sábado, 9 de dezembro de 2023

A chance de Lula

 Por Murillo Victorazzo

Dentre as tradições da política externa brasileira que atravessaram governos de diferentes conotações ideológicas, duas são basais: a preocupação em manter os Estados Unidos distantes militarmente da América do Sul e a busca por exercer a liderança da região, papel inato do país dado seu tamanho, população, localização estratégica e força econômica relativa. Tradições relegadas apenas nos raríssimos e fracassados alinhamentos automáticos à superpotência praticados pelos ex-presidentes Dutra, Castelo Branco e Bolsonaro. É também traço histórico do Brasil ser o fiador da estabilidade do subcontinente, área reconhecida internacionalmente como "zona de paz", por, desde o final do século XIX, não ter histórico de guerra entre suas nações, exceto o conflito entre Peru e Equador, na década de 40.

Todas essas marcas passaram a estar ameaçadas desde que o ditador venezuelano Nicolas Maduro deu início a uma série de medidas que visam anexar o território guianês de Essequibo, emulando assim outros autocratas que, fragilizados internamente, procuraram em um inimigo externo o estímulo ao nacionalismo capaz de unir a população em torno de si. De uma tacada só, Maduro colocou a região sob crise incomum e importou para cá um embate entre potências capaz de desestabilizá-la profundamente. Crises, contudo, são oportunidades. E essa pode ser uma ótima para quem tem especial prazer pelo protagonismo nos palcos internacionais, como o atual presidente brasileiro.

A última semana foi repleta de atos que elevaram a tensão na América do Sul. A realização do plebiscito destinado a legitimar a aventura do ditador, a distribuição de mapas oficiais com o território já sob domínio de Caracas e a elaboração uma de lei para torná-lo província venezuelana ( a província da "Guiana Essequiba") vieram acompanhadas da criação, sob o comando de um general, de uma "zona de defesa integral" na fronteira com Essequibo.

Em resposta, os Estados Unidos anunciaram, na quarta-feira, dia 6, exercícios militares em conjunto com as débeis forças de defesa guianesas ( cerca de apenas 4 mil homens). Sobrevoarão em especial o território em disputa. Maduro, por sua vez, declarou que viajará a Moscou este domingo, dia 9, a fim de encontrar-se com Vladimir Putin, seu notório aliado. Rússia, aliás, grande fornecedora de armas para a Venezuela, com quem já realizou treinamentos militares no Caribe.

Essequibo representa cerca de 70% do território da Guiana. Lá vivem quase 300 de seus 800 mil habitantes, Território rico em ouro e diamante, voltou a ser reivindicado pela Venezuela em 1966, quando o país vizinho deixou de ser colônia britânica. Georgetown, por seu lado, considera as fronteiras ratificadas desde o Painel de Arbitragem de Paris, em 1899. A disputa, contudo, ganhou força a partir de 2015, quando no local foram descobertos poços de petróleo, explorados desde então pela multinacional norte-americana ExxonMobil. Foi após o governo guianês leiloar, em agosto, nova leva de bloco do combustível que Caracas convocou o plebiscito.

Instância mais alta da ONU para resolução de conflitos interestatais, a Corte Internacional de Justiça (CIJ) ainda analisa o mérito do litígio, provocada pela Guiana a validar a arbitragem de 1899. No entanto, dias antes do plebiscito, os juízes, por unanimidade, haviam proibido Caracas de alterar unilateralmente o status atual da região. Maduro, porém, não só não reconhece a jurisdição da CIJ como, em uma das perguntas da consulta, perguntou à população se a Venezuela deveria ou não reconhecê-la. Metade dos eleitores aptos a votar deram-lhe a retumbante vitória por 95%, o que alimenta diversas teorias e interpretações.

Não se sabe até aonde Maduro irá. A Guiana já declarou que pode invocar os artigos 41 e 42 da Carta da ONU, dispositivos que autorizam sanções ou ações militares dos Estados membros para manter ou restaurar a paz e a segurança internacionais. O objetivo do ditador venezuelano é iminentemente político. A entrada de Washington em cena vai ao encontro de seu objetivo: a "ameaça imperialista", seu eterno mantra, torna-se mais palpável, grande oportunidade para atrair setores não conservadores descontentes com seu governo. Embora críticos a maneira como se desenvolveu o plebiscito, a oposição venezuelana também considera direito de seu país reivindicar Essequibo.

Um conflito externo é ainda excelente álibi para adiar as eleições presidenciais, marcadas para o ano que vem após negociações envolvendo Brasil e Estados Unidos, um processo que incluiu a suspensão das sanções econômicas norte-americanas contra a Venezuela. Certeza por hora apenas uma: Maduro atraiu para a America do Sul poderosos (e nuclearizados) atores extrarregionais - tudo o que Brasília sempre buscou evitar.

A histórica rejeição brasileira à presença norte-americana no subcontinente vai além do antiamericanismo visceral inerente a setores da esquerda brasileira. Tem muito mais a ver com geopolítica e a necessidade de manter a superpotência distante da região a partir da qual o Brasil, como líder, busca projetar poder perante o mundo. É o papel de uma potência regional. Foi por essa razão que o ex-presidente Fernando Henrique recusou apoio ao Plano Colômbia, projeto dos Estados Unidos de financiar e enviar tropas para treinar o Exército colombiano na "guerra às drogas". A ditadura militar, apesar do apoio político de Washington e sua cooperação no combate às guerrilhas de esquerda, tampouco se mostrava favorável à presença de militares norte-americanos, especialmente quando se tratava da região amazônica.

Entre as décadas de 50 e 80, a principal ameaça teórica de conflito bélico no subcontinente deu-se entre Brasil e Argentina. As academias militares brasileiras dispendiam tempo estudando estratégias voltadas à Bacia do Prata. Ao contrário de atualmente, os comandos militares da região Sul mereciam atenção especial. A construção de Itaipu elevou as preocupações argentinas, momento no qual se escalou a tensão entre os dois países. A aproximação se iniciou com a queda das duas ditaduras militares. Detentor de grande parte da costa ocidental do Atlântico Sul, foi o Brasil, em 1986, durante o governo Sarney, quem propôs a criação da Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul (ZPCAS), iniciativa logo apoiada pelo então governo "hermano" de Raul Alfonsín. Do lado sul-americano, aderiu também o Uruguai, além de 20 países africanos.

Transformada em resolução da ONU - com o voto contrário dos Estados Unidos, que consideram a zona de paz com contornos geográficos mal delimitados, a ZPCAS, na prática, limita-se a um fórum que busca evitar a proliferação nuclear e incentivar a cooperação regional, inclusive em segurança e defesa, entre seus membros. Tinha como objetivo implícito afastar a presença militar de países externos a ela, em um ambiente de fim de Guerra Fria, quando Washington e Moscou tentavam manter o mundo dividido em duas áreas de influências.

Segundo a típica interpretação antiamericanista, Washington, diante do escasso hard power brasileiro (força bélica) e a nossa pouca afeição por engajamentos militares, aproveitaria a crise para "fincar o pé" no nosso "quintal". A realidade, entretanto, é diferente. Envolvido nas guerras da Ucrânia e Gaza, tudo o que o presidente norte-americano Joe Biden não deseja é desgastar-se em outra zona de conflito. Faz tempo que a América Latina ocupa espaço secundário na política externa norte-americana, apesar de toda celeuma que causa a Venezuela na direita do país. Defender os interesses de suas empresas, contudo, é imperativo a qualquer país. Biden já pediu a intermediação do Brasil. Não é de hoje, aliás, que Washington confia em Lula para segurar impulsos de ditador venezuelano. O conservador George W.Bush, com quem o petista tinha boas relações, considerava-o o "irmão" moderado de Hugo Chavez, o "adulto na sala".

O diálogo, porém, não esmorece o intuito do Itamaraty de afastar a superpotência da região. Na reunião de cúpula do Mercosul, realizada na quinta-feira, dia 7, Lula propôs a declaração conjunta na qual o bloco alerta que "ações unilaterais devem ser evitadas" e ofereceu Brasília para sede das reuniões entre as partes. Ao pedir pela participação da Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac) nas negociações, deixou implícito não desejar a intervenção das Organizações dos Estados Americanos ( OEA), onde os norte-americanos têm muita força.

É de se esperar que, caso o conflito escale militarmente, o Conselho de Segurança da ONU volte a mostrar a paralisia habitual, vista recentemente nas votações sobre as guerras da Ucrânia e Gaza. A depender da resolução proposta, haverá veto dos Estados Unidos ou da Rússia. Os atores regionais precisarão atuar, e neste caso Lula encontra-se em posição privilegiada, tanto pelo peso do Brasil no subcontinente quanto pela proximidade partidária com Maduro.

Apesar do histórico de complacência com o regime chavista, o presidente brasileiro sinaliza entender os riscos que a crise gera para seu governo. Por mais que os conflitos na Europa e no Oriente Médio despertem emoções no Brasil e Lula não tenha obtido êxito na tentativa de influenciá-los, o ônus foi baixo para ele. Cenário bem diferente de uma guerra em nossas fronteiras, onde os efeitos colaterais iriam além do revés para as tradicionais pretensões de nossa diplomacia. Haveria consequências práticas para os brasileiros da região. Roraima é um estado que, além de contar com diversas terras indígenas (assunto tão caro à esquerda), já encara os custos de acolher os refugiados da decadência econômica venezuelana, fluxo que tenderia aumentar, agora também podendo incluir guianeses. É ainda o único estado não conectado ao Sistema Interligado Nacional (SIN), dependendo muitas vezes da importação de energia venezuelana.

Militares e especialistas ressaltam que, diante das densas florestas que caracterizam a fronteira entre Venezuela e Guiana, estradas em território brasileiro seriam os acessos mais fáceis à Essequibo, o que leva alguns aventarem a hipótese de que, para uma incursão em larga escala, tropas venezuelanas teriam que passar por dentro do país. "Por terra, a opção da Venezuela seria se deslocar pela Ruta 10 e ingressar no Brasil, descendo até a BR-174", diz Ronaldo Carmona, professor de geopolítica da Escola Superior de Guerra (ESG) à BBC Brasil. Nesse caminho, perto da fronteira entre Roraima e Essequibo, encontra-se a Terra Indígena Raposa Serra do Sol.

O Brasil jamais aceitaria ceder território às aventuras de Maduro, o que, se por um lado, é um empecilho ao ditador, pode representar uma inédita tensão entre Caracas e Brasília. O Exército brasileiro já dobrou o pequeno contingente na área ( 200 militares) e deslocou 16 veículos blindados para um pelotão de fronteira localizado na cidade roraimense de Pacaraima.

Há 15 anos, revelou o jornalista Jamil Chade em sua coluna no UOL, Lula, em seu segundo mandato, já temia que o então ditador venezuelano Hugo Chávez invadisse a Guiana. É o que mostram documentos da diplomacia norte-americana revelados pelo grupo WikiLeaks. Segundo a CNN Brasil, o presidente teria externado a auxiliares impaciência com Maduro, ameaçando romper com ele caso a retórica dê lugar às armas - cenário, por enquanto, pouco provável. Os custos para Venezuela são muito altos: além das consequências políticas de violar o direito internacional para um país periférico ( Caracas não é Moscou ou Washington), a guerra imporia mais gastos a uma economia em frangalhos que aparenta dar alguns sinais de sobrevida após o levantamento das sanções norte-americana.

No entanto, mexer com nacionalismos é um barril de pólvora que muitas vezes sai do controle de quem os estimulou. Pessoas podem agir por conta própria, forçando líderes a fazer o que não planejavam. Após realizar o plebiscito, até onde Maduro pode ignorá-lo? Segundo a Folha de São Paulo, em novembro, antes, portanto, da consulta, emissários do venezuelano disseram ao governo brasileiro que, dependendo do resultado, ele poderia "ser forçado pelo povo" a agir.

Neste sábado, Guiana e Venezuela anunciaram uma reunião entre os dois presidentes em São Vicente e Granadinas na próxima quinta-feira. Lula foi convidado a ir como observador. Em entrevista exclusiva à GloboNews, o presidente guianês, Irfaan Ali, disse esperar que o Brasil "tenha um papel de liderança". A última guerra na América do Sul, em 1982, explodiu por culpa de um ditador em apuros internos que buscava no nacionalismo sua sobrevivência política. Foi quando o almirante Gualtieri jogou a Argentina em um conflito insano contra o Reino Unido em torno das ilhas Malvinas. Racionalmente não fazia sentido algum.

Perigando tornar-se um Galtieri de esquerda, Maduro já deixou claro não se importar com o aliado petista e ignorar a liderança brasileira na região. Não teria corrido para os braços de Putin caso pensasse o contrário. Da pior maneira, Lula e a militância petista talvez enfim tenham que admitir que Maduro é um autocrata - e, como todo autocrata, não é confiável. Antes tarde do que nunca. A bola está contigo, Lula.

terça-feira, 14 de novembro de 2023

Rio de Janeiro: a idealização e o paroxismo brasileiro

Por Murillo Victorazzo

Fundada por Estácio de Sá a fim de proteger o território além-mar português de recorrentes tentativas de invasões francesas, o Rio de Janeiro, de uma pequena cidade colonial mal planejada, apertada entre morros e o mar, foi progressivamente se tornando a principal cidade do país. Alçada a sede do Vice-Reino do Brasil em 1763, esse protagonismo se potencializou com a chegada da família real portuguesa em 1808 e sua consequente transformação em capital do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. O novo status significou o início de profundas transformações urbanas na cidade. Ocorridas por todo século XVIII até chegar ao início do século passado, essas intervenções refletiam um projeto político de nação. Com elas, entretanto, realçavam-se contradições e desigualdades sociais, uma marca que não cessaria com o tempo.

A chegada da Corte representou não apenas o início da formação de uma nova nação, mas também a construção de um império na América. As mudanças já eram visíveis nos dois meses que antecederam a chegada de Dom João VI: edificações foram desocupadas, e as casas mais requintadas requisitadas para receber a família real e a burocracia que com ela chegava - uma máquina administrativa inflada por cargos recém-criados apenas para atender recém-chegados desprovidos de renda garantida. “Alguns proprietários se defendiam da ‘invasão de fidalgos` simulando ou mesmo realizando obras perfeitamente dispensáveis. Obras eternas...”, lembram Lília Schwartz e Heloisa Starling em seu livro "Brasil, uma biografia" (2015). 

Alargaram-se ruas para a passagem de veículos de maior porte da nobreza e, com a abertura dos portos ao livre-comércio, rompendo com o “pacto colonial”, produtos e empreendimentos estrangeiros se difundiram rapidamente na cidade, diversificando o comércio local. O novo cenário atraía imigrantes, que cada vez mais passaram a incorporar à cidade novos hábitos cotidianos.

Em 1808, a cidade tinha, segundo estimativas, cerca de 60 mil habitantes, sendo metade escravos. Doze anos depois, dos 90 mil moradores, 38 mil eram cativos. “Tratava-se desde Roma da maior concentração de escravos, com a particularidade de que, no Rio de Janeiro, seu número se equilibrava com as dos descendentes europeus (...) O Rio de Janeiro parecia uma cidade da costa d´África, com desfile de grupos de diferentes origens que portavam orgulhosamente escarificações e marcas da nação no rosto e corpo”, afirmam Schwartz e Starling.

Simultaneamente, pela importância de seu porto, escoadouro dos principais produtos de exportação do país e de localização estratégica no oceano Atlântico, a cidade, antes mesmo de tornar-se capital, já era a principal via de ligação com a Europa. Com o novo status, tornava-se ainda mais a porta de entrada não apenas de produtos e mão de obra mas especialmente das ideias iluministas que pulsavam no Velho Continente. 

Era essa a cidade que, segundo a nobreza instalada e a elite, precisava “civilizar-se” a fim de condizer com o papel de capital de um vasto império transatlântico. Arquitetura é ideologia, e esta se refletiria em projetos para modernização urbana da cidade. “A vinda da família real foi o primeiro momento em que a ideia de civilização começaria a ser articulada ao território da cidade”, diz Amanda Carvalho em seu artigo "Rio de Janeiro a partir da chegada da Corte: planos, intenções e intervenções no século XIX" (2014).

Se, até 1810, o monarca se preocupara mais com medidas administrativas, a partir de 1811, o foco passou a ser esse “banho de civilização”, iniciado com a criação do Horto Botânico, o Real Teatro São João e, em 1816, a Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios. No mesmo ano, chegou a Missão Artística Francesa, formada por pintores, arquitetos, escultores, artesãos, entre outros artistas. 

No entanto, assim como a multiplicidade cultural, o ideal “civilizatório” não se limitou ao período joanino. Ao contrário, foi a marca do Rio de Janeiro imperial e do início republicano. O intuito era tornar a capital uma “Europa Tropical”, o que levou a cafeterias elegantes, bailes, teatros, palacetes, calçamento com paralelepípedos, iluminação à gás, bonés puxados a burros, amplas avenidas retas e bem iluminadas, parques públicos bem arborizados e madames e cavalheiros trajados com tecidos e modelos europeus dividirem o mesmo espaço com as estruturas escravistas que sustentavam a economia brasileira. 

Em um emaranhado cultural que contava com gente de diversas nacionalidades europeias, ganhou proeminência a cultura francesa, não por acaso origem de grande parte dos pensadores iluministas “A Rua do Ouvidor transformava-se no símbolo direto dessa nova urbanidade, segundo a qual se pretendia viver nos trópicos como nos bulevares europeus (...) O modelo era a Paris burguesa, contudo a realidade local oscilava entre bairros elegantes e ruas onde só se notava o trabalho escravo e dos libertos”, sendo essas muitas vezes ruelas mal iluminadas e com esgoto a céu aberto, explicam Schwartz e Starling.

Nesse longo processo de reforma urbana, o grande marco foi a construção, em 1905, da Avenida Central (hoje Avenida Rio Branco). Cortando de “mar a mar” a Cidade Velha, a obra demoliu cerca de 700 edificações. Também marcantes foram as implosões dos morros do Castelo e Senado, justificadas como necessárias para o “embelezamento, salubridade e ventilação” da cidade, e a canalização do mangue na Cidade Nova, em paralelo à abertura de uma larga e longa avenida, a atual Avenida Presidente Vargas.

Por todo o século XVIII, em meio a tamanhas transformações, o contraste entre o real e o idealizado se viu ainda mais flagrante, por mais que, para a Corte,  nas palavras de Schwartz e Starling, “o mundo escravo e o mundo do trabalho deveriam ser não só transparente como silenciosos". Em 1849, o Rio de Janeiro continuava a ser a maior concentração urbana de escravos no mundo desde o fim do Império Romano, em uma proporção de 41% da população. No núcleo central da Corte, onde se encontrava seus principais prédios públicos e o comércio mais importante do país, dos 206 mil habitantes, 79 mil - 38% - encontravam-se escravizados, trazendo consigo todo tipo de violência, da simbólica à física, decorrente desse sistema.

Segundo Carvalho, a pretensão civilizatória, diante do cenário real, obrigava “a marginalização da estética e das práticas que não conseguiam refletir essa mudança”. Como porta de entrada do país, as classes mais baixas precisaram ser afastadas no centro geográfico de poder da cidade. Assim foi com a demolição, para a abertura da Avenida Central, de inúmeros cortiços, fonte de insalubridade para o então prefeito Pereira Passos. Essas moradias coletivas de precárias condições sanitárias foram brilhantemente retratadas em uma das obras mais clássicas da literatura brasileira, "O Cortiço", de Aloísio Azevedo, escrito em 1890. 

As camadas mais pobres deveriam ir para os subúrbios – que já tinham uma rede de transporte público - ou para as favelas, já existentes desde 1897. O choque entre esses dois lados do Rio de Janeiro reforçava o que Sandra Pesavento, em seu livro "O Imaginário da Cidade – Visões Literárias do Urbano" (1999), chama de “aspecto metonímico da reforma urbana” – o embelezamento de um detalhe da cidade, expondo a relação entre o ´ser´ e o ´parecer`”.

Como capital, a modernização do Rio de Janeiro significava a modernização de uma nação em processo de construção. O Rio de Janeiro levaria o Brasil ao “caminho da civilização”, diz Pesavento. Em uma sociedade majoritariamente analfabeta, acrescenta Carvalho, a iconografia se apresentava como “importante instrumento para construção e fortalecimento da pátria local”. Contudo, além de idealizar uma cidade que estava longe de refletir sua realidade, o Rio de Janeiro em construção pouco tinha a ver com o país real que pretendia representar. As cidades brasileiras eram ilhas cercadas de um ambiente rural onde imperavam a escravidão, o latifúndio, o mandonismo dos oligarca rurais e a religiosidade. A antítese das ideias liberais.

O desejo de montar um aparato laico em relação as artes e a intenção de impor uma nova cultura artística” iam de encontro à tradição do país. Por exemplo, visto em muitas das edificações e obras produzidas na capital, o estilo neoclássico francês, instrumento da Revolução Francesa, contrapunha-se ao barroco de cunho católico, tradicional no Brasil a partir do interior mineiro, região que ganhara relevância econômica graças ao “ciclo do ouro”. Sua proximidade com o porto carioca, aliás, havia sido uma das razões do crescimento em importância da almejada "Paris tropical".

O Rio de Janeiro oitocentista representava uma capital litorânea que mirava a Europa enquanto dava as costas para o interior, ainda que os insumos de sua força econômica viessem de lá. Mas o Brasil urbano era uma miragem. As capitais representavam menos de 10% da população em 1890, sendo 60% desse contingente concentrado em Rio de Janeiro, Salvador e Recife. 

“Percebe-se, portanto, ao mesmo tempo a importância da corte como centro irradiador, mas também seu caráter de exceção. A moda era para poucos. A escravidão e o abandono do habitante do Brasil profundo eram e seriam até o final do reinado de Pedro II as grandes contradições de seu império que se pretendia civilizado”, argumentam Schwartz e Starling. Contradições que pouco se alterariam com a Abolição e as primeiras décadas República, durante as quais a estrutura socioeconômica permaneceu praticamente a mesma.

Se o intuito das elites e da nobreza fora o apagamento do Brasil real, a realidade se sobrepôs ao reforçar desigualdades e violências. O Rio de Janeiro, ao mesmo tempo que em muitos aspectos diferenciava-se do Brasil, continha em si os principais males do país. Idealizada como marco civilizatório nacional, até mesmo pelas restrições administrativas intrínsecas ao fato de ser capital federal ironicamente não foi a primeira região brasileira a abolir a escravidão, posto ocupado pelas “longínquas” províncias do Ceará e Amazonas quatro anos antes da Lei Áurea. 

Provavelmente o melhor retrato das especificidades contraditórias cariocas se deu no porto da cidade, em muito responsável por sua elevação à principal cidade do país. Por lá chegaram os ideais liberais do “Século das Luzes”, mas também por lá chegavam os escravos, principal símbolo do Brasil arcaico. Porto este que foi o maior mercado de cativos do mundo, recebendo, em menos de um século, um dos quatro milhões de escravos desembarcados no Brasil durante os cerca de 300 anos de escravidão. 

Assim como a beleza natural inigualável, a "Cidade Partida" a que se referiu Zuenir Ventura em seu livro homônimo (1994) está no gene carioca. Nela, o imaginário continua a se confrontar com o real. Desde sempre, em maior ou menos intensidade, o Rio de Janeiro, gostem ou não ainda o cartão postal do Brasil, foi o projeto almejado e, nas virtudes e nos defeitos, o paroxismo do país. Seja ou não sua capital. A "cidade maravilha, purgatório da beleza e do caos" cantada por Fernanda Abreu. 

domingo, 29 de outubro de 2023

Golda, um filme mais do que nunca real

Por Murillo Victorazzo*

Existem filmes bons, filmes não tão bons mas oportunos e filmes bons e oportunos. "Golda, a mulher de uma nação", lançado em agosto, é um exemplo do último caso. Em meio às tensões do episódio mais recente da interminável e triste série da vida real que coloca em choque, de forma latente ou explícita, Israel e palestinos, a obra do diretor israelense radicado nos Estados Unidos Guy Nattiv nos remete a exatos 50 anos atrás, quando outro episódio envolvendo judeus e árabes explodiu, com consequências militares, políticas e econômicas ainda mais graves.

Não foi por acaso que o grupo terrorista Hamas invadiu Israel no último dia 7 de outubro e perpetrou a barbárie que o mundo viu contra milhares de civis. Em 1973, igualmente no Yon Kippur ( "o dia do perdão"), a data mais sagrada do judaísmo, os israelenses, focados em jejuns e ida a sinagogas, viram surpresos Egito e Síria invadirem seu país em um desdobramento da Guerra dos Seis Dias, de 1967. Aquele conflito resultara na ocupação por Israel de parte dos territórios dos dois países vizinhos - a Península do Sinai e as Colinas de Golã - além das palestinas Cisjordânia e Faixa de Gaza (respectivamente sob administrações jordaniana e egípcia) e da parte oriental de Jerusalém,

A Guerra do Yon Kippur durou apenas 20 dias, mas foi o momento em que os israelenses se viram mais perto de uma derrota para os árabes, o que, na prática, significaria o fim do Estado judeu, então com apenas 25 anos de existência. Ao contrário de seis anos antes, Israel, embora ciente da movimentação perto de suas fronteiras, optou por não fazer "ataques preventivos". Em menos de dois dias, Golã e Sinai foram reocupadas pelos inimigos, com baixas israelenses muito acima das sentidas nas primeiras horas das três guerras anteriores. 

Logo caiu a Linha Bar Lev, estruturas fortificadas na margem oriental do Canal de Suez graças as quais Israel imaginava deter por pelo menos 48 horas qualquer tentativa do Egito de invadir o Sinai: em apenas 10 horas, 500 tanques egípcios atravessaram o canal. Naqueles vinte dias, a península seria palco de uma das maiores batalhas de tanques verificadas desde a Segunda Guerra Mundial. Ao final da guerra, cerca de 2.500 israelenses estavam mortos, um saldo estarrecedor para um país que, após três impressionantes vitórias, imaginava-se inexpugnável, muito em razão de sua poderosa força aérea. 

Dois meses antes, em uma palestra para oficiais da Escola de Estado Maior do Exército israelense, Moshe Dayan, então ministro da Defesa de Israel, jactara-se da supremacia sobre os vizinhos: "Nossa superioridade militar é o resultado conjunto da fraqueza árabe e da nossa força. Sua fraqueza decorre de fatores que não irão se alterar rapidamente: baixo nível de educação, tecnologia e integridade dos seus soldados, desunião entre os árabes e o peso decisivo do nacionalismo extremo". A euforia da Guerra dos Seis Dias transformava-se repentinamente em um sangrento pesadelo.

No comando do país estava Golda Meir, uma ucraniana que crescera nos Estados Unidos após seus pais fugirem dos progrons antissemitas estimulados pelo czar russo e emigrara, em 1921, para um kibutz em território palestino, então protetorado britânico. Ainda nos Estados Unidos, Golda tornou-se ativa integrante do movimento sionista trabalhista e para lá, duas décadas depois, voltou por um breve momento a fim de levantar US$ 50 milhões de dólares na busca pela viabilização do sonho sionista. A maior parte gasto em armamentos. "Algum dia, quando a História for escrita, se dirá que houve uma mulher judia que conseguiu o dinheiro que tornou possível o Estado [de Israel]", viria afirmar David Ben Gurion, primeiro signatário da declaração de independência e primeiro premiê israelense. 

Principal nome do sionismo de esquerda e seu correligionário no Mapai (movimento socialista), a legenda que, fundida a outras menores, originou o tradicional Partido Trabalhista - grupo que governou o país initerruptamente de sua fundação até 1977 e hoje encontra-se bastante fragilizado na política interna de Israel, Ben Gurion nomeia Golda, também signatária da declaração de independência, embaixadora em Moscou e logo depois ministra do Trabalho (1949-56), do Interior (1970) e das Relações Exteriores (1956-66). Em 1969, com a morte do sucessor de Ben Gurion, Levi Eshkol, ela se torna a primeira e única mulher a ocupar a chefia de governo israelense.

“Golda, assim como Theodor Herzl [fundador do movimento sionista internacional] e Ben-Gurion, foram os principais responsáveis pela constituição do Estado de Israel e pelo estabelecimento das bases do Estado israelense moderno”, explica Silvia Ferabolli, coordenadora do Núcleo de Pesquisa sobre as Relações Internacionais do Mundo Árabe (NUPRIMA) da UFRS.

É essa mulher que é muito bem interpretada por Helen Mirren (vencedora do Oscar de melhor atriz, em 2007, por seu papel como Elizabeth II em “A Rainha”) no filme que mostra seu dias mais tensos como primeira-ministra. Tensão que se somava a outro drama: a luta contra um câncer agressivo. A doença, mantida sob segredo, debilitava ainda mais a já natural frágil aparência de um senhora de 75 anos. Frágil aparência que escondia a habilidade política e a firmeza com que tratava seus adversários.  

Em uma época em que as mulheres ainda engatinhavam na luta por maiores espaços políticos, seu pulso forte levou a alguns estereótipos que hoje podem parecer sexistas, mesmo que com intuitos elogiosos. "Golda reúne as qualidades de uma mulher - intuição, perspicácia, sensibilidade, compaixão, com a de um homem - força, determinação e praticidade", disse certa vez um diplomata israelense. "Golda Meir é o único homem de meu gabinete", chegou a declarar Ben Gurion.

Com excelente caracterização e adotando precisamente os contidos tom de voz e gestos que a caracterizavam, Mirren consegue exprimir bem essa personalidade: entre tarefas de casa, pesadelos, vômitos e choros com os números de mortos anotados em uma singela caderneta, a firmeza necessária para liderar um ministério de um país em guerra; pressionar Henry Kissinger, o poderoso secretário de Estado dos Estados Unidos, a apoiá-la com armas, sem demonstrar temor com um possível conflito direto com os soviéticos; e, sem meias palavras, ameaçar dizimar 30 mil militares egípcios cercados ( fazer “um exercito de 30 mil viúvas”). A trama mostra, por outro lado, sua insegurança nas tomadas de definições no campo de guerra: "Eu não sou chefe militar, eu sou uma líder política".

O filme, embora sobre uma guerra, não é propriamente um filme de guerra. Cenas do front de batalha se resumem a algumas poucas de arquivo e uma em que um aterrorizado Mosh Dayan vê do alto de um helicóptero suas tropas serem bombardeadas inclementemente pelos sírios em Golã. O recurso que Nativv utiliza para melhor evidenciar os horrores da guerra são áudios verdadeiros de militares no campo de campo de combate, utilizados na ficção como comunicação com a sala de comando, sempre sob a escuta dos chefes militares e de uma Golda ou angustiada e impotente ou discretamente aliviada. 

O atordoamento de Mosh Dayan, até então considerado um herói nacional e brilhante estrategista militar, é uma das cenas que mais chamam atenção. Desesperado, chega a aventar o uso de armas nucleares, de pronto descartada pela primeira-ministra, passagem confirmada por Abraham Rabinovich, autor de um livro sobre aquela guerra. "Dayan teve uma crise nervosa. Tudo o que ele havia planejado ou imaginado havia falhado. E ele começou a falar às pessoas do seu entorno sobre o risco da possível queda do Terceiro Templo [ o Estado de Israel], deprimindo a todos à sua volta", conta Rabinovich ao serviço em espanhol da BBC . Embora o filme não retrate, hoje muitos historiadores também confirmam que Golda chegou a pensar em suicídio no segundo dia do conflito.

"Golda" é acima de tudo um filme político, no qual se reconstitui, além das negociações com Kissinger e o presidente egípcio Anuar Sadat, as inúmeras reuniões de gabinete, onde ela, junto a seus assessores militares, passa do pânico da aniquilação até mesmo pessoal à formulação da estratégia de ataque no Canal de Suez que muda os rumos da guerra. Uma vitória não apenas militar mas fundamentalmente política, por abrir espaço para o Acordo de Camp David, em 1978, dois meses antes de sua morte. Junto à oficialização da paz entre Cairo e Tel Aviv após 30 anos de beligerância, o Egito, em troca da recuperação do Sinai, tornava-se o primeiro país árabe a reconhecer formalmente o Estado de Israel como legítimo e soberano.

No entanto, os altos custos humanos e a erosão na imagem de invencibilidade não se apagam, e talvez aqui more um dos pecados do filme: não melhor explicar o que levou Israel a optar por não fazer ataques preventivos. A trama limita-se a mostrar Golda falando a Kissinger sobre "respeito a seu presidente". De fato, além de desejar evitar novamente a pecha de agressor a fim de não inviabilizar ajuda externa caso necessário, havia tal comprometimento com os norte-americanos, preocupados com as consequências de uma nova guerra para suas relações com os países árabes. A Guerra Fria com a União Soviética pesava mais para eles.

Washington só aceita a ceder armamentos para seu aliado, ajuda fundamental para a reversão de tendência da guerra, quando fica clara a ajuda militar de Moscou a Egito e Síria. Em retaliação, os países árabes produtores de petróleo fazem um profundo corte na oferta do combustível, dando origem, em 1974, ao "choque de petróleo" que causou inflação, recessão e desemprego nos países importadores do produto.

As causas dos supostos erros no serviço de informação são tangencialmente abordadas, embora tenham sido o principal motivo a levar Golda a depor em uma comissão após a guerra, cena a partir da qual o filme se inicia. Ganha ainda menos destaque o enorme desgaste político interno que se sucede, resultando em sua renúncia em abril de 1974. "Na manhã daquela sexta feira [6 de outubro], eu deveria ter ouvido as advertências do meu próprio coração e ordenado uma convocação (...) nunca mais serei a pessoa que era antes da guerra do Yon Kippur", escreveu ela em sua autobiografia.

A pouca profundidade ao lidar com certos aspectos da guerra e do contexto político em um filme de apenas 100 minutos talvez explique por que, em entrevista à CNN, o roteirista Nicholas Martinou recomenda aos telespectadores lerem mais sobre o conflito. “É difícil fazer com que alguém que não sabe nada passe a saber o suficiente para entender completamente a história. Pode ser um filme que as pessoas precisem ver algumas vezes antes que possam entender por inteiro”, diz.

Seja como for, em um momento em que a resposta de Israel a um ataque militar (diferenciando-se, claro, que, desta vez, em forma de injustificável terrorismo) é novamente colocada sob escrutínio da opinião pública internacional e o atual primeiro-ministro, Benjamim Netanyahu, é ferozmente criticado interna e externamente por sua conduta antes e depois do ataque terrorista do Hamas, o filme é oportuno por mostrar como o conflito árabe-israelense é um círculo vicioso do qual não se consegue escapar, levando a episódios que, se não iguais, são bastante semelhantes. 

Diante da equivocada polarização ideológica sobre o atual conflito, o filme também é oportuno porque, embora passe longe desses pontos, falar de Golda Meir é evidenciar que ser de esquerda nunca foi necessariamente ser comunista, e sua aversão aos soviéticos comprova. Serve ainda mais para, fundindo a cabeça de alguns à direita e à esquerda, refrescar a memória sobre como a esquerda tem papel protagonista na criação e desenvolvimento do Estado de Israel. Se, além de tudo já dito, não são os kibutz, símbolo do país, um projeto de cunho socialista? 

Em linhas gerais, um embate acerca de Israel permeia os debates acadêmicos: o conflito decorrente de sua fundação é resistência a colonialismo ou um choque de nacionalismos? Israel é ou não um caso de settler colonialism? O conceito de sionismo vem sendo ressignificado como discurso político e leva parte da esquerda, por considerar colonialismo impossível de coexistir com sua ideias, a negar a existência do sionismo de esquerda e flertar com o antissemitismo ( mesmo que camuflado sob a retórica do "antissionismo"). Segmentos à direita e à esquerda, explícita ou implicitamente, negam ou minimizam o direito de existência de um dos lados como Estado. Ignoram que não é apenas na Questão Palestina que nacionalismos dão luz a contradições ideológicas. E Golda é um ótimo exemplo dessa contradição. 

Ainda que considerada hoje uma estadista por muitos em Israel e outras partes do mundo, Golda foi uma figura controversa. Durante seu governo, a expansão dos assentamentos na Cisjordânia e a Faixa de Gaza foi acelerada, pois, para ela, o controle desses territórios considerados estratégicos era essencial para a segurança de Israel. Em entrevista ao The Sunday Times assim que se tornou premiê, ela já havia ido além e disparara: "Não há algo assim como palestinos (...) Não é como se houvesse um povo palestino na Palestina considerando a si mesmo como um povo e nós viéssemos, os jogássemos fora e tomássemos deles o seu país. Eles não existem e têm em Arafat, nascido no Egito, o seu líder." 

Quem dera o mundo fosse tão simples a ponto de podermos tudo separar em uma caixinha preta e outra branca. Por focar na guerra, o filme opta por um enfoque positivo sobre a primeira-ministra. Certeza só há uma: para o azar dos israelenses, Netanyahu não é Golda Meir.

*Murillo Victorazzo é jornalista, com Especialização em Política & Sociedade (Iesp-UERJ) e MBA em Relações Internacionais (FGV-Rio)

terça-feira, 30 de maio de 2023

Lula dá outro tiro no pé

Murillo Victorazzo*

Até Jair Bolsonaro chegar ao poder, a integração regional, embora em intensidades e perfis variantes, era objetivo de todos os governos brasileiros desde a redemocratização. Foi com José Sarney que nos aproximamos da Argentina, um distensionamento expresso na assinatura do Tratado de Integração, Cooperação e Desenvolvimento (1988) e na criação da Abacc (Agência Brasileiro-Argentina de Contabilidade e Controle de Materiais Nucleares). Os dois países saíam de ditaduras militares, durante as quais o relacionamento fora marcado por desconfianças mútuas sobre programas nucleares e reclamações argentinas sobre construção da Hidrelétrica de Itaipu próxima à sua fronteira, temor  influenciado pela tese que correlacionava a hegemonia da região ao domínio do Rio da Prata. Um período em que a rivalidade ia muito além dos gramados: na caserna de ambos os lados, a possibilidade de um conflito bélico era pauta de estudos primordial. 

O acordo foi o embrião do Mercosul, concretizado com o Tratado de Assunção, assinado em 1991, durante o governo Collor. Com Fernando Henrique, o Itamaraty optou pelo uso do termo América do Sul, e não mais a difusa América Latina, em suas proposições e debates, redução de escopo conveniente para evitar a concorrência do México, que, ademais, trazia junto consigo a simbiose com Washington. Lula, em seus governos anteriores, liderou a criação da Unasul e, além de ampliar, aprofundou os mecanismos e instituições do bloco do cone sul. Neste contexto histórico, incluía-se o encontro entre os presidentes sul-americanos realizado nesta terça-feira, dia 30, em Brasilia.

Os esforços de décadas passadas tinham uma razão de ser: tornar primeiro o Mercosul e depois todo o subcontinente uma plataforma de projeção de poder do Brasil perante o mundo. O líder de um bloco regional tem mais cacife na arena internacional, pois representa mais países e assim agrega mais recursos de poder. Integração física significa exportação de serviços para países mais pobres economicamente. Acordos intrarregionais resultam em ganhos comerciais. Isto sem falar dos efeitos por si só positivos de um maior intercâmbio cultural com países diferentes em algumas coisas mas semelhantes em tantas outras e que, por séculos, nos viram virado de costas para eles ou temeram propensões "imperialistas". Sim, pode soar exagerado, mas perguntem aos paraguaios, por exemplo, o que sentem pelo gigante vizinho principalmente quando está em jogo a binacional Itaipu.

No entanto, com sua política externa de rede social, repleta de espantalhos ideológicos, Bolsonaro rompeu esse consenso. A fim reverberar seu anticomunismo de botequim ou o “antiglobalismo”, rompeu relações diplomáticas com a Venezuela, essa obsessão da direita nacional, e se resumiu a ir à reboque da Casa Branca de Trump. Contra outras ditaduras, obviamente nada fez. Ao desprezar, por esse alinhamento, a integração regional e o papel inato de liderança do Brasil na região, abriu flanco ainda maior para quem seus apoiadores tanto ojerizam, a China, cuja presença na América do Sul vem aumentando progressivamente, ao mesmo tempo que, por diversas razões, os Estados Unidos não a colocam mais na lista de prioridades. Exceto para o combate ao narcotráfico e retóricas eleitorais republicanas (em especial na Flórida) sobre a seletiva defesa da democracia em Caracas e Havana.

Enquanto o fluxo comercial da Venezuela com o Brasil caiu a um quinto do registrado cinco anos atrás, o com a China não para de crescer - tendência, por sinal,  em todos os demais países da região, seja à esquerda ou à direita. Pequim é hoje o principal parceiro comercial de 11 destas nações. A historicamente mais alinhada aos Estados Unidos entre nossos vizinhos, até na Colombia os chineses já encostaram no topo. Sem nem consulado em Caracas, os cerca de 20 mil brasileiros que vivem ou viajam por lá se viam abandonados diante de até pequenos imprevistos burocráticos.  

Em busca da retomada do protagonismo regional, Lula acerta em se reaproximar da Venezuela, país rico em diversas fontes de energia, por exemplo. Apesar da histeria seletiva de alguns, nada há de errado em receber Maduro em Brasília, assim como inúmeros chefes de Estados democráticos no mundo fazem com outros ditadores. Até Washington vem emitindo sinais de flexibilização das sanções, de olho no petróleo, agora mais escasso devido ao rompimento com Moscou.

A vinda de Maduro se explicava ainda mais por se tratar de uma reunião multilateral que contou com a presença de todos os 12 presidentes, evidência de sucesso de uma iniciativa colocada em pratica em apenas cinco meses de governo. Um êxito que mostra a carência por coordenação dos países vizinhos, cientes do (não é de hoje) peso político, econômico, geográfico e demográfico do Brasil, e o poder de atração do atual presidente da República mesmo entre governantes de centro-direita. Queiram ou não, Lula é uma marca forte da política latino-americana há mais de três décadas, especialmente quando se trata de integração.

No entanto, foi o próprio Lula quem conseguiu ofuscar esse sucesso graças a mais uma declaração injustificável. Retirar a Venezuela do isolamento não significa afirmar que o caráter ditatorial do regime de Maduro é "narrativa". Havia várias formas de driblar-se o assunto publicamente, caso não desejasse apontar o dedo na ocasião. Muitas vezes seus argumentos foram respeitar a autodeterminação dos povos ou dizer que acusações diretas de nada adiantavam, pois "rompiam pontes". Sob o ângulo da realpolitik, fazia sentido. Agora não mais. O que ganhará destaque na opinião pública, dentro e fora do Brasil, não será o êxito do relevante encontro, mas a verborragia presidencial, que mereceu criticas até do esquerdista presidente chileno Gabriel Boric.

Se não pelo juízo de valor moral, Lula deveria, no mínimo, ter feito melhor cálculo político. Nada tem a ganhar com posicionamentos desse tipo, exceto os aplausos dos radicaloides de esquerda, anacronicamente presos ao fetiche "anti-imperialista" de centro acadêmico e célula clandestina da década de 60. Assim como Bolsonaro perdeu qualquer chance de mediar - se é que queria - a crise venezuelana ao romper virulentamente com um lado, sua fala o enfraquece perante a oposição vizinha, caso, como demonstra, almeje liderar algum processo de negociação.

Internamente, vítima, entre outubro e janeiro, do maior ataque à democracia no Brasil desde o fim da ditadura - uma tentativa de golpe por parte do bolsonarismo, com direito a atentado a bomba fracassado, minuta e invasão, sob pedidos de intervenção militar, das sedes dos três Poderes, Lula faz o jogo desses algozes ao reforçar os espantalhos e rótulos que setores do centro e a direita lhe imputam - essa direita que se diz defensora da “liberdade”, mas hipocritamente nada fala sobre as históricas exaltações de Bolsonaro a Ustra, Médici, Geisel, Pinochet, Stroessner e recentemente seu aliado protoditador húngaro Orbán. Que hoje grita em zaps, tweets e stories, mas nem um pio em rede social deu quando o então presidente chamou de "quase irmão”, com quem teria “muitas afinidades", o príncipe saudita, notório assassino de uma monarquia absolutista teocrática, de quem, aliás, recebeu R$ 16 milhões em joias. Ou quando exaltou em Moscou, horas antes da invasão da Ucrânia, as "qualidades" de Putin, com quem disse compartilhar "valores comuns, como a crença em Deus e a defesa da família". 

No jogo internacional, a importância dada à democracia varia em função principalmente de interesses econômicos e geopolíticos. Para militantes e "tudólogos" de rede social, o que, no fundo, mais pesa é a coloração ideológica, seja por ignorância, adestramento ou cinismo.

quarta-feira, 3 de maio de 2023

PT: um irônico e inédito caso de sucesso

Murillo Victorazzo*

É bem possível que, ao ler o título desse texto, muitos já imaginem nele alguma apologia ao presidente da República e seu partido. Em era de histerias (pseudo) ideológicas de rede social, interpretação de fenômenos são confundidos com exaltações ou depreciações. Paciência. Queiramos ou não, a constatação inegável é que todas as eleições presidenciais ocorridas no Brasil desde a redemocratização se definiram a partir do PT. Em todas, ou esteve nos segundos turnos disputados ou foi o principal adversário do vencedor em primeiro turno.

Fernando Collor, Fernando Henrique, José Serra, Geraldo Alckimin, Aécio Neves ou Jair Bolsonaro. Um liberal, quatro social-liberais de um partido com autoimagem social-democrata, e a personificação do mais bruto reacionarismo, o ponto mais extremo da direita nacional. Talvez com exceção do "pai do Real", eleito fundamentalmente graças ao sucesso do plano de estabilização monetária, todos, em suas vitórias ou derrotas, personalizaram o antipetismo- a versão atualizada do centenário antiesquerdismo - para tentar chegar ao Planalto. O protagonismo não é fortuito, e quem deseja entender o porquê precisa ler "PT, uma História", do sociólogo Celso Rocha de Barros, lançado meses antes das eleições do ano passado, quando o partido venceu a quinta das noves disputas presidenciais.

Quem é costumeiro leitor de Celso, seja em redes sociais ou coluna na Folha de São Paulo, sabe que, além da afabilidade mesmo diante do contraditório, a ironia inteligente e as tiradas provocadoras são marcas suas. É antes de tudo um excelente frasista. Em seu perfil no Twitter, deixa bem clara sua autoidentidade: "flamenguista, sociólogo, meio esquerdoso". O advérbio não é à toa. Filiado ao PT durante a década de 90, Celso, se não esconde seu lugar no espectro ideológico, tampouco se furta ignorar fatos que militantes geralmente preferem negar ou minimizar. Suas posições sobre economia fazem-no, muitas vezes, entrar em choque com a esquerda clássica - e por isso mesmo é uma voz fundamental no campo progressista. Tendo como fontes entrevistas a ele, artigos acadêmicos, livros, notícias e, claro, sua percepção e vivência dos fatos, todas essas características são notadas nas 365 páginas de um livro escrito sem o cacoete pernóstico característico de alguns intelectuais, o que o torna mais prazeroso de ser lido

Em 'Os partidos políticos" (1951), clássico da Ciência Política, Maurice Duverger cunhou os termos "partido de quadro" e "partido de massa" para distinguir esse tipo de ação coletiva institucional. O quadro analítico era a Europa do final do século XIX, mas eternizou-se como baliza atemporal para qualquer parte do mundo. Liberais ou conservadores à época, os primeiros são formados por integrantes da elite política, com pouca ou nenhuma base social e constituídos a partir dos Parlamentos, o que explica a reduzida influência de seus diretórios sobre os legisladores. Foi sob esse tipo de partido que se conduziu o Brasil desde o Império, mesmo quando o trabalhismo varguista comandou o país, época em que a relação direta com as massas típica do populismo era o principal modus operandi,  apesar da existência do PTB, sigla criado de cima para baixo e atrelado ao sindicalismo tutelado pelo Estado.

A ditadura militar obviamente marcou o paroxismo desse nosso traço ao reduzir o sistema partidário à ARENA, alicerce do regime, e o MDB, uma frente oposicionista desconectada de grande parte da sociedade tanto por culpa sua como pelas restrições impostas pelos militares. Foi nessas circunstância, com demandas reprimidas e crescimento pelo mundo de causas progressistas distintas à da esquerda tradicional que, no crepúsculo da repressão, surgiu o primeiro partido de massas no país. Como descrito por Duverger, um partido nascido extra-parlamento e, por isso, com direção influente sobre seus parlamentares, de forte conotação ideológica e mobilização de um vasto eleitorado até então excluído. Nas palavras do historiador britânico Perry Anderson,  o PT é o "único partido de massas criado a partir do movimento sindical desde a Segunda Guerra".

Ao contrário do senso comum propagado pelos setores mais conservadores, o PT nunca foi um partido comunista, isto é, de matriz marxista-leninista, ainda que houvesse marxistas entre seus fundadores. É verdade que essas diferenciações são inócuas aos que supostamente se informam por zaps e canais bolsonaristas ou cursos de Olavo de Carvalho, para quem todos que não comungam do seu reacionarismo são "marxistas culturais". Mas não custa nada esmiuçar: nascia, em fevereiro de 1980, uma legenda socialista, mas um socialismo vago, um "socialismo democrático" que rejeitava tanto o "socialismo real" do Leste Europeu como a social-democracia.

Esse caráter difuso se devia aos inúmeros grupos que o fundaram. Embora fruto de uma iniciativa do "novo sindicalismo", deveu-se ao catolicismo progressista grande parte de sua rápida capilaridade na sociedade civil. "É difícil exagerar a importância das CEB [Comunidades Eclesiais de Base] para o PT [...] A Igreja Católica chegava em inúmeros lugares em que nenhuma organização de esquerda jamais pusera os pés", afirma Celso. Era, além do mais, muito mais complicado para a ditadura reprimir associações ligadas ao clero do que outros meios e grupos de resistência. Em paralelo, ajudou a compô-lo organizações marxistas menores, principalmente as trotskystas Libelu e Convergência Socialista, intelectuais (alguns recém anistiados vindos do exílio) e movimentos sociais como os feminista, negro, gay e ambiental, muitos deles reflexos da "revolução cultural" de 1968, na Europa.

Além do perfil social, o PT nascia disposto a ser diferente também em sua organização. O intuito era ser um partido-movimento, consequência do "basismo" desses movimentos e organizações, da nova concepção de atuação sindical e, de certa forma, do perfil dos trotskystas. Trotsky, recordemos, fora um grande crítico da burocratização do estado soviético e da estrutura monolítica do Partido Comunista. Operariado e classe média assim se misturavam, em uma conjunção social simbolizada pelos locais de lançamento e de fundação do partido: uma assembleia sindical no ABC e o colégio Sion, no bairro paulistano de Higienópolis.

Esse novo partido de esquerda descentralizado e, portanto, "antiburocrático", havia sido pauta de negociações com membros da esquerda do MDB, como o então sociólogo Fernando Henrique Cardoso, candidato ao Senado apoiado por Lula em 1978. Em artigo no jornal Versus, publicado ainda em 1977 e reproduzido no livro, o futuro presidente da República vislumbrava uma legenda como "uma confederação de movimentos sociais, relativamente independentes, enraizado em suas bases. As CEB, as associações de bairros, sindicatos autênticos, imprensa alternativa, movimento estudantil, movimento de minorias, clubes ecológicos [....] Estes antecipariam na sua vida interna o tipo de Estado e de sociedade democrático, participatório e socialmente igualitários".

Os partidos social democratas europeus haviam se formado essencialmente a partir dos sindicatos. É essa a base social que os caracteriza no Velho Continente. Entretanto, ressalta Celso, Fernando Henrique, em seu artigo, entendia os sindicatos como apenas mais um componente da legenda almejada, razão pela qual evitava denominá-la assim. Fazia sentido, pois, dada a industrialização tardia no Brasil, a classe operária ainda não se apresentava forte o suficiente para exercer papel político igualmente relevante. Até que vieram as históricas greves de 1978-79. O “novo sindicalismo” desafiava não apenas a ditadura militar como prognósticos acadêmicos. "Foi quando a teoria começava a desistir do proletariado que ele enfim entrou na briga e mudou completamente o cenário", lembra Celso. O PT começava a surpreender. 

Os custos da saída de um partido consolidado, as dúvidas sobre a viabilidade dessa ampla sigla de (centro) esquerda e da conveniência em dividir a oposição acabaram por afastar, com pouquíssimas exceções, os peemedebistas. Desconfianças entre sindicalistas, intelectuais e políticos mostraram ser mais um fator complicador para a concretização da ideia. O operariado, liderado por Lula, temia ser instrumentalizado. Não bastava mais ser o "braço sindical" de um partido. Chegava a hora de um partido que fosse seu "braço político". Contudo, se não foi como vislumbrado, o PT tampouco nasceu restrito a ele. E ao iniciar o livro por Rosalina Santa Cruz, Celso deixa claro seu objetivo inicial: frisar justamente essa diversidade e abordar a complexa interação entre movimentos sociais, sindicatos e organizações de esquerda.

Presa por integrar a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), de Carlos Lamarca, Rosalina iniciou sua militância política no movimento estudantil através da Juventude Católica. Dizimadas as guerrilhas, foi em um dos movimentos de periferia de São Paulo coordenados leigos ligados à Igreja que reformulou sua atuação política. De início, passou a ensinar donas de casa pobres a fazer tricô no "Clube das Mães", associação da mesma região e com o mesmo público alvo que o do "Movimento do Custo de Vida", criado pela ex-freira Irma Passoni. O final da década de 70 marcou o início do processo hiperinflacionário. A carestia entrava no centro das preocupações das famílias. Rosalina, Passoni e tantos outros integrantes desses movimentos migrariam para o PT tão logo ele foi lançado.

Assim foi com outras associações de defesa de moradia e bens públicos, todas com digitais do catolicismo leigo, cuja relação com a esquerda só é estranha a quem despertou para a política nos tempos atuais, quando redes sociais da extrema-direita propagam histerias sobre “perseguição" petista a Igrejas, mote, contudo, nada inédito. Assim agiram setores conservadores contra João Goulart em suas "Marchas com Deus pela Família e Liberdade" dias antes do golpe militar de 1964. O gene redistributivista da esquerda encontra eco na “opção preferencial pelos pobres” vista no Evangelho e reafirmada na Doutrina Social da Igreja Católica, sistematizada pelo Papa Leão XIII, em 1891. "Em nenhum lugar do mundo a passagem do catolicismo social para o esquerdismo católico se desenvolveu tanto quanto na América Latina. Não foi por caso, somos o lugar mais desigual do Ocidente Cristão”, diz Celso, para quem a mesma razão explica a Teologia da Libertação ter sido a principal contribuição da região para o pensamento católico.

Embora tendo apoiado o golpe, a Igreja Católica foi progressivamente se afastando do regime militar. Com papel importante no abrigo a perseguidos políticos, o recrudescimento da violência estatal levou ela própria a ser vítima, já que muitos dos lutavam por reforma agraria eram religiosos católicos. É bem verdade que essa mistura de "Deus com Marx" sempre foi vista com lupa pelo clero, dado o materialismo histórico do filósofo alemão ( a "religião é o ópio do povo"), preocupação que aumentaria conforme as pautas comportamentais foram ganhando peso na esquerda. Novas pautas que afetariam os próprios militantes marxistas, formados pela ótica classista e ainda motivo de debate interno entre a esquerda tradicional e a que entende gênero e raça como determinantes de classe e, portanto, abordagem fundamental para o combate à pobreza e desigualdade. O PT representa ao mesmo tempo a articulação e a tensão entre essas lutas.

"Depois que as mulheres pegaram em armas, mandá-las de volta pra cozinha não foi fácil", afirma Celso, utilizando-se como exemplo a repaginação de Rosalina: "A experiencia de conversar com mulheres pobres e de origem social e educacional completamente diferentes mostrou as guerrilheiras que havia problemas especifico das mulheres, problemas que cruzavam a fronteira de classe”. O feminismo entrava em sua atuação, um aprendizado difícil também para as donas de casa pobres que haviam chegado ao ativismo político através do catolicismo e "se chocavam com cenas feministas de classe média, engajadas também na luta dos direitos homossexuais, beijando outras mulheres". Participar de um jornal voltado para a nova causa foi consequência natural. De forma semelhante, é revelador o trecho em que o livro narra as dúvidas dos integrantes do Somos, primeiro movimento de defesa dos direitos dos homossexuais, sobre participar de uma assembleia sindical no ABC. Como seriam recebidos por 50 mil operários? Para a surpresa positiva, aplaudidos.

 Esses choques e o receio de serem aparelhados pelas organizações de esquerda marcaram os movimentos sociais que formavam o PT, primeiro partido a trazer para dentro de sua estrutura a agenda da igualdade racial. A criação de um núcleo específico em 1982 decorria da aproximação com o Movimento Negro Unido (MNU), o grande responsável por mobilizar a sociedade civil contra o racismo em um país que dormia sob o autoritarismo de direita e o mito da democracia racial. Criado em 1979, seus líderes em grande parte representavam uma geração de pretos que começava a entrar nas universidades. Como de praxe do movimento estudantil à época, muitos pertenciam ou tinham contatos com organizações de esquerda, especialmente a Libelu e a Convergência Socialista. Fundadora do MNU e principal intelectual preta do Brasil, Lélia González foi um dos nomes integrantes do primeiro diretório nacional do partido.

Mas, se havia de fato o risco de aparelhamento, esses movimentos, por outro lado, puderam aproveitar os contatos dessas organizações com políticos, intelectuais e jornalistas. "Os ativistas se utilizaram da rede social e estratégias politicas da esquerda brasileira para construir uma ação coletiva antirracista, explica, no livro, a também socióloga Flávia Rios, hoje uma das principais estudiosas sobre assuntos raciais. "No inicio eram as organizações de esquerda que julgavam que tipo de feminismo era aceitável para o marxismo ortodoxo. Com o tempo, as feministas, operários, militantes negros, de bairro e os LGBTQI+ é que começaram a discutir que esquerda era aceitável pra eles. Aí, sim, começa a história do Partido dos Trabalhadores", sintetiza Celso. 

Como amostra dessas mudanças, o livro cita os deputados Benedita da Silva (RJ) e Paulo Paim(RS). Primeira constituinte negra do Brasil, a empregada doméstica Benedita havia sido eleita como representante dos moradores de favelas. Paim, um metalúrgico preto, era um nome do movimento sindical. Foi somente no decorrer do tempo, após o contato com o movimento negro dentro do partido, que ambos trouxeram as questões raciais para o centro de suas atuações no Congresso Nacional. Uma relação, porém, que nem sempre foi harmônica: em 1983, Lélia migra para o PDT em protesto contra o que considerava "racismo por omissão" da cúpula partidária. Suas críticas ao pouco espaço para essas questões nas propagandas e manifestos do PT fariam com que, em vez de um núcleo, nele fosse criado uma Secretária de Igualdade Racial.

Situação semelhante se deu com o ambientalismo. "Assim como a questão racial entrou no PT com o MNU, mas também porque trabalhadores negros haviam entrado, a questão ambiental entrou no discurso da esquerda porque seringueiros, como trabalhadores, entraram", considera Celso, para quem Chico Mendes, sua "discípula" Marina Silva e toda a esquerda amazônica tiveram o papel de "mostrar aos progressistas que os seringueiros não podiam ser considerados simplesmente como pobres". A luta ia além de conflitos fundiários ou trabalhistas; tratava-se de manter a floresta em pé, o que acabava por colocar também a questão indígena para dentro do partido. Novamente, o PT expandia suas pautas a partir de pautas trabalhistas tradicionais. No Sudeste, com dificuldades de atuação, o pequeno Partido Verde (PV), fundado em 1986, perderia para os petistas nomes importantes como Carlos Minc e Fernando Gabeira. Mais um caso em que a base e o meio da pirâmide social se encontravam.  

Os vínculos com ex-companheiros de guerrilha favoreciam a ida para o PT. O espaço conquistado pelo partido entre demais ambientalistas restringia os verdes, cujas pautas se limitavam às comportamentais e ecologia. Minc permaneceu no PT até 2016, mas Gabeira teria uma relação tortuosa, cheias de idas e vindas entre as duas siglas. Crítico da visão econômica do PT, romperia em definitivo com o partido logo após a chegada de Lula ao Planalto. Na ocasião, disparou contra o novo presidente por ele não denunciar as violações ao direitos humanos em Cuba. "Concluí que sonhei um sonho errado", disse, voltando ao PV e iniciando uma aproximação com os tucanos. Na Europa, o "ecossocialismo" convive ruidosamente com o ambientalismo liberal. De certo modo, assim pode ser retratada a relação de Gabeira com o PT.

Foi, porém, com Marina que ambientalistas e PT chegaram ao seu maior ponto de tensão. Nomeada ministra do Meio-Ambiente de Lula, responsável pela queda histórica nos níveis de desmatamento na Amazônia (67% entre 2002 e 2010), Marina entrou em sucessivos choques com os ministros Dilma Rousseff e Mangabeira Unger que culminaram em seu pedido de demissão em 2008. O episódio mais simbólico foi a construção da Usina de Belo Monte, rejeitada por organizações ambientais e povos originários e alvo de longa guerra judicial. O "desenvolvimentismo" confrontava o ambientalismo, em mais um exemplo de pautas da esquerda tradicional que vão de encontro a pautas da esquerda pós-68. "Durante os anos em que o PT governou o  Brasil, provavelmente o maior afastamento entre um movimento social e o partido", avalia Celso.

É mais do que conhecida a trajetória posterior de Marina, presidenciável três vezes por outras siglas, entre eles a Rede Sustentabilidade (REDE), criada por ela com intuito de ser um partido-movimento como fora idealizado o PT, mas focado no desenvolvimento sustentável. Sofreria com a metralhadora verbal e de marketing petista em 2014, quando chegou ameaçar a reeleição de Dilma. Assim como Gabeira, ao incorporar algumas tópicos liberais em sua proposta de política econômica, seria tachada pela esquerda de "defensora de banqueiro", além de atacada por um suposto "fundamentalismo" evangélico que, na verdade, nunca a caracterizou, apesar de sua fé cristã. O apoio ao tucano Aécio no segundo turno daquela eleição parecia significar o rompimento definitivo de pontes com seu ex-partido. Voltaria a se aproximar de Lula apenas ano passado, diante dos riscos da extrema-direita bolsonarista.

O processo de aprendizado contou com situações constrangedoras de tão boçais, como a ocorrida em uma audiência pública da Assembleia Nacional Constituinte de 1987-88, quando o partido ainda engatinhava nessa interação de pautas. Na ocasião, recordada pelo livro, a fim de protestar contra o que entendia ser favorecimento às questões de gênero em detrimento das raciais, dado que as primeiras eram assunto de uma comissão e as segundas de uma subcomissão, um militante negro do PT disparou em alto e bom som: "Quero que alguém me prove se nos navios negreiros, nos quilombos, nas senzalas existiu a prática do homossexualismo, que desconheço no meio da nossa raça”. Benedita, que presidia a sessão, interrompeu-o com críticas à fala preconceituosa.

Celso menciona ainda a relação do petismo com o MST, criado em 1984, e a CUT, fundada em 1983, os quais, embora aliados, não são vistos por ele como tentáculos do PT. Lembra, por exemplo, os temores no partido com os boatos sobre a criação de uma nova legenda pelos sem terra, movimento que, por algum tempo contou com gente ligada a outras siglas, como o PDT, e à Pastoral da Terra. É sobre ele que o livro talvez cometa sua maior falha: a abordagem pouco profunda sobre a legitimidade das invasões de terra. Parece evitar um posicionamento mais claro. De todo modo, se não se resumem a meras linhas auxiliares, esses associações, igualmente aos demais, são intrínsecas ao processo de formação do PT, o que torna sem sentido a acusação de cooptação propagada durante os governos Lula e Dilma. Ninguém coopta o que sempre foi. “A CUT nunca foi correia de transmissão do PT e, em momentos importantes, o contrário pode ter sido verdade. Afinal, a raiz do PT era sindical (...) Se os sindicalistas neutralizassem a autonomia dos sindicatos, estariam minando a fonte de sua própria influencia dentro do partido", diz  

A ditadura militar tirou desses movimentos a possibilidade de influenciar o Estado. Em muito pelo perfil originalmente basista do PT, restou a eles a natural aproximação com o partido, que com o tempo foi se tornando seu principal canal de acesso institucional. Não raro conservadores e alguns liberais brasileiros acusam a esquerda de instrumentalização dessas causas. O próprio livro nos remete a temores semelhantes, e é óbvio que pretos, mulheres e gays não precisam obrigatoriamente ser ligados a esse campo político, até mesmo porque identidades interseccionadas sempre são um desafio a preferências políticas. Como uma mulher preta, pobre e evangélica se vê primordialmente? O gay branco de Ipanema pensa igual ao travesti preto da Baixada? Pois a sociedade não os vê igualmente, e o acesso a oportunidades difere. Mas a pergunta que fica é: em que momento do passado e do presente, seja lá a maneira como for, partidos e entidades de direita colocaram essas pautas em suas agendas no Brasil? Qual foi a mobilização? Qual foi a política pública proposta? Seja pela negação ou minimização do problema como "fatos isolados", no mínimo a omissão deu o tom.  Atualmente resumem-se à gritar contra "lacração", esse termo de tão pouco conteúdo, e os exageros do "cancelamento". Ou elevar à prioridade o combate ao irrelevante pronome neutro.

O presidente da Fundação Palmares do governo Bolsonaro chegou a ver um "lado positivo" pra escravidão. Não por acaso, um governo cujo presidente e vice eram oriundos da ditadura. Bolsonaro, aliás, afirmou preferir um filho morto a um filho gay e que o imóvel perdia valor com vizinhos homossexuais. Na caserna, anacronicamente, ainda considera-se a "democracia racial" de Gilberto Freyre como diretriz intelectual. Também não fortuitamente, foi Fernando Henrique, como nos lembra Celso, o primeiro presidente a receber uma marcha do movimento negro e estabelecer um grupo interministerial para desenvolver “políticas de valorização da população negra”. Apoiou oficialmente a ida de representantes à Conferência de Durban, em 2001, encontro promovido pela ONU a partir do qual ganhou força a ideia das cotas raciais. Estudioso da questão racial na academia, o sociólogo Fernando Henrique teve como orientador Florestan Fernandes, autor, no início da década de 70, do primeiro grande estudo com rigor metodológico que evidenciou o peso do racismo no mercado de trabalho do país.

Sem poder econômico e midiático, excluído da elite política e, como visto, sendo pouco homogêneo, o PT nasceu fraco, razão, segundo Celso, de uma certa complacência da ditadura militar com ele. Já em fase de "abertura lenta, gradual e segura", os militares se conformavam com um sindicalismo que não apresentava relações com o PCB, por sinal, forte crítico à construção dessa nova esquerda. Era preferível um Lula a um Prestes. Ainda que grande parte das lideranças da CUT fosse socialista, a adesão da central ao socialismo sempre foi rejeitada. Temiam o afastamento de "trabalhadores identificados com a combatividade da CUT mas não socialistas" e, ao abrir a discussão sobre qual vertente abraçar, o aparelhamento pelas organizações marxistas que defendiam cada uma delas.

 Presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de Santo André no final da década de 70, Benedito Marcilio recorda no livro as hesitações do "novo sindicalismo" em aderir a correntes ideológicas, ceticismo refletido na escolha do nome do partido: "Socialismo era um negócio complicado demais para os trabalhadores. PT era suficiente". Corroborando com Marcílio, Celso cita uma entrevista de Lula em que ele recorda suas conversas com marxistas: "Eu só queria um partido e vocês querem saber se é estratégico ou tático? Sejam o que vocês quiserem, porra. Mas vamos criar um partido. Eu quero um partido para eleger deputado, vereador, presidente, governador. Eu quero um partido pra ganhar eleição e fazer o que a gente sonha fazer. Outros queriam o PT pra fazer revolução. Se o cara quisesse fazer revolução, não devia estar preocupado em criar partido. Criasse um exercito, caralho!

O novo partido tinha tudo para logo se inviabilizar. Seus primeiros anos foram desastrosos em termos eleitorais, e o livro conta as dificuldades de imprimir uma marca própria logo que conquistam sua primeira prefeitura, a de Diadema, em 1982. Ali ficavam claras os dilemas de ser estilingue e vidraça ao mesmo tempo: integrantes dos movimentos na administração tinham que responder às demandas de seus companheiros. Como reagir à uma greve? Como institucionalizar a participação popular? Para Celso, somente com o "orçamento participativo", colocado em prática pela primeira vez nas gestões de Porto Alegre que o partido acharia uma resposta eficaz.  Era o "modo PT de governar" que começava a ganhar cara. A partir de 1989, durante 16 anos seguidos os petistas comandaram a capital gaúcha. Também é recordado no livro a histórica campanha das "Diretas Já", em 1984, na qual, em função de sua ligação com movimentos de base o partido teve papel de destaque na mobilização que espantou a ditadura moribunda e imprensa.

 A campanha não teve êxito no Parlamento. A redemocratização foi cuidadosamente pactuada pelo regime que findava e a elite política oposicionista, liderada pelo PMDB de Ulysses Guimarães e Tancredo Neves e reforçada por dissidentes da Arena, como José Sarney. Uma democratização pelo alto, que afastou grande parte da sociedade civil e, consequentemente a novata legenda. Quando, pela primeira vez, deram aos petistas voz no andar de cima, eles cometeram o que Celso considera seu primeiro grande equívoco: por entender como ilegítimo, fechou questão pela abstenção no Colégio Eleitoral que elegeu Tancredo. Foram expulsos os três deputados que não seguiram a resolução e votaram no primeiro presidente civil eleito após 21 anos.

'Se na democratização pelo alto o partido só apanhava, e, como se viu no caso do colégio eleitoral, fazia besteira, na democratização por baixo ele se garantia […] Muitos milhares de militantes da sociedade civil iam aderindo ao projeto petista e construindo sua base social. Conforme essas causas foram se tornando visíveis no debate brasileiro, os petistas foram entrando na conversa". Entrariam de vez na Constituinte, quando, segundo Celso, as duas democratizações convergiram. Foi o momento em que o partido, apesar da pequena bancada, começou a ter voz relevante no jogo político institucional, com atuação proativa em diversas comissões, especialmente as que criou o SUS e deu autonomia a um Ministério Público empoderado. Dois dos melhores legados da Carta de 1988, ambos têm digitais petista, muitas vezes aliando-se à esquerda do MDB com quem namorara dez anos antes.

Ao mostrar a possibilidade real de apresentar e negociar propostas, “a constituinte converteu o PT à institucionalidade pelo exemplo”, afirma Celso “ Em nenhum momento ate então, o PT havia atuado de forma tão orgânica com outras forças politicas, com resultados tão bons. E nunca o PT tinha visto a turma dele, a turma dos movimentos, conversando com o poder em condições tão próximas da igualdade”. A mesma Constituinte marcaria também a fundação do PSDB, formado por aqueles peemedebistas progressistas dispostos a se afastar de Sarney e de Quércia. Ironicamente, se Fernando Henrique resistira a enxergar como social-democrata o partido rascunhado em 1977, mesmo ele incluindo sindicatos, seu novo partido se lançava com autoimagem social-democrata mesmo passando longe dessa base social. Um partido de quadros, acrescido de intelectuais, especialmente da USP.

Apesar dos ganhos políticos, o PT ainda debatia seu perfil ideológico. Buscava dar nitidez ao seu “socialismo democrático” e conciliar sua essência “confederativa” com a coesão fundamental a um partido. Entre os mais moderados, discutia-se como esboço a Suécia - a "Meca" da social-democracia europeia, enquanto os mais à esquerda se espelhavam na Nicarágua. Não a Nicarágua de hoje, fique claro, mas a recém-saída da revolução sandinista, que se diferiu da cubana e russa no grau de autoritarismo e amplitude das forças condutoras.

Segundo Celso, é "filtrando Gramsci pela crítica de Rosa de Luxemburgo aos bolcheviques" que Francisco Weffort (para ele, o principal intelectual do PT à época) propõe que os socialistas não devem lutar apenas na democracia, mas por mais democracia, até que a experiência de cidadania se transforme em governança não só da politica mas também da economia". Em outras palavras, significava, na prática, a adesão à democracia - inclusive a representativa liberal - não apenas como meio mas um fim em si mesmo. Ao contrário do que propaga a extrema-direita, "Gramsci nunca levou uma democracia ao autoritarismo comunista, mas levou muitos comunistas autoritários a se tornarem democratas", afirma o autor.

A derrota de Lula para Collor em 1989 deixou sequelas para o partido. Coincidentemente no ano em que caiu o Muro de Berlim, aquela eleição deu ao candidato de direita maioria dos votos da massa mais pobre e não organizada da sociedade (os "descamisados", nas palavras do eleito), resultado que deixava claro os limites de atuar como porta-voz do movimentos sindical e sociais. De certa forma, Fernando Henrique tinha razão: ao contrário da Europa, aqui essas massas representavam percentual bem maior do que a dos trabalhadores industriais. Nosso buraco era mais embaixo. 

A partir do congresso partidário de 1991, o PT iniciaria um lento e conflituoso deslocamento para a centro-esquerda, simultaneamente ao que muitos de seus filiados entenderiam como "burocratização" do partido. Exceto por um breve período em meados da década de 90, a Articulação, com o tempo, consolidou-se como corrente dominante. Quanto mais o grupo de Lula e José Dirceu firmava essa hegemonia interna, mais a legenda se moderava. 

Ainda em 1911, o sociólogo Robert Michels desenvolveu a "lei de ferro da oligarquia", segundo a qual qualquer organização, por necessidades técnicas e táticas, acaba inevitavelmente criando uma elite dirigente interna, um caminho que vai de encontro à concepção de partido-movimento. O PT mostrava ser apenas mais um exemplo que confirmava a teoria. Havia, porém, outro lado: “Goste-se ou não dele, Dirceu foi um dos maiores organizadores de partido da História brasileira, certamente o maior da Nova República, opina Celso, acompanhado por Fernando Henrique: “Dirceu teve a capacidade de fazer o que Lula não faria sozinho, um partido” 

Mas, apesar da crescente centralização, a democracia interna manteve-se como marca, com debates públicos ricos e francos pouco vistos em partido de quadros. Na resolução final do 7º Encontro Nacional, ainda em 1990, embora refutassem o "socialismo real" pela "falta de dinamismo econômico e liberdade política", os petistas criticavam a social democracia pela "perda de ambição transformadora". 

Social-democracia é um conceito que desperta interpretações em função de seu tempo desde o início do século passado, quando era tida como um meio-termo entre o capitalismo e o bolchevismo. De acordo com Eduard Bernstein, o primeiro grande revisionista da teoria marxista, ao aceitar a democracia liberal e o jogo institucional, o socialismo, entendido principalmente como a "socialização" dos meios de produção e amplos direitos sociais, tornava-se um processo gradual, através de reformas legislativas.

Algumas décadas depois, no Congresso partidário de Bad-Gödesberg, em 1959,  os social-democratas alemães (SPD) vão além e rompem oficialmente com o marxismo. Além de constatarem a ineficácia de projetos de "socializações" de fábricas na Europa, o caminho ao centro também visava ampliar seu eleitorado. Ficava cada vez mais claro o equívoco de Marx quando profetizou que, em algum momento, a classe operária inevitavelmente se tornaria majoritária nos países industrializados. A constatação exigia a diluição ideológica caso almejassem chegar ao poder. Aceitava-se, a partir de então, a economia de mercado, mas com um amplo Estado de bem estar social ( Welfare State). Afinal, "socializar" a produção, defendia Bernstein, significava antes de tudo colocar a produção a serviço do bem-estar público.

A "oligarquização" e a moderação levaram alguns militantes à desfiliação. Demoraria para os marxistas do PT aceitarem a social-democracia como prática, uma resistência expressa em uma pergunta a Marco Aurelio Garcia (historiador, fundador do partido e futuro assessor para assuntos internacionais nos primeiros governos Lula) em palestra para o movimento estudantil. “Mas, professor, se nós seguirmos por esse caminho, o Brasil vai acabar se tornando uma social-democracia”, criticou um universitário na plateia. “Meu filho, eu sou ateu, mas, se isso acontecesse, toda noite eu rezaria de joelhos para agradecer”, respondeu. Provavelmente o melhor retrato dessa moderação foi Antonio Palocci, um ex-membro da trotskysta Libelu, ter sido o condutor da política econômica à la tucanos nos primeiros quatros anos de Lula no Planalto.

Mas, diferente dos casos europeus, o contexto para o PT era outro. Segundo Erick Hobsbawn, um dos mais renomados historiadores do mundo, a legenda é "um exemplo tardio de partido trabalhista e movimento socialista de massa clássico, como os emergidos na Europa antes de 1914". Quando, na linha acima do equador, esses partidos abraçaram a social-democracia, o keynesianismo surgia como opção de política de crescimento econômico: um capitalismo regulado e com forte investimento público. As décadas de 50 e 60 foram os "anos de ouro" da social-democracia, cujos ganhos  começariam a cessar no início da década de 80 - exatamente no momento em que se paria o PT.

Com a globalização dos anos 90, muitos desses partidos social-democratas fizeram nova repaginação, incorporando preceitos liberais econômicos então hegemônicos. No Reino Unido, surgia a "Terceira Via" do sociólogo Anthony Giddens, "guru" do primeiro-ministro trabalhista Tony Blair. De forma semelhante, agiu o SPD, sob a liderança de Gerard Schröder. Assim como a tradicional social-democracia na primeira metade do século passado, sua nova versão também se via como meio-termo. Dessa vez, entre o que fora até então e o neoliberalismo. O "centro" ideológico se encontrava agora avesso ao Estado. “Quando o PT começou a aceitar uma economia de mercado regulada em vez do socialismo, o clima ideológico virou completamente contra qualquer regulação. Os social-democratas europeus , partindo de uma posição muito mais centrista, tiveram dificuldade de se adaptar ao choque de 89. O PT teria que cobrir uma distancia muito maior e em muito menos tempo”, afirma Celso.

No Brasil, o PSDB, com Fernando Henrique, chegava ao poder inspirado em Blair e Schröeder, apesar da profundamente distinta base social. “O liberalismo econômico brasileiro começou a ser politicamente eficaz quando converteu os progressistas do PMDB, gente já descolada sobre desigualdade brasileira, nos anos 90”, provoca Celso, provavelmente chocando quem entende como liberalismo o simplório libertarianismo reacionário propagado pelos fãs bolsonaristas de Paulo Guedes, membros do NOVO e similares.

Um partido que se dizia social-democrata tinha sua autoidentidade contestada, enquanto o partido mais próximo da social-democracia europeia não digeria bem assumir-se como o que estava fadado a ser. Essa, digamos, esquizofrenia política, é traduzida em um diálogo recuperado no livro entre o sociólogo Leôncio Martins, ligado aos tucanos, e Marco Aurelio Garcia, ainda no início da década de 90. "Marco Aurélio, quando o PT vai assumir que é social democrata?", provocou Leôncio. E Marco Aurelio respondeu: "E o PSDB, quando vai admitir que não é?" Os dois tinham razão, comenta Celso, e "teriam cada vez mais nas duas décadas seguintes". Até hoje o PT  evita assumir-se assim oficialmente. 

O ex-governador paulista Franco Montoro, fundador do PSDB, ainda quando se discutia a criação do partido, vaticinara: "Se o PT resolver moderar o discurso, o que será dos ´social-democratas´ do PSDB?". O tempo esclareceu: quanto mais os petistas abraçavam a social-democracia, mais o PSDB movia-se à direita. Tropeçou tanto que acabou tragado pelo bolsonarismo. À época, porém, existiam pontos de contato entre membros dos dois partidos, o que os levou a um breve flerte após a queda de Collor, com articulações que sondavam uma possível aliança nas eleições de 1994. O Plano Real alterou o equilíbrio de forças e embaralhou o jogo que estava sendo jogado. Os tucanos ganharam a eleição presidencial mais fácil até hoje, logo no primeiro turno.

Alguns sonharam até com a participação do PT no governo do PSDB. Mas "as reformas econômicas propostas por Fernando Henrique criavam coalizões de interesses dentro da sociedade que se refletiram na disputa entre os dois partidos". Havia nelas vencedores e perdedores, e "esses últimos tinham o direito à representação politica própria na negociação", diz Celso. Não interessava ao PT participar de uma coalizão que "lhe custaria compromissos programáticos difíceis e baixa influência significativa", e  Fernando Henrique, aliado ao PFL e outros siglas de centro-direita menores, não precisava da esquerda: "O medo dos petistas, na era Itamar, de que o partido perdesse sua identidade em uma grande coalizão centrista, deixou de ter base na realidade. Mesmo se quisesse ‘radicalizar no centrismo’o centro não queria o PT". 

 O casamento desejado por muitos da geração que combateu a ditadura não se realizou. No entanto, assegura Celso, ao se tornarem os cantos do ringue que disputaram o comando do país em meio ao processo de globalização, ambos, em conjunto, produziram, entre 1994 e 2014, o período "mais robusto e estável “da democracia brasileira" - e de inéditos avanços sociais, pode-se acrescentar sem receio. Isto são dados. O Plano Real e o Bolsa Família são apenas os exemplos mais visíveis.

A partir dessa disputa entre PT e PSDB, Celso faz uma interessante análise comparativa com sobre o cenário do norte global ao final da primeira década desse século. Na Europa e nos Estados Unidos, o social liberalismo” da Terceira Via” significara ascensão de uma classe média cosmopolita ao comando dos partidos social democratas, em detrimento do movimento sindical, o que gerou constante tensões. No Brasil, essas duas forças sociais se dividiram em dois partidos. Em que pese tenha inviabilizado a aliança entre eles, ser um deles o representante dos que perderam com a globalização evitou que estes recorressem ao populismo de extrema-direita, como no caso da França com Jean-Marie Le Pen e sua filha. E o PSDB, apesar de não ser propriamente um típico partido de direita, ao atrair o antagonismo ao PT, acabou por civilizar" a direita brasileira: "Pela primeira vez o pais teve uma direita democrática, que ganhou eleições quando apresentou bons resultados e entregou o poder ao ser derrotada". A julgar pelo que se viu nos últimos quatro anos, primeira e única.

A histórica vitória do PT em 2002 foi fruto da profissionalização e moderação do partido. Lula era reticente em disputar pela quarta vez as eleições. “Aí tomamos a decisão de fazer bem feito: de agora em diante, vai ter aliança [com partidos de centro e centro/direita e setores do empresariado], vai ter propaganda de outra forma. A eleição de 1998 encerra um ciclo. Ali ganhei mandato pra mudar”, lembra José Dirceu, em referência à sua recondução a presidência o partido. Os petistas entravam definitivamente no jogo político, no melhor, mas, como não tardaria a ser visto, também no pior sentido: "O PT, como a direitista UDN de 45-64, era a parte que ficou de fora dos acordos de transição [democrática]. Ao contrário da UDN, entretanto, não tinha ricos, militares e mídia. A coalizão do PT era, de longe, a mais fraca a chegar ao poder. Tantos os sucessos quanto os fracassos que se que seguiram podem ser explicados por esses dois fatores", argumenta Celso.

O livro remonta toda a complicada aceitação pelo PT da política econômica de Palocci, coordenador da vitoriosa campanha eleitoral e um dos autores da famosa "Carta ao Povo Brasileiro", resposta à apreensão do “mercado” com a provável vitória da esquerda. Ainda em abril de 2002, o fracasso do candidato do Partido Socialista à Presidência da França, Lionel Jospin, estarrecera o mundo ao perder a vaga no segundo turno para Le Pen. Jospin, considerado a esquerda da "Terceira Via", tinha relações próximas com o PT. Ao saber o resultado da votação durante um voo, Lula perguntou para Palocci: "Vem cá, é isso que vou conseguir com esse programa de direita que vc fez pra mim”? O futuro ministro da Fazenda respondeu: “Bom, você já concorreu três vezes com um programa radical e perdeu”. Os dois riram.

Já empossado, certa vez, em uma reunião ministerial Lula virou-se para Palocci e disparou: “Quer subir o juro, sobe, f..-se; quer dar juro alto pro mercado, f..-se; mas você vai ter que inventar um juro para os trabalhadores que seja bem mais baixo”. Atônito, conta o livro, Palocci tentou uma piada: “É só pros caras de São Bernardo ou pra todo mundo?”. Lula respondeu que era pra todo mundo e que ele se virasse. Nascia o crédito consignado. Nem mesmo aquele que seria a principal marca do governo petista escapou de polêmica no início. Por ser um programa de transferência de renda focalizado, como recomendado pelo liberal Consenso de Washington, o Bolsa Família mereceu críticas, por exemplo, de Maria da Conceição Tavares, uma das mais respeitadas economista na esquerda. 

Essa resistência se transformou em crise quando quatro parlamentares do partido votaram contra a proposta de reforma da previdência do setor público, enviada ao Congresso logo no primeiro ano do governo. Dessa dissidência nasceu o PSOL. Com gritos de "Chávez si! Lula no!, recorda Celso, a edição de 2005 do Fórum Social de Porto Alegre expunha o incômodo de consideráveis parte da militância de esquerda não só brasileira como latino-americana com a "direitização" da gestão petista. 

Mas se decepcionava parte da esquerda, o PT, no decorrer de seus anos no poder, conseguiria obter aquilo que diagnosticara como necessidade após a derrota para Collor: o apoio dos extratos mais pobres e desorganizados da sociedade. Surgia o lulismo, termo cunhado pelo cientista politico André Singer para definir o modelo político-econômico de conciliação de classes, que, apesar de em maior intensidade para a base da pirâmide social, também propiciou ganhos aos do topo dela.

No governo Lula, segundo estudo de Marcelo Neri, economista da FGV, os mais pobres tiveram aumento de 70% em sua renda, enquanto os mais ricos, 13%. Financiadas pelo superciclo de commodities, as políticas sociais do governo resultaram na retirada de cerca de 30 milhões de brasileiros da pobreza (queda de cerca de 50%). Mas, ao contrário do que o senso comum diz, o sucesso se deveu principalmente a valorização real contínua do salário-mínimo (56%) em meio a um mercado de trabalho aquecido, com taxa de crescimento médio do PIB de 4%. Ao Bolsa Família os totais méritos pela brusca redução da extrema-pobreza. Índice mais utilizado para se medir desigualdade econômica, o Coeficiente de Gini caiu no período de 0,59 para 0,53, o que, somado aos efeitos iniciais do Plano Real, reduziu essa chaga brasileira para os níveis do início da década de 60, antes do surto de desigualdade da ditadura militar. 

Esses números são conhecidos e foram a principal bandeira da campanha de Lula ano passado. Contudo, como reflexo dessa conciliação de classes, a proporção da renda nacional nas mãos dos 1% mais ricos permaneceu praticamente inalterada: cerca de 25%. De forma distinta ao que se espera de social democratas, os governos do PT não propuseram uma reforma tributária progressiva, isto é, que proporcionalmente taxe  mais o topo da pirâmide, diferente das regras atuais. No livro, tanto José Genoíno como Tarso Genro argumentam que pesaram a certeza de derrota no Legislativo e a possibilidade dela ser o estopim de uma crise de governabilidade. Igualmente, as dúvidas de Palloci sobre como taxar de forma eficaz esse grupo. Falou mais alto "a redistribuição pelo gasto” e focalização nos mais pobres". Embora aliado à típica expansão de universidades públicas, também distante da tradicional social democracia foi o Pro-Uni, bolsas de estudos para alunos pobres em faculdades particulares. Em outras palavras, o fortalecimento do setor privado na educação

A desigualdade caiu com a parte debaixo se aproximando do centro da pirâmide social. Alguns estudiosos consideram, por isso, que, se perdas aconteceram, elas recaíram sobre setores da classe média tradicional, o que, junto ao escândalo do mensalão, explicaria a migração deles para os adversários do PT já partir de 2006, quando Lula obteve o segundo mandato. Em sua grande maioria, os mais ricos, apesar de não perderem economicamente, permaneceriam, como sempre, ideologicamente avessos ao partido, que assim realinhava seu eleitorado. 

A inclusão pelo consumo foi outro ponto de desencontro com setores mais à esquerda do governo. Para eles, além de estimular a mercantilização dos pobres via crédito barato, o lulismo não forjava cidadãos. Celso, contudo, recupera um estudo de Rosana Pinheiro-Machado e Lucia Scalco em comunidades periféricas que mostra como a elevação da renda rompia com atitudes de subalternidades pelo orgulho de consumir os mesmos bens, frequentar os mesmos lugares que “as madames” e “entrar pela porta da frente”. É arriscado, garante Celso, apostar na despolitização deste consumo: “Afinal, nos anos 1970, muita gente na esquerda achou que os metalúrgicos do ABC eram integrados demais ao capitalismo para liderar um movimento de contestação”.

Apesar dos inegáveis avanços, havia nesse quadro dois paradoxos. O partido que abrigava os “perdedores” da globalização dela se beneficiava. Era a incorporação dos bilhões de indianos e chineses ao mercado internacional que impulsionava as nossas exportações. Crítico antigo da falta de "ambição transformadora" da social democracia, o mesmo partido mostrava-se, no poder, ainda menos ambicioso. Até que ponto a heterogeneidade de um governo de coalizão de fato influenciou é uma indagação que fica. A luta de classes se restringia à retórica de palanque, e o socialismo, à espantalho do reacionarismo. Que dirá a “ameaça comunista”.

Mas os anos do PT no Planalto ganhariam outros contornos a partir da crise econômica mundial de 2008, quando, nas palavras de Celso, o Estado voltou ao centro ideológico, com governos de todos os tipos despejando dinheiro para escapar da recessão. No Brasil, essas políticas "anticíclicas", provisórias por definição, seriam o embrião - ou o pretexto - da "Nova Matriz Econômica" (NME) de Dilma Rousseff, cujo processo de formulação é detalhado no livro. É aqui que Celso deixa transparecer estar mais próximo ao "paloccismo". Embora ressalte que muitas das políticas implementadas pela presidente constavam da "Agenda Fiesp", ele não poupa palavras contra as isenções fiscais descontroladas nem terceiriza responsabilidades por seu fracasso retumbante:

"Alguns petistas reagem a esse fato com indignação, como se os empresários tivessem traído o governo Dilma, que lhes deu tudo que pediram. Não foi bem isso. O motivo imediato da queda do crescimento é muito claro: o lucro das empresas caiu". Tampouco nega os efeitos da baixa produtividade: "A ideia de que salários haviam  subido demais não é absurda, ou fruto de reacionarismo: uma outra maneira de dizer a mesma coisa é que a produtividade brasileira subiu de menos. Enquanto salários e produtividade subiram ao mesmo tempo, o que aconteceu no governo Lula, a economia funcionou bem", defende, sem, porém, ignorar as "pautas bombas" no Congresso, lançadas pelo desafeto Eduardo Cunha, enquanto, com o liberal Joaquim Levi na pasta de Fazenda, o governo esboçava um intenso ajuste fiscal que negara como necessário até o dia da reeleição. Um estelionato eleitoral, admite Celso.

O panorama interno somava-se a um ambiente externo ainda mais desfavorável: o preço das commodities despencava. O contexto era o pior possível para o desvio de rota de um governo já com base parlamentar em frangalhos. Desnorteada com a guinada à direita, a militância petista jamais engoliu Levy. Menos de um ano depois, ele cairia. Dilma, que já contava com agressiva oposição à direita, via-se sem o engajamento de sua base à esquerda. O resultado foi dois anos de uma severa recessão econômica que pôs a perder vários dos avanços anteriores. Ainda hoje, o PT prefere responsabilizar Levy pelos péssimos números. Celso pondera: 'Todas as distorções que Levy tentou corrigir eram reais, graves e precisavam ser corrigidas. O que é discutível é se era possível fazer tudo de uma vez". A única certeza é de que as condições politicas para o ajuste inexistiam, afirma.

O fracassado do "ensaio desenvolvimentista", como Singer define a NME, trazia ao PT outras ironias. O partido fora criado contra a ditadura militar e a estrutura sindical varguista. "A CLT é o AI-5 do trabalhador", acusou Lula em sua época de sindicalista. No decorrer da década de 90, porém, a rejeição à Vargas já havia se transformado em reinvindicação de parte de sua herança, especialmente quando, em 1998, articulou com Brizola uma chapa presidencial. O tão criticado imposto sindical, por exemplo, foi abraçado. Não por acaso, Weffort, autor do clássico estudo crítico ao populismo dos anos 40 a 60, havia antes se afastado da legenda, aceitando ser ministro da Cultura de Fernando Henrique. Oriunda do brizolismo, descendente legítimo do trabalhismo, Dilma formulou uma política econômica que, em muitos pontos, remetia ao "nacional-desenvolvimentismo" tanto de Vargas como de grande parte do período militar, um ciclo de industrialização que teve, como efeito colateral mais desigualdade e endividamento externo .

Foi, por sinal, o líder histórico do PDT, e não políticos de direita, quem destilou as frases mais ácidas sobre o PT, com quem conviveu às turras do nascimento do partido até sua morte, oscilando entre aproximações e troca de tiros verbais. Uma em especial demonstra o incômodo dos adversários com o discurso moralizador inflexível dos petistas quando na oposição: "O PT é a UDN de macacão". A comparação com a direitista legenda de Carlos Lacerda insinuava um viés golpista na atuação dos petistas, dada a irresponsabilidade de certas acusações, conforme o próprio Celso admite. Esse ímpeto havia sido apresentado já em 1985, quando Maria Luiza Fontenelle conquistou para o partido a primeira prefeitura de capital. Assim como o rival Collor quatro anos depois, o mote da nova gestão era demitir "funcionários fantasmas". 

Ironias e paradoxos não faltam na história do PT. Seria justamente esse partido "diferente" que, no governo federal, enfrentaria dois dos maiores escândalos de corrupção revelados no Brasil: o "mensalão" e o "petrolão". Escândalos que o colocaram, no imaginário de parcela da sociedade, como o mais corrupto de todos os partidos. Justo o partido que tivera protagonismo na construção, na Assembleia Constituinte,  de um Ministério Público autônomo e, no Planalto, fortalecera os instrumentos de combate e prevenção à corrupção, como o próprio juiz Sérgio Moro reconheceu na sentença que condenou Lula à prisão em 2018. Era legado do governo Lula o fortalecimento da CGU, os investimentos na Polícia Federal e a nomeação do primeiro colocado da lista tríplice para a PGR. Até hoje apenas os petistas acolheram integralmente o resultado da votação entre procuradores. Em resposta às mega manifestações de junho de 2013, Dilma acrescentaria outro instrumento: as delações premiadas que tanto desgastariam seu partido e aliados nos anos seguintes de " Lava-Jato". 

Celso não nega os desvios, mas faz questão de contextualizá-los politicamente. Corrupção não só não nasceu nos governos petistas como tampouco é fruto da redemocratização, como sofismas os saudosos do arbítrio, explica. É, como mostram estudos, justamente ao contrário: as ditaduras são mais corruptas por não haver transparência e órgãos de controle. No entanto, em um primeiro momento, devido ao vácuo institucional inerente a transições, corruptores e corrompidos aproveitam-se de novos espaços para novos negócios. As empreiteiras, por exemplo, lambuzaram-se com as obras faraônicas dos militares. Quando vieram as disputas eleitorais para valer, todos os partidos tradicionais de centro e direita, de sustentação e os de oposição ao antigo regime, a elas apelaram para seu financiamento, aproveitando-se da divisão de cargos e dos caixas dois de campanhas.

Embora Roberto Jefferson tenha denunciado um "mensalão" para compra de votos no Congresso, Celso coloca em dúvida essa versão. Para ele, o caso se tratou de mudança de método para o financiamento de aliados: tentando manter o maior número de cargos em suas mãos, o PT, para compensá-los, teria optado pela transferência centralizada da propina. "No fundo, nós disputamos quem comanda o atraso", havia diagnosticado na mesma época Fernando Henrique, em alusão às inevitáveis alianças com setores fisiológicos. O diferencial de fato foi as consequências: "Pela primeira vez no mundo democrático, um grupo politico era responsabilizado por corrupção enquanto no poder", afirma, citando artigo dos cientistas politicos Marcus Melo e Carlos Pereira que o corroboram.

O julgamento do mensalão se deu em 2012, no segundo ano do governo Dilma, quando a economia começava a estagnar. Em junho de 2013, estourariam as gigantescas manifestações que balançaram a República. A dimensão e os rumos que aquela jornada tomou deixou o PT perplexo. O que era um protesto contra o preço da passagem de ônibus, organizado por um movimento estudantil na fronteira entre o socialismo e o anarquismo, acabaria apropriado pela direita mais conservadora. Em um mês, a popularidade da presidente despencou cerca de 30 pontos percentuais. 

Talvez não com o destaque que merecesse, Celso levanta hipóteses sobre as razões do ocorrido, até hoje motivos de debates na academia. No PT, o diagnóstico preponderante foi a desconexão entre os avanços socioeconômicos e a qualidade da oferta de serviços públicos. Em "O Antigo Regime e a Revolução" (1856) , Toqueville teoriza que o momento mais propício para rupturas não são quando perdas econômicas se avolumam, mas quando as expectativas começam a avançar mais do que os ganhos reais. É quando a sociedade percebe que pode mais. O filósofo Marco Nobre entende aquele mês sob outro prisma: Junho de 2013 teria sido um levante contra o "peemedebismo", termo utilizado por ele para definir a "neutralização das propostas de mudanças por um sistema politico amorfo em que governos precisam de grandes maiorias pouco ideológicas para se manter no poder". 

O alvo daqueles protestos nunca se resumiu ao governo federal, mas, para muitos daqueles jovens nas ruas e internet, o PT, após 10 anos no poder, era o maior símbolo do "sistema". "A cooptação do PT por esse peemedebismo teria esgotada a esperança da população em mudanças por meio da politica tradicional", deduz Celso. Ser de direita ganhava "certo charme de contracultura". Para muitos, por isso, aquele mês foi a causa da eleição de Bolsonaro. É, porém, mais nítida a correlação do que a causalidade. Ali o sistema político de fato começou a tremer. Era o início de uma gigantesca crise política que se prolongaria até o fim do governo do "capitão"e na qual "normas de convivência política deixaram de valer e regras distorcidas ou moduladas com mais frequência". A politica foi se radicalizando, sendo as redes sociais terreno férteis pra polarização: "A tendência crescente de nossa democracia, que durava mais de 30 anos, travou durante a crise de 2015 e entrou em reversão após eleição de 2018".

Nesse clima de ojeriza à política, explodiu, pouco mais de um ano depois, o "Petrolão", escândalo cujo impacto na população e no partido foi proporcional aos valores e participantes descobertos. É "o episódio mais vergonhoso da história do PT", admite Celso, apesar da crítica ao apelo dado por passar a impressão de que as descobertas eram produto do governo Lula e não um esquema que vinha de décadas, agora com a participação de petistas: "Todas as grandes campanhas eleitorais haviam sido financiadas pelos presos na operação". Inegável, porém, os lamentáveis simbolismos embutidos no caso: foi em uma assembleia de petroleiros na Bahia que Lula expusera pela primeira vez a ideia de construir um partido operário; o PT é fruto da industrialização brasileira, cujo maior símbolo é a estatal criada por Vargas. 

As primeiras denúncias vieram no decorrer da campanha presidencial de 2014, disputada em clima tenso, com o PSDB tentando se aproveitar delas. Por cerca de três pontos percentuais os tucanos não obtiveram êxito. Celso, entretanto, pondera:  "Não há evidências de que a Lava Jato fosse na origem uma operação politica. Entretanto, isso não quer dizer que ela não tenha tido efeitos politicos; nem que esses efeitos não tenham sido modulado pelo jogo de forças da politica brasileira entre 2015 e 2016; nem, muito menos, que algum de seus membros mais notórios não tenham se tornado politicos e e se aventurado em disputas de poder muito acima de suas habilidades". A referência óbvia é especialmente a Sérgio Moro, cuja atuação política ficaria, para ele, explícita em 2016, a partir da condução coercitiva de Lula, preso cerca de dois anos depois.

No entender de Celso, a acusação contra o petista foi baseada em premissas frágeis, pois, sendo o esquema anterior aos governos petistas, seria difícil correlacionar a reforma realizada por uma empreiteira no triplex no Guarujá a uma “remuneração” para o “chefe do Petrolão”. O esquema não tinha chefes, e o imóvel não foi comprado pelo petista. A essa debilidade da peça acusatória se somaria o desrespeito ao devido processo legal, exposto na série de reportagens que ficou conhecida como Vaza Jato": "Ele [Moro] agiu assim por ser de direita? Por que o antipetismo era furioso nos meios sociais em que um juiz circulava em 2016? Por que tinha ambições politicas próprias? Por que acreditou na aura de messianismo que a opinião publica lhe havia conferido no inicio? É difícil saber com base na documentação disponível, mas parece claro que uma convergência entre suas predisposições politicas e um clima ideológico receptivo ao messianismo levou o juiz de Curitiba a entrar no jogo". De fato, é no mínimo controverso aceitar um cargo no governo que foi eleito em muito graças a sua atuação como magistrado. Segundo consta, foi convidado antes da votação. Dias antes do segundo turno, Moro deixou vazar a delação de Palocci. 

Na democracia é fundamental a alternância de poder para o processo de consolidação das instituições de controle. Quanto mais tempo no poder um partido permanece, mais forte no Estado ele se torna. Quanto mais forte, mais capaz de inibir a autonomia delas. É a partir dessa constatação indubitável que Celso sustenta que o que levou o PT a "cair primeiro" foi ele, dentro do establishment, ser um partido fraco. Além de mídia e generais, nunca tivera a proporção de prefeituras e governos estaduais dos partidos de centro e direita e jamais alcançara sozinho maioria parlamentar. "Se o PT estava contando, ao aderir as práticas tradicionais da politica brasileira, que teria a mesma blindagem dos partidos mais velhos, errou feio", afirma, para em seguida destilar uma de suas típicas provocações: "Mais do que fortalecer órgãos e normas, a maior ajuda do partido no combate a corrupção foi ficar de fora dos acordos de transição pós-ditadura, ter um perfil ideológico diferente dos conservadores que conduziram o processo e na sequencia, vencer a eleição de 2002".

Gostem ou não petista e lavajatistas, a Lava- Jato foi resultado desse fortalecimento institucional, diz Celso. No entanto, os motivos que levaram o PT a aprimorar essas instituições ao mesmo tempo que não só entrava como mostrava ter gostado do jogo é uma pergunta que ele levanta sem respostas definitivas. Certeza apenas uma: nenhum partido é um bloco monolítico. Seja como for, na política, mais do que os fatos, importa é a versão dos fatos. Já fragilizada pela estreita vitória eleitoral e ruídos com sua base parlamentar desde seu primeiro ano de governo, Dilma não resistiu à "tempestade perfeita" formada por recessão e denúncias de corrupção simultâneas, conjunção de males que transmitiu à opinião pública a equivocada percepção de a segunda ser causa da primeira. 

O livro remonta o jogo político naqueles 16 meses que separam o início do segundo mandato e a votação que a derrubou, um processo, afirma Celso, iniciado como retaliação de Eduardo Cunha à “faxina” que a presidente fizera contra seus apadrinhados, inclusive na Petrobras. Em algum momento não preciso, o vice-presidente Temer abraça a iniciativa. Era preciso “estancar a sangria" do escândalo. Nas palavras de caciques peemedebistas vazadas de um grampo que se eternizou na História, era imprescindível um "grande acordo nacional, com Supremo, com tudo" que delimitasse a Lava Jato onde estava. Cunha não podia usar delações contra Dilma, pois, enquanto ela pessoalmente não era citada, ele e tantos outros parlamentares em muitas delas apareciam. Restava apelar para as "pedaladas fiscais"  na visão de Celso, "irregularidades menores" praticadas em outros governos e que, em outra situação, jamais seriam suficientes para destituir uma presidente. Grande maioria delas, por sinal, praticadas no primeiro mandato, o que enfraquecia ainda mais a acusação, pois, diz ele, impeachment só é sanção para crimes de responsabilidade realizados no mandato em vigor. 

No áudio, o senador Romero Jucá, futuro ministro de Temer garantia: "Enquanto ela estiver ali, a imprensa, os caras que querem tirar ela, essa porra nunca vai parar". Meses depois do votação, a chapa Dilma/Temer foi absolvida no TSE e a Câmara rejeitou dois pedidos da PGR para denunciar Temer por corrupção. "Muita gente nas manifestações queria o combate a corrupção. O empresariado desejava a implementação do programa ´Uma ponte para o futuro’ [de diretrizes liberais, lançado pelo PMDB]. Os novos movimentos de direita, como MBL e Vem Pra Rua almejavam ser atores políticos de primeira linha. Mas os deputados que votaram o impeachment derrubaram a presidente pra matar a Lava Jato", afirma Celso. 

Considere você Dilma culpada ou não, nessa diferenciação, errado ele não está, o que, porém não o leva reverberar o uso do termo "golpe", tão utilizado por políticos, militantes e alguns intelectuais de esquerda. Avalia que houve sim "algo de irregular" e, portanto, no sentido semântico de "falcatrua", é totalmente plausível essa narrativa. Contudo, dado a inexistência de consenso universal sobre o que é um golpe de estado - exceto, claro, os sob armas, ainda é controverso assegurar que foi o caso. "Há uma "zona cinzenta entre golpe e impeachment", pondera.

Hoje, para a opinião pública, o STF é o responsável por ter recolocado Lula no jogo eleitoral de 2022, após considerar Moro parcial e a vara de Curitiba sem jurisdição. É fato, concorde-se ou não com a decisão. Mas, recorda-nos Celso, foi essa mesma Corte que, em 2016, ao modificar a interpretação tradicional, passou a entender como constitucional a prisão em segunda instância (entendimento revertido de novo em 2019) e, em abril de 2018, negou habeas corpus ao então ex-presidente, então líder nas pesquisas. Era a época em que Gilmar Mendes dava entrevistas alertando sobre os riscos do "bolivarianismo", e o governo Temer batia recordes negativos de popularidade, quanto mais os números da economia não davam sinal de recuperação e raposas peemedebistas era presas. O caso Joesley terminaria por enfraquecê-lo eleitoralmente, levando consigo Aécio Neves e os tucanos.

"Os dois lados foram atingidos pela operação, mas a direita se mostrou muito mais capaz de se defender do que a esquerda. Nenhum direitista caiu quando isso teria acarretado transferência de poder para esquerda”, assevera Celso. Política, porém, é como nuvem, comparava o ex-governador mineiro Magalhães Pinto: seu desenho muda em um piscar de olhos. Se o objetivo era abrir caminho para a volta dos tucanos em 2018, o impeachment e Sérgio Moro falharam. Ironicamente, olha uma nova ironia, seria o PT, ao final de tudo, o menos afetado politicamente. Mesmo com Lula na cadeia, o “poste” Fernando Haddad alcançaria o segundo turno mesmo sendo lançado apenas um mês antes da votação. Por uma diferença de 10 pontos, perderia para Bolsonaro, retrato dos “porões” do Dops. 

Em meio à devastação do sistema partidário e apesar da leve queda no número de parlamentares, o PT saiu das urnas naquele ano como a maior bancada da Câmara, ao lado do PSL de Bolsonaro. PSDB E PMDB se viram reduzidos à metade. Poucas vezes se viu tiro no pé tão profundo quanto o dado por tucanos e aliados. Em seu lugar, ascendia o extremismo reacionário, que, na campanha cantava, em tom de deboche, “Se gritar, pega Centrão”, mas, no governo, entre tantas ameaças às instituições, fez do que há de mais antigo e fisiológico na política - o símbolo maior do combatido em junho de 2013 - o coração de seu governo. Após abandonar o projeto de criar um partido próprio, o “mito” e esposa  hoje são sustentados pelo “ mensaleiro” Waldemar através do outrora demonizado fundo público .

Lula não foi solto em 2019 apenas pelas revelações da "Vaza Jato", garante Celso: "Quando saiu da prisão, a Lava Jato já havia sofrido inúmeras derrotas nas mãos de Temer e Bolsonaro. No fundo, a prisão de Lula é que foi extemporânea: ocorreu quando a operação já declinava". Considerado fora do mapa político entre 2016 e 2017, o PT foi o único dos grandes partidos a permanecer de pé. Segundo Celso, não por coincidência o único a ter nascido fora do Estado. Foram décadas na oposição se organizando antes de chegar ao poder: "Exatamente porque nunca teve poder institucional que o PT precisou se organizar como um partido mais bem estruturado do que seus concorrentes. Por isso sobreviveu melhor do que seus concorrentes à crise politica”.

Foram quatro anos de golpismo bolsonarista. Os fatos vistos entre outubro e janeiro apenas o explicitaram. Talvez por isso e levando-se em conta essa força do PT, não chega a ser tão profética sua defesa por uma ampla coalizão liderada pelo partido: "O que parece provável, ao menos quando este livro termina de ser escrito, é que a tarefa de reorganizar a democracia brasileira ficará para o PT e seus aliados. isto é, ficará com partido que não participou da democratização pelo alto nos ano 80". Outra ironia do destino. Hoje, Geraldo Alckmin e Simone Tebet compartilham com os ex- adversários  a Esplanada dos Ministérios.

Pode-se discordar do que o partido defende e das interpretações de Celso para os escândalos de corrupção, é bastante difícil refutar sua opinião sobre Bolsonaro, mas é inegável seu mérito em captar as nuances dos acontecimentos, fugindo do maniqueísmo. Mérito ainda maior por atingir com louvor o principal objetivo do livro: explicar-nos as razões da especificidade do PT, um experimento que, tantas vezes dado como fracassado, surpreendente deu certo. Duverger, em seu clássico, apontava para a superioridade organizativa dos partidos de massas. Embora, como toda teoria, atualmente essa não seja tão consensual, pelo menos no Brasil, o PT a reforça. Se hoje o partido conduz pelo alto a "redemocratização", é porque foi ele que inovou na democratização por baixo. Seus vínculos perenes com a sociedade civil são o alicerce de sua estrutura. Sua estrutura canaliza esses vínculos. Coeso e orgânico, como nenhuma das outras grandes e médias legendas brasileiras.  

O PT "significou a entrada no jogo de poder de outras forças mais populares", diz o insuspeito Fernando Henrique Cardoso. Quando você quiser respostas para a votação de Lula ano passado na periferia paulistana, em Porto Alegre, interior mineiro e estados nordestinos, busque o perfil dessas regiões e releia esse texto. Se você ainda não entender, precisa antes compreender o que é de fato democracia e um verdadeiro partido político. Com razão, o PT é refutado por muitos por seus escândalos e erros. Mas, muitas vezes, vindo de certos setores da sociedade, o é por seus acertos e significado.