domingo, 13 de dezembro de 2020

A mais humana poesia de Neruda

 Por Murillo Victorazzo*

"Que a crítica apague toda a minha poesia, se achar por bem. Mas este poema, que hoje recordo, ninguém poderá apagar." O poema em questão não é um dos tantos eternizados com as palavras por Pablo Neruda, mas sim como ele, um dos principais nomes da literatura latino-americana, considerou, em entrevista, sua façanha mais brilhante: conseguir embarcar, em 1939, milhares de refugiados espanhóis em direção ao Chile.

Naquele ano, um gigantesco corredor humano de cerca de 500 mil pessoas haviam fugido para a França enfrentando a neve, o medo e a fome, enquanto outros tantos encaravam os desconhecidos perigos do alto dos Pirineus, por onde imaginavam haver menos policiamento. Buscavam todos escapar das execuções, cadeias e torturas a que estavam fadados após a derrota dos republicanos (os partidários do governo democraticamente eleito composto por socialistas e liberais) para as tropas do general Francisco Franco.

Com saldo estimado em aproximadamente meio milhão de mortos, a Guerra Civil Espanhola rachou violentamente o país por três anos e resultou em uma longa e feroz ditadura de cunho fascista católico. Um regime sanguinário que, entre prisões, desaparecimentos e assassinatos, sufocou direitos, culturas, autonomias regionais e vigorou até a morte do “Generalíssimo” (como Franco era conhecido), em 1975.

A missão de Neruda só foi possível após ele convencer o governo de seu país, que temia a reação da direita conservadora local, avessa àquela "gente ruim", os "vermelhos" ateus, "violadores de freiras". Após organizar, com ajuda de entidades e simpatizantes uruguaios e argentinos, o financiamento do Winnipeg, antigo cargueiro cuja capacidade para cem pessoas foi ampliada a fim de suportar dois mil exilados, coube ainda ao poeta definir quais seriam as famílias escolhidas. Famílias que, além de terem enfrentado as dores e os perigos da “Retirada" (o êxodo), encontravam-se sob as condições subumanas dos campos de refugiados das praias do sul francês. Morrer de frio lá não era força de expressão.

A ordem do presidente centro-esquerdista Aguirre Cerda havia sido selecionar apenas trabalhadores braçais (camponeses e operários), necessários como mão de obra para um país recentemente vítima de forte terremoto. Por não querer importar conflitos políticos alheios, intelectuais, profissionais liberais e jornalistas, com suas retóricas politizadas, deveriam ser vetados. Neruda, contudo, não segue fielmente o rito, e, entre outros, aceita o embarque do engenheiro e jornalista Victor Pey, privilegiado por receber a chance de recomeçar a vida longe de um continente que, além de tudo, via-se à beira de outra guerra mundial.

Amigo de Isabel Allende, Pey, durante vários anos, contou à premiada escritora detalhes daquela epopeia transatlântica. Memórias a partir das quais ela escreveu "Longa pétala de mar", romance lançado em 2019 e cujo título foi retirado de um verso de Neruda no qual ele se refere a seu país como uma "longa pétala de mar, vinho e neve".

Morto aos 103 anos, semanas antes de a amiga enviar-lhe os manuscritos do livro a ele dedicado, Pey serviu de inspiração para Victor Dalmau, o idealista, sisudo e caridoso médico catalão protagonista da trama. Uma obra que nos prende, seja emocionado, indignado ou sorrindo, graças, em muito, à tradicional sensibilidade da autora na escolha das palavras. Não faltam descrições detalhadas de ambientes tão diversos - de casarões luxuosos a sangrentos campos de batalha, tampouco, e às vezes sutilmente irônicas, de trejeitos e personalidade dos personagens. 

O livro é repleto de diálogos divertidos, tensos, tristes e reflexivos. "Pátria é onde estão nossos mortos", ensina Carmen ao filho Victor. Dentre eles, alguns servem para, sem didatismo entediante, explicar ou confrontar correntes políticas e os panoramas socioeconômicos dos países em questão. Seja na Catalunha, França, Chile ou mesmo Venezuela, o ambiente político é explorado como fio condutor para narrar os dramas, dilemas, casos de amor e interesses dos personagens. Um roteiro em potencial, pronto para ser adaptado às telas. 

Preconceitos, culturas, costumes e conflitos inerentes à sociedade espanhola e em especial à chilena dos períodos retratados, assim como a geografia desses países, moldam, entre encontros e desencontros, o longo passar dos anos dos Dalmau e dos ricos conservadores Del Solar, famílias tão diferentes cujas vidas se entrelaçam. 

Isabel se utiliza tanto do lirismo como da objetividade para narrar a progressiva cisão política de seu país durante as décadas de 60 e 70 - um Chile dividido "em bandos irreconciliáveis", onde "amigos brigam, há famílias divididas ao meio e já não se consegue falar com ninguém que não pense como a gente". Qualquer semelhança... 

Quando, no dia 11 de setembro de 1973, eclode o virulento golpe militar liderado pelo general Augusto Pinochet, quartelada que leva à morte o amigo e presidente socialista Salvador Allende (primo-irmão do pai de Isabel), Victor se encontra novamente perante rajadas de metralhadoras, voos rasantes de aviões e helicópteros, soldados armados de caras pintadas, execuções, tortura e prisões. Assiste a outro governo legitimamente eleito pelo voto popular sucumbir à reacionaria armada. Desta vez, porém, sem quase nenhuma resistência.

Ao ver, ao fundo, as chamas do palácio presidencial de La Moneda, bombardeado por caças do próprio país - um dos episódios mais sórdidos da História, traumas que pensara terem ficado na penumbra da memória vêm à tona. Dois anos antes da morte de Franco, irá, outra vez, encontrar-se diante do caos de um hospital superlotado pela violência política. Usando seus conhecimentos aprendidos na luta contra o fascismo, tentará novamente salvar vidas ameaçadas por mais um conflito fratricida.

Outra cruel ditadura se iniciava. Com ela, partia “a ilusão de controlar alguma coisa em sua existência". De perto a morte voltava a rondá-lo, se não pelo sadismo e ódio em nome dos falaciosos "valores da pátria e da família", pela exaustão e desesperança. Um contexto que o colocará diante de novo exílio, fruto de embate ideológico semelhante ao vivido 34 anos antes do outro lado do Atlântico.

"A realidade tinha ficado escorregadia, vivia-se entre omissões, mentiras e eufemismos, numa grotesca exaltação benemérita da pátria, dos valentes soldados e da moral tradicional [...] onde estavam antes os torturadores e delatores que não eram vistos? Surgiram espontaneamente em poucas horas, preparados e organizados como se tivessem treinado durante anos. O Chile profundo dos fascistas sempre ali estivera, debaixo da superfície pronto para emergir", pensa consigo próprio em um dos trechos mais emblemáticos do livro, necessário paralelo para os dias de hoje, inclusive no Brasil.

Além do apaixonante tema, o segredo do sucesso do livro é sua linguagem rica embora simples e direta, o que nos evidencia como são dispensáveis exageros estilísticos ou vocabulário demasiadamente rebuscado para firmar uma escrita encantadora.

Refugiados, socialismo, fascismo, democracia, ditadura, idealismo e pragmatismo. Uma linda aula de História de 275 páginas permeadas de sucessos e insucessos familiares, políticos e profissionais. Um romance tão delicado, apesar de intenso e dolorido, que faz por merecer ter na abertura de cada capítulo trechos de poesias de Neruda. Afinal, como ensina Roser Bruguera, a estoica esposa, colega, confidente e companheira de saga de Victor Dalmau, "a dor é inevitável; o sofrimento é opcional".

* Murillo Victorazzo é jornalista, com Especialização em Política & Sociedade ( Iesp-UERJ) e MBA em Relações Internacionais ( FGV-Rio)

segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

"Estamos mais longe da redemocratização hoje do que em 2019", diz historiadora venezuelana

Por Murillo Victorazzo

Um país militarizado, absolutamente controlado. Uma oposição fragmentada e fragilizada. Um sociedade paralisada pelo medo e pela pandemia, abandonada pelo governo, que "não se importa com os mortos pela Covid-19". Assim  pode-se resumir a Venezuela atual descrita pela historiadora Margarita López Maya, professora da Universidade Central da Venezuela e uma das intelectuais mais respeitadas do país.

Em entrevista à Janaína Figueiredo, publicada no Globo do último domingo, dia 6, Margarita demonstrou todo seu desalento com o futuro do país vizinho. "Estamos hoje mais longe da redemocratização do que em 2019. O que estamos vivendo pode durar muitos anos, ninguém sabe", lamenta, fazendo uma comparação sarcástica com Cuba, país parceiro ideológico do ditador Nicolás Maduro e cujos serviços sociais foram sempre a principal bandeira da esquerda latino-americana: 

"Estamos vivendo um totalitarismo do século XXI, bem diferente do que existe em Cuba. Aqui a educação e a saúde são um desastre, embora os militares, peça-chave do poder, sejam doutrinados pelos cubanos. A cúpula militar continua comprometida com o governo".

É neste contexto, agravado pela pandemia da Covid-19, na qual, segundo ela, o governo realiza apenas quatro mil testes por milhão de habitantes e as pessoas "não vão médico, não se testam; se curam sozinhas ou morrem", que a Venezuela  vai às urnas na próxima segunda, dia 8, a fim de escolher os novos integrantes da Assembleia Nacional.

Boicotada pelos principais partidos de oposição, que argumentaram não haver igualdade de condições e nenhuma garantia de transparência, a previsão é de uma elevada abstenção, em um cenário de crescente fragilidade do principal nome opositor, o autoproclamado presidente Juan Guaidó, reconhecido assim por cerca de 60 países, entre eles o Brasil. Para Margarita, o controle do Conselho Nacional Eleitoral pelo governo impossibilitará saber até a verdadeira taxa de comparecimento:

"Esta eleição não terá muita participação popular. O governo de Nicolás Maduro fará o que quiser. A principal oposição ao chavismo não vai participar e, portanto, o Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV) vai vencer. Maduro passará a ter maioria absoluta na Assembleia Nacional. Não devemos nem ter muita fraude, porque sem a oposição mais forte, ele não terá de fazer grandes trapaças para vencer."
 
No entanto, alguns segmentos menores da oposição aceitaram participar da disputa, como os tradicionais Ação Democrática e Copei, "disciplinados, graças a negociações com dirigentes que aceitaram as regras do jogo do chavismo". E há outros partidos à esquerda, "que acreditam que se pode competir nesse sistema" e estão dispostos a reconhecer Maduro como presidente. 

Essas dissidências, explica ela, permitirá a Maduro falar em diálogo e concessões: "Isso pode causar confusão, porque a comunicação na Venezuela está em níveis mínimos, muitas pessoas não entendem bem o que está acontecendo". 

O quadro para a oposição se complica com a deterioração da imagem de Guaidó após não conseguir terminar com o que chamou de o "fim da usurpação" do poder por parte de Maduro, sem conseguir convocar eleições gerais e livres: "As pessoas não estão satisfeitas com Maduro, mas tampouco confiam em Guaidó. Hoje, em torno de 60% dos venezuelanos não estão a favor nem de Maduro, nem de Guaidó. É um cenário triste, assustador. Temos uma grave crise de representação".

Segundo a última pesquisa da Datanalisis, a imagem positiva de Guaidó está em torno de 25%, enquanto a de Maduro se limita a 12%. "Mas a rejeição a Guaidó aumentou muito, está superando 50%. Diria que [ele está]em estado terminal, correndo o risco de se tornar irrelevante", ressalta.

Margarita critica a "submissão" de Guaidó a Leopoldo López (fundador e chefe do partido Vontade Popular, agora no exílio) e especialmente Donald Trump. Acredita, contudo, que Joe Biden vá continuar a reconhecê-lo como presidente legítimo, o que não significa um novo ciclo promissor para a oposição, fragmentada e em busca de novas lideranças, diante de uma população cansada da polarização: 

"A polarização existe no jogo político, mas as pessoas estão se afastando dela. Acham que esse jogo não trará mudança. Guaidó continua no jogo do tudo ou nada, e por isso está em declínio. A grande maioria dos venezuelanos buscará atores não polarizados, dispostos a tentar certos compromissos para melhorar a situação". 

O apoio externo também não dá a Margarita razões para otimismo. Ela afirma que é necessário reconhecer o fracasso da atuação da comunidade internacional, que sozinha não poderá garantir a sobrevivência de Guaidó: "Aplicaram sanções, pressionaram, falaram em invasão estrangeira, tentaram golpe. Mas Maduro continua firme, está ganhando tempo e continua com importantes aliados, como Irã, Turquia, Rússia e China. É preciso buscar outras saídas. Não há força para obrigar Maduro a nada". 

quinta-feira, 19 de novembro de 2020

O destino de Crivella é a lata de lixo da História

Por Murillo Victorazzo

 Rio de Janeiro, 19/11/2020. Pela manhã, vaza um vídeo em que Crivella, o bom pastor cristão, babando de raiva, chama pejorativamente de "viado" o governador paulista. À tarde, viraliza outro vídeo, em que o "bispo" não só mente sobre apoio do Psol a Paes, como descaradamente afirma que o partido ganhará a secretaria de Educação e assim, pasmem, implantará a "pedofilia nas escolas". 

À noite, em debate na Band, após Paes rotulá-lo de "pai da mentira", Crivella, em revide, chama o adversário de "madrinha da mentira". Logo depois, em tom irônico, em uma questão sobre política para mulheres, solta sutilmente que Paes "parece não gostar de mulheres". 

Nada é coincidência. Contextualize. Junte os pontos. Crivella baixou de vez o nível. Escancarou sua desfaçatez. É no desespero que o reacionarismo repugnante, vulgar, falso moralista, deixa para trás qualquer traço latente. 

Crivella sabe que, com 2/3 de rejeição, sairá pelas portas do fundo do Palácio da Cidade, onde só está graças à histeria antiesquerda de 2016 - e que sonhava repetir.  Ele representa uma mistura de má gestão, ladroagem e fundamentalismo charlatão religioso.

Será enxotado, assim como foram recentemente semelhantes no hemisfério Norte - para o desespero de seus apoiadores com bíblia e coturnos no Planalto e planície. Este é nosso alívio: pode demorar até um pouco, mas acabam na lata de lixo da História.

sexta-feira, 21 de agosto de 2020

Mais coesos, democratas apostam na empatia do vovô boa praça

Por Murillo Victorazzo

Quando as primárias não deixam grandes sequelas internas, convenções partidárias nos Estados Unidos têm basicamente uma utilidade: aproveitar o enorme espaço gratuito nas mídias para difundir os pilares das campanhas eleitorais. Assim se encontra o Partido Democrata para as eleições de 2020, cenário distinto ao que muitos imaginaram após os primeiros resultados nos estados no início do ano. Temia-se o pugilato de quatro anos atrás.

Pacificados, os democratas puderam se ater ao tipo de mensagem com a qual tentarão voltar à Casa Branca. Personificada em um veterano político do noroeste americano que, se eleito, será o mais velho a sentar-se à mesa do Salão Oval, ela pode ser captada nas entrelinhas ou de forma clara através de duas palavras: empatia e democracia.

Ainda que muitos eleitores do segundo colocado, o "socialista democrático" Bernie Sanders, não se empolguem com o escolhido Joe Biden, o clima se difere bastante diferente ao de 2016, quando a tensa disputa com Hillary Clinton consumiu as energias da legenda até o dia da convenção. Apenas com os votos dos "superdelegados" ( nomes tradicionais do partido, detentores e ex-detentores de mandato, não eleitos nas primárias), a ex-senadora alcançou o número necessário para a nomeação.

A sensação de vítima do establishment  entre Sanders e seus militantes tornou-se revolta com o vazamento, às vésperas do evento, de emails que revelavam manobras de integrantes do Comitê Nacional Democrata para minar sua candidatura. Cisão irrecuperável: a ausência de muitos deles nas urnas em novembro foi determinante para a  surpreendente vitória de Donald Trump.

A antipatia da cúpula democrata por Sanders continuou. Mas, desta vez, limitou-se a articulação por união dos demais pré-candidatos "centristas" em favor de Biden. O ex-vice-presidente já conquistara larga diferença de votos, quando ao "socialista democrático" não restou desistir. As insatisfações da esquerda democrata continuam, assim como a dúvida se, dessa vez, esse eleitorado sairá de casa para votar contra o atual presidente. Mas o partido chegou à convenção bem mais coeso.

Além de destaque para negros, gays, imigrantes/latinos e classe média trabalhadora em cada um dos quatro dias, viu-se a estratégia discursiva dos democratas também nos detalhes: a palavra empatia esteve presente em quase todos os oradores. Kamala Harris, ao aceitar formalmente a candidatura a vice-presidente, alvejou: “Reconheço um predador quando vejo um”.  Na sua vez de aceitar, Biden não foi tão implícito: "A compaixão está na cédula. Decência, ciência, democracia. Está tudo na cédula. E a escolha não poderia ser mais clara"

Sutis contrapontos a Trump que sinalizam a tentativa de levar a disputa para além da dicotomia partidária. Os valores democráticos, civilidade e caráter acima de tudo, retórica reforçada pela presença de nomes relevantes da sigla adversária como Colin Powell, John Kasich e familiares do falecido John MacCain.  Uma ampla coalizão com democratas, independentes e republicanos moderados. Este é o objetivo. "Esta administração já demonstrou que destruirá nossa democracia se isso for necessário para vencer", alertou Obama.

Os democratas passarão a campanha inteira tensos a cada declaração de Biden, conhecido por gafes e oratória insossa, amenizadas talvez pelo estilo vovô boa praça. Mas, pelo menos nessa quinta-feira, puderam dormir  tranquilos. O até agora mais importante discurso de seu candidato foi, em tom e conteúdo, forte, eloquente - "presidencial", como os americanos costumam dizer.

Biden colocou-se como "a luz em época de escuridão"; um presidente que unirá o país. Um leve conforto para quem já contou com, gostem ou não dele, um orador brilhante do nível de Obama, dom, aliás, que pode ser revisto ontem. Para quem novamente terá do outro lado do ringue um trator humano extremista que empolga sua militância a cada tweet e declaração ferinos, sarcásticos, vulgares até. Restam infindáveis pouco mais de 70 dias.

terça-feira, 18 de agosto de 2020

Relação entre racismo e austeridade fiscal polariza analistas

Por Fernanda Perrin (Folha de S.Paulo, 16/08/2020)

“É incompatível ser antirracista e defender política de austeridade e o desmonte do SUS.” A afirmação, feita pelo jurista e filósofo Silvio de Almeida durante sua participação no programa Roda Viva, polarizou economistas.

Liberais reagiram questionando o uso do termo “austeridade”, que teria sido equivocado —segundo eles, a depender de como é executada, austeridade poderia ser inclusive antirracista. Por outro lado, economistas críticos a esse tipo de política corroboraram Almeida: cortes de gastos públicos penalizam mais a população negra, levando ao aumento da desigualdade racial.

A divergência começou no Twitter, mas já extrapolou para artigos, como o publicado pelo próprio Almeida esclarecendo seu argumento no blog da editora Boitempo, e outro do economista e consultor legislativo Pedro Nery intitulado “Austeridade progressista” em sua coluna no jornal O Estado de S. Paulo.

Para os liberais, trata-se de uma questão sobretudo semântica. “Para mim, o problema está mal definido, porque austeridade incorpora tanto aumento de imposto sobre lucros e dividendos e grandes fortunas quanto redução de gastos sociais. Cada um vai ter um impacto diferente sobre a população atingida e sua composição étnica”, afirma Carlos Góes, pesquisador-chefe do Instituto Mercado Popular e ex-assessor econômico especial da Presidência da República durante o governo Michel Temer.

Na mesma linha, o economista Pedro Menezes, também ligado ao Instituto Mercado Popular, afirmou em sua conta no Twitter que “se austeridade for encarada como mera responsabilidade fiscal, então é a anti-austeridade que é racista. Desequilíbrios macroeconômicos trazem imensos prejuízos para os negros e favorecem a ascensão do populismo reacionário”.

Já Almeida define austeridade como “o corte das fontes de financiamento dos ‘direitos sociais’ a fim de transferir parte do orçamento público para o setor financeiro privado por meio dos juros da dívida pública”. De modo semelhante, Luiz Augusto Campos, professor de sociologia e ciência política da UERJ, entende austeridade como “redução do papel de proteção social do estado”.

O economista Pedro Rossi, professor da Unicamp, concorda com Góes que há um problema conceitual na discussão. “Austeridade pode ser via impostos progressivos? Sim, mas não é como vem sendo aplicada no mundo todo desde 2009”, afirma.

“Quando uma política econômica coloca constrangimento ao crescimento do gasto público, ela reforça o racismo estrutural, porque esse é o lado da política fiscal que reduz as desigualdades. Nesse contexto, a austeridade que é praticada no Brasil é racista”, diz.

Góes, no entanto, discorda dessa afirmação. Defensor da reforma da Previdência, ele diz que a mudança —a principal desde a implementação do teto de gastos com o objetivo de equilibrar o orçamento— teve efeitos progressivos ao proteger os mais vulneráveis ao mesmo tempo em que teria colocado um fardo maior sobre quem ganha mais.

Apesar dessas discordâncias, quando o assunto é corte de gastos públicos, especialmente os voltados para programas sociais, há certa convergência entre os dois campos sobre o fato de que o impacto negativo é sentido sobretudo pela população negra.

Isso acontece, em primeiro lugar, porque são os mais pobres os que mais dependem de serviços públicos. Como essa população é majoritariamente negra, ela é mais impactada quando há cortes no financiamento de saúde e educação, por exemplo.

“A partir do governo atual, ocorre menor ênfase em expandir beneficiários do Bolsa Família. Obviamente isso prejudica mais a população mais pobre, na qual a população negra é sobrerepresentada”, afirma Góes.

Mas, de acordo com Campos, há ainda um segundo efeito, relacionado diretamente à discriminação racial, que explica o ônus maior sobre a população negra: o aumento da competição pelos serviços providos pelo estado.

Um exemplo se daria no SUS: na medida em que o acesso a ele é mais restrito, a população negra é mais atingida porque sofre discriminação mesmo dentro do sistema. Situação semelhante ocorre na educação: num cenário em que esses espaços são limitados, pessoas brancas pobres têm mais chance de alcançá-los porque têm redes sociais maiores capazes de fornecer ajuda.

“Temos sempre que distinguir desigualdade de condição da desigualdade de oportunidades. Condição é classe, seu ponto de partida na competição. O Brasil tem grande desigualdade de classes que atinge pessoas de diferentes raças. Já a desigualdade de oportunidades é sempre relacional. A população negra é mais atingida pela de condições, porque tem pontos de partida piores, mas sobretudo pela de oportunidade, porque tem menos chance de melhorar de vida”, diz Campos.

Estudo publicado no ano passado na revista BMJ Global Health identificou uma queda real de 15% nas despesas autorizadas de 19 programas sociais entre 2014 e 2017, período em que o ajuste fiscal passou a ser implementado no Brasil –superior, portanto, à redução geral das despesas, de 11%. Entre as quedas, destacam-se a de 80% no Programa Confrontando o Racismo e Promovendo a Igualdade Racial, de 63,5% no Programa de Políticas para as Mulheres, de 82,4% no de Habitação Recente e de 84,6% no de Segurança Alimentar e Nutricional.

Os programas foram selecionados pelo seu impacto nas chances de o Brasil alcançar os objetivos de desenvolvimento sustentável estabelecidos pelas Nações Unidas. Não foram analisadas as despesas efetivamente executadas, mas as autorizadas.

O estudo, assinado por pesquisadores da UFBA, da Universidade de Glasgow, do Imperial College e da Fundação Oswaldo Cruz, conclui que “há um risco de que as medidas de austeridade fiscal promoverão uma economia que beneficia mais os privilegiados na sociedade em detrimento dos brasileiros pobres, negros, mulheres, rurais e da região Norte”.

Góes, por sua vez, destaca que não se pode perder de vista que estabilidade macroeconômica –objetivo declarado do ajuste fiscal– impacta desproporcionalmente a vida dos mais pobres, dentre os quais os negros são sobrerepresentados.

“Ter um ambiente econômico de crescimento e estabilidade com inflação baixa é importante para os mais pobres. Se você pensar na época da hiperinflação, os ricos investiam em overnight e os pobres tinham que correr para o mercado para fazer a compra do mês”, afirma o pesquisador-chefe do Mercado Popular.

terça-feira, 11 de agosto de 2020

Dois EUA em confronto: enfim um debate entre vices que vale a pena

Por Murillo Victorazzo

Mulher negra da cosmopolita California, ex-procuradora-geral do estado, de oratória aguerrida, filha de jamaicano e indiana, entusiasta do Black Lives Matters, defensora de políticas públicas progressistas sobre drogas, casamento homoafetivo, imigração, acesso a armas e sistema prisional.

Rotular Kamala Harris de "esquerda radical", como Trump já começou a disseminar, nada mais é do que caricato porém ardiloso espantalho eleitoral, mesmo em um país onde a defesa de um sistema público universal de saúde é vista como socialismo. Serve apenas para assustar os desinformados e mobilizar sua base radicaloide à direita.

Mas é inegável o profundo contraste com o atual vice-presidente, Mike Pence, homem branco, de semblante blasé, extremamente religioso, de Indiana, simpatizante do Tea Party, ala mais conservadora dos republicanos. Dois Estados Unidos opostos. 

Imageticamente, embora também em conteúdo, debates televisivos entre eles tendem a ser mais instigantes e emblemáticos, ainda que obviamente bem menos importantes, do que os dos veteranos brancos cabeças de chapa: um "picolé de chuchu" atrapalhado contra um sociopata vulgar e autoritário.

sexta-feira, 31 de julho de 2020

Merquior e a falácia liberal bolsonarista

Por Murillo Victorazzo

Diplomata, crítico literário, sociólogo e advogado, José Guilherme Merquior foi um dos expoentes do pensamento liberal brasileiro da metade final do século XX. Falecido precocemente em 1991, aos 50 anos, seu brilho intelectual era elogiado até por críticos de esquerda. No ensaio " O argumento liberal", escrito em 1981 e reproduzido em junho passado pelo "Estadão", Merquior faz um breve apanhado sobre a evolução e as nuances do liberalismo para estruturar o desenvolvimento de suas ideias. Alguns trechos ajudam a esclarecer a falácia da autoimagem "liberal conservadora" do bolsonarismo.

Como protagonistas das fontes ideológicas descritas na obra, destacam-se os pensadores britânicos liberais Leonard Hobhouse e Thomas Green. Do primeiro, Merquior ressalta a ideia de que "a liberdade social, baseada na autodisciplina, é algo a ser desfrutado por todos os membros da sociedade; e consiste na liberdade de escolher linhas de ação que não envolvam dano a outrem”. Liberdade que, segundo Green, torna-se  valiosa apenas como meio para um fim maior, o bem comum:  "A coerção estatal não é o único obstáculo à liberdade. Barreiras econômicas e sociais também o são, o que torna legítimo, para removê-las, o recurso à ação do Estado".

A partir dessas premissas, Merquior sustenta que, "não há legitimidade fora do ideal democrático, o que supõe a universalidade da cidadania, dos direitos políticos, e não apenas [...] a dos direitos civis. Não é só a segurança do indivíduo que se consagra; é também o seu direito de participação política - para não falar de certos direitos sociais".

Merquior faz questão de explicar a contradição entre liberalismo e conservadorismo. O conservador, afirma, além de apresentar uma visão pessimista da politica como solução de todos problemas, considera que "tanto a autoridade estabelecida como o status quo social tendem a ser sagrados" - enquanto, para o "verdadeiro liberal", estes nunca o são: "Assim como o fundo da ética liberal é o utilitarismo, o fundo de sua epistemologia política é o empirismo, ou seja, a disposição a submeter a autoridade e a ordem ao teste da experiência, sem sacralizá-las a priori".

Bastam esses breves apanhados para contrapormos o bolsonarismo a essas duas linhas tradicionais de pensamento. Para início de conversa, um liberal não corta instrumentos básicos da busca pela "universalidade da cidadania", como visto em diversos decretos de ministérios e órgãos que retiraram ou diminuíram a representação da sociedade civil em seus conselhos. Muito menos demoniza - quando não tenta criminalizar - ONGs e  movimentos sociais, o que é bastante distinto de responsabilização judicial de eventuais ações específicas de alguns seus integrantes. 

A caça às bruxas a "militantes", em sua enviesada e pejorativa ressignificação do termo como sinônimo de esquerda, vai de encontro ao "direito à participação política",  direito que não se resume ao voto, como preconcebido nas democracias minimalistas evocadas por populistas de direita, que se veem como a encarnação do "povo-uno". Um liberal jamais rotularia direitos humanos como "esterco da bandidagem", muito menos bradaria em cima de trio elétrico que "não tem essa historinha de Estado laico. As minorias que forem contra, que se mudem ou se curve para as maiorias”.

Do ponto de vista econômico, o bolsonarismo se apega ao mais rudimentar ultraliberalismo. Portam-se como papagaios estereotipados da escola austríaca de Ludwig von Mises e Friedrich Hayek: rezam por um reducionismo financista robotizado, fundamentalistas de um deus chamado mercado e sua suposta geração espontânea benéfica e infalível - como tudo ligado ao divino. 

Libertários, como a cultura norte-americana exportou. Ou liberistas, herdeiros de Herbert Spencer,  outro filósofo britânico, para quem esse mercado, produto de forças extra-humanas, é o organizador último da vida social. Sendo este intangível, qualquer noção de justiça social firmada pela "vontade arbitrária" dos pactos e leis humanas seria não apenas disfuncional como "primitivas" e "autoritárias".

A direita palaciana ignora toda complexidade do liberalismo como corrente política e econômica, algo bem mais rico do que o banal clichê da defesa do "Estado mínimo" e a consequente depreciação de todo setor público. Instrumentaliza-o para tentar justificar os interesses do homem autocentrado, seus desejos de preservação - ou recuperação - de privilégios e padrões sociais e culturais, sem qualquer tipo de amarras. Assim é inclusive nas questões sanitárias da pandemia: obrigatoriedade de máscaras e vacina, distanciamento social. "Não existe essa coisa de sociedade, existem indivíduos", disparou Margareth Thatcher na década de 80. Em resumo, a defesa da lei do mais forte.

Embora diferentes, como Merquior sustenta, é por defender que não é a política, mas sim a total liberdade econômica, quem organiza o mundo que a crença hayekiana ganha viés conservador. Ao refutar qualquer regulação humana, relega transformações do status quo ( se e quando se busca) ao tempo incerto do infalível mercado. Não surpreende seus simpatizantes se considerarem os verdadeiros liberais e tacharem os demais de “socialdemocratas”, "socialistas" ou "newleft", ou, no tom jocoso das redes sociais, "liberais limpinhos"

O bolsonarismo entra em choque com Hobhouse, Green, Merquior e norte-americano John Rawls, outro filósofo liberal que se afasta do dogmatismo hayekiano ao buscar conciliar as noções de liberdade e igualdade ( não o igualitarismo marxista) através da concepção de uma justiça distributiva. Rawls acreditava na justiça social como construção política fundamentada em direitos iguais e solidariedade coletiva, sem deixar de reconhecer a legitimidade - e utilidade - de certas desigualdades econômicas. 

"A sociedade é bem-ordenada não apenas quando está planejada para promover o bem de seus membros mas quando é também efetivamente regulada por uma concepção pública de justiça", afirma ele em sua obra clássica "Uma teoria da justiça".

Mas até mesmo o suposto conservadorismo de Bolsonaro não se sustenta. Porque, se, ao contrário do liberal, o conservador sacraliza a autoridade e a ordem, é impensável, por dedução óbvia, ele se utilizar da estratégia populista do confronto com as instituições. Jamais um conservador insinuará o não acatamento de ordem judicial ou minimizará (pra não dizer estimular) pedidos de fechamento da Corte Máxima. Nunca fará linchamento verbal de ministros e ameaças subliminares de ruptura.

O bolsonarismo deturpa como criminalização a visão pessimista da politica como "salvadora de todos os problemas": alveja a legitimidade do arcabouço político através de clichês falso moralistas generalizantes e ignorantes acerca do funcionamento de um sistema presidencialista bicameral, com seus freios e contrapesos, mesmo que o governo repita as piores práticas de sempre com o Centrão. Além do que estimulam sistematicamente o descrédito de órgãos estatais com reconhecidas expertises em estudos de políticas públicas e fiscalização (IBGE, IPEA, INPE, ICMBio, entre outros).  

Pela mesma razão, um conservador jamais estimularia a quebra de regras, especialmente dos braços armados do Estado, como a proibição de seus agentes da ativa se manifestarem politicamente. A quebra da disciplina e o incentivo à politização de quartéis são a antítese do conservadorismo. É, não fortuitamente, o retrato da lamentável carreira militar do presidente da República, marcada por agitações, prisões, quebra de disciplina, infrações, acusações de crimes. A sacralização aparece seletivamente, apenas para evitar qualquer fiscalização externa civil dessas forças - e na absorção acrítica de tudo que seu "mito" perseguido diz e pratica. 

Um conservadorismo de conveniência, sustentado por palavras de ordem vazias como "defesa da família e dos valores cristãos". Na realidade, o exemplo mais bem acabado de reacionarismo, divergente das ideia conservadoras tradicionais do  pensador britânico Edmund Burke, baseadas na prudência na condução das transformações sociais. Como legítimos reacionários, sonham, por definição, não com a mera manutenção do status quo presente, mas a volta ao status quo social passado, com todos preconceitos ( muitas vezes disfarçados com o típico "não sou, mas..."), benesses e elitismos que os envolvem. Dos piores tempos passados, por eles idealizados .

Reacionários: reagir a mudanças, nem que seja necessário chamá-las pejorativamente de "esquerdismo politicamente correto". Invertem, para isto, os papéis de opressores e oprimidos, vítimas e algozes: o movimento negro é quem causa racismo; é o "ativismo" gay que estimula a homofobia; o golpe de 1964 foi quem permitiu a democracia etc. Afinal de contas, esse país era uma "democracia racial" ( a ultrapassada teoria de Gilberto Freyre, tão cultivada na quartéis), classes conviviam harmonicamente, fruto de uma miscigenação idílica. A "esquerda" foi quem nos dividiu. Pátria amada, Brasil. Liberticidas que gritam por liberdade.

Verdadeiros liberais e conservadores, alguns hoje aparentando arrependimento, terão que, em algum momento, prestar contas no tribunal da História ou  com sua consciência, por não só ter permitido como estimulado a ascensão desse reacionarismo vulgar, eleito com apoio da elite econômica ( financeira, industrial e agrícola), de igrejas, Forças Armadas, polícias, sustentado no Legislativo pela "velha política", mas que insiste em se ver como "antissistema". Liderados por um suposto  outsider que há 30 anos, junto com sua família, representa o que há de mais velho nesse país: patrimonialismo, boquinhas,  mamata estatal, laranjas, funcionários fantasmas - corrupção. 

Desolador é o país que relegou ao esquecimento um intelectual como Merquior e emponderou com votos seguidores de um projeto de "filósofo" vulgar, picareta e extremista como Olavo de Carvalho, reduzindo ou deturpando as ideias liberais. 

Desalento que piora quando, do outro lado, setores da esquerda ainda se recusam a negociar pontos de contato com "social-liberalismo" do diplomata. Mesmo tendo o namorado em muitas políticas públicas na metade dos anos petistas no Planalto, insistem como discurso eleitoral cultivar o mofo sobre o papel do mercado; resvalam em uma ojeriza similar ao dessa direita empoderada em relação ao Estado. Desse confronto, mas tomando o cuidado para não parecer fazer falsas equivalências, nasceu o Brasil pós 2018. Azar o nosso.

quinta-feira, 30 de julho de 2020

Pesquisas econômicas avançam e apontam como racismo perpetua fosso social

Por Érica Fraga (Folha de S.Paulo, 18/07/2020)

Mulheres brancas têm uma vantagem salarial de 14% em relação às negras de mesma idade, escolaridade e estado de residência no Brasil. Em 2019, isso significava que, em média, as trabalhadoras pretas e pardas recebiam R$ 475 a menos por mês. Além de expressiva, a desigualdade de rendimentos feminina por cor da pele aumentou em relação a 2012, quando era de 11,5%, o equivalente a R$ 364 mensais (descontados a inflação do período).

No caso dos homens brasileiros, os brancos ganham 13% a mais que seus pares negros com características demográficas e educacionais semelhantes. Esse percentual, que representava R$ 624 a menos recebidos pelos pretos e pardos por mês em 2019, oscilou pouco nos últimos sete anos. Segundo o pesquisador Guilherme Hirata, da consultoria IDados, que fez os cálculos para a Folha, é difícil destrinchar os percentuais que expressam a desvantagem salarial por cor da pele, a ponto de identificar o peso exato de cada fator que a gera e perpetua.

A necessidade de garantir renda em meio à crise econômica dos últimos anos pode, por exemplo, explicar parte do aumento recente da desigualdade entre mulheres negras e brancas no país: “Pode ser que as mulheres negras estejam mais propensas a aceitar redução salarial ou empregos que pagam menos”, diz ele.

A fatia de trabalhadoras pretas e pardas que são chefes de domicílio é maior que a de brancas, o que pode contribuir para a tendência recente desfavorável. Mas por que há mais mulheres negras que são mães sozinhas no Brasil? Por que os alunos negros têm notas menores na escola? Por que pretos e pardos adultos ainda ganham menos do que os brancos e ocupam tão poucos cargos de chefia? E por que, embora sejam 55,8% da população, eles representam apenas 24,4% dos deputados federais do país?

Áreas das ciências sociais, como a sociologia, defendem que o racismo explica esses resultados —ou, pelo menos, parte deles— há algumas décadas. Mais recentemente, estudos econômicos também passaram a oferecer evidências de que a discriminação está na raiz de processos que prejudicam os negros em várias esferas da vida no Brasil.

A primeira teoria sobre como trabalhadores igualmente eficientes podem ser tratados de forma distinta por causa de atributos como sua cor da pele ou seu sexo foi formulada na década de 1950 pelo americano Gary Becker. O economista, vencedor do Nobel da área em 1992, notou que empregadores preconceituosos estariam dispostos a deixar de contratar um trabalhador com alguma característica que fosse alvo de sua discriminação, mesmo que isso implicasse a contratação de outro funcionário menos produtivo.

Mas Becker também dizia que a margem para esse tipo de atitude variava de acordo com a intensidade da concorrência em cada mercado. “Discriminar é sempre custoso economicamente, mas, quando há menor competição, esse custo diminui e o empregador preconceituoso pode se dar ao luxo de discriminar mais”, diz o economista Rodrigo Soares, do Insper.

Quando a concorrência aumenta, a pressão por corte de custos se torna mais intensa, diminuindo as chances de sobrevivência dos empregadores que discriminam. Um trabalho feito por Soares e Hirata confirma a previsão de Becker de que um aumento da competição tende a reduzir as diferenças salariais associadas apenas à cor da pele, comprovando ainda que a discriminação baseada nessa característica é significativa no Brasil. “Nossos resultados, incidentalmente, também sugerem que a discriminação no mercado de trabalho devido ao preconceito de raça é um fenômeno predominante no Brasil”, destaca o estudo.

Os pesquisadores usaram a abrupta abertura comercial promovida pelo governo federal brasileiro na primeira metade dos anos 1990 como uma espécie de laboratório para testar a hipótese de Becker com foco na discrepância salarial entre negros e brancos. Eles mostraram que a redução média de 10,3 pontos percentuais nas tarifas de importação ocorrida no período causou uma queda de 18% na diferença existente entre os salários de homens negros e brancos explicada pela sua cor de pele.

Para mensurar o hiato de rendimentos associado à raça, os economistas descontaram os efeitos de outras características que poderiam impactar os salários, como nível educacional, idade, área de domicílio –rural ou urbana– e região de residência. Eles conseguiram capturar o efeito específico da abertura comercial sobre os salários porque, como diferentes partes do país se especializam em distintos ramos de atividade, nem todas foram afetadas igualmente pela redução de tarifas. “A diferença salarial condicionada à raça caiu mais nas regiões mais afetadas pela abertura”, explica Hirata.

Os pesquisadores descartam que a queda documentada tenha sido causada por outros fatores pois ela ocorreu imediatamente após a abertura e ainda podia ser observada nos dados uma década mais tarde, no início dos anos 2000. A relevância dos achados foi reconhecida pelo Journal of Development Economics, principal periódico internacional na área de desenvolvimento econômico, que anunciou há pouco que publicará o estudo, nascido como parte da tese de doutorado de Hirata.

Outro capítulo do trabalho acadêmico do economista captura, por outras vias, a ocorrência de discriminação por cor da pele no mercado de trabalho no Brasil. Interessado no assunto desde a graduação, Hirata descobriu que o Inep, braço de pesquisa do Ministério da Educação, e a Fipe, instituição ligada à USP, haviam feito, em 2009, uma pesquisa para investigar a incidência de preconceito e atitudes discriminatórias por cor da pele, gênero e condições socioeconômicas nas escolas públicas.

Alunos, pais e funcionários entrevistados expressaram seu grau de concordância ou discordância com afirmações como “os brancos, em geral, são mais estudiosos que os negros”; “os brancos merecem trabalhos mais valorizados do que os negros”; “as negras têm mais jeito para domésticas do que as brancas” e “os brancos são mais evoluídos que os negros”.

Hirata usou as respostas relativas à cor da pele como matéria-prima para a construção de um indicador do nível de preconceito em diferentes partes do país. Depois, cruzou esse índice de discriminação com as estatísticas da desvantagem salarial explicada pela raça nos mesmos locais. Ele concluiu que um maior nível de preconceito em uma região está associado a um aumento significativo na vantagem salarial de brancos em relação a negros na mesma.

Os economistas Claudio Ferraz e Tássia Cruz chegam a uma conclusão parecida em relação às chances de sucesso da população preta e parda na política. Analisando dados das eleições municipais na Bahia em 2004, os pesquisadores mostraram que a probabilidade de vitória de candidatos pretos era 30% inferior à de brancos com nível educacional, partido, idade, sexo e gastos de campanha iguais.

A mesma comparação entre postulantes pardos e brancos indicou uma chance 17% menor de eleição do primeiro grupo em relação ao segundo. Os economistas decidiram testar, então, a hipótese de que a desvantagem dos negros fosse explicada por eles serem menos conhecidos. Restringiram a amostra aos vereadores que estivessem concorrendo à reeleição, mas a cor da pele continuou contando contra as chances de pretos e pardos nesse recorte.

A pesquisa de Ferraz e Tássia concluiu, no entanto, que, em municípios com mais casamentos inter-raciais –o que costuma indicar menor discriminação– os candidatos negros tinham melhor desempenho. “Poucas coisas além de racismo conseguem explicar os padrões encontrados nos dados”, escreveu Ferraz, que é professor da Vancouver School of Economics na Universidade British Columbia, e da PUC-Rio, em uma coluna recente do jornal Nexo Jornal.

Embora evite a palavra racismo, Hirata também se diz convencido de que a discriminação por preferência –que pressupõe alguma consciência por parte de quem discrimina– é disseminada no Brasil. “Apesar das fortes hipóteses que construímos para chegar a esses números, parece que a etiqueta de Democracia Racial não cabe bem na sociedade brasileira”, diz um trecho da tese do economista.

A etiqueta citada por Hirata nasceu de teorias das ciências sociais brasileiras nas décadas de 1930 e 1940 após um período em que havia prevalecido no país um discurso de superioridade branca. “A ideia de raça foi gradativamente dando lugar, nas ciências sociais, à ideia de cultura, e o ideal do branqueamento foi ultrapassado, em termos de projeto nacional, pela afirmação e valorização do “povo brasileiro”, escreve a socióloga Luciana Jaccoud no livro “As políticas públicas e a desigualdade racial no Brasil 120 anos após a abolição”, do Ipea.

A partir da ditadura militar, nos anos 1970, “a democracia racial passou de mito a dogma”, nas palavras de Luciana, levando ao desaparecimento temporário da discussão em relação ao tema. Após a redemocratização, o assunto reemergiu, mas “largamente diluído no debate sobre justiça social”, escreveu a socióloga.

Com isso, o hiato entre brancos e negros em aspectos como resultados educacionais e salariais passou a ser reconhecido nas pesquisas econômicas das últimas décadas, mas inserido no contexto mais amplo da desigualdade de renda brasileira, uma das mais elevadas do mundo. Aos poucos, porém, novos estudos têm evidenciado a contribuição da discriminação para a disparidade de rendimentos no país.

Outro trabalho de Soares com os economistas Juliano Assunção (PUC-Rio) e Tomás Goulart (Novus Capital) revelou forte ligação entre a intensidade da escravidão do século 16 ao 19 com o nível atual de desigualdade de renda nos países. Segundo a base de dados “Voyages – The Transatlantic Slave Trade Database”, o Brasil recebeu 4,8 milhões de escravos no período, o maior fluxo entre mais de 40 nações.

Os três economistas mostraram que, se a escravidão não tivesse ocorrido, em meados da década passada, o índice de Gini brasileiro seria 0,47 e não quase 0,6. Quanto mais alto for esse indicador, que varia de 0 a 1, maior a desigualdade de rendimentos. O trabalho –publicado pelo Journal of Comparative Economics– não buscou explicar os mecanismos pelos quais o choque inicial causado pela escravidão persiste até hoje sob a forma de elevada iniquidade. Mas os autores dizem que uma provável explicação passa pela transmissão do status socioeconômico de uma geração para a outra no Brasil.

Embora essa espécie de herança automática esteja caindo, na esteira do maior acesso à educação, ela permanece alta e é, particularmente, evidente no recorte por cor de pele. O estudo “Revisitando a Mobilidade Intergeracional de Educação no Brasil” –resultado da colaboração entre cinco economistas– mostrou que, em 2014, a chance de um filho negro repetir o resultado educacional de um pai sem nenhuma escolaridade era de 23%. Entre brancos, essa probabilidade caía para 11%.

No extremo oposto, um filho branco tinha 74% de chance de conquistar um diploma universitário, caso seu pai tivesse ensino superior completo. Entre negros, esse percentual caía para 62%. Há várias possíveis causas para essa persistência de resultados entre gerações, entre as quais as próprias armadilhas criadas pela pobreza, que podem levar crianças e adolescentes a abandonar a educação precocemente.

Nas últimas décadas, o Brasil progrediu na adoção de políticas que buscam atacar essas questões. Um dos exemplos é o Bolsa Família, programa de transferência de renda cujo pagamento é condicionado à permanência de crianças e jovens na escola. “As políticas focadas em critérios socioeconômicos têm um efeito positivo grande para a população negra, que é também a mais pobre”, diz o sociólogo Luiz Augusto Campos, professor do Iesp-Uerj e editor-chefe da revista Dados.

Mas, segundo Campos, que também coordena o GEMAA (grupo de estudos multidisciplinares da ação afirmativa), essas medidas são insuficientes para combater os efeitos negativos da discriminação, especialmente por causa dos preconceitos velados. “O avanço da pesquisa sobre o racismo é dificultado pelo fato de que a sociedade brasileira, ao contrário da norte-americana, ainda nega a discriminação”, afirma o sociólogo.

Nas últimas semanas, uma onda contra o racismo iniciada no Estados Unidos chacoalhou o mundo, após o assassinato de George Floyd, um negro americano sufocado pelo policial branco Derek Chauvin. No Brasil, além de manifestações nas ruas, em meio à pandemia do coronavírus, o movimento levou ao lançamento do manifesto “Enquanto houver racismo não haverá democracia”.

Embora enxerguem o lado positivo dessas manifestações para o debate público, pesquisadores ressaltam que é preciso avançar em estudos que escancarem os mecanismos pelos quais a discriminação opera Há indícios de que o preconceito às vezes ocorre porque, na falta de informação sobre uma pessoa, alguém faz uma inferência sobre ela com base em uma generalização estatística sobre o grupo ao qual ela pertence.

Foi o que revelou uma pesquisa brasileira ao mostrar que, ao assumir uma turma nova, professores pressupõem, de largada, que seus alunos negros terão pior desempenho do que os brancos. O trabalho –dos economistas da USP Fernando Botelho e Ricardo Madeira e de Marcos Rangel, da Duke University– mostra que o comportamento preconceituoso resulta em um frequente arredondamento para baixo nas notas dos estudantes pretos e pardos.

Para chegar a essa conclusão, eles compararam as avaliações de rotina de matemática feitas pelos professores da rede pública estadual de São Paulo com os resultados dos mesmos alunos na mesma disciplina em um exame anual aplicado pelo governo. Os dados mostram que alunos negros com desempenho idêntico ao de seus pares brancos na prova estadual –corrigida por computadores– recebiam notas mais baixas nas avaliações de seus professores. O comportamento sistemático resultava em uma chance 4% maior de reprovação no fim do ano entre os estudantes pretos e pardos.

Para garantir que a postura mais rígida dos docentes em relação aos alunos negros não fosse explicada por questões disciplinares, os economistas construíram um indicador baseado em dados como frequência escolar e percepção dos pais em relação ao comportamento dos filhos. O possível impacto negativo da disciplina sobre as notas foi, então, descontado dos resultados.

Embora tenha revelado que os professores discriminam contra os alunos negros, a pesquisa também mostra que esse comportamento diminui à medida em que convivência entre eles se aprofunda, chegando a desaparecer com o tempo. “Essa conclusão é importante porque indica que o comportamento dos professores não condiz com a chamada discriminação por preferência”, diz Madeira.

Ele explica que, se os docentes agissem por racismo, não ajustariam sua postura conforme têm mais contato com os alunos negros. Para Madeira, a atitude dos professores está mais próxima da chamada discriminação estatística. Como os alunos negros têm desempenho pior do que a média, os professores parecem assumir, inicialmente, que qualquer estudante preto ou pardo é menos proficiente do que seus pares brancos.

Madeira destaca que esse diagnóstico é crucial para a escolha de políticas públicas que busquem corrigir o problema. “Nesse caso, a solução parece passar por formação docente que explicite a questão e leve os futuros professores a conviverem com os alunos de comunidades mais pobres”, diz o economista.

Outra medida importante, segundo ele, é a redução da rotatividade nas escolas que é muito elevada na rede pública brasileira. A pesquisa de Madeira, Botelho e Rangel –publicada pelo American Economic Journal: Applied Economics– é citado como uma referência crucial pelos economistas que pesquisam desigualdade no Brasil. “Quando vi um dos autores apresentando os resultados, fiquei chocado. Teve um efeito muito grande no meu entendimento de quão profunda e arraigada é a discriminação no Brasil”, diz Soares, do Insper.

Mas há consenso entre os pesquisadores de que são necessários novos estudos sobre os mecanismos pelos quais o racismo se entranha nas sociedades. “Uma crítica que tem surgido, bem colocada pelos sociólogos, é que economistas olham pouco para a discriminação ou o racismo estrutural e institucional”, diz Ferraz.

Manoel Galdino, diretor-executivo da Transparência Brasil, ressalta que os economistas precisam ir além de categorizar o preconceito racial como resultado de uma atitude consciente ou de uma generalização estatística por parte de quem discrimina. “O fato de que a economia tem estudado esse tema é um avanço enorme. Há dez anos, não se pesquisava quase nada sobre discriminação no Brasil”, diz Galdino, que é economista e cientista político. “Mas precisamos progredir na compreensão dos mecanismos que institucionalizam a discriminação e a tornam estrutural”, afirma ele.

Os sociólogos da Universidade Harvard Mario Small e Devah Pager (morta em 2018) enumeram em um artigo recém-publicado pelo Journal of Economic Perspectives formas de discriminação que se tornaram arraigadas, mas podem ser imperceptíveis para a sociedade. Empresas costumam pedir, por exemplo, que candidatos a certas vagas apresentem referências de outros profissionais.

O problema é que, como as redes de contatos das pessoas são bastante homogêneas do ponto de vista racial e os brancos ocupam mais postos de destaque, essa regra institucionaliza uma prática que prejudica os negros, mesmo que os empregadores não sejam preconceituosos. “Como a discriminação pode ser causada por regras organizacionais ou por pessoas seguindo a lei, ela pode não resultar de preconceito pessoal, de palpites estatísticos baseados em características de grupos ou de racismo implícito”, escrevem Small e Pager.

Small e Pager recomendam que economistas considerem questões como essa em seus estudos futuros. “Sem dúvidas, há muito o que se avançar nas pesquisas. Mas, como sociedade, já temos evidências de que a discriminação é uma questão estrutural e não uma percepção”, diz Tatiana Dias Silva, pesquisadora do Ipea.

Especializada em políticas públicas, Tatiana destaca que o país avançou em medidas para reduzir a desigualdade e a discriminação racial. Ela cita como exemplos a adoção de cotas para o acesso de minorias a universidade públicas e a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira e africana nas escolas.

Mas o país ainda precisa avançar muito mais, diz a especialista. Um passo necessário, segundo ela, é a inclusão de recortes raciais como critério de avaliação da eficácia de políticas. A especialista cita como exemplo o Plano Nacional de Educação (PNE), que estabelece metas a serem atingidas no país. Um dos objetivos é que 33% da população de 18 a 24 anos estejam cursando o ensino superior até 2024.

Dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) mostram que, em 2018, a meta já havia sido atingida pela população branca. Naquele ano, a chamada taxa líquida de matrícula desses estudantes no ensino superior foi de 36%. Mas entre os jovens negros, o percentual era a metade disso, apenas 18%. Além disso, houve progresso maior do indicador para os jovens brancos entre 2016 e 2018 do que para os pretos e pardos. “O PNE é um exemplo de política que poderia ter tido recortes raciais em sua formulação”, diz a pesquisadora.

A adoção desses critérios tem a vantagem de forçar a realização de análises sobre os empecilhos enfrentados pelos grupos em situação de desvantagem. Campos da UERJ diz sentir falta de mais apoio do setor privado brasileiro seja financiando pesquisas de campo sobre discriminação seja discutindo mais abertamente políticas inclusivas no mercado de trabalho. “É muito impressionante o fato de que no Brasil a gente aceite que empresas e escolas privadas sejam totalmente brancas”.

quarta-feira, 29 de julho de 2020

O filho do século; o livro do ano.

Por Murillo Victorazzo*

O contar do tempo é uma convenção humana. Adotado oficialmente em todo mundo com o objetivo de facilitar as relações internacionais, o calendário hoje utilizado (gregoriano) é fruto de decisão do Papa Gregório XIII, em 1582. Após estudos de uma comissão formada por matemáticos e astrônomos próximos à Igreja Católica, buscava-se corrigir falhas do calendário juliano, imposto pelo imperador romano Júlio César mais de mil anos antes. A partir de então, o ano de nascimento de Jesus Cristo passava a ser o ano I, sendo o novo calendário paulatinamente aceito como marco civil em todo o mundo, embora com a manutenção de outros, em algumas nações, para fins religiosos e culturais, como os chineses, persas e judeus.

Antonio Scurati, contudo, lembra-nos, em M, o filho do século, que tais convenções pouco significam diante de certos fenômenos históricos. No livro, lançado no Brasil no início do ano, ele nos mostra com esmero o processo pelo qual outro italiano tornou-se protagonista de delimitações mais relevantes do século passado. Não um monarca, mas com semelhantes poderes imperiais e ambições expansionistas. Nada parecido a um Papa; ao contrário, um ateu. Porém, líder inquestionável de um movimento de massas com devoções quase religiosas:  il Duce "ha sempre raggione" (o Duce "sempre tem razão"), afirmava faixas e cartazes pendurados por muros da Itália da primeira metade do século XX.

Benito Amilcare Andrea Mussolini não lançou apenas uma forma diferente de fazer política, a mobilização de massas à direita calcada na violência permanente. Ele alterou profundamente os paradigmas sócio, político e econômicos do século passado.Serviu de inspiração a Hitler e, apesar de relegado à posição de segunda voz da fatídica dupla, formou com ele um dos dois titãs doutrinários do período, em profundo antagonismo ao outro, o comunismo, embora com brutais práticas liberticidas em comum. Ambos parâmetros de estudos e debates, sejam a sério ou como espantalhos eleitorais vulgares, ainda hoje.

Afirmava Mussolini na revista Geraechia, em 1923, já como primeiro-ministro: "A liberdade é uma divindade nórdica, adorada pelos anglossaxões [...] O fascismo  não conhece ídolo, não adora fetiches; já passou e, se necessário, voltará tranquilamente a passar por cima do corpo decomposto da Deusa da Liberdade [...] A liberdade hoje não é mais a virgem casta e severa pela qual combateram e morreram as gerações da primeira metade do século. Para as juventudes intrépidas, inquietas e ásperas que se aproximam do crepúsculo matinal da nova história, há outras palavras que exercem um fascínio muito maior, e elas são: ordem, hierarquia, disciplina".

Sucesso retumbante do mercado editorial italiano, com cerca de 400 mil exemplares vendidos, traduzido em 40 países e vencedora do Prêmio Strega, o mais importante da literatura italiana, a obra levou seu autor ao posto de celebridade nas ruas de sua cidade, a  mesma Milão berço do fascismo. Certamente menos pelo assunto, já tantas vezes retratado, mas especialmente pelo fantástico e pouco usual modo pelo qual descreve, em fascinantes detalhes, a evolução dos Fasci di Combattimento e a chegada ao poder de seu líder fundador. Um romance documental, em que cenários, personagens, acontecimentos e diálogos são absolutamente verdadeiros, garimpados em depoimentos e documentos, mas fugindo ao engessamento de livros-reportagens e obras acadêmicas.

É aí que mora seu sucesso: uma aula de pesquisa histórica em forma de aula de literatura, entremeando objetividade narrativa com linguagem poética, repleta de ironias, sarcasmos e reflexões existenciais. Variações estilísticas invejáveis, expressões ricamente costuradas. Tudo a partir da perspectiva dos principais atores da dramaturgia fascista, em inúmeros breves capítulos semelhantes a um diário. O cenário?  Uma Itália mergulhada no profundo caos social, com políticos decadentes, rejeitados pela população descrente dos jogos parlamentares; uma economia arruinada em consequência da I Guerra Mundial; e cinco milhões de combatentes abandonados pelo Estado ao voltarem à pátria que defenderam.

O caldeirão se completava com o sensação de traição disseminada na população. Perto de 600 mil italianos haviam tombado nos campos de batalha. Em troca, mesmo tendo lutado ao lado dos vitoriosos, sentiam-se desprezados por França, Inglaterra e especialmente EUA na repartição do espólio territorial pós-guerra. "Uma vitória mutilada", segundo Gabriele  D`Annunzio", aviador no conflito, "o único literato italiano em séculos a fundir o poeta e o guerreiro", em cujas ideias excentricamente grandiosas Mussolini um tanto bebeu. Mutilação potencializada pelas atitudes erráticas do governo liderado pelo primeiro-ministro Nitti na Conferência de Paz de Paris, o que intensificou o asco popular a seus representantes.

Esse terreno fértil para o nacionalismo e a rejeição aos establishments doméstico e internacional foram sabiamente instrumentalizados por Mussolini, expulso do Partido Socialista (PSI) em 1915 por subitamente romper com a linha oficial do partido a favor da neutralidade na guerra. Posição expressa no Avanti!, o jornal da legenda do qual era editor-chefe. Ousadia que gerou indignação da direção e de grande parte dos militantes.

Efusivo, direto, provocador, performático, irascível, carismático, esse professor filho de ferreiro e professora rompera com a linguagem excessivamente teórica, fria e rebuscada do jornal, típica dos intelectuais marxistas. Sua brilhante oratória refletia o ardor revolucionário, oposto ao reformismo da maioria da cúpula socialista de então. Jamais perdoaria os gritos e xingamentos com que foi defenestrado por seus companheiros

Scurati transforma palavras em imagens. Consegue nos remeter com precisão às ruas, praças, fábricas, palácios, jornais, teatros, casas e campos daquela Itália convulsionada tamanho o apuro estilístico e pormenores com que escreve. Não à toa, a obra já foi negociada para se tornar série televisiva. Traça com ainda mais sensibilidade o perfil de Mussolini e dos demais personagens que o circundavam e antagonizavam, buscando entender, sem prejulgamentos ideológicos e morais, suas idiossincrasias, defeitos, fragilidades, forças e, por que não, virtudes.

O livro nos faz adentrar na mente de cada um deles, sem correr o risco de criar empatias perigosas - exceto, claro, em quem já se atrai por truculência e extremismo. Uma linha tênue que causou incômodos na Itália. Receio compreensível em se tratando de um país que conta, entre suas lideranças política à direita, com o Matteo Salvini, ex-vice-primeiro-ministro conhecido por, não raro, parafrasear Mussolini em discursos. Ideias sedutoras para considerável parcela da sociedade que, se não o corrobora, deixou de ver o fascismo como "um mal definitivo", como define Scurati em entrevista ao jornal El País.

Ao destrinchar a formação dos "camisas negras", a sanguinária milícia fascista, o autor nos desenha com palavras a progressiva naturalização da violência como ferramenta política. Um artifício não decorrente da sua escolha como meio articulado para um fim revolucionário. Essencialmente, era um fim por si só; um prazer irrefreável, afrodisíaco, de homens entre 20 e 40 anos que a viam como tributo à juventude - na realidade, ao que consideravam ser a virilidade masculina juvenil. Um fetiche excitante, uma autoafirmação, orgulhosos que muitos eram de suas folhas corridas prévias, nas quais se incluíam de crimes comuns mais leves a homicídios. A cada "excursão", deixavam para trás um mar de sangue cantando alegremente  Giovinezza (Juventude), originariamente um canção estudantil cuja letra alteram para se tornar o hino fascista.

Coesos, mas socialmente pouco homogêneos, destacava-se no grupo como sua gênese, sua inspiração operacional, os Arditi, batalhão de assalto na guerra que se distinguira dos demais por, em um conflito que inaugurara a era dos "gases abrasivos e as toneladas de aços disparadas de locais remotos",  manter a intimidade do combate corpo a corpo. Uma tropa especial, com a "confiança em si mesmo que só é obtida através da maestria em esquartejar um homem com uma arma de corte de lâmina curta". Não se submetiam à disciplina tradicional de marchas e prontidão em trincheiras no front. “Nos dias de batalha, eram jogados aos pés das posições a serem conquistadas [....] podiam, no mesmo dia, degolar um oficial austríaco no café da manhã e jantar bacalhau na manteiga em uma trattoria da região de Vicenza. Normalidade e homicídio, de manha à noite".

Largados pelo Estado liberal, ociosos com o fim do conflito, a eles só restaram a bebedeira boêmia, a mitificação do passado e a fantasia de novas batalhas, circulando pelas ruas e bordéis com "a lapela da farda aberta sobre o peito nu e o punhal na cintura". Em tempos de paz, nada mais do que um estorvo de "dez mil minas errantes"; "uma multidão de desajustados".

Mussolini logo os seduz, portando-se como defensor daqueles "heróis" perante os que os "difamavam". Daquele rancor latente sairia sua máquina política de renegar a política. Os apologéticos artigos em seu jornal, o Il Popolo d`Itália ( "O Povo da Itália”), e os nove meses de alistamento na fronteira com a Áustria, abreviados pela explosão de um morteiro que lhe deixou com dezenas de metal pelo corpo, davam-lhe a legitimidade pretendida. Pendurada na parede atrás de sua mesa na pequena redação, o símbolo do batalhão: a bandeira negra com um crânio branco centralizado.

Entre os inúmeros fantásticos monólogos de Mussolini consigo mesmo, um nos ajuda a esclarecer o perfil social do primeiro fascio. Eram "[...] os facínoras, os deslocados, os delinquentes, os genialoides, os ociosos, os playboys pequeno-burgueses, os esquizofrênicos, os negligenciados, os desaparecidos, os notívagos, os anárquicos, os sindicalistas incendiários [...] uma boemia política de veteranos oficiais e suboficiais, homens hábeis no manejo de armas de fogo ou cortantes, aqueles que se descobriram violentos em face da normalidade do retorno [...] os sobreviventes, que acreditando serem heróis consagrados à morte, confundem uma sífilis mal curada como um sinal do destino [...] homens da guerra. Da guerra ou do seu mito. Eu os desejo como o macho deseja a fêmea, e ao mesmo tempo, desprezo-os".

Essa heterogeneidade advinha da natureza do fascismo, aglutinado inicialmente contra algo- ou, precisamente, contra tudo, o "sistema" -, mas paupérrimo em teoria. Era essencialmente um movimento de ação, "o que seduz os jovens": "algo inédito... um antipartido [...] Fazem antipolítica [...]Mas depois a busca da identidade deve parar por aí. O importante é ser algo que permita evitar os empecilhos da coerência, os estorvo dos princípios. Benito deixa de bom grado as teorias, e sua consequente paralisia, para os socialistas". Oportunista, dominava a incrível capacidade de captar o ânimo da massa - o ressentimento, o medo, a inquietude - e com ele jogava. Portava-se como o "homem do depois". Bastava "alimentar certos estados de espíritos que afloram neste crepúsculo da guerra". Populista, simplificava a realidade atacando a ineficácia e imoralidade do Parlamento (tão atual, não?): “Deem a mim soberania e eu reduzirei essa complexidade”.

Contudo, embora fossem o "refúgio de todos os heréticos, a igreja de todas as heresias", um tipo delas era inadmissível para os fascistas: a dessacralização da guerra. E quem a praticava apresentava feições nítidas, vermelhas. Os socialistas ojerizavam nas ruas e jornais os milhões de combatentes, sem se importarem com suas sequelas físicas e mentais. Aviltavam aqueles traidores da classe trabalhadora, por terem feito o jogo da burguesia, da indústria da guerra, do imperialismo. Pediam anistia para os desertores. As passeatas de operários, com mulheres e crianças à frente, perturbavam Mussolini. Seus gritos "antimilitaristas e antipatrióticos" permitiam "àquele homem mesquinho, autoritário, patriarcal e misógino pressagiar algo aterrorizante: um futuro sem ele". 

Ligas camponesas incendiadas, jornais empastelados, sindicatos vandalizados, tocaias. Ataques com cassetetes, facões na cintura, bombas em passeatas, revólver em punho. Assim eles, heróis respondiam ao pecado "bolchevique" - "inimigos da espécie humana". "Toda vida moderna é uma organização de massacres necessários. Se alguém se rebelasse para defender a vida, seria esmagado em nome dela. A civilização ocidental, assim como a guerra, se nutre de carniça", reflete o Duce.

O excelente desempenho nas eleições de 1919 permitiu ao PSI expandir seus domínios por governos locais e obter a maior bancada no Parlamento, ainda que sem maioria. A revolução socialista parecia uma questão de tempo. As bandeiras vermelhas e os gritos por Lênin se espalhavam por cidades e campos, que assistiam à maior onda de greves até então presenciadas no país. Ocupações de fábricas,  cidades paralisadas. O poderio dos sindicatos rurais na gestão de terras sufocava a "livre iniciativa" dos grandes fazendeiros, os quais ainda digeriam a incorporação de direitos sociais. A ala "maximalista" (revolucionária) do partido ganhava espaço sobre os reformistas.

O 'Biênio Vermelho" chegava ao auge. Cresciam casos de boicote e multas contra quem tentava escapar da mão de ferro com que várias ligas camponesas atuavam. Vinha junto a violência socialista: camponeses incendiavam paióis, mutilavam animais, surravam arrendatários, respondiam com tiros e pauladas a policiais e proprietários de terra. "Explosões de cólera ancestral, as costas chicoteadas que em um espasmo de desespero se erguem e agarram a chibata".

Para Mussolini, porém, o terreno da violência não era para os socialistas. "Aquela gente não entende de brutalidade". A sua gente, sim. Os  socialistas pagariam o preço do sucesso nas urnas: seriam impelidos a desencadear a esperada revolução, mas não agiriam por não terem "nenhuma capacidade revolucionaria".  O desdém fica claro na maneira como se refere ao líder do partido, Nicola Bombacci, o "Lênin da Romanha", seu amigo dos tempos de professor primário. Magro, gentil, dócil, venerado por camponeses e operários, não passava, para ele, de "uma fera inócua que pertence à espécie daqueles eternos doentes que enterram sadios". Organização e coragem? Não havia nenhuma. Os fatos narrados em boa parte das 800 páginas corroboram seus prognósticos.

No entanto, mesmo que reduzida ao que o próprio Mussolini considerava um "impulso", "episódios precários",  a violência socialista era uma realidade. Cabia jogar com ela e instrumentalizar o pânico - "essa parteira da História"  - da elite agrária e industrial. Deviam, portanto, abandonar de vez qualquer tentativa de laços com o proletariado, já abraçado em definitivo à causa do PSI e, por isso, não merecedor de "indulgência". Jogava na lata de lixo os pontos com vieses socialistas que chegara a esboçar no primeiro manifesto fascista. 

Precisavam, entretanto, de nitidez ideológica, e ela tinha que vir com uma guinada à direita. Não seriam, todavia, meros agentes passivos do capitalismo. Com ele, buscariam uma relação simbiótica, de interesses mútuos:  "O navio burguês não deve ser afundado. É indispensável subir a bordo e tomar o controle da sala das maquinas. Entrar nele e expulsar os elementos parasitários".  Necessitavam especialmente olhar para aqueles que não "trabalham  com o braço": "A pequena burguesia é ainda mais maltratada do que os operários", defendia Cesare Rossi, ex-sindicalista revolucionário, braço direito de Mussolini.  Não sendo "uma das duas grandes classes em luta", o fascismo deveria ser "a camada intermediária, o sofrimento profundo de uma crise psicológica de insegurança do pequeno-burguês enraivecido porque teme perder tudo sem ter ainda o bastante, do verdureiro que se sente preso entre a bigorna do capital e o martelo do comunismo", descreve Scurati.

Dentro das fronteiras, não existiria "mais vênetos, romanholos, toscanos, sicilianos, sardos, mas italianos, somente italianos". Fora delas, o expansionismo: "Não pode haver grandeza nacional se a própria nação não é sustentada por uma ideia de império" A Igreja Romana, com seu magistério milenar e universal, servia como inspiração. Relegava-se assim o antimonarquismo e o anticlericalismo, até então traços marcantes daquele ateu republicano. Gestava-se a concepção de um só povo, um líder, uma nação. Uma "raça" privilegiada.  

É preciso conquistar as massas. "Mas há também quem diga: a historia é feita pelos indivíduos, pelos heróis", discursa Mussolini: "A verdade está no meio. O que faz a massa quando lhe falta um interprete? [...] queremos educar as massas, mas quando erra, fustigá-la". Se a Itália estivesse cheia de doentes e loucos, a grandeza da nação seria uma ilusão. Os fascistas, portanto, deviam se preocupar com a saúde da "raça",  "o material com o qual queremos construir a história."

Os grandes proprietários de terra e a alta burguesia começam a financiar os "camisas negras". Jornais liberais passam a não vê-los mais como meros delinquentes. Novos perfis de fascistas se proliferam, inclusive organizações classistas: "As classe médias rebaixadas por causa da especulação bélica do grande capital, os oficiais que não se conformam em perder um comando para voltar a mediocridade da vida cotidiana, os burocratas de baixo escalão que, acima de qualquer coisa, se sentem insultado pelos sapatos novos da filha do camponês [...] Pessoas abaladas no mais intimo de seu âmago por um desejo irrefreável de submissão a um homem forte, e ao mesmo tempo, de domínio sobre os indefesos. Estão prontas para beijar os sapatos de qualquer novo patrão desde que também lhes seja possibilitado pisar em alguém".

Nesses parágrafos acima estão romanceados o que a academia  traduziu como a "inconcebibilidade do fascismo sem a entrada das massas no palco da história". Nas palavras de Barrington Moore em seu clássico As origens sociais da ditadura e da democracia, uma tentativa de tornar a reação e o conservadorismo "populares e plebeus", através da qual o conservadorismo perdia "a substancial liga que tinha com a liberdade".

Por praticamente todo o livro, respinga nos olhos do leitor o sangue jorrado pelas covardes emboscadas fascistas e batalhas campais contra camponeses, operários e demais militantes socialistas. Com frequência, o autor nos choca com a descrição de cenas de puro sadismo, justificado pela defesa dos " valores da pátria". Brutalidades gratuitas, como espancamentos seguidos de ingestão forçada de óleo de rícino, com a vítima sendo, depois, amarrada ao capô de um carro. Em alta velocidade pelas ruas, a humilhação se juntava à dor. Fezes e sangue misturados.

Se aqueles "autênticos representantes da nação sã, máscula, forte" idealizavam uma outrora Itália grandiosa, natural que evocassem símbolos da Roma Imperial, como a saudação romana - o braço direito esticado à frente, com a palma da mão estendida para baixo. Saudação oficializada anos depois, com a ditadura instaurada.

A violência dos “camisas negras” crescia em proporção à sua organização paramilitar e tamanho. Execuções que ignoravam a presença de filhos; sequestros; incêndios de vastos campos, ligas e sindicatos; despejos sob armas de cooperativas agrícolas; invasões de prefeituras socialistas. Por outro lado, nas cidades, ataques a bombas em ruas e prédios civis eram, verdade ou não, atribuídos a socialistas e anarquistas. Há meses, as "esquadras" agiam como braço auxiliar dos carabenieri (polícia). E vice-versa. A omissão, conivência e mesmo participação de membros das forças oficiais de segurança na pancadaria fascista escancaravam de que lado estavam. Prova do caráter burguês do Estado, diriam os marxistas. Pairavam no céu italiano as nuvens cada vez mais pesadas da guerra civil. 

No Il Popolo d´Itália, Mussolini escrevia: "Acusam-nos de levar a violência para a vida politica, somos violentos sempre que necessário [...] a nossa deve ser uma violência de massas, inspiradas em critérios e princípios ideias". Contudo, a "necessidade cirúrgica" contra o "terrorismo" não passava de retórica diante do que acontecia nas ruas e nos campos, onde a barbárie fascista saia de seu controle. O culto banal à violência de fato lhe preocupava, mas não por razões morais. Pragmático, considerava-a uma "ferramenta afiada" a ser usada como dissuasão nas - em público - execradas articulações políticas com a decadente "classe política". 

O liberal ex-primeiro-ministro Giolitti, a maior raposa política italiana, convida-o, em 1921, a integrar sua chapa parlamentar, um amplo arco de alianças que visava unir todos contra os socialistas. Nitti pretendia "conter a ilegalidade fascista, considerada um fenômeno passageiro, prendendo-a ao arco constitucional". Na cabeça de Mussolini, um contraplano: "suscitar a desordem para mostrar que só ele pode restabelecer a ordem". Para a indignação inicial das esquadras, prontamente contornada com sua persuasiva oratória, o momento exigia participar da carcomida disputa eleitoral e tornar o movimento um partido político. É por dentro do Estado liberal que ele o destruirá, mesmo que tenha que engolir "aquele plenário cinza nas coisas e nas pessoas" e  "aqueles burgueses nojentos que de dia se enfileiram resfolegantes, capengando, atrás do fascismo e, à noite, nos salões, contam para as senhoras, horrorizadas e empolgadas, sobre seus encontros com os fascistas, aqueles selvagens, antropófagos".

Apenas pouco mais de 40 fascistas são eleitos. Mussolini torna-se o mais votado da coligação em Milão e Bolonha; o terceiro em nível nacional. Contudo, Giolitti fracassa duplamente: não consegue a maioria absoluta necessária para comandar um governo estável e permite a legitimação política de quem pretendia conter. O fracasso da domesticação fica claro logo no primeiro discurso do líder dos “camisas negras” no Montecitorio: "Declaro que defenderei teses reacionárias. O meu discurso será antidemocrático e antissocialista. E quando digo antissocialista, quero dizer antigiolittiano". Os socialistas eram agora todos os que não fossem os seus. Contemporâneo novamente..."O mundo segue à direita, e não à esquerda, a historia do capitalismo está só começando", bradava no Parlamento, para aplausos entusiasmados de todos, menos do seu alvo vermelho preferencial. 

Com capítulos intercalados por trechos de artigos, cartas e documentos a partir dos quais Scurati romanceou seu texto, não faltam no livro exemplos do invejável faro político de Mussolini. Sagacidade que, entre surtos raivosos e moderação retórica, permitia-lhe atacar simultaneamente nos tabuleiros da guerra e da negociação política, manejando o caos estimulado por ele. A tática era a de sempre: "dosar, diluir, dilatar e, por fim, negociar em uma posição de força" - física, se necessário. Aqueles milhares de brutamontes fanáticos assombravam, coagiam a população e a classe política, a qual, entre vaidades, mesquinharias, cegueiras, interesses, covardia e cisões ideológicas internas, não conseguia consolidar governo algum. Primeiros-ministros caíam em poucos meses.

Chega enfim outubro de 1922. Os relatos de cada passo da "Marcha sobre Roma", planejado como pressão para forçar sua nomeação como chefe de governo, nos esmiúça os momentos do que se pode considerar um dos grandes factoides da História. Jogando dia-a-dia, hora a hora, com o dissenso da elite política e a hesitação do monarca a respeito da decretação de Estado de Sítio, Mussolini, em sincronia cuidadosa, utiliza-se da guerra de comunicação, arma aprendida com louvor no jornalismo, para mostrar ao Parlamento e ao monarca que apenas ele poderia estabilizar o país.

Mobilizados ao redor da capital italiana, os "camisas negras" entram nela apenas depois do convite real ao seu líder. Não fosse o impasse institucional, apesar de numerosos, não teriam sido páreo para o Exército italiano. O blefe dissuatório funcionara. Era imperioso um desfile marcial daqueles homens exaustos, famintos e encharcados de chuva para encerrar a primorosa peça de ficção épica. A Itália tinha um novo primeiro-ministro. Ao 39 anos, chegava ao poder "o homem da juventude contra a ‘velharia’ [...] o iniciador de uma era, o obstetra da história [...] o homem da violência que a aplacará, o homem da ferocidade que a amansará, o homem da luta que a fará cessar porque logo não haverá mais duas linhas de frente, apenas uma [...] o déspota genial capaz de subjulgar as massas [...] um povo deprimido pelo efeito de um drama interminável, enfadonho."

Três anos e meio antes, a fundação do primeiro fascio não reunira mais do que mil pessoas. No discurso inaugural de seu governo, Mussolini, sem rodeios, dava o tom de como dilaceraria moralmente o poder Legislativo: "Com 300 mil jovens impecavelmente armados, prontos e esperando quase misticamente uma ordem minha, eu poderia castigar todos aqueles que difamaram e tentaram jogar o fascismo na lama. Eu poderia fazer deste plenário surdo e cinza um acampamento exíguo". Pelo medo, chantagem e humilhação, ganha, em resposta, a delegação de plenos poderes para reformas administrativas e fiscais, com o voto de todos, menos os socialistas. Poucos meses depois, consegue aprovar nova e ardilosa legislação eleitoral, através da qual pavimentará maioria esmagadora em 1924.

Ao mesmo tempo em que, como chefe de um governo de coalizão, destina importantes pastas para partidos tradicionais, como a da Economia para os liberais, Mussolini reserva para si as do Interior e Relações Exteriores. E traz para dentro do Estado a violência paramilitar. Os "camisas negras" tornavam-se uma força oficial, sustentada pelo erário público e com estrutura mais centralizada. Passavam a se chamar Milizia per la Sicurezza Nazionale, dentro qual nascia sua polícia secreta, a Cheka, nome copiado da polícia política soviética.

"Não sou o déspota que se tranca em um castelo. Eu circulo em meio ao povo sem preocupações de nenhum tipo e o escuto [...] o povo italiano, até esse momento, não me pede liberdade. Outro dia, em Messina, a população que cercava meu automóvel não disse ´deem-nos liberdade`, disse ´tirem-nos dos barracos", gaba-se em pronunciamento no Parlamento, que, por mais dois anos funcionaria moribundamente, período no qual Mussolini continuou com seu modus operandi de alternar "normalização" com ameaças de uma "segunda onda revolucionária", tão desejada por seus milicianos.  

E essa onda chegou no primeiro momento em que se viu emparedado. O assassinato do socialista Giacomo Matteotti pela Cheka, após o deputado enumerar, em plenário, casos de fraudes e violência a opositores nas eleições, abre fissuras no governo e desperta a opinião pública contra os fascistas. Por muito pouco o crime não atinge Mussolini diretamente. Não havia mais o que esperar. Em um célebre discurso no Parlamento, trecho final do livro, o Duce deixa a mensagem subliminar sobre o que já sabemos pela História: em janeiro de 1925, a ditadura se instalava para valer, sem apetrechos institucionais. O "cadáver da democracia liberal" estava "arrumado entre a poeira e os ácaros do sofá há tanto tempo que ninguém mais nota". Era hora de enterrar.

Em entrevista à Folha de São Paulo, Scurati revela que o segundo volume da trilogia terá o título M, O Homem da Providência, expressão criada por clérigos ao passarem a propagar Mussolini como enviado pela Providência divina. Abordará os acontecimentos até meados dos anos 30, entre eles, a assinatura do Tratado de Latrão, pelo qual o ditador reconhecia o Vaticano como Estado independente. A aproximação com a Igreja culminará com o simbolismo do casamento religioso daquele ateu com sua esposa, também ateia, Rachelle, juntos desde 1915.

O terceiro volume narrará a criação de leis raciais semelhantes às do nazismo e a derrocada na Segunda Guerra Mundial. Uma trilogia que nos traz reflexões, a partir das do próprio mentor acerca da brutalidade de seus militantes: "Onde estavam enfurnadas ate ontem? Não é possível que tenha sido ele a dar a vida a essas multidões de acomodados que de súbito erguem a clava [...] Na guerra eles não nasceram, a guerra apenas os devolveu a si mesmos, os transformou naquilo que já eram. O fascismo talvez não seja o hospedeiro desse vírus que se propaga, mas o hóspede".

Fica a dica para os tempos atuais. Atentem-se às semelhanças do que fomentou o fascismo, a visão de nação e retórica de seu Duce com certos líderes populistas de hoje e seus discípulos. Semelhanças com quem se permitiu até renegar o século que lhe deu vida e, assim como seus conterrâneos ancestrais Júlio César e Gregório, sonhar impor suas próprias convenções temporais. Megalomania espelhada em um diálogo com seu braço direito sobre o significado da sigla "Ano II - E.F.", escrita por ele em duas fotos autografadas para duas fãs, em 1923:
 - O que está fazendo, Benito?, pergunta surpreso Rossi.
 - Ano dois, Era Fascista. É preciso começar a demarcar o tempo.

* Murillo Victorazzo é jornalista, com Especialização em Política & Sociedade (Iesp-UERJ) e MBA em Relações Internacionais (FGV-Rio)

segunda-feira, 22 de junho de 2020

Pobre Rio. Toma que o filho é seu, capitão!

Por Murillo Victorazzo

Há coisas que não precisariam ser explicadas, mas acabamos tendo que fazê-lo, diante de tantos alinhamentos cegos a político e cérebros binários: criticar a atuação do governo Witzel (incompetência e ladroagem) na construção de hospitais de campanha não significa concordar com o negacionismo, o "pilatismo", os absurdos defendidos, estimulados e praticados por Bolsonaro nessa pandemia, 

Agora que, por ambições pessoais, os dois tornaram-se inimigos figadais, e a ordem unida é atacá-lo, tornou-se conveniente o bolsonarismo fingir indignação com o governador. Mas o pouco do que viera a público, em 2018, sobre o desconhecido candidato e suas relações já sinalizava o embuste, até por ser notório que aventureiros megalomaníacos como ele não costumam ter pudores na escolha dos meios para atingir seus fins. Não quiseram ver, o capitão e seu ilibado filho haviam mandado votar no juiz fuzileiro que achava divertido "mirar na cabecinha". 

O corona vírus apenas desnudou a óbvia falácia da "nova política", para desespero do carioca, que ainda conta com o "hour concours" Crivella - aliado do mito e “coincidentemente” poupado de ataques -, mais perdido do que bêbado em fim de festa, querendo outros quatro anos na Prefeitura.

sexta-feira, 19 de junho de 2020

As típicas páginas políticas e policiais do RJ em um só caso

Por Murillo Victorazzo

Vamos contextualizar, para quem ainda não entendeu - ou não quer entender - a dimensão. Um MILICIANO, assassinado recentemente e líder do "Escritório do Crime" ( grupo de MATADORES de aluguel), tinha suas mãe e ex-mulher como FUNCIONÁRIAS FANTASMAS no gabinete do deputado, hoje senador, filho do PRESIDENTE da República. 

Comprovadamente, a família miliciana depositava dinheiro nas contas do mais que assessor, amigo íntimo, há 30 anos, da família presidencial, cujas esposa e filha também integravam o gabinete. Segundo o MP, fruto de RACHADINHA (desvio de dinheiro público) que ocorria naquele gabinete da ALERJ - "fortes indícios de LAVAGEM DE DINHEIRO" do senador, que, teria tido, inclusive, despesas suas pagas em dinheiro vivo por seu braço direito.

Este assessor e sua esposa, afirma o órgão, trocaram mensagens de celular que indicam que o advogado responsável pelas contas eleitorais do filho do presidente faria uma proposta financeira ao miliciano e seus familiares, em troca de silêncio.

Outra filha do amigo assessor também foi, por anos, assessora, dessa vez do próprio presidente quando deputado federal. Funcionalismo fantasma, prática, segundo outras investigações, que envolvia diversos amigos e parentes da família hoje palaciana em seus gabinetes parlamentares: uma grande BOQUINHA, prática mais tradicional do patrimonialismo brasileiro.

Ontem, o assessor foi preso, escondido na casa de outro advogado, que não só atua ou atuou em casos do filho deputado e do próprio presidente como é, segundo o próprio, seu, há anos, incentivador político e amigo, com presença frequente no Alvorada e Planalto, visto até em cerimônias oficiais que nada têm a ver com seu trabalho. 

Repararam as caixas altas? Um rosário de crimes entrelaçados, os crimes e imoralidades mais comuns que permeiam a vida do brasileiro há anos. As típicas páginas políticas e policiais do Rio de Janeiro em um só caso, envolvendo o topo da República. 

Sem prejulgamentos, investigue-se. Mas se você não fica com, no mínimo, uma pulga atrás da orelha, se não te angustia o cenário, e prefere, com amnésia seletiva, minimizar, ignorar ou difundir a teoria vitimista das comparações com outros casos e quantias ou supostas perseguições e exageros da "mídia" e instituições, você já morreu por dentro, tamanho fanatismo e adoração por ideologia, corporação e/ou político - ainda mais um que foi eleito e se sustenta com a autoimagem de antissistema. 

Onde está aquele eloquente grito ético, norteador das ruas e do seu voto desde 2013?

sábado, 11 de abril de 2020

A pandemia de Coronavirus vai alterar para sempre a Ordem Mundial

Por Henry Kissinger* ( The Wall Street Journal, 03/04/2020)

A atmosfera surreal da pandemia do Covid-19 me remete a como me senti quando jovem na 84ª Divisão de Infantaria durante a Batalha do Bulge. Agora, como no final de 1944, há uma sensação de perigo difuso, não direcionado a qualquer pessoa em particular, mas golpeando aleatoriamente e com devastação. Mas há uma diferença importante entre aquele tempo distante e hoje. A resistência americana, à  época, fortificou-se por um propósito nacional final. Agora, em um país dividido, um governo eficiente e visionário é necessário para superar obstáculos sem precedentes em magnitude e alcance globais. Manter a confiança pública é crucial para a solidariedade social, para a relação das sociedades entre si e para a paz e estabilidade internacionais.

As nações se sustentam e florescem na crença de que suas instituições podem prever calamidade, mitigar seu impacto e restaurar a estabilidade. Quando a pandemia do Covid-19 acabar, muitas instituições de países serão percebidas como tendo falhado. Se este julgamento é objetivamente justo é irrelevante. A realidade é que o mundo nunca mais será o mesmo depois do coronavírus. Discutir agora sobre o passado só torna mais difícil fazer o que tem que ser feito.

O coronavírus nos atingiu com escala e ferocidade sem precedentes. Sua propagação é exponencial: os casos nos EUA estão dobrando a cada cinco dias. Nesta escrita, não há cura. Suprimentos médicos são insuficientes para lidar com as ondas crescentes de casos. As unidades de terapia intensiva estão à beira do colapso. O teste é inadequado para a tarefa de identificar a extensão da infecção, muito menos reverter sua propagação. Uma vacina bem sucedida pode estar de 12 a 18 meses de distância.

A administração dos EUA fez um trabalho sólido para evitar catástrofes imediatas. O teste final será se a propagação do vírus pode ser detida e depois revertida de maneira e escala que mantenham a confiança do público na capacidade dos americanos de se governarem. O esforço de crise, por mais vasto e necessário, não deve apagar a tarefa urgente de lançar uma iniciativa paralela para a transição da ordem pós-coronavírus.

Os líderes estão lidando com a crise em escala nacional, mas os efeitos na dissolução da sociedade não reconhecem fronteiras. Embora o ataque à saúde humana seja temporário, a agitação política e econômica que desencadeou pode durar gerações. Nenhum país, nem mesmo os EUA, pode em um esforço puramente nacional superar o vírus. Abordar as necessidades do momento deve, em última análise, ser associado a uma visão e um programa colaborativo globais. Se não pudermos fazer as duas coisas em conjunto, enfrentaremos o pior de cada um.

Tirando lições do desenvolvimento do Plano Marshall e do Projeto Manhattan, os EUA são obrigados a realizar um grande esforço em três domínios. Primeiro, reforçar a resiliência global a doenças infecciosas. Triunfos da ciência médica como a vacina contra a poliomielite e a erradicação da varíola, ou a maravilha estatística-técnica emergente do diagnóstico médico através da inteligência artificial, nos levaram a uma complacência perigosa. Precisamos desenvolver novas técnicas e tecnologias para o controle de infecções e vacinas proporcionais a grandes populações. Cidades, estados e regiões devem se preparar consistentemente para proteger seu povo de pandemias através de estocagem, planejamento cooperativo e exploração nas fronteiras da ciência.

Segundo, esforce-se para curar as feridas da economia mundial. Os líderes globais aprenderam lições importantes da crise financeira de 2008. A crise econômica atual é mais complexa: a contração desencadeada pelo coronavírus é, em  velocidade e escala globais, diferente de tudo o que se sabe na história. E medidas necessárias de saúde pública, como o distanciamento social e o fechamento de escolas e empresas estão contribuindo para a dor econômica. Os programas também devem buscar amenizar os efeitos do caos iminente sobre as populações mais vulneráveis do mundo.

Terceiro, salvaguardar os princípios da ordem mundial liberal. A base fundadora dos governos modernos é a cidade murada protegida por governantes poderosos, às vezes despóticos, outras vezes benevolentes, mas sempre fortes o suficiente para proteger o povo de um inimigo externo. Pensadores iluministas reformularam esse conceito, argumentando que o propósito do Estado legítimo é suprir as necessidades fundamentais do povo: segurança, ordem, bem-estar econômico e justiça. Os indivíduos não podem proteger essas coisas por conta própria. A pandemia provocou um anacronismo, um renascimento da cidade murada em uma época em que a prosperidade depende do comércio global e do deslocamento das pessoas.

As democracias mundiais precisam defender e sustentar seus valores iluministas. Um recuo global evolvendo equilíbrio de poder com legitimidade fará com que o contrato social se desintegre tanto internamente quanto internacionalmente. No entanto, esta questão milenar de legitimidade e poder não pode ser resolvida simultaneamente ao esforço para superar a pandemia. A contenção é necessária em todos os lados — tanto na política interna quanto na diplomacia internacional. As prioridades devem ser estabelecidas.

Passamos da Batalha do Bulge para um mundo de prosperidade crescente e dignidade humana reforçadas. Agora, vivemos um período histórico. O desafio para os líderes é gerenciar a crise enquanto constroem o futuro. O fracasso pode incendiar o mundo.

*tradução livre do blog