porque, de um lado, não pode prescindir – carrega-o em seu DNA geracional – da criatividade e da espontaneidade que as redes permitem. Mas, por outro, como se viu com o próprio Occupy, sem uma conexão efetiva com as instituições da democracia formal tudo pode ficar afinal reduzido a meros fogos de artifício. Sem se incorporar às instituições não há mudança, mas ficar encaixado em suas dinâmicas, Obama que nos desculpe, nos condena à frustração.

Mas por enquanto não se veem como caminhos excludentes, e jogam em ambas as dimensões. E com bastante êxito. Ocasio volta a ser um exemplo interessante porque conseguiu que sua presença no Congresso monopolizasse todos os olhares. Não por acaso, transmite os detalhes do que ali ocorre através de suas contas do Twitter e Instagram, aproximando do grande público os detalhes da vida parlamentar, até agora opacos. Ao mesmo tempo, isso não a impede de mostrar um profissionalismo irrepreensível, como se viu no seu rigoroso interrogatório do ex-advogado de Trump Michael Cohen.

O desafio para este novo autoproclamado socialismo está em transferir a essas mesmas instituições as energias democráticas que se encontram no seu ativismo de base. O projeto tem e terá sentido na medida em que puder se articular em torno de uma matriz de organizações locais, debate on-line, diferentes fórmulas de ativismo ou experimentos que conectem a auto-organização de grupos com os fins públicos, algo assim como a criação de companhias tipo Uber ou Airbnb de propriedade social, dos quais nos fala Graeber.

Resta muito por fazer, mas que a The Economist ande preocupada mostra claramente que se trata de algo além de um mero impulso utópico.

domingo, 27 de janeiro de 2019

O risco militar

Por Merval Pereira (O Globo, 7/012/2019)

A presença de militares, da ativa e da reserva, em postos eminentemente civis chama a atenção no primeiro ministério do presidente Jair Bolsonaro, ele próprio um capitão da reserva do Exército. O cientista político Octavio Amorim Neto, professor da EBAPE/FGV, em artigo intitulado “O Governo Bolsonaro e a Questão Militar”, analisa essa “ampla fatia de poder” dos militares com cautela, advertindo para as conseqüências que podem afetar tanto a democracia brasileira quanto a própria corporação militar.

Estejam ou não exercendo funções, os militares têm, quase sempre, visões de mundo e preferências semelhantes, comenta Octavio Amorim Neto. Além disso, a população e as elites civis percebem e tratam os militares como um grupo coeso, usem ou não farda.

A ressalva que faz lembrando que os oficiais de alta patente hoje em dia diferem muito dos que lideraram o regime de 1964-1985, sendo mais liberais em temas econômicos e mais comprometidos com a democracia e os ditames constitucionais, não o impede de levantar duas questões relevantes: o grau de controle dos militares pelos civis (ou o grau de subordinação dos militares à autoridade política dos civis) e a elaboração e orientação da política de defesa.

“Não há democracia quando as Forças Armadas vetam decisões governamentais que não digam respeito à defesa nacional”, ressalta o cientista político da Fundação Getulio Vargas do Rio. Ele admite que, até o momento, não se pode dizer que o Brasil esteja sob tutela militar, mas acha que o risco existe, sobretudo “se a corporação castrense contribuir decisivamente para a derrota da reforma da Previdência”.

A partir do final do século passado, muita coisa começou a mudar nas relações civis-militares em geral e no papel dos civis na política de defesa em particular, e Octavio Amorim Neto ressalta (1) a criação do Ministério da Defesa em 1999; (2) a publicação da Estratégia Nacional de Defesa em 2008, redigida tanto por civis como por militares; (3) o início, em 2009, de um amplo e ambicioso programa de reaparelhamento das Forças Armadas; (4) a promulgação da Lei da Nova Defesa em 2010; e (5) a publicação do primeiro Livro Branco da Defesa Nacional em 2012, escrito com considerável participação de civis.

“Aqueles fatos e eventos indicavam claramente o fortalecimento do controle dos militares pelos civis, um maior envolvimento destes na elaboração da política de defesa e uma maior saliência desta na agenda política nacional”, comenta Octavio Amorim Neto.

Além de evitar golpes de Estado, Octavio Amorim Neto diz que as elites democráticas têm “a obrigação de remover os militares da política, privando-lhes de qualquer veto às decisões de governo que não digam respeito à defesa nacional e reduzindo drasticamente sua autonomia”, estabelecendo assim a supremacia civil.

A eleição de Bolsonaro tem, como primeira conseqüência, a suspensão dessa etapa da transição para a democracia que os militares estavam aceitando até o momento. Octavio Amorim Neto pergunta: como ficará a participação dos civis na gestão do Ministério da Defesa e na elaboração da política de defesa, já que, desde fevereiro de 2018, o MD tem sido chefiado por um general?

Ele está convencido de que essas duas áreas ficarão sob total controle dos militares. “O Congresso e os partidos aceitarão passivamente isso?”. Outra questão que inquieta Octavio Amorim Neto: as Forças Armadas se concentrarão quase que exclusivamente em missões internas ao território nacional, sobretudo nas frequentes operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO)?

Os comandantes do Exército sempre afirmam que GLO é desvio de função e que gostariam de concentrar-se em suas tarefas precípuas. Contudo, lembra Octavio Amorim Neto, será que realmente crêem que, com tal presença de militares no governo em atividades eminentemente civis, haverá fortes incentivos para que as Forças Armadas se dediquem prioritariamente às suas missões fundamentais, nomeadamente a defesa das fronteiras nacionais, a manutenção da paz na América do Sul, o apoio à política externa e a prontidão para guerras interestatais?

Para Octavio Amorim Neto, “a história é farta em exemplos que mostram que, quando as Forças Armadas de um país passam a exercer excessivamente atividades políticas, o aprestamento (efetividade) militar é a primeira baixa”.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

Para lidar com a China, Bolsonaro tem um instrumento nas mãos

Por Oliver Stuenkel* (El País, 21/01/2019)

Jair Bolsonaro prometeu uma revolução na política externa, e as primeiras semanas de seu governo indicam que liderará a mudança mais radical na história das relações internacionais do Brasil, rejeitando muitos dos pilares da tradição diplomática do país. Um alinhamento completo com os Estados Unidos de Trump é a peça central da nova política externa brasileira, com consequências diretas em todas as suas áreas, como fóruns multilaterais, negociações sobre o clima, defesa e conflito Israel-Palestina, nas quais Bolsonaro deverá vir a emular o posicionamento de Trump.

Considerando essa mudança inédita, alguns tentarão convencer o presidente de reduzir a participação do Brasil no grupo BRICS (formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) ou sair dele completamente, argumentando que se trata de mais uma iniciativa petista que merece ser descartada. O chanceler Ernesto Araújo questiona a utilidade do grupo e alega que o Brasil deve buscar laços mais estreitos com países como Israel, Itália, Polônia e Hungria.

De fato, considerando que as intensas tensões entre os Estados Unidos e a China são o novo normal - muitos já falam de uma "nova Guerra Fria" - o alinhamento incondicional de Bolsonaro a Trump pode reduzir o escopo de cooperação nas iniciativas lideradas pelos BRICS. Da mesma forma, o mal-estar criado em Pequim pela retórica anti-China de Bolsonaro durante a campanha ainda não foi superado, e os recentes ataques de eleitores de Bolsonaro e de Olavo de Carvalho contra parlamentares do PSL que visitam a China sugerem que a cooperação com Pequim poderá ter significativo custo político.

Reduzir a participação no BRICS, porém, seria uma oportunidade perdida para o novo presidente. Ao contrário, faria mais sentido para seu governo fortalecer sua atuação no bloco para alcançar seus objetivos principais de política externa: ganhar o respeito de Trump e renegociar a relação bilateral com a China.

Diferentemente do que o chanceler Ernesto Araújo parece acreditar, o Brasil não vai ganhar o respeito de Trump expressando admiração incondicional, como Eduardo Bolsonaro fez durante sua primeira viagem recente a Washington. O presidente dos EUA é conhecido por exigir lealdade absoluta e oferecer nenhuma em troca. Trump tem pouco interesse ou incentivo para criar a parceria de longo prazo com a qual sonha o ministro das Relações Exteriores do Brasil.

 A decisão de Trump de não comparecer à posse de Bolsonaro e enviar apenas o secretário de Defesa, Mike Pompeo, demonstra como será difícil estabelecer laços fortes entre o presidente brasileiro e seu ídolo norte-americano.

Em novembro, Bolsonaro terá oportunidade única de se projetar como estadista globalmente relevante quando sediar a 11ª Cúpula dos BRICS. Ele receberá os líderes da China, Índia, África do Sul e Rússia, além da maioria dos presidentes da América do Sul. Será uma das cúpulas mais relevantes das relações internacionais em 2019 e provavelmente o maior evento diplomático de seu primeiro mandato. Isso torna Bolsonaro muito mais interessante para Trump do que um fiel cãozinho de estimação, tal como Araújo e Eduardo Bolsonaro acabam por projetá-lo.

Ademais, preocupar-se com a ascensão da China não é motivo para deixar o grupo dos BRICS - na verdade, todos os outros membros do bloco - Índia, Rússia e África do Sul - compartilham muitas das preocupações do Brasil em relação ao tema. A Cúpula Presidencial anual do BRICS e as numerosas reuniões ao longo do ano - entre ministros da Educação, Meio Ambiente, Defesa e assim por diante - proporcionam acesso privilegiado aos líderes políticos chineses, oferecendo uma plataforma única para defender os interesses do Brasil em relação à China. 

O que muitos críticos do BRICS não percebem é que as reuniões do bloco não se limitam a alinhar ideias, mas também oferecem ao Brasil a oportunidade de influenciar Pequim. Em vez de rebaixar os BRICS, Bolsonaro poderia pensar em coordenar com o premiê indiano, Modi; o presidente russo, Putin; e o presidente sul-africano, Ramaphosa, uma estratégia conjunta para pressionar Pequim em relação ao que os quatro países querem da China.

Seria um erro acreditar que a ideologia de Bolsonaro difere muito da de alguns de seus pares no grupo dos BRICS. Modi e Putin são ambos nacionalistas de direita, que adotam uma retórica chauvinista conservadora e de tom religioso que deixaria Ernesto Araújo à vontade. O Brasil é o único país dos BRICS onde a cooperação Sul-Sul é considerada, incorretamente, uma ideia de esquerda. 

Ocupando a presidência temporária do grupo dos BRICS neste ano, Bolsonaro tem a oportunidade promover debates sobre temas que preocupam seu governo: defesa, política antidrogas, redução do crime e antiterrorismo. Em algumas dessas áreas, outros países do BRICS têm larga experiência, e o Brasil pode aprender com eles - em particular quando se trata de antiterrorismo, importante para o país se Bolsonaro vier de fato a transferir a embaixada brasileira em Israel para Jerusalém.

Por fim, independentemente da orientação ideológica de seu presidente, qualquer país no mundo hoje – mesmo aqueles críticos a Pequim -- precisa ter o conhecimento necessário para lidar com a China, que caminha para ser em breve o centro econômico do mundo. Com o grupo BRICS, o Brasil já tem a vantagem de ser parte de uma plataforma institucionalizada que facilita a adaptação a essa nova realidade. 

A importância geopolítica do bloco hoje é maior do que nunca. A 11ª Cúpula dos BRICS ocorrerá em meio a uma profunda incerteza sobre o futuro da ordem econômica global. Isso cria uma oportunidade para o BRICS - e o Brasil nele - assumir um papel mais proeminente.

*Oliver Stuenkel é professor adjunto de Relações Internacionais na FGV e coordenador do programa de pós-graduação da Escola de Relações Internacionais da FGV

quinta-feira, 10 de janeiro de 2019

Deus e o diabo na terra da política externa

Por Dawisson Belém Lopes* (O Globo, 06/01/2019)

Há algo de farsesco, ainda que bastante engenhoso, no modo como a política externa do governo Bolsonaro vem buscando legitimar-se publicamente. O principal impulso ao processo é dado pelo chanceler Ernesto Araújo, homem de fortes convicções morais, admirador dos nacionalismos românticos e da herança ocidental. Trata-se, ademais, de um fiel devoto de Donald Trump.

Araújo vem se aproximando, nas manifestações feitas em seu blog pessoal e nas peças que publica na imprensa, do apelo popular de Jair Bolsonaro à religiosidade do povo brasileiro. A fórmula da nova política externa, segundo o chanceler, terá de alinhar-se a essas circunstâncias.

Se a gente brasileira é religiosa, logo a política externa, praticada por um presidente com mandato democrático, também deverá sê-lo. O Brasil, entende Bolsonaro, necessita pautar-se nas suas relações internas e internacionais por valores judaico-cristãos, pois é isso que o povo reivindica na atualidade.

Do raciocínio deriva o receituário da política externa bolsonarista: o país precisa rejeitar o “globalismo” e o “marxismo cultural”, tendências emanadas de foros diplomáticos e editoriais internacionais, desprovidas do empuxo popular e, alegadamente, corruptoras da soberania nacional e do patriotismo. Eis o bilhete para a “libertação do Itamaraty” – na expressão carregada de Araújo.

Para tanto, devem-se recusar peremptoriamente as resoluções das entidades multilaterais e juntar-se à liga dos regimes fortes e cultores das tradições ocidentais. Estados Unidos, Itália, Polônia e Hungria, nações cristãs, credenciam-se como parceiras preferenciais. Israel, o Estado judaico, candidata-se a aliado incondicional.

Percebe-se, todavia, que a equivalência “voz do povo, voz de Deus”, proposta pelos bolsonaristas como o verdadeiro elo perdido da autoridade, resulta logicamente falaciosa. Se é bem verdade que a sociedade brasileira preza a dimensão religiosa, não se extrai daí que os cidadãos sejamos refratários ao secularismo como princípio organizador da vida política.

De resto, a experiência religiosa dos brasileiros, como já amplamente difundido pelos antropólogos, é de um tipo sincrético, não acomodando no cotidiano os rigores da ortodoxia. Somos o país dos milhões de cristãos “não praticantes”, das infusões e dos intercâmbios entre as variadas denominações de fé.

Ao substituir as máximas mundanas do realismo político por princípios idealistas e metafísicos, Araújo e colaboradores recriam o ciclo de produção da política externa brasileira. Tira-se o povo da conversa, reduzindo-o a mero estereótipo de uma expressão religiosa. Habilmente, o chanceler e seu grupo promovem jogos filosóficos e de linguagem cujo saldo é a elitização decisória em política externa.

Explica-se: quando o mote da política externa democrática era anteriormente evocado, imaginava-se uma tensão constitutiva entre os aristocráticos homens de Estado e a plebe. A democratização poderia até avançar, lenta e dialeticamente, por meio de choques de interesses. Por um truque retórico, contudo, essa tensão dissipou-se no discurso corrente, dado que os novos mandatários imaginam falar pelo e para o povo, interpretando de maneira peculiar os sentidos da sua fé.

Os diplomatas profissionais, integrantes da comunidade cosmopolita global, tradicionalmente autorizados a pronunciar-se sobre as relações exteriores do Brasil, dão lugar a teocratas e nativistas. Dentro desse esquema de coisas, saber técnico, trajetória institucional e acúmulo acadêmico não se tornam, necessariamente, alavancas de poder. Afinidade ideológica e proximidade com a chefia do Poder Executivo, sim.

Existe, ainda, um inesperado problema empírico com a narrativa diplomática em construção: segundo levantamento do instituto Datafolha, divulgado em 27 de dezembro último, 66% dos brasileiros não querem ver o país associado aos Estados Unidos nos assuntos estrangeiros. É um rechaço popular emitido em alto e bom som aos caminhos vislumbrados pelo novo governo federal.

* Professor de política internacional da UFMG, é o autor de “Política Externa e Democracia no Brasil: Ensaio de Interpretação Histórica” (Ed. Unesp, 2013) e “Política Externa na Nova República: Os Primeiros 30 Anos” (Ed. UFMG, 2017).

terça-feira, 8 de janeiro de 2019

O Trotsky da Netflix

Por Murillo Victorazzo*

Como todo ícone revolucionário, Liev Bronstein, o Leon Trotsky, desperta admirações, paixões, repulsas, ódio, mas, acima de tudo, instiga pela dúbia personalidade. Não por acaso, a série russa que leva o nome do lendário bolchevique causou previsível polêmica no país de origem quando transmitida pela rede pública Pevry Kana, no final de 2017.

O burburinho ultrapassou fronteiras com sua aquisição pela Netflix. Embora com pouquíssima repercussão entre o público geral do Brasil, a obra, produzida por Alexander Kott e Konstantin Statsky, incomodou também militantes de esquerda daqui, críticos igualmente da forma como é reconstituído o criador do Exército Vermelho e figura central da Revolução Russa.

Perseguido pelo aparato de Stalin por quase 15 anos até ser assassinado a seu mando em 1940, Trotsky costuma ser encarado como contraponto ao sanguinário ditador, que, em 1922, conspirou para suceder Lênin, mesmo o primeiro comandante da União Soviética gastando seus últimos dias de vida em demonstrações a favor do rival.

No início da luta contra o regime czarista, Stálin era um admirador dos textos de Trotsky contra os Romanov. A recíproca, porém, nunca foi verdadeira. Invejável intelectual, dono de talento literário e com hipnotizante oratória, Trotsky desprezava a rudeza de seu correligionário georgiano, que, por sua vez, nunca deixou de vê-lo como maior ameaça à manutenção de seu poder. No comando do regime, não satisfeito em expulsa-lo do partido, baniu-o do país e mandou executar dois de seus quatro filhos.

Mas mais do que choque de egos, a distinção entre eles ganha significado especial dentro do movimento comunista após 1956, quando Nikita Krushev, novo secretário-geral do PC, denuncia, em discurso no Congresso do partido, a brutal dimensão da política de execução de opositores (dentro e fora do partido) de seu antecessor, morto três anos antes. Dava-se início "desestanilização" da União Soviética: mais de 80 mil presos em campos de trabalho forçado são soltos e resgata-se a memória de vários militantes assassinados.

Entre eles, destaque para Trotsky, cuja imagem, banida da historiografia oficial do país, fora, durante décadas, vítima de orquestrada campanha da burocracia stalinista. Na tentativa de deslegitimá-lo como traidor contrarrevolucionário, coube até acusações de cumplicidade com o nazifascismo. Desde então, o antagonismo passou a simbolizar, para a esquerda socialista, o contraste entre o ideal marxista e o desvio burocrático totalitário.

Asilado no México, Trotsky escrevia uma biografia de seu algoz quando foi morto a golpes de picareta por um agente soviético de origem espanhola infiltrado em sua casa. No livro, ele, de certa forma, nos mostra o Stálin revelado por Krushev: "(...) se divertia em sua casa de campo degolando ovelhas ou jogando querosene nos formigueiros e ateando fogo (...) caminhava pelo bosque e continuamente se divertia atirando nos animais selvagens e assustando a população local. Tais histórias sobre ele, procedentes de observadores independentes, são numerosas. E, no entanto, não faltam pessoas com esse tipo de tendências sádicas no mundo. Foram necessárias condições históricas especiais antes de que esses instintos obscuros encontrassem uma expressão tão monstruosa".

É esse Stalin que, também na série, Trotsky, interpretado pelo popular ator russo Konstantin Khabensky, não cansa de descrever nos diálogos com o jornalista Frank Johnson, admirador do ditador. Confrontado inúmeras vezes por ele sobre episódios em que também não poupou vidas de "camaradas", Trotsky, como mantra, justifica-os como necessários para a consolidação da revolução e do Exército Vermelho, ameaçados por deserções e sublevações em meio aos combates contra o Exército Branco (que reunia czaristas e liberais) durante os três anos da Guerra Civil. Segundo o velho revolucionário, diferente de Stalin, a violência praticada sob suas ordens não teria sido nem disseminada nem praticada por sadismo ególatra.

Mas - e aqui se encontra a razão de tanta inquietação -,  os oito episódios da obra logo mostram um cenário um tanto diferente: surge na tela um Trotsky irascível, arrogante e cruel, que relega a família e não hesita em matar quem o vê como "homem comum", mesmo que fossem leais colaboradores. Alguém não muito diferente de seu algoz. A  ideia de que homens assim , simples "seres humanos", não conduzem a revoluções teria vindo de seu truculento carcereiro czarista, ainda no final do século XIX, em Odessa. Na fuga do país, dele Trotsky pega também o pseudônimo que o eternizaria. "As pessoas só podem ser controladas com o medo. O medo está nos alicerces de qualquer ordem", afirma o verdadeiro Trotsky em tensa conversa com ele.

Impossível assegurar se a União Soviética comandada por Trotsky se caracterizaria por opressão tão brutal e disseminada quanto a de Stalin. Mas, segundo Robert Service, autor de Trotsky, uma biografia, "qualquer um que governasse o país de forma eficaz precisaria de métodos autoritários para conservar o poder comunista. O sistema forjado pelos bolcheviques, nada democrático, ‘cobrava’ violência para mantê-lo". Trotsky, acrescenta ele, "era de um egocentrismo extremo. Passava por cima da resistência institucional sempre que queria ação rápida e obediência. Tinha uma maior propensão para dar ordens do que para a discussão".

Exemplos que aparentam confirmar o que diz Service são retratados na série: a liderança na repressão aos marinheiros rebeldes em Kronstadt; o apoio ao restabelecimento da pena de morte; e à execução da família imperial. As últimas duas, contudo, controversas. Na versão televisiva, a autoria intelectual teria sido sua. Outros historiadores, porém, afirmam que Trotsky "apenas" seguiu o proposto pelo comitê supremo do partido.

O desejo narcisista de Trotsky de impor-se com áurea superior e infalível perante as massas pode não corresponder a verdade, mas foram os próprios trotskistas que, de certo modo, alimentaram esse seu traço excepcional, o que sempre atrapalhou qualquer debate não maniqueísta. Neste sentido, a série comete o mesmo pecado, mas pelo lado oposto, ao preferir uma abordagem lugar-comum de vilão de novela. Afasta-se assim da "complexa personalidade" escrita na própria sinopse.

Abusando das hipérboles e reducionismos, a obra chega a distorcer fatos, no intuito de reforçar grosseiramente a frieza do biografado. A começar por mostrar a primeira esposa, Alexandra, como uma passiva mulher abandonada por um marido que foge do campo de prisioneiros na Sibéria para o exílio. Seis anos mais velha, Alexandra, na verdade, era uma militante revolucionária, com posições firmes e que incentivou sua fuga. De acordo com Hedda Gaza, autora de outra breve biografia sobre Trotsky, Alexandra defendia que "o dever para com a revolução suplantava qualquer coisa, especialmente as relações pessoais".

Do mesmo modo é retratada Natália Sedova, a segunda esposa e companheira até os últimos dias de vida. Natália também era uma ativista, que, em meio a boemia parisiense, escrevia textos marxistas. Pouco a ver com o que se vê na Netflix: uma fútil frequentadora de festas, regadas a bebida e drogas, à procura de homem rico mas que acaba seduzida pela inteligência de Trotsky e, após casar, recolhe-se em meras palavras de apoio.

Fragilizar as mulheres para reforçar a suposta hipocrisia de suas teses emancipatórias diante de seu machismo. A crítica à ideia "burguesa" de fidelidade lhe teria servido como mero pretexto para justificar, entre outras traições a Natalia, seu rumoroso caso com a vanguardista pintora e símbolo mexicano Frida Kahlo. Igualmente, nada mais do que arma de sedução seria a defesa do pleno direito da mulher sobre seu próprio corpo. O sutil objetivo é reforçado no duelo verbal com Sigmund Freud, no qual o bolchevique compara as massas à “psicologia feminina”: instável e emotiva.

É fácil, portanto, captar a correlação pretendida nas cenas de sexo com Larissa Reissner em um vagão do imponente trem blindado bolchevique, utilizado por ele, como presidente do Comitê Revolucionário Militar, no monitoramento das frentes de batalha por todo o gigantesco território russo. Jornalista e ativista na vida real, Larissa é caracterizada com feições fúteis e compromissada com um oficial do Exército Vermelho - subordinado ao amante. 

A Revolução Russa tornou o matrimônio uma relação voluntária; legalizou o divórcio e o aborto (gratuito); eliminou as diferenças entre filhos legítimos e ilegítimos; e igualou os direitos trabalhistas de homens e mulheres. Não deveria estranhar a repulsa em setores da esquerda com o enfoque machista sobre um de seus principais artífices. 

É, aliás, através do fictício diálogo com Freud, que são insinuados traços psicopatas em Trotsky, real admirador e leitor do austríaco, em que pese outros marxistas considerassem a psicanálise uma prática "burguesa e capitalista". A cena é um dos melhores momentos da produção. Após afirmar que o homem vive "pelo medo da morte" e pelo sexo, Freud compara a conquista de um país a conquista de uma mulher. Referindo-se a ele como "tipo raro de agressor sexual", olha no fundo de seus olhos e dispara: “Só vi isso [súbito dilatamento de pupilas] em dois tipos de pessoas: serial killers e fanáticos religiosos". 

O reducionismo enviesado que em nada ajuda a entender fenômenos históricos leva ainda a frases quase caricaturais como as ditas no que teria sido o primeiro contato de Trotsky com Lênin. O futuro primeiro líder soviético, de cara, afirma: “Quero mudar o mundo. O que o povo tem a ver com isso? O povo é um instrumento.” “Nas suas mãos?”, pergunta Trotsky. “Ou nas suas”, responde Lênin. 

O mesmo viés depreciativo se vê na resposta de Trotsky à crítica de Lênin por ter eclodido o levante bolchevique antes da hora: "Sim, é um golpe, mas terá que parecer uma revolução". Afirmação nada crível, pois, de fato, toda revolução tem um componente golpista, por derrubar um governo constituído. Mas nem todo golpe é uma revolução, definida academicamente, em termos gerais, como um movimento que rompe a estrutura da ordem socioeconômica vigente a partir de alguma mobilização popular. Gostem ou não, Outubro de 1917 foi um dos grandes exemplos revolucionários. 

O termo golpe para minimizar o feito comunista é recorrente entre setores à direita e passou a ser utilizado pelo regime de Putin - por sinal, acusado por trotksistas de ser o responsável pelo tom da série, transmitida em emissora estatal nos 100 anos de um evento que seu governo fez questão de oficialmente ignorar.

Carece ainda de verossimilhança a reconstrução de Frank Jackson - codinome de Ramon Mercader - como um jornalista declaradamente stalinista. Sabe-se que ele, o agente assassino, ganhou a confiança de Trotsky justamente por se passar por um comerciante disposto a patrocinar suas ideias. Se a intenção era fazer das perguntas e comentários provocativos de Jackson o eixo condutor ao passado, não se pensou que faria pouco sentido um veterano militante aceitar em casa, sem receio algum, um simpatizante de seu ardiloso inimigo.

É de se lamentar ainda mais o não aprofundamento das diferenças entre Stalin e Trotsky. Ao resumi-las a inimizades pessoais e julgamento de personalidades, perdeu-se a chance de explicar um dos principais embates doutrinários internos ao movimento comunista: o internacionalismo proletário contraposto ao nacionalismo stalinista. Abordá-lo enriqueceria a produção sobre fato histórico que reconfigurou o mundo.

Foi Trotsky quem contribuiu para atualizar a tese marxista de que a revolução só poderia se dar em países industrializados. Sendo o comunismo o estágio final do capitalismo, ela seria possível apenas havendo uma forte classe operária como agente condutor, apontava Marx. Para Trotsky, porém, embora o operariado fosse incipiente na atrasada e rural Rússia, uma aliança com o campesinato tornaria possível a instauração de um governo que visasse o fim da propriedade privada dos meios de produção.

Contudo, para o país se industrializar e os requisitos socialistas se firmarem, tal aliança não seria suficiente a longo prazo. A divisão mundial do trabalho, a dependência da indústria soviética em relação à técnica estrangeira e a dependência das forças produtivas dos países avançados em relação às matérias-primas asiáticas tornavam impossível a construção de uma sociedade socialista isolada em um ponto do mundo. "A revolução socialista torna-se permanente num sentido novo e mais amplo do termo: só está acabada com o triunfo definitivo da nova sociedade sobre todo o nosso planeta", vislumbrava Trotsky. 

A ideia reforçava de outra forma a emblemática expressão marxista "Proletários do mundo todo, uni-vos". Mas seria escanteada com a ascensão de Stalin, para quem a Rússia deveria ela própria, sem envolvimento direto com levantes externos, concentrar-se no desenvolvimento de suas forças produtivas, prioridade que justificava a construção do crescente aparato burocrático. 

A favor da série, ressalte-se que, se ela força as cores em muitos aspectos de sua personalidade, delineia em Trotsky um relativo desapego por liderança. Em nome da "revolução", aceita ceder sem resistência o comando do partido a Lênin, mesmo após ser o mentor da insurreição que derruba o governo provisório de Kerensky. "Lenin tinha razão. Na Rússia, o poder nas mãos de um judeu não duraria nem um mês (...)  me libertou para realizar a revolução mundial", admite para Jackson, recordando o antissemitismo que lhe perseguiu, inclusive por parte de alguns do movimento comunista, enquanto pregavam um "novo mundo" onde todos seriam iguais independente de origens. Trotsky, de fato, "não desejava com suficiente intensidade a autoridade suprema”, corrobora Service.

Polêmicas à parte, a série merece ser vista. Vale pela fotografia, que alterna a escuridão gélida da pobre mas bela Rússia do início do século com as cores vivas do calor mexicano. E por uma reconstituição de época que, se talvez não tão requintada para o gosto de muitos, ganha charme diferenciado por fugir da estética ocidentalizada. Destaques especiais para o trem blindado bolchevique, as legendas explicativas em alfabeto cirílico e as passagens finais dos episódios, nas quais Trotsky sempre enfrenta seus fantasmas do passado, com remorsos e frustrações em forma de alucinações.

Vale ainda mais por resgatar o protagonismo de figura relegada a segundo plano no senso comum sobre a Revolução Russa. Trotsky não foi apenas um de seus principais ideólogos; foi seu principal operador, desde a derrubada do czar, em 1917, até a vitória na Guerra Civil, em 1921. Sem ele, correndo o risco das deduções contrafactuais e sem juízo de valor, a História do século XX seria diferente. Figuras assim nunca terão biografias definitivas.

*Murillo Victorazzo é jornalista, com especialização em Política & Sociedade (Iesp-UERJ) e MBA em Relações Internacionais (FGV-Rio)