segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Itamaraty consulta diplomatas sobre nova política

Por Jamil Chade ( O Estado de S.Paulo, 31/01/2011)

Por ordem do ministro das Relações Exteriores, Antônio Patriota, os principais departamentos do Itamaraty, as embaixadas e a missão do Brasil na Organização das Nações Unidas preparam uma reavaliação da política externa brasileira. Esse trabalho, com conclusão prevista para março, tratará de temas como os direitos humanos em países de regimes autoritários, o papel do Brasil nas questões relacionadas ao Irã e o relacionamento com os Estados Unidos.

O Estado obteve informações sobre o despacho confidencial enviado por Patriota aos diplomatas brasileiros com representantes do País na Europa e no Oriente Médio. Essa ordem teria partido depois de uma conversa entre o ministro e a presidente Dilma Rousseff, que já fez declarações na contramão de seu antecessor, Luiz Inácio Lula da Silva, por exemplo, em relação à condenação da iraniana Sakineh Ashtiani. Para Dilma, os direitos humanos não são negociáveis.

Com esse levantamento, avaliam os diplomatas ouvidos pela reportagem, a política externa brasileira daria mais relevância a princípios e valores defendidos domesticamente no Brasil que teriam sido deixados de lado nos últimos anos, além de repensar a relação bilateral com uma série de países.

A gestão do ex-chanceler Celso Amorim no Itamaraty promoveu uma aproximação inédita com o Oriente Médio e a África. Se, por um lado, essa política trouxe benefícios comerciais - como a multiplicação por dez nas trocas do Brasil com o Egito ou o movimento de US$ 2 bilhões anuais com o Irã -, por outro não faltaram críticas à posição do País de não reprovar publicamente violações de direitos humanos cometidos por regimes autoritários.

Uma das críticas mais duras ao Brasil - que cobiça um lugar permanente no Conselho de Segurança da ONU - veio da Anistia Internacional. "O problema é que, nesse caminho, o Brasil parece ter se esquecido de seus próprios valores internos, do fato de ser uma democracia e de ter lutado contra uma ditadura", afirmou a entidade em nota.

No despacho confidencial, Patriota pediu avaliação completa sobre o status da relação do Brasil com o Irã e quais pontos devem passar por alguma modificação. O País deve manter sua posição de que os emergentes têm direito a desenvolver tecnologia nuclear, mas tende a admitir que o processo negociador com os iranianos não tem surtido o resultado esperado. Nesse cenário também estão em discussão questões relacionadas a violações de direitos humanos no regime dos aiatolás.

Estados Unidos. Para completar, a revisão da política externa tocará em outro tema delicado: a imagem de que haveria um sentimento antiamericano permeando a diplomacia brasileira. anos. Telegramas da embaixada dos Estados Unidos em Brasília revelados pela organização WikiLeaks demonstraram preocupação por parte dos diplomatas americanos nesse sentido.

Ex-embaixador do Brasil em Washington, Patriota vê com mais otimismo uma maior cooperação entre a Casa Branca e o Palácio do Planalto. Em março, o presidente dos EUA, Barack Obama viajará para o Brasil e o ministro já gostaria de dar sinais dessa reavaliação da diplomacia do País nessa viagem.

O QUE DEVE MUDAR
Regimes autoritários
Depois de fazer vista grossa para violações de direitos humanos, o País deve adotar tom crítico em relação a governos não democráticos, principalmente na África e no Oriente Médio.

Armas nucleares
O Brasil manterá a posição de que países emergentes têm o direito de desenvolver programas de tecnologia nuclear, mas tende a reavaliar a opção de buscar apenas o caminho da negociação com o Irã para evitar o desenvolvimento de bombas.

Relações com os EUA
Nos últimos anos, Brasil e Estados Unidos divergiram em diversos temas no cenário internacional. A tendência agora é de mais diálogo e alinhamento da política externa dos dois países.

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Verão na Bahia não é apenas a "oitava maravilha"

Por Murillo Victorazzo

Verão é sinônimo de férias, calmaria, momento para relaxar. Quando se fala de Bahia então, só nos vem a mente momentos prazeirosos. Nesta época, Salvador ferve cada dia mais com a aproximação do carnaval, que, para muitos, é, como diz a música, "a oitava maravilha". Este ano, porém, os baianos têm assistido a uma turbilhão que passa longe de Bel, Durval, Ivete e Claudia Leite. As "estrelas" são o prefeito João Henrique Carneiro (PMDB) e o governador Jacques Wagner (PT), que, em maior ou menor grau, enfrentam dificuldades e conflitos políticos e administrativos.

Embora tenha conseguido com facilidade sua reeleição, obtendo 63% dos votos válidos, Wagner tem sido muito criticado pelo aumento da criminalidade no estado. Entre 2006 e 2009, o número de homicídios em Salvador aumentou 41%, segundo dados oficiais. De acordo com a Folha de São Paulo, o governo baiano atribui estes números ao aumento do consumo de crack, e não a problemas de gestão.

Empossado em seu segundo mandato há 25 dias, Wagner só semana passada anunciou mudanças em seu secretariado. Dez secretários continuam em seus cargos e outros nove ainda esperam definição. Não por acaso, entre as cinco pastas com novos titulares está a de Segurança Pública. Maurício Barbosa, que era responsável pelo setor de inteligência da secretaria, será o terceiro nome a assumí-la desde 2007. Para a oposição demista, a mudança é "o reconhecimento do fracasso do governo no combate ao exponencial crescimento da violência e criminalidade na Bahia".

Não bastasse tal problema, recentemente a Associação Bahiana de Imprensa divulgou uma nota de repúdio pelo fato de a secretaria ter restringido a divulgação de ocorrências policiais no estado. "Não podemos retroceder a outros tempos que remontam à ditadura", atacou a associação, segundo a Folha. Wagner negou, porém, que as medidas tenham a ver com censura. Garantiu que o objetivo é evitar a divulgação de informações sem confirmação oficial.

Ao mesmo tempo, João Henrique, ao entrar na metade final de seu segundo mandato, enfrenta sua pior crise política. Semana passada, o PMDB suspendeu sua filiação, após ser acusado pela legenda de "má administração municipal". A tendência é que, após o prazo de 90 dias, o prefeito seja expulso do partido no qual ingressou em 2007, após sair do PDT. 

A aliança com o então ministro da Integração Nacional  Geddel Vieira Lima, manda chuva do PMDB regional, foi fundamental para reeleição de João Henrique. Sua primeira administração esteve, por quase todo o tempo, entre as de pior avaliação. Um segundo mandato era considerado pouco provável. Mas consideráveis aportes de recursos do ministério de Geddel alavancaram obras municipais às vésperas do pleito de 2008 que resultaram na conquista dos votos necessários para continuar no Palácio Tomé de Souza por mais quatro anos.

Hoje, dois anos depois, o deputado federal Lúcio Vieira Lima,  presidente do diretório baiano e irmão de Geddel, afirma que, caso a expulsão se consume, o PMDB reivindicará na Justiça o mandato de João Henrique. "As condutas [do prefeito] ferem o programa partidário", disse Lúcio ao jornal paulista. Como prova, cita o "descalabro administrativo" refletido no atraso no pagamento de trabalhadores tercerizados e em greves nos sistemas de saúde e educação.

Numa tentativa de recuperar fôlego político na Câmara Municipal, onde será votado o parecer do Tribunal de Contas do Município contrário à aprovação de suas contas de 2009, João Henrique substituiu seis dos seus 11 secretários. Abriu espaço para o PP e reduziu o do PMDB, que, dominado pelo grupo de Geddel, já indicou que lhe fará oposição nestes últimos 24 meses.

O prefeito já avisou que pedirá ao TRE  autorização para deixar o PMDB. Avaliou que "declarações ofensivas" de alguns peemedebistas tornaram "inviável" sua permanência na legenda. Por outro lado, Geddel, em seu Twitter, replicou: "E depois de suspenso, quer dizer que deseja sair. A Bahia sabe quem agrediu quem, e o PMDB só fez o bem".

Casos de crises financeiras e descalabros administrativos não são raros em prefeituras. Entre as do PMDB, há e houve vários exemplos. Se fosse tão zeloso pelas contas publicas e por seu programa partidário, os caciques da legenda estariam cansados de distribuir cartões vermelhos. O caso soteropolitano é, na verdade, nada mais do que uma tentativa de correção de estratégia do grupo de Geddel.

O ex-ministro, há dois anos, via a Prefeitura de Salvador como uma alavanca para sua candidatura ao governo baiano ano passado. Ter um aliado no executivo municipal seria fundamental para tentar romper a a polarização entre PT e o carlismo, representados por Wagner e Paulo Souto. Sua aposta não deu certo e, com cerca de 15% dos votos, ficou em terceiro lugar no pleito.

Derrota consumada e não mais com a poderosa caneta de ministro nas mãos, Geddel parece mirar já nas eleições municipais de 2012. O manual da política ensina que é recomendável se afastar de um prefeito desgastado e impopular o quanto antes. Ser o candidato de João Henrique parece tudo que deseja evitar. Político experiente, sabe que será apontado com co-responsável pela administração atual.

A partir de agora, as incógnitas são para onde irá João Henrique e como Geddel conseguirá se viabilizar eleitoralmente em Salvador. Exceto se as dificuldades na área de Segurança Pública saírem do controle,  o candidato da base de Wagner  virá com muita força em potencial. Será consequentemente também o candidato de Dilma e, por isso, com o país continuando a crescer, entrará na disputa como o favorito.

Por outro lado, ainda que nunca tenha sido tão forte como no interior do estado, o carlismo é o segmento onde a parcela conservadora da sociedade soteropolitana tradicionalmente sempre tendeu a despejar seus votos. Mesmo muito debilitado hoje, poderá ser o esteio dos que rejeitam tanto João Henrique quanto o PT. Aí talvez esteja o espaço no qual Geddel tentará se consolidar - caso o DEM se disponha a abrir mão da cabeça de chapa e o eleitorado carlista releve suas fortes trocas de acusações com o finado ACM.

Certamente a esperança do cacique peemedebista reside na possibilidade desta aliança. Caso contrário, entre os dois pólos antagônicos e um representante do prefeito, que, por mais impopular que seja, sempre guardará um estoque de votos respeitáveis, uma quarta candidatura estará fadada ao fracasso. Ainda mais sem ter - até aqui- cargo ou mandato que lhe mantenha na mídia.

É exatamente a necessidade de espaço na imprensa - em meio a todo tipo articulações políticas destes grupos políticos - que nos leva a uma certeza: o fervilhão de emoção, cantado e visto no verão baiano, continuará em Salvador após março. Mas, dessa vez, fora das cordas dos trios de Campo Grande e do Farol da Barra e longe de ser alguma maravilha.

domingo, 23 de janeiro de 2011

A batalha pela Casa Branca

Por Matias Spektor (Valor Econômico, 17/12/2010)

Há oito anos, o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva entrou pela primeira vez na Casa Branca. GeorgeW. Bush e sua equipe o esperavam de pé. “Senhor presidente”, disparou Bush, “algumas pessoas dizem que uma pessoa como o senhor não pode fazer negócios com uma pessoa como eu. Estamos reunidos hoje para mostrar que estão equivocados”. A mensagem espalhou-se como fogo. Naquela manhã de 10 de dezembro de 2002, ninguém esperava o gesto. Havia resistências a Lula na capital americana.

 O “New York Times” o chamava de “esquerdista”, e o “Washington Times” alertava que “se o candidato pró-[Fidel] Castro for eleito presidente do Brasil, poderemos ter um regime radical”. Quatro dias antes do primeiro turno, 12 deputados republicanos manifestavam preocupação a Bush numa carta pública. O mesmo ocorria no mercado financeiro. Para o “Financial Times”, “todos sabem que a solvência brasileira está por um fio”. Goldman Sachs via uma crise no horizonte.

Para piorar a situação, em meses recentes, a Argentina dera o maior calote da história, e a Venezuela assistira a uma tentativa de golpe contra Chávez. Não havia linha direta entre o Palácio do Planalto e a Casa Branca: Fernando Henrique Cardoso tinha dificuldade em dialogar com Bush e durante 14 meses a embaixada americana em Brasília ficara sem embaixador. Mas quando as pesquisas de opinião começaram a apontar Lula como ganhador da corrida presidencial de 2002, um trio improvável iniciou uma manobra diplomática para tranquilizar a Casa Branca: Donna Hrinak, a recém-chegada embaixadora americana em Brasília, José Dirceu, presidente do PT e mão direita de Lula, e o próprio Fernando Henrique.

A embaixadora Donna Hrinak desembarcou em Brasília em abril de 2002 com um português impecável. Como vice-cônsul dos Estados Unidos em São Paulo na década de 1980, acompanhou de perto as greves do ABC paulista. Expoente da geração que protestou contra a guerra do Vietnã, ficou encantada com a mobilização social que viu. Daquela experiência ficou a paixão pelo país: “Não sou brasileira nesta vida, mas poderia ter sido numa vida passada...” Não era sua primeira transição presidencial: acompanhou morte de Tancredo Neves e os primeiros anos do governo Sarney.

Quando pousou em Brasília em 2002 e um jornalista lhe perguntou o que achava de Lula, ela respondeu autoconfiante: “Não temos medo de Lula. Ele encarna o sonho americano”. Filha de um pai metalúrgico de Pittsburgh e de uma mãe que não completou o segundo grau, Donna entendia bem a respeito da ascensão social. Ela mesma era a primeira mulher embaixadora de carreira dos EUA. Desde que assumiu a embaixada em Brasília, trabalhou para tornar palatável, em Washington, a ideia de Lula presidente. Lula entendeu logo. Quando a encontrou pessoalmente durante a campanha, abriu a conversa assim: “Eu quero falar com você porque sei que você não tem medo da gente”.

Lula escolheu José Dirceu para comandar a campanha em Washington. Em julho de 2002 Dirceu visitou os Estados Unidos com uma cópia da “Carta ao Povo Brasileiro” traduzida para o inglês. Visitou todas as instituições que importavam: Casa Branca, Tesouro, Congresso americano e mercado financeiro. Tirou fotos onde um ano antes se erguiam as Torres Gêmeas, num gesto de solidariedade. Mandou cartas a Bush pai e ao vice-presidente Dick Cheney e pediu ajuda a influentes empresários para assegurar aos americanos que a “Carta ao Povo Brasileiro” era para valer.

A embaixada americana reforçava a mensagem em seus telegramas para Washington: “Todos os nossos interlocutores têm fé em Dirceu para tomar as decisões difíceis, mas responsáveis... Ninguém espera um calote do governo”. Donna conhecera Dirceu na década de 1980 e durante muitos anos guardara como recordação um chaveiro com as inscrições “Vote em José Dirceu”. Dirceu também buscou o apoio das centrais sindicais americanas. Para isso mobilizou Stanley Gacek, um embaixador informal do PT nos EUA.

Gacek estava informado, visitava o país havia 20 anos, tinha ligações e conhecia todo o meio sindical. Quando Lula foi preso em 1981, fazia parte da comitiva internacional que veio acompanhar o caso. Durante a década de 90, Gacek articulara as viagens de Lula e Marco Aurélio Garcia aos Estados Unidos. Agora, trabalhando no Departamento de Relações Internacionais da poderosa central AFL-CIO, a maior e mais influente central sindical americana, ele atuava nos bastidores para assegurar que as garantias de Lula ao setor financeiro não alienassem a base de apoio sindical.

No afã de tranquilizar os EUA, o PT também contou com um aliado inesperado: Fernando Henrique. Foi para ele que Dirceu ligou ao sair de um encontro no influente Institute for International Economics em Washington, onde ouvira economistas renomados dizer que o Brasil provavelmente seria forçado a entrar em moratória. O presidente havia inventado um novo ritual de transição presidencial ao designar uma equipe formal para gerenciá-la, criar escritórios para a equipe do presidente eleito e instruir seus ministros a produzirem milhares de páginas de informação para seus respectivos sucessores. Assinou um acordo-ponte com o FMI para evitar possível corrida dos mercados contra o real e colocou todos os candidatos presidenciais para assinar junto. Também concedeu à nova equipe acesso a informações secretas e abriu um canal de comunicação direta com Lula.

A decisão de arquitetar uma transição nesses moldes não se tratava de benevolência nem simpatia pessoal, mas de cálculo preciso. A turbulência dos mercados, temia o presidente, poderia ferir o real de morte. Seu maior legado, a estabilidade financeira, poderia acabar com seu governo. Além disso, o significado da transição de 2002 era enorme. Se Lula ganhasse, o Brasil poderia assistir pela primeira vez na sua história à passagem do poder de um presidente eleito pelo povo para outro mandatário igualmente eleito pelo povo que, por sua vez, conseguiria completar seu mandato sem morrer, renunciar ou ser deposto por um golpe.

Fernando Henrique estava determinado a deixar esse legado. Ainda durante a campanha, o presidente enviou seu chefe da Casa Civil, Pedro Parente, para os Estados Unidos. Parente visitou a CasaBranca, o Departamento de Estado e o Tesouro americano com uma cópia do projeto de transição debaixo do braço. Em cada reunião, Parente repetiu palavras de confiança no PT e na mensagem da “Carta ao Povo Brasileiro”. Assegurou que não haveria rupturas.

Lula entendia bem o poder simbólico da atitude de Fernando Henrique e era grato por ela. Menos de 24 horas depois de sua vitória, em conversa telefônica com o primeiro-ministro britânico, Tony Blair, o presidente eleito enfatizava: “Eu gostaria de dizer para o primeiro-ministro que o presidente Fernando Henrique Cardoso jogou um papel importante nessa eleição. Primeiro funcionando como magistrado, segundo criando uma comissão de transição jamais vista no nosso continente”.

Mas Fernando Henrique sabia que isso não bastava. Uma transição estável dependeria em boa parte da reação da Casa Branca, uma vez que ela tinha a capacidade de orientar as expectativas do mercado. E sabia que a repetição da “Carta ao Povo Brasileiro” à exaustão não bastaria para desarmar as arraigadas desconfianças de Washington em relação a Lula. Por isso, instruiu seu embaixador em Washington a dar todo o apoio que a equipe do PT solicitasse.

Rubens Barbosa era diplomata de carreira, mas chegara a Washington por sua amizade com o presidente. Como embaixador na capital norte-americana, ele tinha construído um perfil pouco comum. Hiperativo, trabalhou para construir uma ampla e pouco usual rede de relacionamentos no Executivo, Legislativo, na academia e nos Estados americanos. Ao receber as instruções do presidente, trabalhou de modo sistemático para assegurar uma boa recepção para Lula. Ao lembrar aqueles acontecimentos hoje, os americanos envolvidos ressaltam que as palavras de Barbosa foram cruciais para moldar a percepção de Washington em relação a Lula.

Foi ainda às vésperas do segundo turno que Donna e Barbosa começaram a operar para que Bush desse um telefonema pessoal a Lula no caso de uma vitória. A importância do telefonema ia muito além das manchetes para a mídia brasileira. A notícia daria direção política a Washington, calando as vozes anti-Lula no próprio governo americano.

Um telefonema do presidente dos EUA pode levar meses de negociação. Donna ainda lembra: “Havia muita preocupação a respeito de se Bush ligaria para Lula... Ninguém duvidava que Bush ligaria para Serra se ele ganhasse... Mas ele ligaria para Lula? E o sentimento em Washington era que Bush não ligaria imediatamente, que ele esperaria. Bush ligou para [o aliado e presidente colombiano, Álvaro] Uribe três dias depois da vitória...Então nós na embaixada começamos a alertar o PT de que se Bush não ligasse na hora isso não devia ser visto como um sinal negativo, eles não deviam se preocupar. E ao mesmo tempo a gente sinalizava para Washington e dizia: ‘Vocês precisam ligar, liguem assim que possível, isso vai significar muito aqui’”.

Foi por isso que todos se surpreenderam quando, poucas horas depois da apuração, Bush fez a ligação para Lula do Air Force One. “Parabéns pela grande vitória. O senhor conduziu uma campanha fantástica. Nós acompanhamos tudo de perto. Ficamos muito impressionados com sua capacidade para gerar essa grande maioria”.  Bush não parou aí: “Se for de seu interesse que eu o receba em Washington a qualquer momento, eu terei todo prazer em conhecê-lo”. Lula aceitou a proposta de imediato: “Presidente, espero que nos vejamos até o fim do ano. Teremos muitas coisas para tratar”. A proposta não estava no script da conversa nem tinha sido discutida previamente no Departamento de Estado ou no Conselho de Segurança Nacional. Bush aceitou a sugestão brasileira de improviso, no calor da conversa telefônica. Donna pensou: “Graças a Deus. Vai facilitar muito a nossa vida”.

Não era comum para Bush encontrar presidentes eleitos. Mas a situação era especial. Condoleezza Rice, assessora de Segurança Nacional, repetia que “o Brasil é importante demais para ser ignorado”. De quebra, ela e Bush tinham respeito pelo Brasil. Diferentemente de muitos países que prometeram a eles apoiar uma invasão do Iraque, o Brasil sempre dissera que não o faria. Condoleeza lembra até hoje: “Uma coisa que contava a favor do Brasil é sempre ter sido honesto conosco a respeito de sua posição”.

Dois dias depois de conversar com Bush ao telefone, Lula encontrou Donna para uma conversa pessoal. “Estou preparado para isso”, afirmou. A embaixadora deu-lhe uma dica: o encontro no Salão Oval será igual a uma dança delicada. Cada lado vai esperar o outro antes de dar um passo. Ela continuou: o casal nem sempre concordará, daí a importância de manter a comunicação sempre fluida. Por isso, explicou ela, Lula devia prestar atenção apenas aos anúncios oficiais do governo americano, sem se preocupar com aquilo que circulasse na imprensa. Ela sabia que os níveis de confiança mútua entre as equipes de Bush e Lula eram baixos. A prioridade absoluta era controlar danos: “É importante evitar surpresas negativas”. Lula a tranquilizou: “Não haverá surpresas. Meu governo não será ideológico”.

Lula havia entendido a mensagem perfeitamente. Precisava construir a confiança dos americanos. Disse a Donna que sua relação com Fernando Henrique era ótima. Manifestou admiração por Franklin Roosevelt, Lyndon Johnson e John Kennedy. Confidenciou ter lido tradução de um discurso do presidente Johnson sobre a “Guerra contra a Pobreza” para um grupo de ativistas do PT sem revelar a eles a autoria. E foi além: “As pessoas não deviam confundir nossa admiração juvenil pela revolução cubana com nossa posição com o regime cubano atual”. Caracterizou a si mesmo como um defensor da liberdade política e econômica para todos os povos e observou que não havia liberdade em Cuba.

Lula tomou cuidado máximo com as palavras. Criticou a postura crescentemente belicista de Bush e disse à embaixadora que uma intervenção no Iraque somente seria legítima se ocorresse com a anuência das Nações Unidas. Ao fazê-lo, porém, disse a ela que os Estados Unidos eram a peça central da ordem global, daí a importância de manter tudo no âmbito da ONU.

O encontro de Bush e Lula no dia 10 de dezembro de 2002 deixou todos boquiabertos. Revelou que a direita americana poderia fazer negócios com a esquerda latino americana. Inaugurou o perfil de um Lula estadista. E, apesar de Bush não ser querido no Brasil, criou uma inédita reserva de boa vontade mútua. Ao fim do encontro, Bush e Lula decidiram encontrar-se novamente em 2003. Quando o fizeram, foi o maior encontro da história entre os dois países. A lua de mel acabou poucos anos mais tarde, sufocada por desavenças profundas a respeito de Cuba, Honduras, Irã, Iraque e comércio internacional.

Hoje, durante uma nova transição presidencial, a relação atravessa um momento difícil. Nos corredores do poder em Washington ouve-se que o Brasil é um obstáculo a ser ignorado ou punido. Em Brasília, o cochicho em alguns gabinetes diz que não vale a pena apostar na relação com Washington devido à fraqueza política de Obama, à suposta hostilidade de Hillary Clinton em relação ao Brasil ou ao suposto declínio do poder americano. Ambas as visões estão profundamente equivocadas. Um pouco de memória talvez possa ajudar.

domingo, 9 de janeiro de 2011

Vazamento é pedagógico, diz analista

Por Lucas Ferraz (Folha de S.Paulo, 03/12/2010)

Para o professor Matias Spektor, coordenador do centro de relações internacionais da Fundação Getúlio Vargas, o vazamento dos mais de 250 mil documentos sigilosos produzidos pela diplomacia dos EUA tem efeito pedagógico.  "O vazamento é educativo. O público tem acesso aos bastidores da política internacional. Mostra que o mundo não é feito de branco e preto, mas de tons de cinza."

Para o professor, a principal mensagem dos informes é mostrar que hoje a chamada guerra ao terror é o principal foco da política externa americana, lugar que, na Guerra Fria, foi ocupado pelo comunismo.  Aos 33 anos, doutor pela Universidade de Oxford, Matias Spektor -nascido na Argentina, mas criado no Brasil- é autor de "Kissinger e o Brasil" (editora Zahar), um estudo da articulação do então secretário de Estado dos EUA, Henry Kissinger, para criar uma relação preferencial com o Brasil entre os anos de 1974 e 1977.  A seguir, trechos da sua entrevista.

Folha - Qual a principal mensagem dos documentos divulgados?
Matias Spektor - A mensagem principal é que de fato a chamada guerra contra o terror é o prisma que organiza a política externa americana. Da mesma forma que o comunismo norteava a política externa americana durante a Guerra Fria.

Folha - O vazamento pode mudar a relação dos EUA com o resto do mundo?
Spektor - O impacto que vai ter, e que acho negativo, é que menos coisas relevantes serão postas no papel. Vai aumentar a informalização das trocas diplomáticas, o que é ruim. Os ministérios de Relações Exteriores precisam ter arquivos para assegurar que as iniciativas diplomáticas não fiquem à mercê das personalidades no poder. E é ruim do ponto de vista da história. Provavelmente veremos um aumento do uso de informações secretas.

Folha - Alguns documentos dizem que o Itamaraty é adversário dos EUA. Mas essa visão americana não é antiga?
Spektor - A percepção de que o Itamaraty é uma frente de resistência às iniciativas americanas no Brasil tem um longo pedigree. Na década de 60 é possível ver isso. Foi no Itamaraty que nasceu a ideia de uma política externa independente. Historicamente o órgão se organiza para aumentar a autonomia do Brasil em relação aos EUA.

Folha - Julian Assange, do WikiLeaks, disse que os documentos mostram como o mundo funciona de fato. Concorda?
Spektor - O vazamento é educativo. O público tem acesso aos bastidores da política internacional, mostra a complexidade da situação. Nenhum documento permite a conclusão de que tem o lado bom e o mau. Mostra que o mundo não é feito de branco e preto, mas de tons de cinza. É importante notar que a documentação tem um grau baixo de classificação, não são documentos quentes. São 250 mil documentos. É um banquete para historiadores.