quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018

Militares não gostam de fazer papel de polícia, diz pesquisador

Por Natália Viana (Pública, 22/02/2018)

Entre 2014 e 2016, Christoph Harig frequentou bases do Exército no Rio, em São Paulo e Minas Gerais, conversou com dezenas de membros das Forças Armadas e fez entrevistas por meio de um questionário com 130 militares que estiveram no Haiti ou em operações de segurança interna. Tudo para sua tese de doutorado, defendida no Brazil Institute, um centro de pesquisa da renomada universidade King’s College, em Londres. “O maior grupo [de militares ouvidos] disse isto: eles não gostam de ser empregados em tarefas policiais”, afirmou, em entrevista à Pública.

Hoje doutor em estudos de segurança, Christoph acompanha, desde a Inglaterra, os desdobramentos da intervenção militar decretada pelo presidente Michel Temer na última sexta-feira e aprovada pelo Congresso esta semana. E critica: “A intervenção federal funciona para ofuscar o fato de que os militares estão no Rio há muito tempo, desde julho do ano passado, sem resultados muito positivos”. Leia a entrevista.

Como foi desenvolvida sua pesquisa de doutorado?
Harig - Comecei em 2014, e a ideia era comparar a experiência no Haiti com a do Rio e de outras Missões de Garantia da Lei e da Ordem (GLO). Eu fiz entrevistas através de um questionário com 130 membros do Exército, de variadas patentes, que estiveram no Haiti ou em missões de GLO – ou em ambos – e fiz cerca de 30 entrevistas pessoais em bases militares no centro de treinamento de GLO em Campinas, no Centro Conjunto de Operações de Paz do Brasil, no Rio e uma base em Minas Gerais, quando os soldados acabavam de retornar da ocupação na Maré em 2015.

As entrevistas corroboram um pouco o que o general Augusto Heleno, ex-comandante das tropas no Haiti, afirmou em entrevista recente. Os militares preferem ter regras de engajamento relativamente lenientes com as quais eles possam fazer ações ofensivas contra criminosos. Uma das lições que dizem ter aprendido no Haiti é que, se eles podem fazer ações ofensivas contra gangues, conseguem derrotá-las em uma região da cidade.

Mas essa atual intervenção já prevê que os militares vão ser julgados pela Justiça Militar. O que mais eles querem?
Harig - Veja, pessoas como o general Heleno… No Haiti, o Heleno deu ordens às suas tropas para atacar pessoas que estivessem recolhendo corpos das ruas. Ele disse em entrevistas que eram todos alvos legítimos. A teoria do Heleno é que os grupos armados no Rio constituem inimigos e eles podem ser mortos sem qualquer consequência para os soldados. Querem um enquadramento jurídico no qual não haja nenhuma consequência legal, um excludente de ilicitude.

Muitos dos que entrevistei para minha tese reclamaram que no Rio eles não puderam agir como no Haiti. Achavam que, se pudessem fazer o mesmo, teriam a liberdade para efetivamente derrotar as gangues. Eles querem mandados de busca e apreensão coletivos, e o governo quer dar a eles. E reclamam que, se eles não tiverem esses mandados, serão enganados pelas organizações criminosas, que escondem armas e drogas em várias casas.

Em uma audiência no Senado em junho do ano passado, o comandante do Exército, general Eduardo Dias da Costa Villas Bôas, disse que o uso das Forças Armadas em ações de segurança pública é “desgastante, perigoso e inócuo”. Ele disse, inclusive: “Nós não gostamos desse tipo de emprego, não gostamos”. Você encontrou essa mesma visão nas entrevistas que fez para seu doutorado?
Harig - O maior grupo de entrevistados também disse isto: eles não gostam de ser empregados em tarefas policiais. Eles não gostam das missões de GLO. De um lado, dizem que, se forem empregados, deveriam ter a permissão de fazer o que quiserem. Mas muito mais militares dizem que seu papel não deve ser agir contra a própria população brasileira. Grande parte diz que isso é tarefa da polícia, e eles não deveriam fazer o que a polícia fracassou em fazer.

No questionário, a pergunta era: “Você acha que as Forças Armadas devem ter um maior envolvimento com segurança pública?”. Dentre as 116 respostas, 49% disseram que não deveria se envolver nem um pouco com segurança pública; 25,9% acharam que deveriam se envolver bastante, e outros 25% acharam que deveriam se envolver muito pouco. A outra pergunta foi: “Qual é o segundo papel mais importante que as Forças Armadas devem desempenhar além de defender o território nacional?”. Recebi 86 respostas. 44.2% respondeu que devem ser as operações de paz da ONU. Apenas 24.4% – menos de um quarto – disse que deveria ser segurança pública.

Vale dizer que a pesquisa que eu fiz não representa todo o Exército; eu escolhi apenas militares que haviam estado no Haiti ou em ações de GLO. Eles acham que é muito desgastante, os soldados passam semanas em quartéis em algum lugar. É desconfortável, é perigoso.

Qual operação de GLO os entrevistados avaliaram como a pior?
Harig - A operação na Maré foi particularmente frustrante. Eles comparavam frequentemente a Maré [2014-2015] com a ocupação do Complexo do Alemão [2010] e diziam que no Alemão foi relativamente bem. No Alemão, eles tinham mandatos de busca coletivos em algumas áreas e tiveram uma percepção de ter mais apoio do governo, porque fazia parte de um plano mais amplo, a estratégia de pacificação. Eles invadiram e ocuparam o Alemão, expulsaram os criminosos junto com a polícia.

Na Maré, eles simplesmente ocuparam a área por um tempo, sem a permissão para agir ofensivamente. Só que no Alemão havia apenas o Comando Vermelho, enquanto na Maré havia três grupos brigando. Tinha também o Terceiro Comando Puro, a ADA… E os soldados ficaram no meio do fogo cruzado. Muitos dos entrevistados disseram que recebiam tiros dos dois lados. E os grupos criminosos não foram embora, ficaram onde estavam porque senão as outras gangues iam dominar o território. Então os criminosos esconderam as armas, levaram uma vida normal por um tempo e depois voltaram a agir exatamente como antes.

Bom, isso ocorreu no Alemão também…
Harig - Claro, está tudo como era antes. Mas os militares só têm uma visão limitada da parte deles da missão. No Alemão, eles viram que expulsaram os criminosos e ocuparam o território por um tempo. Mas é claro que o fracasso do governo em trazer serviços sociais levou ao fracasso geral.

A missão de Paz da ONU no Haiti, chefiada pelo Brasil (Minustah), é tida como bem-sucedida pelas nossas Forças Armadas. Mas houve diversos problemas – desde o fato de que a Minustah entrou no país após a remoção do presidente por militares americanos, passando por acusações de abuso sexuale até a importação de cólera para o país, que matou mais de 9 mil pessoas. A Minustah de fato pacificou o país?
Harig - Os militares brasileiros conseguiram manter uma imagem de que suas ações no Haiti estão separadas dos outros contingentes. Eles não assumem responsabilidade por esses erros. Não houve acusação formal de assédio sexual contra brasileiros [houve denúncias internas, segundo apurou a Pública]. Nem tudo pode ter sido investigado, claro. Mas a missão militar foi bem-sucedida. As favelas de Porto Príncipe eram dominadas por gangues, e os militares as expulsaram.

Agora, os militares aceitam que há um “efeito colateral” enquanto enfrentam o inimigo. Eles aceitam que há vítimas civis. Na perspectiva deles, é um mal necessário se eles querem mesmo eliminar criminosos. Isso é problemático do ponto de vista dos direitos humanos, porque essas pessoas não fizeram nada, apenas viviam em áreas dominadas por gangues.

Quantas pessoas morreram na primeira fase de incursões nas favelas de Porto Príncipe?
Harig - Não acredito que existam números oficiais. Os comandantes admitiram a responsabilidade por algumas dezenas de mortes nas operações de 2007. Mas organizações de direitos humanos dizem que muito mais pessoas morreram. É difícil conseguir o número real.

Na sua opinião, a Minustah conseguiu de fato derrotar as gangues na capital haitiana?
Harig - Eu acho que é majoritariamente uma impressão dos militares. Hoje, no Haiti, as gangues criminosas ainda estão lá, mas estão agindo de uma maneira diferente. O que os soldados da Minustah fizeram foi redirecionar a prevalência das gangues em certas áreas durante um certo período. Mas é assim a visão das Forças Armadas: os militares se concentram apenas nas suas próprias ações, não em ações políticas, que deveriam vir depois. Para eles, o fracasso posterior em reconstruir o Haiti não é responsabilidade deles.

Você acha que a percepção dessa operação no Haiti com bem-sucedida é um engano?
Harig - Eu li um artigo de opinião de um ex-comandante militar dizendo que eles acreditam que a maneira brasileira de fazer missões de paz, sendo simpáticos com a população local, por exemplo, contribuiu para o sucesso no Haiti. Isso, obviamente, deixa de lado o fato de que eles foram muito agressivos contra os civis e não bate com o que as organizações de direitos humanos dizem sobre os brasileiros. Mas você tem que admitir que, comparados com outros contingentes, como os nepaleses ou jordanianos, os brasileiros se comportaram bem.

Nas entrevistas que fiz, os líderes militares reconhecem, também, que a Minustah, enquanto missão, não resolveu os problemas econômicos e sociais do Haiti. Eles falaram muito que a pobreza continuava, a atuação de criminosos em Porto Príncipe… Ou seja, cumpriu a parte militar da missão, mas não conseguiu melhorar a situação geral do Haiti.

Em entrevista à Publica, o ex-ministro da Defesa Celso Amorim disse que essa é uma intervenção política, e não militar, porque não foi uma demanda das Forças Armadas, mas do presidente. Você concorda?
Harig - Sim, eu concordo. Eu diria até que os militares realmente não se sentem confortáveis com essa missão. Não é uma intervenção militar, é uma decisão do governo de colocar um general no comando porque vai render mais como propaganda. E eu acho que a intervenção federal funciona para ofuscar o fato de que os militares estão no Rio há muito tempo, desde julho do ano passado, sem resultados muito positivos.

Até que ponto essa intervenção é uma ampliação do uso já feito da GLO por governos anteriores, ou é algo novo?
Harig
 - Tem havido uma expansão contínua do uso da GLO desde o governo de Fernando Henrique Cardoso, mas até o governo de Luiz Inácio Lula da Silva todas essas operações duravam um tempo muito limitado. O governo Lula foi o que começou a ter operações de GLO de longo prazo, com a pacificação do Alemão em 2010. A aliança de Lula com Sérgio Cabral enxergou um ganho político em enviar os militares ao Alemão antes da Copa do Mundo. Isso, na minha opinião, abriu uma caixa de Pandora, porque depois dessa missão governadores de todo o Brasil passaram a ficar interessados em operações de GLO e começaram a pedir quando não era realmente necessário.

Por exemplo?
Harig - Por exemplo no Rio Grande do Norte, quando a polícia entrou em greve em 2017 – eu entendo que se chame o Exército quando não há polícia, mas os policiais entraram em greve porque estavam sem receber salário havia meses. Então usaram os militares para dourar a pílula sobre o seu próprio erro. Até mesmo o prefeito de Porto Alegre pediu assistência militar quando houve o julgamento do Lula, por causa dos protestos. 

Isso é ridículo, é um golpe de marketing. Ele sabe que como prefeito não tem o poder de chamar os militares, mas passa a impressão de que está fazendo algo. E o Rio de Janeiro está se tornando cada vez mais abusado. Em fevereiro do ano passado, o governo do Rio pediu 22 mil soldados do Exército para o Carnaval, segundo o Estadão noticiou. Os militares permitiram o emprego de 9 mil soldados.

Então, falando cinicamente, a intervenção é a consequência lógica da banalização das operações de GLO. Agora, a intervenção federal é definitivamente um passo além disso. É uma medida muito drástica para superar a responsabilidade do governo estadual por essa área. E eu acho muito perigoso, porque ela corrobora a lógica do intervencionismo militar, aqueles que acreditam que os militares seriam a solução dos problemas brasileiros.

Como o Jair Bolsonaro?
Harig - Exatamente. E o Sérgio Cabral está na cadeia por corrupção, houve vários escândalos ligados ao PMDB do Rio, muito dinheiro simplesmente desapareceu em contas privadas, então não tem mais dinheiro para saúde, educação… Nenhum desses problemas vai ser resolvido com uma intervenção federal na área de segurança.

E qual pode ser o resultado da intervenção em termos de ânimo das tropas?
Harig
- O risco de frustração é alto. Eles esperam poder obter um “excludente de ilicitude”, embora grande parte das tropas não queira estar lá. É, na verdade, um tipo de operação muito malvista pela liderança das Forças Armadas. Nas entrevistas para meu doutorado, muitos militares disseram que não gostam de ser usados como um instrumento político pelo governo – porque agora as ações deles podem até afetar o resultado das eleições.

Você acredita que há um risco de essa visão do intervencionismo militar também se expandir dentro da tropa?
Harig - Olha, eu estou entre os poucos que não acreditam que os militares querem tomar o governo. Eu acho que eles ficam muito mais confortáveis quando podem se concentrar em missões externas. E há muito receio de que, quanto mais tempo eles estejam envolvidos em missões internas, maior é o risco de que esses grupos criminosos possam corromper os soldados. 

Alguns entrevistados de alta patente se mostraram muito preocupados com o poder dos grupos criminosos de corromper. Eles sabem que os militares de baixa patente não ganham muito e sabem que os criminosos podem oferecer dinheiro. Eles veem o que acontece com a polícia e querem evitar isso

terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

Como a China se tornou uma potência militar global

Por Jonathan Marcus (BBC Brasil, 18/02/2018)

Cada vez mais, dizem observadores do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos (IISS, na sigla em inglês), são os chineses (e não mais a Rússia) que estabelecem o padrão usado por Washington para avaliar a capacidade de sua própria máquina de guerra. E esta constatação é especialmente verdadeira para a Marinha e a Aeronáutica, que são o foco do esforço de modernização da China. O IISS é sediado em Londres, no Reino Unido.

O aumento do poder chinês foi discutido na última edição do Balanço Militar, um relatório publicado anualmente pelo IISS desde o ano de 1959. O estudo é uma avaliação ampla da capacidade e dos gastos bélicos de cada país.

As mudanças nas forças armadas chinesas já estão em andamento há alguns anos. Mas agora o país asiático atingiu - ou está muito próximo de atingir - o ponto no qual se torna um rival sério para os Estados Unidos. Os americanos continuam sendo a maior potência bélica do mundo.


Antes da publicação do Balanço Militar (na última terça-feira), eu me reuni com pesquisadores do IISS para entender melhor os detalhes desta tendência. O progresso técnico acumulado pela China é impressionante em várias áreas - desde mísseis balísticos de longo alcance até caças militares de quinta geração. 

No ano passado, por exemplo, a China colocou na água seu último navio de combate - o cruzador Type 55. O poder de fogo da embarcação não fica aquém de nenhum equipamento da Otan, a aliança militar ocidental liderada pelos Estados Unidos.

Neste momento, a China está trabalhando em um segundo navio porta-aviões (o primeiro, construído totalmente pelo país, foi lançado em abril de 2017). Também está reformando a estrutura hierárquica do comando de suas forças. E, em termos de artilharia e defesa anti-aérea, já possui alguns armamentos mais avançados que os controlados pelos Estados Unidos.

Desde o fim dos anos 1990, a Marinha chinesa passou a receber transferências de tecnologia russa, e renovou a maior parte de sua frota de navios e submarinos. Os chineses também dizem que seu novo jato de combate para um tripulante, o J-20, já está em operação.

No jargão militar, o J-20 é o que se chama "jato de quinta geração". Significa que a aeronave traz a tecnologia "stealth" (parcialmente invisível a radares) e quebra a barreira do som quando está em velocidade de supercruzeiro (supersônica), entre outras coisas.

Os especialistas da IISS, porém, são céticos quanto às capacidades da Aeronáutica chinesa. "A Força Aérea chinesa ainda precisa desenvolver táticas viáveis para operar com estes aviões de quinta-geração", dizem eles, "e criar doutrinas militares capazes de mesclar os novos jatos de combate com os modelos de 'quarta geração' já existentes".

"Apesar disso, o progresso chinês é muito claro", dizem os especialistas do IISS. "Além dos aviões em si, eles agora têm toda uma linha de mísseis disparados por aviões que não devem nada aos que existem nos arsenais do Ocidente", dizem.


A edição deste ano do Balanço Militar dedica um capítulo inteiro aos desenvolvimentos no armamento aéreo de Rússia e China - segundo a publicação, um dos principais desafios ao domínio ocidental. Desde o fim da Guerra Fria, os Estados Unidos e seus aliados usaram ataques aéreos em várias ocasiões, com um número muito pequeno de baixas. Mas esse domínio, segundo o IISS, será desafiado cada vez mais nos próximos anos.

A China está desenvolvendo uma linha de mísseis de longo alcance disparados por jatos contra outros aviões (no jargão, esses projetos são chamados de "míssil ar-ar"). O alvo dessas armas são aeronaves de comando e de abastecimento que hoje estão fora de alcance. Estas últimas são peças-chave - ainda que muito vulneráveis - de qualquer ataque aéreo.

De acordo com os autores do Balanço Militar, é possível que estes novos mísseis chineses ar-ar "forcem os Estados Unidos e seus aliados regionais a rever não só suas táticas, técnicas e procedimentos, mas o próprio direcionamento de seus programas de combate aeroespacial" nos próximos anos.

Já em terra, o Exército chinês está ficando para trás no esforço de modernização, segundo o relatório do IISS. Apenas metade dos equipamentos estaria atualizada e teria utilidade para o combate, diz o estudo. Mas, mesmo nesta área, há progresso sendo feito.

A China tem um objetivo estratégico claro por trás do desenvolvimento dos novos armamentos. A ideia é que, na eventualidade de um conflito armado, o poder militar dos Estados Unidos seja empurrado o mais longe possível das fronteiras chinesas. De preferência, para o meio do Oceano Pacífico.

No jargão militar, a estratégia é conhecida como "defesa de território por negativa de acesso", ou A2AD, na sigla em inglês. A estratégia está por trás da escolha chinesa de armas aéreas e marítimas de longo alcance, capazes de colocar em risco destacamentos inteiros da Marinha dos Estados Unidos.

Então, em uma analogia com o futebol, como adversária militar, pode-se dizer que a China chegou com êxito à Premier League (divisão de elite do Campeonato Inglês). Mas esse, porém, não é o fim do impacto militar global de Pequim. O país também está perseguindo uma estratégia ambiciosa de exportação de armamentos. Com frequência, a China tem tentado vender tecnologias avançadas para outros países.

O mercado de drones militares é um bom exemplo. Esta é uma tecnologia que está se expandindo rapidamente e que põe em questão a fronteira entre os tempos de paz e de guerra. Os Estados Unidos, que foram pioneiros na área, recusaram-se a vender certos drones armados mais sofisticados para outros países, com exceção de aliados tradicionais, como o Reino Unido. A França, que já opera com drones Reaper, de origem americana, anunciou planos para armar os equipamentos.

Já os chineses nunca tiveram limitações parecidas: exibiram em feiras militares do mundo todo seus veículos aéreos não-tripulados, junto com os armamentos que eles podem carregar. Segundo o relatório do IISS, a China já vendeu estes drones (chamados de UAVs, na sigla em inglês) para vários países, incluindo Egito, Nigéria, Paquistão, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e Miamar, entre outros.

Este é um ótimo exemplo de como uma política para a área militar trouxe resultados imprevistos: a relutância de Washington em vender tecnologia deixou o caminho aberto para Pequim. É inegável também que a decisão política dos Estados Unidos acabou estimulando países que, até então, só usavam drones para fins de inteligência, a irem atrás da variante de combate.

Exportadores de armas dos Estados Unidos e do resto do Ocidente veem a China como uma ameaça comercial crescente. Na comparação com o cenário de dez anos atrás, houve um aumento importante da presença chinesa no mercado, oferecendo equipamentos de boa qualidade.

O país do extremo Oriente, como mostra o exemplo dos drones, está tentando entrar em mercados que os fabricantes ocidentais e seus governos consideram "sensíveis demais". E, como me disseram os especialistas do IISS, a China tende a levar vantagem nesta disputa. Geralmente, o armamento chinês oferece algo como 75% da capacidade do concorrente ocidental, mas por 50% do preço. Uma bela oferta.

Já as exportações de armamentos de solo chinesas são menos impressionantes. Continuam restritas aos mercados de países como a Rússia e a Ucrânia. Mas em 2014, quando o governo ucraniano perdeu o prazo de entrega de uma remessa de tanques comprados pela Tailândia, os tailandeses recorreram a um armamento chinês - o tanque VT4. E parecem ter gostado: no ano passado, a Tailândia encomendou uma nova remessa.

Os especialistas do IISS também dizem que a China está trabalhando em armas voltadas para mercados específicos - mencionam, por exemplo, um tanque de guerra leve pensado para países africanos, cujas estradas e infraestrutura não aguentam os modelos mais pesados desenvolvidos em outros países.

O papel crescente da China como fonte de armamento sofisticado é algo que aterroriza vários países e não só os vizinhos do gigante asiático. As forças aéreas ocidentais tiveram cerca de três décadas de superioridade. Mas a estratégia de "negativa de acesso" dos chineses acabou dando origem a armas que podem ser usadas para a mesma finalidade por outros países também.

Um país da Europa Ocidental pode nunca enfrentar um conflito com a China, mas pode um dia ter de lidar com armas chineses nas mãos de outros países. Como diz um pesquisador do IISS, "a percepção de que os riscos serão baixos ao intervir num território estrangeiro agora precisa ser revista", diz.

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

Ideologia acima de solidariedade

Por Murillo Victorazzo

O que será que se passa na cabeça das direções de PT e outros partidos que apoiam Nicolás Maduro - e de seus filiados adestrados - ao verem milhares de venezuelanos, crianças, mulheres, passando fome, clamando por comida em outro país?

Têm ainda a cara de pau de culpar “boicote” de empresários, não negando que de santa a direita venezuelana nada tem, e do Tio Sam, este, apesar de todo confronto retórico, principal comprador de petróleo da Venezuela? Ou vão ter a cinismo de afirmar que é exagero da “mídia golpista”? O senso de solidariedade e humanismo é menor do que suas preferencias ideológicas? Logo vocês, tão preocupados com os mais pobres e justiça social?

Conseguem se nivelar, de novo, aos "reaças" nacionalistas de direita, simpatizantes de Jair Bolsonaro, que acham que o Brasil não deve receber essas pessoas e ainda as acusam de baderna, num show de xenofobia similar ao visto na Europa e EUA. Como se o local de nascimento me diferenciasse deles. Não há complicações estruturais para a região que fale mais alto.

Nunca é demais repetir: vocês se merecem.

terça-feira, 6 de fevereiro de 2018

Incerteza: a única certeza desta eleição

Por José Roberto de Toledo (Piauí, 05/02/2018)

A maneira mais rápida de compreender o tamanho da incerteza que domina a disputa presidencial em curso é visualmente. O gráfico tipo candelabro que ilustra este texto resume todos os nove cenários testados pelo Datafolha na sua pesquisa sobre o primeiro turno. Cada candidato é uma vela: quanto mais alta, maior sua intenção de voto; quanto mais curta, maior a consistência de seu eleitor. A existência de velas muito longas é sinal de grande incerteza – por implicarem que mudanças no cenário eleitoral provocam alterações profundas no comportamento do eleitorado.

A candidatura de Lula é a primeira vela à esquerda. Além de ocupar uma posição bem mais alta do que as outras, é uma das mais curtas. Isso significa que pouco importa quem sejam seus adversários, sua intenção de voto quase não varia: vai de 34% a 37%. Na média de cinco cenários, fica em 35%. Isso indicaria presença certa no segundo turno, não estivesse sua candidatura sob risco crescente de ser apagada pela Justiça Eleitoral. Essa pequena vela determina o tamanho e a posição de todas as demais.

A maior vela do gráfico está na ponta oposta à do ex-presidente e representa eleitores sem candidato. É a segunda mais alta do candelabro porque até 32% do eleitorado diz que votaria em branco, anularia ou não saberia em quem votar quando Lula sai da lista. Se o petista reaparece, esses eleitores desiludidos caem para até 12%, tornando esta vela a mais longa e bruxuleante de todas. Seu brilho intermitente ofusca a maioria das análises sobre o significado da mais recente pesquisa Datafolha.

Grosso modo, 20% dos aptos a votar em 7 de outubro ficam sem candidato quando o nome de Lula não aparece entre as opções. Outros 15% migram de cara para algum dos outros candidatos. Mas 20% não. Demorarão mais a se decidir, mas decidirão. A julgar pelas duas eleições presidenciais de que Lula participou como cabo eleitoral, a grande maioria desses 20% vai votar em alguém. Se será num petista, dependerá do sucesso da tática usada pelo PT para substituir Lula na urna eletrônica.

Se for eficaz, Jaques Wagner (ou outro petista, como Fernando Haddad) tenderá a crescer e disputar uma vaga no segundo turno. O baiano tem 2%. No limite, poderia chegar a 22%, que é mais do que Jair Bolsonaro tem hoje quando Lula não é candidato.

Mas e se a tática petista – de insistir com Lula até a undécima hora e, por tabela, ocultar seu potencial substituto – não funcionar? Nesse caso, esses 20% tendem a se dispersar. Hoje, Marina Silva, da Rede, e Ciro Gomes, do PDT, são os nomes com maior potencial de herdarem parte desses eleitores. Isso também fica demonstrado no gráfico, pois são os dois candidatos que já têm as velas mais longas. A de Marina varia de 7% (com Lula) a 16% (sem Lula). A de Ciro, de 6% (idem) a 13% (ibidem).

Medindo de outra maneira: sem Lula, as intenções de voto em Ciro aumentam 78%, em média; e em Marina, 74%, também em média. Nenhum outro candidato a presidente ganha proporcionalmente tanto quanto eles com a saída do petista – com duas exceções. Fernando Collor, do PTC, vê sua taxa aumentar 72%; e Manuela D’Ávila, do PCdo B, mais do que dobra (108% de crescimento). Mas como ambos partem de apenas 1%, suas velas continuam curtas.

A possibilidade de dispersão do eleitorado lulista vem somar-se aos 43% de eleitores “nem nem” – que não votam nem em Lula nem em Bolsonaro – revelados pela piauí, a partir de pesquisa Ibope. Juntos, produzem um grau de incerteza inédito em eleições presidenciais desde o fim da ditadura militar. É como se quase dois terços do eleitorado estivesse oscilando para lá e para cá, como a chama fraca de uma vela exposta ao vento. Daí que se possa fazer raras afirmações peremptórias sobre esta eleição.

Uma das poucas, derivadas da pesquisa Datafolha, é que Lula e Bolsonaro pararam de crescer. Ambos bateram em limites de resistência. Não são tetos de concreto – podem, dependendo do esforço, ser empurrados. Mas o fato de os líderes de intenção de voto não terem crescido e, no caso de Bolsonaro, até oscilado negativamente, indica que ambos esgotaram o manancial de eleitores que precisavam apenas saber que eles estão candidatos para declararem voto em um ou em outro. Para furar esse patamar, ambos precisarão buscar outro tipo de eleitor, mais de centro.

Em dois meses, a média de Lula nos cinco cenários em que aparece oscilou de 36% para 35%. Bolsonaro aparece nos nove cenários pesquisados pelo Datafolha. Do fim de novembro ao fim de janeiro, sua média variou de 19% para 18%. No caso de Lula, os limites superior (37%) e inferior (34%) não se alteraram, mas no de Bolsonaro eles oscilaram dois pontos percentuais para baixo: de 22% para 20%, de 17% para 15%.

Não se deve ver nessa oscilação um sinal de derretimento da candidatura do militar reformado, como muitos políticos e analistas gostam de pensar. Bolsonaro tornou-se o porta-voz de uma porção expressiva da sociedade, que defende o “punitivismo”, o armamentismo e o conservadorismo de costumes. Enquanto for o candidato mais viável para disseminar esses pontos de vista numa campanha, Bolsonaro dificilmente cairá abaixo de 15%.

Esse limiar cria um patamar mínimo para todos os outros candidatos que pretendem chegar ao segundo turno presidencial. Ficar abaixo de 15% é ser, na melhor das hipóteses, o primeiro dos derrotados. Não paga placê. Isso porque nenhum candidato petista a presidente teve menos de 15% dos votos totais no primeiro turno de sete eleições consecutivas. Por pior que seja o momento do PT, ainda é o partido com maior taxa de simpatizantes (20% no Datafolha) e o segundo partido em número de filiados e deputados federais. Logo, 15% é a nota de corte das candidaturas presidenciais que querem ser levadas a sério.

Por enquanto, todos os demais candidatos a candidatos não pensam nisso, mas nos 50% a 60% de eleitores que imaginam estar disponíveis. Por isso tanta gente acha que tem chance de virar presidente, não importa quão baixo apareça na pesquisa. O festival de candidatos nanicos não vai durar até o começo oficial da campanha, porém. A não ser que pretendam promover uma festa canibal, com um comendo as chances do outro de crescer.

Até o momento, só Marina ultrapassa o limiar de 15% estabelecido por Bolsonaro e pelo candidato petista. Mesmo assim, a fundadora da Rede só o faz em um cenário improvável, no qual nem Lula nem Geraldo Alckmin, do PSDB, aparecem na disputa. Ciro só chega perto dos 15% quando nem Lula nem Marina (ou Alckmin) estão na lista de candidatos. Alckmin chega, no máximo, a 11%, e apenas quando nem Lula nem Marina são candidatos a presidente.

Não vale nem a pena gastar bits comentando as chances dos demais, por enquanto. Joaquim Barbosa e Luciano Huck precisam primeiro se filiar a um partido e demonstrar que estão dispostos a encarar todos os senões da vida partidária: as barganhas, os é-dando-que-se-recebe e outras coisinhas mais. João Doria está tão popular quanto seus antecessores no cargo de prefeito. As candidaturas de Rodrigo Maia e Henrique Meirelles são mais singulares do que seu dígito solitário de intenção de voto.

O que se pode concluir do Datafolha é que nunca houve eleição presidencial tão incerta desde a redemocratização. E essa incerteza ainda vai prosperar, à medida que mais candidaturas nanicas e balões de ensaio serão lançados em março para tentar cativar os 43% do eleitorado “nem nem” e sustentar o mito do Macron brasileiro. O balonismo eleitoral só deve começar a refluir em abril, quando os não-filiados e os ocupantes de cargos eletivos serão obrigados a parar de blefar e falar sério.

Mesmo assim, o destino de 20% do eleitorado que é francamente lulista permanecerá incerto e não sabido se, como previsto, novos recursos judiciais conseguirem estender a sobrevida da candidatura de Lula até a disputa entrar na sua reta final.

Se o turfe ainda serve de metáfora nesta corrida presidencial, a dupla de primeiros colocados será formada por, no mínimo, um candidato que vai atropelar nos instantes finais. Se não dois. É páreo para chibatadas, quedas de cavaleiro e uso de Photochart.

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018

Repudiar Moro não é absolver Lula

Por Murillo Victorazzo

Bastou a Folha de São Paulo noticiar que o juiz Sérgio Moro, assim como seu colega Marcelo Brêtas, recebe o famigerado auxílio-moradia mesmo tendo casa própria onde trabalha, para o débil debate ideologizado sobre o jornal recrudescer. A surreal, paradoxal, esdrúxula pecha de "Foice de São Paulo" voltou a ser usada por direitistas, fãs de Bolsonaro ou MBL. Algo como rotular de sertão o mar.

Quem consegue fugir da análise binária e maniqueísta pode não cair na esparrela de que Lula é vítima da perseguição de Moro e mesmo assim criticar a imoralidade, ainda que possa ser legal, do acréscimo de quase R$ 4,5 mil reais em seu contracheque. Casos com gravidades bem diferentes, claro.

O erro do juiz não anula seu acerto na condenação de Lula, nem o equipara a ele. Moro e outros juízes não são super-heróis, nem crápulas. Apenas fizeram seus trabalhos, merecem aplausos, o que, porém, não lhes dá salvo conduto pra tudo, não os colocam acima do bem e do mal, "intocáveis". 

A imprensa tem o dever de informar; cada um chegue à sua própria conclusão. Os três poderes, com suas castas de privilegiados, são insensíveis à realidade nacional, e o momento pra tentarmos tirar a sujeira, de todos os tipos, de debaixo do tapete é agora. Reformar o Estado é imprescindível, mais do que urgente.

Com bom senso e sem "futebolizar" o debate, pode se conseguir. Mas muitos caem neste erro: quando é publicado algo negativo contra seus "mitos" (à esq. e à dir), saem logo dizendo que é "perseguição" da "mídia" ( a "golpista" x a "esquerdista") pra ajudar o adversário, como meros torcedores fanáticos. Pouco importa se antes também  já saiu algo contra seu antagonista. Têm, além de tudo, problema de memória. Uma ideia de jogo de soma zero que inviabiliza qualquer discussão séria. Isso que dá interpretarem já sugestionados e por julgarem os outros leitores por si próprio. 

Eleitoralmente, depois do resultado unânime no TRF, caso consiga recurso e saia candidato, quem tem que convencer ser inocente é Lula, nada importando a imoralidade do ato de Moro. Podem os petistas aproveitar o caso para tentar deslegitimar seu veredito à vontade. Collor foi "impichado" por um Congresso repleto de pilantras e nem por isso seu julgamento foi ilegítimo. 

Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa, diria o filósofo. Repudiar a atitude de Moro não é absolver Lula, assim como criticar Brêtas não é inocentar Sérgio Cabral. E quem não vê problema no noticiado sobre os magistrados precisa rever seus conceitos sobre ética.