terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

O show tem que continuar

Por Murillo Victorazzo

Superação e persistência são virtudes que foram incorporadas no imaginário do perfil do brasileiro. Não por acaso, logo caiu no gosto popular o slogan 'Sou brasileiro, não desisto nunca", de uma campanha do governo federal. Pelo mesmo motivo, o samba -nossa maior expressão cultural, sinônimo de nossa gente no exterior- produziu inúmeras músicas que nos remetem a vitórias após tristezas. Já em 1962, Paulo Vanzolini cantava: "Reconhece a queda e não desanima. Levanta, sacode a poeira e dá volta por cima...".

Nestes dias de perplexidade e tristeza que dominam o mundo do samba, após o chocante e inadmissível incêndio que destruiu quatro barracões da Cidade do Samba, não há melhor modo para unir forças do que lembrar  do inesquecível refrão.  As comunidades da Ilha do Governador, Madureira e, principalmente, Duque de Caxias já vivenciaram tragédias, dentro ou fora do carnaval, em menores ou maiores graus. Mas, pela frustração do sonho vendido de uma Cidade do Samba inatingível,  esta foi, no jargão sambista, a mais inesperada das "pernadas".

O carnavalesco do Salgueiro, Renato Lage, deixou de lado o favoritismo de sua escola e confessou a vontade de que o desfile deste ano fosse simbólico, sem campeonato. Um ideia bonita, mas irreal, haja vista os milhões de reais envolvidos em ingressos, patrocínios, direitos de imagem e interesses políticos dos polêmicos dirigentes das agremiações e LIESA.

Portanto, diante desta realidade, "o show tem que continuar", diria o belo samba do Fundo de Quintal.  Os olhos dos jurados, do mundo do samba e da crítica se voltam agora para  as demais nove agremiações que disputarão o próximo carnaval. Um campeonato que, embora machucado, vem com bons sambas e fortes concorrentes. A princípio, salvo boas surpresas, destacam-se Salgueiro, Beija-Flor e Unidos da Tijuca.

A vermelha-e-branco tijucana vem com samba e enredo excelentes, fieis à sua tradição de exaltar a Cidade Maravilhosa. A marca Renato Lage de qualidade, desta vez a serviço do "Rio no cinema", impulsiona o favoritismo. A escola nilopolitana, primeiro do ranking, por si só está sempre as candidatas. Poucas comunidades - talvez nenhuma - ensaiam tanto como ela. Junte-se a isso o gostoso samba de um enredo que homenageia o Rei Roberto Carlos e a eficiência da Comissão de Carnaval e temos a certeza de um desfile emocionante, bem cantado e esteticamente belo.

Atual campeã, a Tijuca, mais misteriosa do que nunca, aposta novamente na criatividade de Paulo Barros. O inovador carnavalesco promete impactar a Sapucaí com o enredo sobre filmes de terror. "Esta noite  levarei sua alma" é um título instigante. Se seu desenvolvimento for tanto quanto e se o samba razoável se sair bem na Avenida, o bicampeonato pode parar no Boréu. Ademais, a força natural da Mangueira, este ano falando de Nelson Cavaquinho, a Imperatriz, com outro belo samba, desta vez contando a história da medicina, e a Vila Isabel, com seu enredo sobre cabelo desenvolvido pela veterana e vitoriosa Rosa Magalhães, merecem respeito. Tais bandeiras nunca podem ser consideradas zebras. Sem rebaixamento, Porto da Pedra, São Clemente e Mocidade Independente devem servir de figuração.

Às escolas atingidas, só lhes resta emocionar o público ao entrarem na Sapucaí. E quem sabe nos fazer recordar da época em que as agremiações caiam no gosto do povo pelo samba no chão, pelo canto - enfim, pela pura paixão. Como solidariedade é outra marca de nossa gente, elas (e nós) correm o agradável risco de se surpreenderem com aplausos e ovações maiores do que os destinados àquelas escolas que surgirem como favoritas.

No caso da Grande Rio, a dor certamente é ainda maior. Atrás do sonhado primeiro título, a atual vice-campeã estava cotada entre as principais favoritas. Quis o destino, porém, que fosse a mais atingida. Ao povo caxiense, nesta hora, o conselho do grupo Revelação: "Ergue essa cabeça, mete o pé e vai na fé, manda a tristeza embora. Basta acreditar que um novo dia vai raiar. Sua hora vai chegar".

Já as comunidades da  Portela e da União da Ilha devem passae pela Sapucaí com o famoso refrão do Fundo de Quintal no coração: o baque foi gigante,  "mas iremos achar o tom. Um acorde com lindo som. E fazer com que fique bom outra vez o nosso cantar. E a gente vai ser feliz. Olha nós outra vez no ar. O show tem que continuar".  Numa (in)feliz coincidência, o samba assim se inspira nele próprio.