quarta-feira, 27 de outubro de 2010

A morte de Kirchner: mais um tango para história política argentina

Por Murillo Victorazzo
Muitos dizem que o samba e o tango refletem bem como brasileiros e argentinos lidam com as dificuldades. Se nós, com a nossa ginga, levantamos e sacudimos a poeira, sem nunca perder o sorriso, nossos "hermanos" responderiam de forma mais intensa e depressiva às adversidades. Não seria outro o motivo das belas melodias do ritmo-símbolo argentino quase sempre exalarem melancolia. Se verdade isso for, desde ontem, a Argentina vivência mais um cenário digno de letra de tango.

Aos 60 anos, morreu, vítima de infarto, o principal líder político de nossos vizinhos na última década. Se Néstor Kirchner fosse meramente um ex-presidente que, nos bastidores, ainda desse as cartas nas hostes peronistas, seu falecimento já seria motivo de impactar um país que, assim como o Brasil, tem um histórico de mortes e outras tragédias assombrando seu palácio presidencial. Ele, porém, era mais do que isso. Era, aliás, mais do que o marido da atual presidente, Cristina Kirchner.

Presidente do PJ (Partido Justicialista, o nome oficial do aglomerado de grupos heterogêneos que se intitulam peronistas), Néstor era o braço direito, esquerdo e o cérebro do governo de sua esposa. É quase unanimidade na Argentina que a chefia de Estado e de governo era um corpo com duas cabeças. Também é consenso que ele era o mentor de sua companheira. Ela, por sinal, nunca fizera questão de rebater o contrário.
Mas o cenário de drama ganha intensidade ao levarmos em conta o momento pelo qual passava o casal K. Após ter sido, de certa forma, bem sucedido em tirar a Argentina da profunda crise econômica ao assumir, em 2003, a Casa Rosada, Néstor, quatro anos depois, entregou à esposa, além da faixa presidencial, embriões de crises que vieram a explodir no colo dela.
Denúncias de corrupção, maquiagens de índices oficiais, fortes conflitos com o setor agropecuário e com a mídia fizeram despencar a popularidade de Cristina e, em certas situações, paralizar o país. O próprio Néstor, que pavimentava sua volta (oficial) à Presidência, havia sido eleito deputado pela província de Buenos Aires, ano passado, apenas como segundo colocado. Não era raro ouvir quem colocasse em dúvida até a força da presidente para terminar seu mandato. Paradoxalmente, contudo, seu marido ainda era apontado como o favorito para sucedê-la em 2011 - em boa parte também pela pouca clareza de ideias e estratégias da oposição.
Com o falecimento de Néstor, o quadro político argentino torna-se ainda mais incerto. Além de o ex-presidente ser o parâmetro a partir do qual governistas e oposição delimitavam suas ações, uma incógnita ocupa a cabeça dos argentinos: como reagirá Cristina? De que maneira ela absorverá a perda do companheiro de 36 anos que tornou-se também seu cúmplice (no bom e, para boa parcela do eleitorado do país, e no mal sentido) político?
Certo é que tais tragédias humanizam os políticos, fazendo com que a população e até a oposição se solidarizem com os atingidos. Os defeitos dos falecidos se diluem e seu feitos são maximizados. A comoção vista no velório de Néstor, com uma multidão se aglomerando em frente a Plaza de Mayo, parece confirmar essa tendência, embora não se saiba até quando.
Por isto, se Cristina tiver força - física, espiritual e política - para se reerguer e agir com habilidade e velocidade, poderá usar esta pausa piedosa para reorganizar seu governo. Por essas ironias do destino, um mandato fadado a terminar por baixo, poderá, assim, recuperar o fôlego e ela, alcançar a reeleição. Caso contrário, a perda inesperada do marido/líder tem grandes servir como catalizador para que ela perca o timão de vez.
Néstor, um político que saiu da distante província de Santa Fé para chegar à Casa Rosada em um momento em que o país estava a beira do colapso institucional, agregou tanto poder - e dinheiro - que parecia estar construindo uma espécie de dinastia quem nos remetia a Perón e suas esposas Evita e Isabelita. Outras semelhanças, ainda que a dimensão de Néstor não alcance a de "el general", já os unia: se deixaram suas marcas na vida sócio-econômica argentina, caracterizaram-se por ter o populismo e o autoritarismo (ainda que em nuances diferentes) como modus operandi.
No entanto, a partir de agora, Néstor se junta a Perón em outra (triste) coincidência. Os dois viram suas próprias mortes, esposas e a Casa Rosada se cruzarem de forma não planejada. Perón foi golpeado com a morte de sua Evita, que logo se tornaria mito. Conduziu, depois, com seu falecimento, Isabelita, que era sua vice-presidente, à Presidência. Néstor, por outro lado, conseguiu levar sua Cristina ao poder ainda vivo. Mas seu infarto fatal pode tê-la golpeado inesperada e involuntariamente. O drama dos Peróns rendeu filmes e tangos. Quer melhor roteiro para outros mais do que a história do casal K?

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Recordar é viver. E "Vale Tudo", refletir

Por Murillo Victorazzo
Uma das mais agradáveis novidades na televisão brasileira este ano foi o lançamento do Canal Viva, na Net. Quem aprecia a televisão brasileira e tem TV paga, certamente, já parou seu controle remoto por lá, nem que tenha sido apenas por alguns minutos. Seja drama, humor, culinária, aventura entre outros, o canal nos faz recordar por que nossa TV, em especial as organizações Globo, marcou seu nome entre as melhores no mundo.
Não precisa ser saudosista para se deliciar com programas que marcaram nossas infâncias, adolescências ou algum outro momento de nossas vidas. E é até natural do ser humano deixar o coração falar mais alto e ser condescendente com eventuais defeitos e defasagens vistos pelo olhar do século XXI.
No entanto, não é dominado por estes sentimentos que o canal Viva nos deixa à mostra algo muito claro: se, por um lado, a evolução das tecnologias de imagens, luz, áudio foi tão grande que, algumas vezes, parece que a distância entre as produções das décadas de 80 e 90 e o presente é maior do que a real, os seus conteúdos, vistos com distanciamento histórico, eram quase sempre melhores.
Fênomeno de audiência na época em que foi exibida, a novela "Vale Tudo" é a melhor prova do ocorrido. Voltou no Viva há duas semanas, 22 anos depois, com força total, a ponto de se tornar um dos assuntos mais comentados no twitter e alçar a emissora à liderança no Ibope entre as TVs fechadas. O sucesso merecido tem razão de ser.
A obra de Gilberto Braga, ainda que o Brasil tenha evoluído sócio-economicamente a largos passos, continua atual. Com personagens brilhantemente construídos e interpretados por grandes nomes da dramaturgia nacional, a novela incomoda - no bom sentido - por nos mostrar de forma direta, sem eufemismos, os velho dilemas da humanidade. Conflitos que parecem estar mais nítidos em nosso país: vale a pena ser honesto? O fim justifica os meios quando o objetivo é ganhar dinheiro?
Corrupção, caixa dois, traições, homicídios, preconceitos, alpinismo social, luta pelo poder...Tudo é visto, sem sutilezas, na obra. Quer algo mais condizente com nosso cotidiano - principalmente em época de campanha eleitoral - do que a trilha de abertura, de Cazuza, cantada por Gal Costa: "Brasil, mostra sua cara, quero ver quem paga pra a gente ficar assim"?
O despudor maquiavélico de Maria de Fátima, a crueldade e a prepotência de Odete Roitman - personagem que nos remete àquela parcela da elite brasileira que, por incrível que parece, ainda considera seu próprio país uma república de bananas habitada por aborígenes - e o mau caratismo presunçoso de Marco Aurélio resultam em um corolário de maldades, que, descontados os necessários excessos de uma ficção, mostram-se verossímeis em um país em que uma "ética flexível"- para usar um eufemismo - ainda ocupa grande espaço. Por outro lado, o casal Raquel e Ivan sintetiza a grande maioria da população brasileira: os que, honestamente, dão duro, aqueles para os quais os valores e o trabalho estão acima da riqueza a qualquer custo.
Quase todas novelas têm como pano de fundo essa dualidade. Muitas conseguem retratar com certo grau de realismo, outras tantas fracassam ao tranformar as vilãs em bruxas de histórias em quadrinhos e as protagonistas em Cinderelas. "Vale Tudo", não! Graças ao ferino texto de Braga e às atuações de Glória Pires, Beatriz Segall, Reginaldo Farias, Regina Duarte, Antonio Fagundes, entre outros, a novela tornou-se única na arte de exprimir as canalhices e as perseveranças nacionais.
Enredo tão atual e factível que deixam as imagens mais escuras e menos nítidas que as das produções atuais relegadas a segundo plano. A novela fustiga ainda mais quando lembramos que, no final, alguns destes vilões não terminam tão mal assim...A reprise de "Vale Tudo" serve para nos lembrar como somos (ou éramos?) bons em fazer novelas, discutir por que a qualidade de nossa dramaturgia caiu e, principalmente, pensar as razões de a nossa sociedade persistir em certos vícios.