segunda-feira, 25 de dezembro de 2017

A guerra contra o Papa Francisco

Por Andrew Brown* (The Guardian/ Público, 24/12/2017)

O Papa Francisco é atualmente um dos homens mais odiados do mundo. E quem mais o odeia não são ateus, protestantes ou muçulmanos, mas alguns dos seus próprios seguidores. Fora da Igreja goza de grande popularidade, afirmando-se como uma figura de uma modéstia e uma humildade quase ostensivas. 

Desde o momento em que o cardeal Jorge Bergoglio se tornou Papa em 2013, os seus gestos prenderam a atenção do mundo: o novo Papa guiou um Fiat, transportou as próprias malas e pagou a conta em hotéis; sobre os homossexuais, perguntou: “Quem sou eu para julgar?” e lavou os pés de refugiadas muçulmanas.

Dentro da Igreja, porém, Francisco tem desencadeado uma reação feroz por parte dos mais conservadores, que temem que este novo espírito divida a Igreja ou até que a destrua. Este Verão, um proeminente clérigo inglês disse-me: 

“Mal podemos esperar que ele morra. É impublicável o que dizemos dele em privado. Sempre que dois padres se encontram, falam sobre o quão horrível Bergoglio é… ele é como Calígula: se tivesse um cavalo, fazia dele cardeal.” Claro que após dez minutos de repetidas críticas, acrescentou: “Não pode publicar nada disto, senão serei despedido.”

Esta mistura de ódio e temor é frequente entre os adversários do Papa. Francisco, o primeiro Papa não europeu dos tempos modernos e o primeiro Papa jesuíta da História, foi eleito como um outsider dos poderes instituídos do Vaticano e era esperado que fizesse inimigos. Mas ninguém previu que fizesse assim tantos. 

Desde a sua rápida renúncia à pompa do Vaticano, que marcou desde logo a diferença na relação com os mais de três mil empregados civis do Vaticano, ao seu apoio aos migrantes, às suas críticas ao capitalismo global e, acima de tudo, à sua intenção de reexaminar as posições da Igreja relativamente ao sexo, o Papa tem vindo a escandalizar os reacionários e os conservadores. 

A julgar pelos números das votações do último encontro mundial de bispos, quase um quarto do Colégio dos Cardeais — o mais alto organismo da organização clerical — está convencido de que o Papa se está a aproximar da heresia.

A questão crítica prende-se com a sua visão sobre o divórcio. Num corte com séculos, senão milênios, de doutrina católica, o Papa Francisco tem tentado encorajar os padres católicos a darem a comunhão a alguns casais divorciados ou casados em segundas núpcias e a famílias cujos pais não são casados. 

Os seus inimigos estão a tentar forçá-lo a abandonar essa ideia. Como ele se tem mantido firme e mostrado uma sóbria perseverança face ao crescente descontentamento, começam agora a preparar-se para a guerra. No ano passado, um cardeal, com o apoio de alguns colegas já aposentados, levantou a possibilidade de uma declaração formal de heresia — a rejeição intencional de uma doutrina estabelecida da Igreja, pecado punível com a excomunhão. 

Em Setembro, 62 católicos descontentes, nos quais se incluem um bispo já retirado e um antigo diretor do Banco do Vaticano, publicaram uma carta aberta em que apontam a Francisco sete acusações específicas de ensinamentos heréticos.

Acusar um Papa em funções de heresia é o equivalente católico à opção nuclear. A doutrina afirma que o Papa não pode estar errado quando se pronuncia sobre questões centrais da fé; portanto, se está errado, não pode ser Papa. Por outro lado, se este Papa está certo, todos os seus antecessores têm de ter estado errados.


*Tradução de António Domingos

PPK: mais um "gestor" que se revela

Por Murillo Victorazzo

Economista, banqueiro, ex-diretor do Banco Central e ex-ministro da Fazenda do Peru, além de dirigente do Banco Mundial, Pedro Pablo Kuczynski, conhecido como PPK, lançou-se candidato a presidente de seu país com a imagem de "moderno", de viés mais "técnico", diferente dos políticos tradicionais do país.

Nem completou um ano de mandato, para evitar a aprovação de seu impeachment, semana passada, diante das acusações de recebimento de  propina da Odebrecht, negociou com os partidários de Alberto Fujimori um indulto "humanitário" ao ditador, condenado a 25 anos de prisão por corrupção e crimes contra a humanidade como assassinatos, sequestros e esterilização forçada.

Tanto aqui como lá fora, os exemplos, no passado e no presente, de "novos", de "gestores não políticos", que logo se revelam um embuste não acabam. Mas ainda tem gente que cai na esparrela de que perfil assim é garantia de ética e competência.

terça-feira, 12 de dezembro de 2017

Lula: o (conveniente) caso do brasileiro que deseja a lentidão da Justiça

Por Murillo Victorazzo

O Tribunal Regional Federal (TRF) da 4ª Região marcou para o dia 24 de janeiro o julgamento do recurso do ex-presidente Lula contra sua condenação a nove anos de prisão no caso do tríplex do Guarujá. Assim que a notícia foi divulgada, os séquitos petistas vociferaram, afirmando que rapidez com que o recurso seria analisado seria a prova da perseguição ao líder petista.

Mas se Lula é inocente e perseguido por um juiz de primeira instância, que o condenou sem provas, não deveria agradecer por ser logo julgado por três desembargadores e assim poder fazer sua campanha eleitoral tranquilamente? Ah, não, o TRF também o persegue. Todo o Judiciário do país é "reaça". E Lula, o novo Cristo.

Vivemos para ver alguém reclamar da celeridade da Justiça, ciente ela da importância do caso. Claro, preferem a indefinição das liminares às vésperas de outubro, já registrado como candidato, para a encenação de mais um "golpe". Ou vencer sem ter sido julgado. Que se dane o risco da imprevisibilidade institucional aí embutido.

E o "não patriota" é a "direita entreguista" - o que eles entendem por direita, claro.

segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

Bolsonaro chavista? Faz sentido


Por Murillo Victorazzo

Uma entrevista do queridinho da direita radical brasileira, deputado Jair Bolsonaro, ao Estadão, em setembro de 1999, caiu nesta segunda-feira na redes. (imagem ao lado) Nela, o parlamentar faz elogios ao recém-empossado presidente venezuelano Hugo Chávez, coronel que havia sido preso por tentativa de golpe militar sete anos antes contra um presidente de centro-direita, por ele chamado de "neoliberal". Uma pérola de respostas, em especial a última.

A princípio, ninguém é obrigado a ter opiniões imutáveis e todos podem de fato se "decepcionar" com o tempo. Mas, àquela época, já eram notórios o passado golpista de Chávez, os setores esquerdistas que o apoiavam e os primeiros atos concentradores de poder e estatizantes da nova Carta do país - e, por isso, muitos no Brasil e lá fora já se preocupavam. (matéria completa: http://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/19990904-38672-nac-0007-pol-a7-not/busca/Bolsonaro)

Igualmente chama a atenção o lapso de sincericídio, constrangedor a ambas as partes e que deve dar tilt na cabeça dos apaixonados simpatizantes do deputado: comunismo e a ditadura militar brasileira podem sim serem consideradas próximos, dois lados da mesma moeda. Compartilhavam da noção de Estado grande, centralizado, intervencionista em todos os setores, em maior ou menor intensidade; suas cúpulas, as únicas capazes de conduzir o povo, e não o contrário. Não por acaso, militares como Prestes e Lamarca se tornaram expoentes do movimento comunista brasileiro, e as Forças Armadas foram o esteio desses regimes em todo o mundo.

Mais do que tudo, portanto, essa entrevista reforça o pior dos defeitos de Bolsonaro: ele e seus filhotes ultrapassam o embate direita x esquerda, pelo menos as moderadas - nem toda direita é liberal, e esquerda está longe de ser sinônimo de comunismo). São eles deploráveis leões de chácara: indigentes intelectuais, incapazes de articular raciocínios políticos, sociais e econômicos mais complexos e coerentes, truculentos, brucutus sem apego algum às normas de uma sociedade verdadeiramente democrática, tolerante e diversificada, incluído aqui o Estado de Direito e suas instituições. O passado do capitão e afirmações presentes da família confirmam.

É de fazer rir sua tentativa de repaginada liberal democrata. Até o moralismo não se sustenta, como se vê nas notícias de empreguismo familiar. Assim como Chávez, Bolsonaro é exemplo de populismo autoritário messiânico. Em seu caso, com verniz hiperdireitista. Esta é sua essência.Faz sentido o elogio.

quinta-feira, 7 de dezembro de 2017

O silêncio sobre Robinho

Por Murillo Victorazzo

Políticos renunciam e artistas são afastados após avalanche de denúncias de assédio sexual nos EUA. No Brasil, um famoso ex-jogador da seleção canarinha é condenado - repito, condenado - pela Justiça italiana por estupro - repito, estupro - e pouquíssimos se "emocionam".

Sem prejulgamentos, Robinho tem o direito de recorrer da pena de nove anos de prisão por abuso de uma albanesa de 22 anos em 2013, quando jogava pelo Milan. Mas por muito menos, por infrações esportivas ou disciplinares, atletas foram suspensos ou afastados previamente. E aí Galo, até quando se calará ?

É estarrecedor o quase nenhum espaço dado ao caso na imprensa daqui. Não, condenação por crime contra outro ser humano não é assunto particular.

domingo, 26 de novembro de 2017

Zimbábue e a máxima de Lampeduza: mais um fracasso da comunidade internacional

Por Murillo Victorazzo


Aos 93 anos, Robert Mugabe era o governante há mais tempo no poder no mundo. Desde de terça-feira retrasada, quando, em meio a blindados e soldados nas ruas de Harare, foi detido em casa por militares, a latente instabilidade institucional do Zimbábue veio à tona.

Depois de dias de incertezas e pressões de generais e partidários seus, o veterano tirano negociou sua renúncia. Garantiu imunidade e segurança para manter-se no país. Poupou ainda a comunidade internacional de ter que enfrentar novos dilemas acerca de democracia, direitos humanos e não ingerência em assuntos internos .

No poder desde a independência do país, em 1980,  a imagem de Mugabe foi mudando com o tempo: de "libertador" da nação, passou a ser visto, dentro e fora das fronteiras nacionais, como um déspota sedento de poder a qualquer custo e responsável pela decadência da economia zimbabuense, uma das mais dinâmicas da África até o século passado.

Dois fatos determinantes consolidaram a faceta tirana e sectária de Mugabe: a cruel repressão à rebelião popular na província de Matabeleland, de etnia dissidente ndebele, ainda na década de 80, e, a partir de meados da década seguinte, a expropriação das fazendas de brancos de origem britânica, chancelando inclusive invasões por grupos de negros armados. Não faltaram ameaças de deportação dos ex-proprietários e bravatas sobre eventual declaração de guerra contra o Reino Unido.

O saldo da radicalização foi desolador: vinte mil rebelados assassinados em Matabeleland e a ruína do setor agrícola do país, dado que, entre outras razões, os novos donos de terras não usufruíam da tecnologia de produção. O Mugabe conciliador, avesso à caça a bruxas, que permitiu a Ian Smith, o governante por ele derrubado, continuar a viver livremente no país, caía por terra.

Durante todo esse tempo, o ditador contou com o apoio das Forças Armadas. Postura explicitada a partir de suas reeleições em 2008 e 2013, quando, mesmo diante das evidentes irregularidades nas votações e de crescentes rejeição interna e pressões externas, deixaram claro que apenas ele seria reconhecido como presidente.

Em 2008, diante do imensurável caos inflacionário de 500 bilhões por cento, as fraudes denunciadas por observadores internacionais não impediram que os primeiros números indicassem a vitória de seu adversário, Morgan Tsvangirai. Mas Mugabe recusou-se a reconhecer a derrota, dando início a violentos conflitos. Cerca de 200 militantes oposicionistas foram assassinados por aliados seus .

A fim de forçar negociação entre as partes, EUA e Reino Unido propuseram no Conselho de Segurança da ONU sanções ao governo Mugabe. Rússia e China vetaram, mantendo a tradição doutrinária e pragmática de não se intromissão em "assuntos internos".

Além de os direitos humanos serem grandes calcanhares de Aquiles para os dois países, pesaram as antigas e íntimas relações da China com o Zimbábue, as quais remontam à independência dos africanos, quando Mugabe buscou nos asiáticos o apoio não recebido de Moscou para a guerrilha contra os brancos ocidentais. Pequim estabeleceu relações diplomáticas com o novo Estado já no primeiro dia de sua proclamação e foi o destino da primeira viagem internacional do novo chefe de governo.

Enquanto Estados Unidos e União Europeia vinham, desde o início do século XXI, aplicando sanções contra a ditadura de Mugabe, os investimentos chineses no país africano, oitavo maior produtor de diamantes do mundo, foram se intensificando. Uma influência tão intensa que hoje a moeda chinesa, o renmibi, é aceita como meio de pagamento oficial no Zimbábue.

Postulante a líder regional, a África do Sul também mostrou-se contrária às sanções propostas na ONU; preferiu liderar as buscas por diálogo dentro da União Africana e da SADC (Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral), cujo fortalecimento é de seu interesse. Ex-colonizadores, os britânicos, derrotados no Conselho de Segurança, preferiram não insistir unilateralmente. A imagem de Mugabe como vítima da ingerência da "metrópole imperialista" ainda tinha o potencial de unificar o país em torno de si.

A espiral de violência crescia em proporção ao impasse. Tsvangirai, então, cedeu e aceitou ser primeiro-ministro em um governo de "união nacional". Candidatou-se de novo em 2013, quando o final foi semelhante. Em outra votação sob suspeita por observadores internacionais, Mugabe venceu com cerca de 60% dos votos. Dessa vez, no entanto, não houve sangue derramado, apenas uma débil "resistência pacífica" da oposição, sem grandes efeitos com o passar dos dias.

A queda de Mugabe está longe de ser fruto de movimentos internos e internacionais a favor da democracia e da luta contra corrupção. É sim resultado da fragmentação do Zanu-PF, o partido no poder, dominado por veteranos da guerra da independência, muitos deles militares aposentados que enriqueceram ao ocuparem cargos civis de alto escalão.

Quando Mugabe afastou o vice-presidente, Emmanuel Mnangagwa, seu companheiro de guerrilha, e mais de cem funcionários ligados a ele, a crise estourou. Ao sinalizar que bancaria a primeira-dama, Grace, como sua sucessora, entrou em rota de colisão com os militares, avessos à uma dinastia familiar. Enquanto não atingiu os interesses do Exército, o ditador o teve como sustentáculo. Perdendo-o, perdeu junto o de seu partido.

Pouco se sabe qual o cálculo levou o velho ditador a fazer jogada tão brusca, ciente, imagina-se, dos riscos de provocar seu único alicerce em um contexto de crescente rejeição popular. Alguns dirão que o isolamento do poder ensurdece e cega. Seja como for, entra para o hall de suas escolhas políticas e econômicas racionalmente duvidosas.

Porém, por mais fraudulento que tenham sido as eleições e opressor seja seu regime, Mugabe fora sufragado constitucionalmente pelas urnas para um mandato predefinido. Eleições presidenciais estão marcadas para o ano que vem. Era o governo reconhecido por todos. As principais potências do mundo e as economias emergentes em momento algum haviam fechado suas embaixadas em Harare.

Falácias jurídicas típicas de autocratas que se escudam em aparente ordem legal? Certamente. Mas em uma comunidade internacional regulada por normas, ainda que aplicadas mais em funções de interesses do que de princípios, tais falácias criam de fato barreiras para pressões externas eficazes - e favorecem escapismos. O confronto entre os princípios da não-intervenção e dos direitos humanos como valor universal é permanente - e se torna ainda mais angustiante quando ambos os lados em choque fogem ao segundo.

Enquanto milhares saíram às ruas para celebrar a prisão do ditador, nenhuma voz interna saiu em sua defesa. O total isolamento de Mugabe foi fundamental para sua relativamente rápida renúncia e ajudou a reforçar a versão dos rebelados de que não houvera golpe militar, apenas uma "transição sem sangue". Mugabe sim teria usurpado a Carta ao afastar Mnangagwa e pretender nomear Grace em seu lugar.

Uma unanimidade abençoada pela a comunidade internacional, livre do desafio de mediar um conflito cujos dois lados guardam em comum nenhum apreço por regras e de ter que defender direitos de um déspota há anos alvo seu. A começar por referendar ou não a versão do Exército sobre o caso. A definição de golpe não é mera formalidade semântica e varia infelizmente em função da conjuntura.

Por lei, por exemplo, os EUA são proibidos de ajudar financeiramente governos assim originados. Na crise egípcia de 2012, o governo Obama saiu pela tangente quando Mohamed Mursi, há pouco tempo eleito presidente, foi deposto pelo Exército por namorar com práticas nada democráticas do islamismo político.

A Casa Branca preferiu relevar olhando pelo ângulo do "contragolpe", ou do "golpe preventivo". Reconheceu o governo do general Sisi (formado por remanescentes do ditador anteriormente deposto Mubarak) e manteve o importantíssimo aporte de bilhões de dólares anuais a Cairo.

A ajuda norte-americana ao Zimbábue é mínima comparada ao Egito, e, mais do que nunca, a África parece longe da lista de prioridades do Tio Sam, tanto que cargo de secretário de Estado para Assuntos Africanos do Departamento de Estado está vago. Contudo, a "escolha de Sofia" se assemelhava.

A maneira como Mugabe encerrou sua era caiu como uma luva para o apregoado isolacionismo do governo Trump, para quem, ao contrário dos republicanos tradicionais, a defesa da democracia não se encontra em sua agenda - exceto na retórica contra Irã, Coreia do Norte, Cuba e Venezuela. "Parabenizamos todos os zimbabuenses, que se manifestaram e afirmaram de forma pacífica e clara que estava na hora de mudanças". Assim se manifestou, em breve nota, o secretário de Estado, Rex Tillerson.

Empossado domingo,  Mnangagwa está muito longe de ser um democrata. Encontra-se intimamente associado aos massacres de Matabeleland e teve papel fundamental nas fraudes de 2008. Porém, é visto como um pragmatista. Deu declarações sobre a necessidade de se aproximar do Ocidente, reformando a economia e oferecendo compensação aos fazendeiros brancos expulsos.

Maior parceiro comercial do Zimbábue, a China, o paroxismo da realpolitik, desde o início repetiu o mantra do desejo por resolução interna da crise. Entretanto, a visita do chefe do Exército zimbabuense à Pequim semanas antes do golpe levantou rumores sobre a participação chinesa no levante.

Sinais de que Mugabe estaria perdendo o apoio da potência asiática já vinham aparecendo. A instabilidade política interna, sempre prejudicial a investimentos, se juntava ao seu anúncio, ano passado, de que nacionalizaria firmas estrangeiras e controlaria todos os diamantes no território nacional. Respeito à propriedade: o mesmo aviso dado por britânicos no passado recente começou a ser emitido por Pequim.

Se carece de provas a participação ativa dos chineses na conspiração, é fácil concluir que, no mínimo, eles não se mexeriam para ajudá-lo. Como reagirão à eventual aproximação do Zimbábue com o Ocidente, cujo efeito pode se chocar com interesses seus, é mais uma incógnita que surge.

Por hora também, a África do Sul e os blocos por ela liderados não precisaram mostrar se seriam capazes de moldar a resolução do conflito sem o protagonismo indesejado das potências. Um conflito com potencial de  rastilho de pólvora em uma região na qual tantos países compartilham do mesmo mal: a frágil institucionalização democrática, pelo menos sob a visão de democracia liberal predominante no Ocidente.

Rastilho, aliás, não apagado. Querendo ou não, a renúncia, ou até mesmo o aventado processo de impeachment, não teria acontecido sem a coação das armas, com posteriores acomodações à frente do rito constitucional. Quanto maior a flexibilidade retórica para se relativizar a seu gosto um golpe, maiores são os precedentes abertos como exemplo para a vizinhança. Pode ser para derrubar um tirano aqui, mas pode servir para ascender outro lá.

Hoje o Zimbábue comemora com razão a queda de um déspota. No entanto, ninguém sabe o que os espera a médio prazo. O processo seguinte de formação do novo governo, o papel dos militares e principalmente se as eleições se confirmarão estão para ser esclarecidos. Mudou-se a cabeça, mas o corpo despótico permanece.

É inegável o quanto são dramáticos os dilemas e as barreiras para ações externas mais efetivas contra regimes ditatoriais. Tampouco que, depois do deposto, quem sai derrotada é a chamada comunidade internacional, pelos menos os Estados e organismos que vendem como princípio a defesa do Estado democrático de Direito. Menos pelos fatos da última semanas e mais pelo conjunto da obra nas últimas décadas em relação ao país.

Um racha interno, e não suas sanções e pressões, derrubou Mugabe, que, em troca, afora garantias, receberá, afirmam agências de notícias, US$ 10 milhões de indenização - quem, aliás, deveria julgar e prender governante criminoso é o Poder Judiciário.

Na constante balança entre não intervenção em assuntos internos e direitos humanos como valor universal, alguns requisitos deveriam ser estimulados prévia e incondicionalmente por esse atores externos : o estimulo à cultura da separação entre as esferas pública e privada e da submissão do poder militar ao civil, contra patrimonialismos e personalismos, sem arranjos internos de momento, ainda que estes contem com aparente aprovação popular.

Caso contrário, o maior entre vitoriosos será a máxima de Lampeduza: "Algo tem que mudar para que tudo permaneça como está". Evitá-la é o grande desafio para uma sociedade de nações que diz priorizar o ser humano acima da soberania estatal. Sob o risco de sua desmoralização completa.

A ruralista trabalhista

Por Murillo Victorazzo

Senadora por Tocantins, Kátia Abreu talvez seja a personificação da esquizofrenia que se tornou a política brasileira. Uma das principais ruralistas do país, chegou ao Senado pelo  direitista DEM. Então presidente da CNA (Confederação Nacional da Agricultura) travou fortes embates com o governo Lula, tornando-se um dos nomes mais alvejados pelos petistas. Acusações de trabalho escravo em suas fazendas foram lançadas, por exemplo.

Uma amizade sincera e inusitada com Dilma a aproximou do Planalto. Empatia à primeira vista, apesar das histórias de vida totalmente opostas.Tornou-se sua ministra da Agricultura no segundo governo da petista, uma das vozes mais combativas contra seu impeachment e oposição ao governo de seu partido, o PMDB. Não mede palavras para se referir às acusações que pesam sobre Temer, Jucá, Geddel e Cia.

Expulsa da sigla esta semana, namora agora o PDT, criado sob a bandeira do nacionalismo econômico por Leonel Brizola, famoso pela defesa da reforma agrária, tendo inclusive, como governador do RS na déc de 60, expropriado terras...

sexta-feira, 17 de novembro de 2017

A decadência de um jornalista

Por Murillo Victorazzo

O país todo parece imobilizado diante da roubalheira do PMDB. Protesto algum é visto em rua alguma do RS ao AP, passando por SP, MG, DF, nem mesmo em finais de semana. Ninguém em frente ao Senado quando "libertaram" Aécio Neves em Brasília.

Mas hoje, sexta-feira, dia de trabalho, Ricardo Noblat, em seu twitter, preferiu evocar um velho estereótipo contra o carioca para criticar a pouca mobilização em frente à Alerj: "Sabe como é: deu praia hoje. 40 graus".

Ser o estado em que a crise econômica e a ladroagem peemedebista mais foram danosas não minimiza o silêncio de outros locais. Nem torna o seu tão diferente, tão pior, a ponto de usar de preconceitos babacas para pseudoexplicações.

No Rio, aconteceu, em 68, a maior passeata contra a ditadura, a "Passeata dos Cem mil". Em 84, mais de um milhão foram à Candelária por "Diretas Já". Em 2013, mais de 300 mil pessoas se deslocaram para a Avenida Presidente. Vargas, além de outros menores protestos. Contra Dilma, outros tantos milhares se reuniram em Copacabana. Fora os comícios gigantescos de candidatos em 89.

Em vez de discutir o porquê da paralisia nacional, o porquê de mobilização contra X, mas não contra Y, Noblat achou melhor ir contra o papel de sua profissão: além de reportar, pensar, refletir, fora de chavões deploráveis.

É ainda mais lamentável por vir de um jornalista nascido em região tão vítima de rótulos negativos como o Nordeste. Que decadência, Noblat. Já não bastavam as inúmeras barrigas recentes.

terça-feira, 7 de novembro de 2017

PMDB derruba, centrão prefere ocupar governo

Por Josias de Souza. (UOL, 07/11/2017)

Os partidos do chamado centrão fazem com Michel Temer o que o PMDB fazia com Dilma Rousseff: usurpam a autoridade presidencial. Dilma fez cara feia. E foi destituída pelo PMDB. Temer entregou a alma. Safou-se duas vezes. Agora, é é diminuído por quem o salvou. Descobre da pior maneira uma fatalidade da política brasileira: quem com fisiologismo fere com fisiologismo será ferido.

Em meio a uma fase que poderia ser chamada de ‘pilântrica’, a política brasileira produz tristes espetáculos. Para livrar-se de denúncias criminais, Temer inseminou o centrão com cargos e verbas. Vitaminado, o centrão deu à luz uma versão mais impaciente e irascível de si mesmo. Já não se contenta com tudo. Quer mais.

Um dos generais do centrão, Arthur Lira, líder do PP, partido campeão no ranking do petrolão, avisa a Michel Temer: “Ou muda o ministério ou não vota mais nada aqui no Congresso.” O grupo cobiça dois ministérios da cota do PSDB: Relações Institucionais, que gerencia o balcão; e Cidades, que toca o Minha Casa, Minha Vida, visto como máquina de votos. Em vez de derrubar o governo, o centrão deseja ocupá-lo. E não há de ser para fazer bem ao país. Pobre Brasil.

segunda-feira, 6 de novembro de 2017

"O Outro Lado do Paraíso": uma joia a ser lapidada

Por Murillo Victorazzo

No ar há duas semanas, "O Outro Lado do Paraíso" nos traz a linda fotografia do Tocantins, estado brasileiro pouco abordado em teledramaturgia, com sua capital planejada e a beleza impressionante do Parque Nacional do Jalapão. Reúne uma constelação de atores de primeiríssima linha poucas vezes vista em uma só novela. E aborda assuntos instigantes que merecem ser debatidos, um até de forma inédita para o horário nobre, os obstáculos sociais que envolvem o nanismo.

Ganância, discriminação social e racial, homossexualismo "enrustido", violência doméstica contra as mulheres...Tudo se encontra na novela. Pena que - até agora - através de texto e personagens maniqueístas, simplórios, caricatos, que lhes tiram muito a verossimilhança.

"Some com essa monstra daqui", diz a mãe que renega a filha anã. "Essa é sua filha de baixa estatura?  Tentei conhecê-la no casamento, mas só havia gente alta. Ah, ela nem é tão baixinha ", comenta a amiga ao encontrá-las em um restaurante. "Meu filho é macho. Panela não é coisa pra homem carregar", afirma a mãe do gay "no armário", que passa batom e veste robe de seda para se encontrar sigilosamente com um garoto de programa.

Frases e tipos burlescos somados à patroa que, diante da empregada "negrinha", refere-se repetida e pejorativamente ao quilombo de onde ela veio, e às quase diárias agressões do marido contra a esposa em apenas uma semana de casamento Na última vez, inseguro diante do elogio de um garçom ex-aluno dela: "A senhora continua bonita".

Exceto em um ou outro arroubo, dilemas, crueldades, aversões e preconceitos soltos sutilmente no ar valem mais do que contantes frases diretas e reações brutas, mais típicas de comentários em portais de notícias. Nuances, sensibilidade, "indiretas",´dissimulações, até ironias eventuais: é assim que uma personagem se torna interessante a ponto de nos incomodar e refletir. Do contrário, de tão forçado, apenas chama a atenção momentânea ou acaba no cômico. 

Funcional para boas audiências, esse é o estilo Walcyr Carrasco, famoso por pastelões das 18 horas, como "O Cravo e a Rosa"e "Chocolate com Pimenta", dramalhões de época ou tramas propositadamente pesadas, como o sucesso "Verdade Secretas". Todas sem o propalado objetivo da crítica social, cuja condição básica é levar o espectador a ver a si ou seu arredor nela, traço nítido na novela anterior,  na qual questões cotidianas polêmicas também foram levantadas, porém de modo sensível e complexo - e, portanto, mais real.

Assim como sua mocinha, Carrasco tem em mãos preciosidades. Mas diferente dela, não há megera alguma disposta a interná-lo para poder explorar  esse potencial suficiente para fazer uma bonita novela em todos os sentidos, como Glória Perez provou ser possível. Só nos resta torcer para que ele próprio saiba - ou, o mais provável, queira - lapidá-la.

quinta-feira, 2 de novembro de 2017

Luislinda não é apenas mais uma cara de pau

Por Murillo Victorazzo

Ministra dos Direitos Humanos - frisemos, Direitos Humanos -, Luislinda Valois calou-se na polêmica acerca da esdrúxula portaria sobre "trabalho escravo". Postura bem diferente de Flávia Piovesan, recém-demitida secretária nacional de Cidadania, uma das poucas figuras respeitáveis desse governo.

Nesta quinta-feira, dia 2, o Estadão revelou que Luislinda havia encaminhado um pedido para acumular o salário de ministra com o de desembargadora aposentada. Totalizaria R$ 61 mil, bem acima do teto constitucional do funcionalismo, de R$33,7 mil.

Ao tentar justificativa o pedido, disse que precisava "se apresentar trajada dignamente" e fez alusão a escravidão. “Sem sombra de dúvidas, [o desconto pelo teto] se assemelha ao trabalho escravo, o que também é rejeitado, peremptoriamente, pela legislação brasileira desde os idos de 1888 com a Lei da Abolição da Escravatura”, escreveu no documento com mais de duzentas páginas.

A comparação revelaria apenas mais uma cara de pau entre tantas em Brasília, se não fosse ela titular de um ministério com esse nome e negra. Sendo, é canalhice mesmo. Canalhice com convicção, pois disse mais tarde que se tratava apenas de uma "simbologia".

Em um governo sério,  Luislinda, filiada ao PSDB, já estaria demitida. Mas esperar que Temer se preocupe com seriedade é esperar que traficante se preocupe com a licitude da droga.

Os canalhas perderam a vergonha de se assumir. O fígado do brasileiro não aguenta mais. E a culpa não é da cerveja.

domingo, 22 de outubro de 2017

Fim do 'globalismo', como quer Trump, ameaça a paz mundial

Por Max Boot* (Foreign Policy/Folha de SP, 23/10/2017)

O epíteto que define a Era Trump é "globalista". Esse é o termo de insulto para todos os fins que o presidente e seus mais fervorosos apoiadores gritam a qualquer pessoa que discorde de sua agenda populista. Durante a campanha no ano passado, Donald Trumptuitou que a opção era "entre o americanismo" e o "globalismo corrupto" de Hillary Clinton.

Seu antigo estrategista Steve Bannon, que pensa que "os globalistas estriparam a classe trabalhadora americana e criaram uma classe média na Ásia", teria chamado o assessor econômico Gary Cohn, um ex-presidente do Goldman Sachs, de "Gary Globalista".

Um assessor do Conselho de Segurança Nacional foi demitido pelo assessor de Segurança Nacional, H.R. McMaster, por distribuir um memorando afirmando que Trump é ameaçado por uma coalizão infame de "globalistas", juntamente com "atores do Estado profundo", "banqueiros", "islamistas" e "republicanos do establishment" (seria divertido imaginar um encontro de todos esses inimigos de Trump).

Está na hora de alguém se manifestar a favor do "globalismo", termo que só é insultante se você não ponderar as alternativas. Claro, o globalismo tem seus lados negativos. Mas, perguntamo-nos, o que é o oposto de globalismo? Provincianismo? Tribalismo? Nacionalismo? Nenhum deles é interessante.

Provincianismo, segundo o dicionário, é "o modo de vida ou de pensamento característico das regiões fora da capital de um país, especialmente quando considerado não sofisticado ou de mentalidade estreita". Essa é uma descrição bastante boa de Trump e seus seguidores, mas supostamente uma que eles não adotariam —sem dúvida eles consideram essa definição emblemática do desprezo que as elites cosmopolitas lhes dedicam.

Tribalismo? Foi isso o que nos deu os genocídios em Ruanda e na antiga Iugoslávia, e que hoje é responsável pelo massacre na Síria e no Iêmen e pela limpeza étnica dos rohingya em Mianmar. Está até levando à violência na Espanha, onde a polícia nacional quebrou cabeças para impedir um referendo sobre a independência da Catalunha. E, como comenta Andrew Sullivan em um brilhante ensaio na revista "New York", o tribalismo está envenenando o clima político nos EUA.

Nacionalismo? É a ideologia defendida no passado pelos militaristas alemães e japoneses e hoje por ditadores em Moscou, Pequim, Caracas, Harare, Ancara e Pyongyang, entre outros lugares. Uma forma diluída de nacionalismo pode ser benigna, mas a variedade à toda prova foi responsável por pelo menos tantas atrocidades quanto o tribalismo, ideologia da qual muitas vezes não se distingue.

Que horrores, em comparação, nos deu o globalismo? Se você escutar as arengas dos apoiadores mais loucos de Trump, poderia imaginar que a ONU, o Conselho de Relações Exteriores e a Comissão Trilateral despacharam hordas de patrulheiros em helicópteros pretos para reprimir nossas liberdades, enquanto George Soros, os Rothschilds e outros "banqueiros internacionais", que por acaso são judeus, destroem nossa economia.

Existe uma longa tradição de promotores de conspirações à margem da extrema-direita, remontando à paranoia do século 19 sobre os maçons, a Igreja Católica, a rainha da Inglaterra e —um tema constante— banqueiros judeus (infelizmente, o antissemitismo nunca sai de moda).

Desnecessário dizer que essas teorias conspiratórias são malucas. Eu trabalhei no Conselho de Relações Exteriores durante 15 anos e nunca vi um helicóptero preto pousar na cobertura. Nunca sequer presenciei uma conversa sobre destruir a soberania americana. As pessoas que acreditam nessas coisas provavelmente também acreditam que os alienígenas estão se comunicando com elas por meio de suas obturações dentárias.

Raciocinar com elas é impossível. Mas também há formas mais brandas de preconceito antiglobalista, e para os que detêm tais opiniões vale a pena citar como o registro real da globalização foi benéfico.

Em séculos passados, é verdade, a globalização muitas vezes foi conquistada à ponta de sabre ou de arma; impérios como o mongol, o otomano, o espanhol, o britânico e o francês puseram povos e culturas díspares em estreito contato ao disseminar seu próprio domínio imperial. Mas desde o século 19 o meio predominante de globalização foi o livre comércio e a livre migração —o movimento voluntário de bens e pessoas.

Houve uma grande onda de globalização anterior a 1914, quando milhões de pessoas migraram do Velho Mundo para o Novo, e bens e investimentos fluíram ao redor do globo. Segundo uma estimativa, os ativos estrangeiros em 1914 representaram uma porcentagem do PIB mundial maior do que em qualquer outro momento até 1985. O resultado foi uma vasta melhora no padrão de vida desfrutado por homens e mulheres comuns no mundo ocidental.

Soando muito como um precursor de Jeff Bezos, John Maynard Keynes escreveu que em 1914 "o morador de Londres podia encomendar por telefone, tomando seu chá matinal na cama, os vários produtos da Terra toda, na quantidade que considerasse adequada, e razoavelmente esperar a entrega à sua porta".

Essa também foi uma era em que os ancestrais de muitos americanos de hoje —incluindo Donald Trump e Steve Bannon– chegaram a nossas plagas: a família Trump veio da Alemanha e a de Bannon, da Irlanda. Naquele tempo, as fronteiras eram tão porosas que não havia necessidade de passaportes, vistos ou ficha corrida.

Se as fronteiras fossem rigidamente policiadas na época como são hoje, o "refugo miserável" da Europa jamais teria dado em nossa "praia pujante" e não seríamos a nação que somos hoje.

A época áurea do globalismo parece ainda melhor comparada com o que veio depois. A Primeira Guerra Mundial, seguida do isolacionismo, protecionismo e iliberalismo no período entre guerras, destruiu aquela era dourada do fim do século e trouxe um mundo de horrores inimagináveis. Só depois da morte de 100 milhões de pessoas (o número combinado das duas guerras mundiais) uma nova era de globalismo se ergueu das ruínas.

Os EUA assumiram a liderança para produzi-la, criando instituições como o Acordo Geral de Tarifas e Comércio (Gatt, precursor da Organização Mundial do Comércio) para reduzir as barreiras comerciais, e instituições como a Organização das Nações Unidas (ONU) e a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) para manter a paz coletiva.

Com o incentivo americano, os europeus decidiram passar a cooperar em vez de lutar, levando à criação, sucessivamente, da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, a Comunidade Econômica Europeia e depois, em 1993, a União Europeia.

Grandes países asiáticos como Japão, Coreia do Sul e China protegeram mais enciumadamente sua soberania, mas também se integraram à economia mundial em vez de seguir políticas autárquicas como haviam feito antes.

O resultado dessas tendências foi uma diminuição sem precedentes nas guerras e um aumento da geração de riqueza. Steven Pinker, de Harvard, e Joshua Goldstein, da Universidade Americana, relatam que entre 1945 e 2011 o índice de mortalidade global caiu de 22 por 100 mil pessoas para 0,3, antes de subir para 1,4 em 2014 em consequência da guerra civil na Síria, a disseminação do Estado Islâmico e outros conflitos.

Mas mesmo esse índice elevado está muito abaixo do que a humanidade teve de suportar durante a maior parte de sua história sangrenta anterior à era pós-1945, quando guerras de agressão foram contidas pela lei internacional apoiada pelo poderio militar ocidental.

Enquanto isso, Max Roser e Esteban Ortiz-Ospina, de Oxford, calculam que a porcentagem da população global que vive na extrema pobreza diminuiu de 84% em 1820 para 16% em 2010 —e continua caindo (eles calcularam que teria caído abaixo de 10% em 2015.).

Isso não é total ou principalmente consequência da globalização —avanços tecnológicos como a Revolução Industrial e a Revolução Verde merecem a maior parte do crédito—, mas ela teve um papel importante em disseminar inovações aos que precisam delas. O mundo seria ainda mais rico hoje se não fosse pelo período sombrio entre 1914 e 1945, quando a globalização entrou em retrocesso.

Certamente, o globalismo pode ter efeitos colaterais negativos —pode ser explorado por criminosos e terroristas e pode ser perturbador para as comunidades tradicionais, sejam aldeias na África ou cidades industriais nos Apalaches. É legítimo criar programas de bem-estar social e educação para melhorar o impacto dessas mudanças nos trabalhadores que correm o risco de ser deixados para trás.

Mas o globalismo não é uma trama nefasta para destruir a soberania, como parecem imaginar os Trumpkins. A professora da Universidade de Londres Or Rosenboim, que escreveu um livro sobre o assunto, comenta que "o globalismo há muito permitiu um lugar para o nacionalismo e a soberania nacional enquanto sugeria que algumas necessidades e práticas humanas transcendem as fronteiras nacionais".

Questões transnacionais incluem a promoção do comércio e a batalha contra as violações dos direitos humanos, doenças, pobreza, terrorismo e cartéis do crime. O fato de que há mais cooperação internacional do que costumava haver em todas essas áreas não é, como imagina Trump, um complô contra a América, mas sim um complô da América para aumentar seu bem-estar —e o de seus aliados e parceiros comerciais.

Enquanto o globalismo pode ser perturbador e difícil de lidar em curto prazo —ele destrói alguns empregos e cria outros—, seus efeitos em longo prazo são enormemente benéficos.

A principal ameaça que enfrentamos hoje é que o globalismo pode mais uma vez entrar em retrocesso como fez em 1914, porque os EUA —durante tantas décadas seu principal defensor— podem agora, sob Trump, tornar-se um obstáculo em vez de uma ajuda ao comércio e à cooperação transnacionais.

*Tradução: Luis Roberto Mendes Gonçalves

O rei e a Cataluña: ecos do passado

Por Murillo Victorazzo

De sua tribuna, um rei vem a público defender o cumprimento da lei para a manutenção da ordem - no caso específico a integridade territorial. Sobre a decorrente violência estatal contra alguns de seu súditos, nenhuma palavra dada, deixando no ar a sensação de que a considera um secundário, inevitável e justificável efeito colateral.

Os agredidos pertencem a uma região de forte identidade cultural própria, com histórico de lutas - armadas ou não - contra anexação ou restrição de autonomia impostas por governos autoritários. Dias depois, líderes separatistas são presos e o governo central destitui o governo e parlamento local.

 As cenas nos remetem aos livros e filmes históricos sobre a época dos monarcas absolutistas, que, ungidos ao trono segundo o Direito Divino (de Deus vinha seu poder e apenas a Ele tinha que explicar) e desejosos de manter seus reino e poder, mostravam-se insensíveis a vozes populares. Mas, guardadas as enormes proporções, podem ser vistas na Catalunha espanhola ultimamente.

Há três anos, Felipe VI herdou a Coroa espanhola de seu pai, Juan Carlos I, com a tarefa de não deixar fomentar o republicanismo no país. Em um cenário de alta recessão e desemprego, as notícias de gastos abusivos e corrupção envolvendo a família real balançavam a credibilidade da monarquia.

Enquanto jovens iam às ruas protestar contra o sistema econômico e político, no chamado movimento dos "Indignados", que colocou em xeque o bipartidarismo tradicional espanhol, Juan Carlos viajava para a África a fim de participar do seu hobby predileto, a supérflua e pouco razoável caça a elefantes.

Sua filha, a infanta Cristina, entrava para a História como a primeira descendente da Coroa a depor na presença de um juiz, no rastro do escândalo protagonizado por seu marido, Iñakli Urdangarin. Acusava-se o genro real de desviar dinheiro público para a fundação presidida por ele. Extratos bancários mostravam que parte do capital da instituição sem fins lucrativos havia sido utilizado para pagar as volumosas despesas pessoais do casal, como, por exemplo, sapatos de 900 euros.

No dia do depoimento de Crisitina, centenas de manifestantes antimonarquia se colocaram à frente do tribunal. Um deles dava o tom: “A nossa monarquia é uma instituição arcaica, medieval e está totalmente protegida por uma máfia. É a pedra angular da corrupção que há neste país”.

Já debilitado pela idade, o monarca preferiu abdicar. Um rei jovem passaria a imagem de uma Coroa oxigenada, pensou resumidamente Don Juan, ele próprio um monarca respeitado dentro e fora de suas fronteiras por seu legado democrático. Seu protagonismo no sepultamento do entulho fascista de seu antecessor, El Generalísimo Francisco Franco é indiscutível.

Neto de Afonso VIII, cuja abdicação significou o início da Segunda República, Juan Carlos subiu ao trono em 1975, após a morte de Franco, que governou com mãos de ferro a Espanha por quase 40 anos. O período franquista, consolidado após uma das mais sangrentas guerras civis do século XX, teve como uma de suas marcas o sufocamento cultural, político e administrativo das regiões autônomas do país - o catalão, por exemplo, foi proibido de ser ensinado e praticado em locais públicos na Catalunha.

Prestes a morrer, na beira dos 80 anos, ao ter que escolher seu sucessor, Franco imaginara que o retorno à monarquia seria a garantia da manutenção dos pilares católicos ultraconservadores de seu regime. Além do que, em um país como a Espanha, de histórico imperial mas pouca coesão interna, traço expresso no separatismo latente de algumas de suas regiões, ninguém melhor do que um rei para manter o status quo unificador.

Mas, dono do cetro, o novo rei monarca não seguiu à risca o imaginado pelo ditador. Convocou eleições diretas para a elaboração de uma nova Constituição e renunciou através dela a muito de seus poderes. A nova Carta reservava-lhe, seguindo as monarquias modernas, apenas a Chefia de Estado. Seu papel seria o de representante da nação perante o exterior, chefe supremo das Forças Armadas e, principalmente, fiador da estabilidade institucional do país. Devolvia ainda autonomia  a região catalã.

A Espanha, a partir de então, tinha um Parlamento independente e, na Chefia de Governo, um presidente de gobierno  (como lá se chama o primeiro-ministro), designado pela maioria parlamentar originária da vontade popular. O pulso forte de Juan Carlos contra a tentativa de golpe em 1981, quando militares franquistas insatisfeitos invadiram armados o Parlamento, serviria para carimbar definitivamente nele a imagem de democrata e unificador do Espanha, que, entre gabinetes socialistas e conservadores, modernizaria sua economia nas décadas finais do século XX.

A crescente contestação a ele, portanto, alertava para a considerável perda de prestígio da Coroa. Não por acaso, assim que se anunciou sua abdicação, milhares de pessoas em diferentes cidades foram às ruas para festejar e logo pedir um referendo sobre o fim da monarquia.  Na Catalunha, onde a crise já servira para estimular a convocação de  uma consulta popular separatista, posteriormente barrada por Madrid, a mobilização ganhou dimensão maior.

Nada surpreendente para uma região cuja torcida (pelo menos, grande parte dela) de seu principal time faz há anos coro pela secessão aos exatos 17 minutos e 14 segundos de toda partida jogada em seu estádio. Uma referência ao ano de 1714, quando um levante catalão foi sufocado pelas tropas de Felipe V - notem a coincidência irônica do nome - e Catalunha, definitivamente anexada ao Reino da Espanha, deixando de ter direito a governo próprio.

O motivo da empolgação parecia óbvio. A queda da monarquia sempre será terreno fértil para separatistas. Uma república recém-criada traz consigo incertezas e disputas políticas, um vácuo de poder deixado pelo fim de um dos poucos traços positivos de uma forma de governo que ignora a chancela popular na escolha da chefia de Estado em pleno século XXI: o perfil unificador do rei, em muito oriundo de sua neutralidade acerca dessas disputas.

Símbolo permanente do Estado - e não de governos - o rei está imune e acima dos cotidianos embates parlamentares e decisões governamentais, sendo assim visto com legitimidade para falar em nome de toda nação.

É por ser o símbolo da integridade do território nacional que é compreensível o tom elevado de Felipe VI contra o referendo do mês passado, que, embora com participação de pouco mais de 40% dos possíveis eleitores, decidiu com 90% dos votos pela emancipação.

No entanto, pela imagem de isenção legitimadora, esperava-se no discurso real um tom conciliatório, em busca do diálogo, e o rechaço à repressão policial contra quem apenas queria praticar o direito de votar, mesmo o Tribunal Constitucional considerando a votação ilegal. Bom senso real pacifica mais do que qualquer leitura rígida sobre parágrafos constitucionais.

A crítica a Felipe não é um posicionamento a favor dos separatistas nem concordância com todos os passos de Carles Puigdemont, presidente catalão e líder do grupo. Há inúmeros argumentos a favor e contra o movimento. Sinais econômicos, por exemplo, já evidenciam seu risco.

Porém, como sintetizou um catalão indignado ao Globo, "um rei representa um povo, a todos, e não apenas uma parte". A frase deveria ser ouvida não apenas pelo rei, mas por ambos os lados.  A independência está longe de ser unanimidade na Catalunha. Muito pelo contrário, todas as pesquisas a mostram dividida.

Entende-se também o rápido posicionamento da União Europeia contra o referendo. Faz todo sentido o presidente francês, Emanuel Macron, ser solidário ao primeiro-ministro espanhol, Mariano Rajoy. Tudo o que Macron não deseja é instabilidade em suas fronteiras e no bloco pelo qual tanto luta para fortalecer. A vitória do "Sim" periga abrir a Caixa de Pandora dos movimentos similares existentes em países da região. Mas, ressalte-se, mesmo em Bruxelas vozes se levantaram contra os excessos policiais e a favor do diálogo.

Com sua abdicação, Juan Carlos voltou a ganhar pontos entre os espanhóis. Felipe VI, com sua jovialidade, e notícias como a condenação de Urdangarin, que deu à família real ares de igualdade perante a população ao mostrar que a Justiça é para todos, abafaram as ainda minoritárias porém barulhentas vozes republicanas na Espanha.

Contudo, a resposta virulenta dada por Rajoy e avalizada por Felipe, se não vão no sentido oposto para todo o país, reaviva a memória do autoritarismo tão dolorosa para os catalães, capaz de indignar mesmo os contrários à independência. Se Madrid e Barcelona esticam perigosamente as cordas, reforçar a imagem histórica de oprimidos tem potencial aglutinador - e bem pior, é fermento para radicalizações com armas e terror.

De Rajoy e seu partido, pode-se não esperar muito. Mas de Felipe, com poderes limitados mas grande força simbólica e referendadora, espera-se, em suas manifestações, prudência, sensibilidade política. Caso contrário, arrisca-se a entrar no imaginário catalão da mesma forma que seu xará tão longinquamente antecessor, com as consequências que dele podem vir.

Buen sentido, Majestad, aunque puede ser una quimera.

terça-feira, 17 de outubro de 2017

E a Somália, coleguinhas?

Por Murillo Victorazzo

Com mais de 300 mortos  após explosão de dois carros-bombas , o  ataque terrorista do último domingo na Somália foi provavelmente o maior desde o 11 de setembro. A autoria ainda é desconhecida, mas tudo indica ser o grupo Al Shabab, uma espécie braço auxiliar da Al Queda, que luta contra o frágil governo central, de cunho islâmico moderado.

No Brasil, a tragédia não mereceu manchete de nenhum portal ou jornal. No máximo, chamada com foto. Dentro dos diários, nada mais do que uma página reservada - e olhe lá. O Globo, por exemplo, preferiu dar a matéria principal da editoria Internacional às eleições na Venezuela. Nos sites desta tarde, nenhum destaque para os desdobramentos do caso. Telejornais noticiam através de breves notas cobertas.

Nada parecido com aquelas intermináveis horas de especialistas analisando e entradas ao vivo vistas nos atentados na Europa e Estados Unidos. Para lembrar, o recente massacre em Las Vegas  de razões ainda desconhecidas mas descartado como terrorismo fundamentalista islâmico, resultou na morte de quase 60 pessoas. O último atentado em Londres,  em junho, através de faca e atropelamentos, deixou oito vítimas fatais.

A diferença de tratamento incomoda. Não se trata de fazer a tenebrosa competição de tragédias, comum nas redes sociais, apontando o dedo para quem não colocou bandeira da Somália em seu perfil ou hastag "força, Somália". Trata-se de olhar para o papel da imprensa, ela que, queiram ou não, é protagonista no dimensionamento dos debates e comoções.

Embora possam ser reprováveis, é explicável, por razões sócio-culturais e tecnológicas, que tragédias ocorridas no Ocidente ganhem mais destaque. Coberturas instantâneas e extensas, com material próprio, são dificultadas quando a emissora não tem correspondente próximo à região e o local não dá condições de segurança e infraestrutura para o trabalho da imprensa. E, provavelmente acima de tudo, pesa a autoimagem do brasileiro em relação a Europa e Estados Unidos.

Apesar deles não nos colocarem no hall dos ocidentais, no sentido político econômico e cultural do termo, o senso comum nacional é o contrário: principalmente nossa elite econômica e cultural, com exceções, assim se vê.

Mais do que o fato indiscutível de serem o centro político do mundo, parece óbvio que esta autoimagem se reflita na pauta dos grandes meios de comunicação. E aqui não vai uma crítica, apenas uma constatação. Deixem para os sociólogos avaliarem autoimagens.

Seria, portanto, utópico esperar igualdade de destaque e reação afetiva - mesmo que vidas humanas aqui não valham mais do que lá. O que nos é próximo ( não em termos geográficos necessariamente) tende a nos chocar mais. Quantos sabem onde fica, costuma ou deseja conhecer a Somália? Que país é esse?

Mas tudo tem limites. Não equiparar é muito diferente de relegar desproporcionalmente fatos cruciais e com impactos iguais ou até maiores para a compreensão do planeta . Mais de 300 vidas civis perdidas ao mesmo tempo sem razão alguma, apenas para causar terror, sempre será motivo para "parar as máquinas" seja onde for. Se não por solidariedade a um país já tão instável e pobre, por bom jornalismo.

E bom jornalismo é ter talento para superar dificuldades operacionais e saber, na dosagem certa, como mostrar os fatos, além de tudo a fim de evitar a difusão de conclusões reducionistas.

O atentado na Somália faz parte do intrincado quebra-cabeças chamado Oriente Médio, com as conhecidas implicações para o mundo - e teria o didático papel de realçar que o terrorismo islâmico não é um mero "choque de civilizações", ou uma luta entre religiões. Ainda que esses facínoras persigam o cristianismo, perseguem tanto ou mais o muçulmano que não lê o Alcorão como eles.

Das duas uma: ou há um exagero tupiniquim na cobertura do que acontece no chamado Primeiro Mundo ou estamos minimizando exageradamente o que se passa nos demais lugares. Um desserviço do jornalismo brasileiro ao mundo e ao ser humano.

segunda-feira, 16 de outubro de 2017

Huck e o faro do DEM

Por José Roberto de Toledo (Estadão, 16/10/2017)

O abandono da pré-candidatura presidencial de João Doria pelo DEM é relevante não por de onde o partido está saindo mas por onde ele está entrando. Segundo a repórter Andreza Matais, “o foco do DEM se voltou para Luciano Huck”. O DEM não é exatamente um campeão das urnas, mas é o melhor perdigueiro político que Brasília já criou. Sente o cheiro de poder e é capaz de apontar sua direção bem antes do resto da matilha.

Se o PMDB está no governo sem grandes interrupções desde o fim da ditadura militar, o DEM permanece lá desde a própria. Só não aderiu às raras administrações para as quais não foi convidado. O ex-PFL é mais resiliente do que qualquer outro partido. Mesmo sem muito voto, emplacou dois vices que sentaram na cadeira presidencial: Marco Maciel e Rodrigo Maia. Sem contar Sarney, que nunca foi do PFL no papel, mas sempre foi da família.

Nada mal para uma defecção do lado perdedor. Seu segredo é farejar as mudanças políticas antes que ocorram. Foi assim em 1985 quando, diante da inexorável derrota de Maluf no colégio eleitoral, seus pais fundadores aderiram ao oposicionista Tancredo Neves e desertaram as fileiras do PDS. Nascia o PFL.

Repetiriam a dose em 1989, abandonando o candidato do partido, Aureliano Chaves, durante a campanha presidencial. Primeiro, tentaram teleguiar Silvio Santos rumo à Presidência, inseminando-o no nanico PMB. O TSE abateu a manobra em pleno ar, e os pefelistas acabaram aderindo a Fernando Collor. Foram recompensados com ministérios – como já haviam sido por Sarney e viriam a ser por Itamar, FHC e, mais recentemente, Temer.

Conhecido pela ironia e franqueza, Claudio Lembo gosta de referir-se aos filiados de seu partido como “perseguidos pelo poder”. A definição não poderia ser mais verdadeira, desde que se compreenda o real sentido da perseguição, obviamente.

Por isso, se os resilientes ex-pefelistas fazem posição de pointer inglês com o focinho voltado para Luciano Huck, é bom prestar atenção. O que levaria o experiente DEM a apostar – de novo – num apresentador de TV sem nenhuma experiência política?

Não são poucos os motivos. O primeiro é o vácuo que se forma no campo mais popular do eleitorado se Lula não puder se candidatar. Cruzamentos de pesquisas de intenção de voto indicam que um terço dos eleitores do ex-presidente votam apenas em Lula (e, imagina-se, em quem ele endossar). Ou seja, dois terços (20% ou mais do eleitorado total) estariam sem eira e com pouca beira caso o nome do petista não apareça na urna em 2018.

Quem teria mais facilidade (ou menos dificuldade) para conquistar esse eleitor pobre e desassistido? Um apresentador de TV ultraconhecido e cujo programa consiste, basicamente, em dar assistência a pessoas pobres, ou um ex-apresentador de TV nem tão conhecido assim cuja frase, copiada, é “você está demitido”?

O fato de já ter muito recall dispensa Huck de se expor ao fogo (inimigo e amigo) de uma pré-campanha. Ele pode deixar para anunciar sua eventual candidatura aos 45 minutos do 2º tempo, ou seja, o dia 7 de abril de 2018. Essa é a data limite para quem for participar das eleições de outubro descer do umbuzeiro.

Outra vantagem de Huck é que ele é autofinanciável. Além de ter um patrimônio capaz de bancar parte da própria campanha, tem amigos com bolsos mais fundos do que a maioria.

Quais os pontos fracos do apresentador? O principal deles é não ser levado a sério como presidenciável. Seu paraquedas é vistoso demais. Vale lembrar, porém, que a inexperiência é o único defeito que não piora com o tempo. Huck é um dos patronos do “fundo cívico” eleitoral. Está sentindo o vento. O DEM fariscou.

segunda-feira, 4 de setembro de 2017

Bravo, Rogéria!

Por Murillo Victorazzo

Tive o prazer de entrevistar Rogéria uma vez e confirmei o que via na TV: talento, autenticidade, bom humor, inteligência, perspicácia, autoestima. É uma pena parcela da população tê-la reduzido durante tantos anos ao mero papel de "traveco pioneiro".

Ou, e muito pior, haver despejado nela, ainda que sutilmente, seus preconceitos, referindo-se a ela e a quem a elogia apenas em tom de galhofa ou desprezo. Ainda mais triste é saber que, pra estes, o lamento é ser "politicamente correto".

Quis o destino que, em uma infeliz coincidência, ela morresse no dia em que o "Viva" reprisa sua chegada a Santana do Agreste, em "Tieta", uma de suas mais divertidas aparições na telinha.

Mil vezes Rogéria a Joesleys, Temers, Malafaias e Bolsonaros - e os que agem ou pensam como eles. Que artista. Que ser humano. Bravo, Rogéria!

O mais político dos "gestores"

Por Murillo Victorazzo

Secretário municipal  e presidente de estatal na década de 80, João Dória tornou-se candidato a prefeito ano passado por um dos maiores partidos do país. Foi escolhido em prévias graças a força de Geraldo Alckimin, governador do estado, que jogou pesado com a máquina pública a seu favor. Usa do marketing sabiamente para sedimentar sua imagem e pautar ações e discursos.

Em nove meses como prefeito, não para de viajar pelo país ensaiando candidatura a cargos maiores já ano que vem.  Não confirma, mas não nega a intenção. Teria assim que renunciar mais da metade do mandato municipal, filme visto e repudiado pelos paulistanos com José Serra.

Bom ou mau prefeito, concorde-se ou não com sua visão de mundo, já passou da hora de Dória parar com a hipocrisia de dizer que não é político. Sempre foi, e deveria saber - e difundir - que isto não é necessariamente um defeito.

Faria bem para a democracia - até porque governante bom não pode ser somente "gestor", principalmente o presidente da República. Poder público não é empresa privada.

Dória é tão político que usa da retórica antipolítica na moda para ganhar voto.

segunda-feira, 31 de julho de 2017

O arquivamento do projeto de liderança do Brasil na América Latina

Por Guilherme Evelin, com Giovanna Wolf Tadini e Nelson Niero Neto (Época, 30/07/2017)

No domingo, dia 16 de julho, milhares de pessoas marcharam nas ruas de Santo Domingo, a capital da República Dominicana, “contra a impunidade e a corrupção”. O alvo principal da marcha foram políticos e empresários dominicanos – entre eles, um ex-ministro da Indústria e Comércio do governo do presidente Danilo Medina. Mas o Brasil também estava na mira. Os políticos são acusados de participar de um esquema de propinas, no valor de US$ 92 milhões, pagas pela construtora brasileira Odebrecht para conseguir 17 contratos públicos no país a partir de 2001.

Ao confessar seus crimes, a Odebrecht fez um acordo com a Procuradoria dominicana para pagar uma multa de US$ 184 milhões (o dobro do valor dos subornos) e continuou a participar da construção de uma usina termelétrica no país no valor de US$ 2 bilhões. Ao cobrar punições aos envolvidos no escândalo, os manifestantes em Santo Domingo reclamaram também a expulsão da Odebrecht do país.

Não foi a primeira vez que as revelações desatadas pela Operação Lava Jato, em Curitiba, levaram os dominicanos a protestos nem foi um caso internacional isolado. “A Odebrecht substituiu o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva como um símbolo do Brasil no cenário mundial e regional. Na verdade, Odebrecht e Lula se tornaram símbolos mundiais da corrupção”, diz o americano Peter Hakim, presidente emérito do Inter-American Dialogue, um centro de estudos dedicados às Américas com base em Washington. 

A Odebrecht virou símbolo de corrupção mundial quando o Departamento de Justiça dos Estados Unidos, em dezembro, divulgou os termos do acordo de leniência fechado pela empreiteira. Nele, seus executivos confessaram ter pago, entre 2003 e 2014, US$ 788 milhões em propinas para conseguir contratos em 11 países da América Latina, fora o Brasil, e da África.

Desde então, a Lava Jato tem provocado tremores políticos em vários países latino-americanos. Os abalos têm sido mais intensos no Peru, onde a Odebrecht chegou a ser a maior empresa estrangeira do país. Na sexta-feira, dia 14 de julho, a Justiça peruana decretou a prisão preventiva do ex-presidente Ollanta Humala (2011-2016) e de sua mulher, Nadine Heredia. 

A prisão foi precedida pelo interrogatório, no dia 15 de maio, em Curitiba, de Marcelo Odebrecht, ex-presidente do grupo Odebrecht, por investigadores peruanos. Marcelo contou que, a pedido do ex-ministro Antonio Palocci, mandou US$ 3 milhões para a campanha presidencial de Humala em 2010. Repetindo o modus operandi da empreiteira nas campanhas eleitorais brasileiras, Marcelo Odebrecht instruiu seus executivos no Peru a dar dinheiro também para os adversários de Humala: Keiko Fujimori e Mercedes Aráoz.

Antes de Humala, o ex-presidente Alejandro Toledo (2001-2006) também tivera prisão preventiva decretada pela Justiça peruana. Toledo é acusado de ter embolsado US$ 20 milhões de propinas da Odebrecht em troca de favorecimento à empreiteira na licitação das obras da Rodovia Interoceânica, estrada com 2.600 quilômetros que liga a cidade de Assis Brasil, no Acre, a Iñapari, no litoral do Peru.

O governo de um terceiro ex-presidente, Alan García (2006-2011), também está sob suspeita. Segundo a delação da Odebrecht, US$ 7 milhões foram pagos em propinas a integrantes do segundo escalão da administração de García por causa das obras do metrô de Lima.

O atual presidente do Peru, Pedro Pablo Kuczynski, conhecido como PPK, não foi pego diretamente pelo escândalo, mas foi atingido de resvalão. Ex-ministro das Finanças de Alejandro Toledo, PPK viu sua popularidade submergir. Seu governo suspendeu projetos da Odebrecht, mesmo ao custo da desaceleração da economia peruana. 

Com a queda dos preços das commodities no mercado internacional, PPK planejara investimentos em infraestrutura para manter o crescimento do país. Por causa dos cancelamentos de obras, o crescimento da economia peruana, que girou na média de 5,6% do PIB entre 2009 e 2013, pode desacelerar neste ano para 2%. Logo pipocaram artigos na imprensa peruana com críticas aos estragos provocados pelo “imperialismo brasileiro”.

Os danos ao Brasil não se limitam à imagem do país. Durante os anos 2000, os governos brasileiros impulsionaram a expansão das empresas nacionais no exterior – principalmente nos países da América do Sul – como parte de uma estratégia para aumentar a influência internacional do país e projetar liderança.

A estratégia foi concebida pelo governo Fernando Henrique Cardoso, que mudou as regras do Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para tornar o Brasil um dos principais investidores, credores, compradores e exportadores da região. 

Mas ela ganhou tração nos governos Lula. Entre 2003 e 2015, o BNDES liberou US$ 14 bilhões para 575 projetos em países da América Latina e África. Esse sonho de liderança acalentado pelo Itamaraty, por ora, está morto. “Antes visto como uma estrela ascendente na política internacional e um novo polo de poder na América do Sul, o Brasil perdeu muita influência nos assuntos globais e não tem mais capacidade de exercer liderança nos assuntos regionais”, diz Hakim.

“A consequência internacional da Lava Jato foi revelar a quimera do Brasil como líder regional”, escreveu o cientista político argentino Andrés Malamud, pesquisador de política latino-americana do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.

“Os países têm três recursos de poder: força, dinheiro e encanto. O Brasil não tem força militar e tampouco tem dinheiro. E perdeu o encanto que conquistou com uma incrível sequência de presidentes que qualquer país invejaria. Durante 16 anos, FHC e Lula capturaram a imaginação e os corações do mundo.” 

O encanto se dissipou, principalmente, por causa das denúncias de corrupção contra o ex-­presidente Lula, que desfrutou no exterior, por muito tempo, imagem de um líder da esquerda moderna. “Em nível latino-americano, Lula representava a esquerda amável, sem a beligerância do chavismo. Saber que ele se relacionava com o dinheiro da mesma forma que a direita deixa sem referências muitos idealistas”, disse a ÉPOCA o jornalista e escritor peruano Santiago Roncagliolo, autor de livros premiados sobre a violência do grupo terrorista Sendero Luminoso no Peru.

O encolhimento internacional do Brasil não se deve apenas à Lava Jato, mas também à prolongada crise política e econômica do país desde as controvérsias geradas pelo impeachment da ex-presidenteDilma Rousseff e sua substituição pelo presidente Michel Temer. Por causa da recessão, empresas brasileiras reduziram drasticamente seus investimentos na América do Sul nos últimos anos. 

Em junho, a chanceler da Alemanha, Angela Merkel, veio à América Latina – visitou a Argentina e o México e ignorou o Brasil. Mais preocupado com a própria sobrevivência no cargo, o presidente Temer cumpre pálido papel de figurante nos encontros internacionais – na última reunião do G20, o grupo dos 20 países com as maiores economias do mundo, não teve nenhum encontro bilateral com outro chefe de Estado.

Para mudar a percepção de que o Brasil virou um exportador de corrupção, especialistas sugerem mudanças na política externa brasileira. Para Oliver Stuenkel, professor de relações internacionais da Fundação Getulio Vargas (FGV), em São Paulo, o Brasil deveria incorporar a experiência dos órgãos judiciais brasileiros à frente da colaboração internacional nas investigações da Lava Jato e transformar a agenda anticorrupção, tema que rende um protagonismo mais benévolo para o país, num pilar central da política externa.

Também professor da FGV, Matias Spektor sugere que o Brasil pratique uma “diplomacia do perdão”, em que reconheça os estragos provocados pela corrupção à brasileira. A recuperação da reputação do Brasil, diz ele, deve ser uma tarefa de longo prazo.

Se não for iniciada logo, o país corre o risco de perder mercados na América do Sul e na África para concorrentes vorazes, como a China. Segundo Spektor, pedir perdão não é mero ato de contrição, mas também gesto pragmático para evitar no futuro outras marchas como a de Santo Domingo.

segunda-feira, 24 de julho de 2017

Agro é tudo, Agro é Temer

 De Avenida Comunicação*


Vai de vento em popa a sedução dos 211 deputados da bancada ruralista, a maior da Câmara, para impedir que o presidente Michel Temer vire réu no STF por corrupção passiva. O setor solta fogos com a decisão do governo de reduzir a Reserva do Jamanxim, no Pará, e o parecer de que só podem ser demarcadas terras ocupadas por indígenas antes de 1988.

“Temer manobra e ameaça política ambiental” é destaque no Globo. “Temer ruralista” é o editorial da Folha.

Também são negociadas a flexibilização de regras para licenciamento ambiental, liberação de agrotóxicos, venda de terras a estrangeiros e uma MP sobre dívidas bilionárias de produtores ao Funrural. Os parlamentares ligados ao agronegócio, que de bobos nada têm, “pleiteiam anistia de multas, descontos e maior prazo para pagar”. Alguém falou em crise fiscal por aí?

Falou, sim. Lá pelo meio de agosto, segundo Lauro Jardim, o contingenciamento de Henrique Meirelles impedirá a compra de gasolina para as incursões dos fiscais do Ministério do Trabalho que combatem trabalho escravo e o infantil.

Vale tudo.

*Texto extraído da análise de cobertura política da agência.

quinta-feira, 20 de julho de 2017

A cara da Câmara Federal

Por Murillo Victorazzo

Ele apareceu para o Brasil na sessão do impeachment de Dilma, quando, envolto à bandeira do Pará, soltou da tribuna rojões de confetes para festejar seu voto contra a presidente "por um Brasil limpo".

Com oratória direta e populista típica do radialista que é, cabelo pintado e plástica escancarada, foi eleito pelo PMDB e agora é filiado ao Solidariedade (SD) - legenda criada pelo notório Paulinho da Força para ser mais uma daquelas com muita boca por cargos e pouco cérebro para pensar o país. Esta semana, nos jornais, apareceu sem cerimônia pedindo umas "boquinhas" a Temer.

Cassado pelo TRE em fevereiro (recorre no cargo ao TSE) por uso de caixa dois em campanha e investigado no STF por contratação de funcionários fantasmas para seu gabinete, Wladimir Mota pode ser considerado o retrato perfeito não apenas de seus partidos como da média da Câmara dos Deputados atual, o "baixo clero": fisiológico, tosco, grosseiro, explicitamente cínico, resume sua atuação a clientelismos e emendas paroquiais, com pouca visão de mundo e nenhum discernimento sobre o papel e a postura esperados de um parlamentar. 

Grotesco por fora e por dentro. Pobre Brasil.

quarta-feira, 19 de julho de 2017

O escorpião Temer

Por Murillo Victorazzo

Com a ascensão de Temer à Presidência após as corruptas gestões petistas, alguns na sociedade e imprensa cogitaram a formação de um "ministério de notáveis". Seria um gesto de estadista do comandante de um governo de "união nacional". Faria bem ao país, polarizado cada vez mais desde 2014, e à biografia do discreto constitucionalista. Se não por princípios, pela necessidade de conquistar credibilidade.

Dizendo-se surpresos, logo viram na Esplanada e no 3º andar do Planalto o que há de mais fisiológico e corrupto no país há mais de 30 anos: seu círculo íntimo de colegas peemedebistas, um a um alvejados por escândalos antes, durante ou depois de suas passagens pelo governo atual. Alguns presos, outros investigados.

Ameaçado de perder agora o cargo e tornar-se ele próprio réu por corrupção, Temer abriu o balcão de negócios com parlamentares, indo de encontro à austeridade defendida em discursos e leis reformistas. Fragiliza assim a equipe econômica, seu único esteio no mercado e entre agentes produtivos, em um momento em que ela decide por aumento de impostos.

Não bastasse, a fim de evitar o fortalecimento de Rodrigo Maia, em cujas mãos está a sessão que votará a denúncia da PGR e que pode vir a ser seu sucessor, não hesitou em ignorar o papel que lhe cabe como chefe de Estado. Governante apoiado por uma base composta por inúmeros partidos, em grande lambança, tentou aliciar parlamentares "socialistas" para o seu PMDB, causando irritação no parceiro DEM, que negociava com eles.

"Não é atitude que se espera de um aliado", afirmou o líder demista na Câmara. "Ele agiu como presidente de partido, não do país", reagiu o presidente da sigla assediada.

Ano passado e hoje, Temer nos remete à velha fábula do escorpião, aquela sobre o aracnídeo que, mesmo dependendo do jacaré para chegar à outra margem do rio, ainda no meio da travessia lhe dá uma picada mortal - mortal para ambos. Em outras palavras, não adianta, a natureza do animal sempre falará mais alto, mesmo quando o prejudica.

Ex-presidente do PMDB, Temer é a personificação da legenda, o exemplo maior do político pequeno em estatura moral e política - no sentido bom da palavra -, mas gigante como burocrata de máquina partidária, fisiológico em essência. Esta sempre foi sua natureza: o escorpião do atraso, que tenta se sustentar como novo para sobreviver. Mas começou a picar. Se o naufrágio não vier com a denúncia, ficará boiando em agonia pelos esgotos do poder até dezembro de 2018.

E os que projetavam algo diferente e agora se mostram atônitos, ou vivem em algum mundo paralelo onde se acordou para política apenas a partir de 2014, sem olhar para trás, ou são... deixa pra lá. Vocês concluam.

quarta-feira, 12 de julho de 2017

Ideologia em excesso turva a indignação ética

Por Murillo Victorazzo

Pela primeira vez na História, um presidente no cargo foi denunciado por corrupção. Pela primeira vez também, um ex-presidente é condenado pelo mesmo crime. Para parte da direita conservadora, que encontrou em Temer o anteparo contra o fantasma Lula, a denúncia é fruto de perseguição política de Janot: ela é "inócua". Para a esquerda petista e aliados, Moro e Dellagnol fazem o mesmo contra seu líder: não há provas, apenas "convicções". Tanto o PGR como o juiz seriam seletivos, conspiradores.

Na imprensa, Andreazza, Fiúza, Azevedo e blogs de direita (Folha Política, Imprensa Viva e outros) de repente alardeiam jacobinismos e lembram que delação não é prova, a mesma gritaria que Carta Maior e blogs de esquerda (Diário do Centro do Mundo, Tijolaço etc) faziam até então em defesa de políticos petistas, ignorando como estes outros indícios, como malas de dinheiro e fita referendada pela Policia Federal em laudo e relatório.

Ressaltam o "protagonismo" de Lula no "Petrolão", esquecendo-se que, por menor que possa ter sido o papel de Temer, é ele quem está no poder agora. Qualquer presidente será sempre o foco e a prioridade em acusações. Quem está com a máquina e o nosso dinheiro é o PMDB. Reclamavam que o cerco ao peemedebista na Câmara levava intencionalmente Lula "aos rodapés dos jornais", fortalecendo seu "projeto de poder" para 2018...

Certamente agora, com a condenação do petista nas manchetes, os seguidores do "protegido" de Janot usarão o mesmo argumento de forma oposta: justamente quando a CCJ debate o afastamento de Temer? "Querem afastar Lula das eleições!", dirão eles, que protestavam contra "a parcialidade da imprensa" na difusão de escândalos tucanos e peemedebistas, mas nunca colocaram em dúvida a honestidade do ex-presidente, o algoz das "elites". Não parece, mas são coisas bem diferentes.

Quando muito, alguns mais ousados soltavam um "Vai comparar um triplex com os milhões dos outros?", indagação cuja resposta merece semelhante comparação entre o protagonismo de Lula frisado pelos direitistas e o papel de destaque presidencial, ainda mais se tratando de um líder popular como Lula. O outro lado da moeda da hipocrisia - ou do fanatismo, obsessão, sabe-se lá.

O séquito dos dois grupos os repetem como papagaios. Até ontem, à esquerda, vibrações nas redes sociais com a fragilidade de Temer. Hoje, calam-se ou se vitimizam, enquanto, à direita, euforia, mas nenhum post raivoso sobre ele ou pressão até agora sobre o Parlamento que votará os destinos de mais um corrupto. Sob o discurso seletivo da ética, expressões como "Tirar Temer é absurdo, ele está fazendo reformas e a inflação caiu" ou "Lula merece respeito, tirou milhões da miséria".

Lula foi condenado e espera agora a segunda instância para saber se irá para cadeia ou poderá ser candidato à Presidência. Temer não está sendo julgado pelos deputados. Eles apenas permitirão ou não que o STF analise a denúncia da PGR e, caso aceita, julguem-na. O mesmo STF que avalizou todo processo de impeachment de Dilma.

Debates ideológicos não deveriam ter a ver com indignação ética. E a situação se torna ainda mais esdrúxula por ambos terem compartilhado o mesmo esquema no mesmo governo, sintoma maior do quão esquizofrênico é o sistema político nosso.

A "esquerdopatia" lulista e a "destropatia" se merecem, são simbióticas, interdependentes, mas fazem um mal tremendo ao país. Pena merece quem pensa que fugir de ambas é ficar em cima do muro. Melhor se confortar com a sensação de que, embora longe do ideal, a ladroagem de poderosos não tem mais a vida fácil de antes.

terça-feira, 11 de julho de 2017

"Com dinheiro ou sem dinheiro", Leandro Vieira pode fazer história na Sapucaí

Por Murillo Victorazzo

Crítico, politizado, romântico, nostálgico, visionário. Potencialmente irreverente e histórico. Assim pretende ser o enredo da Mangueira para o carnaval de 2018.  Quem sabe uma atualizada mistura de "E o samba sambou..." (São Clemente 1990) com os antológicos "Bumbum Paticumbum Prugurundum" (Império Serrano 1982) e "Ratos e Urubus" (Beija-Flor 1989)? O momento vivido pelo Rio de Janeiro exige.

Lançada nesta terça-feira pelo carnavalesco Leandro Vieira, a sinopse de "Com dinheiro ou sem dinheiro, eu brinco!" é uma simples e criativa alfinetada não apenas no discurso demagógico do prefeito Marcelo Crivella como também no que se transformaram os desfiles de escolas de samba e o carnaval carioca como um todo. 

Campeão em 2016 pela escola e autor de um lindo desfile neste em 2017, Leandro  já mostrou seu talento. Se acertar a mão novamente, pode, em 2018, em tão pouco tempo no Grupo Especial, entrar definitivamente pra História da Sapucaí. Desde já, afora minha Academia, o desfile que mais ansiosamente aguardo.

Abaixo, a sinopse:

“Este samba é pra você
Que vive a falar, a criticar
Querendo esnobar, querendo acabar
Com a nossa cultura popular (…)
Fronteira não há, pra nos impedir
Você não samba, mas tem que aplaudir”
   (Sereno, Adilson Gavião e Robson Guimarães)

Com polvilho, farinha sem valor, limão de cheiro e água de bica, vou brincar no molhado que decretará o início do meu carnaval. “Minhas vergonhas” eu cubro com papel barato e lanço a fantasia no vai e vem das ondas do mar. A “pancada no couro” de dois ou três tambores ressuscitarão um Zé Pereira que arrastará a multidão.

Mesmo “com o bolso furado”, que “o sapato aperte” e que a “corda esteja no pescoço”, em qualquer esquina que junte gente irmanada, em qualquer batuque de mesa de bar, em qualquer palma de mão, em qualquer “laiá laiá”, em qualquer pé descalço que sambe no chão, vive o carnaval e a liberdade da minha gente. Em qualquer botequim, ao redor de qualquer mesa que reúna meia dúzia de bambas, na rima improvisada de um partideiro, no couro que faz vibrar tantãs e pandeiros, fundo a sede de uma Escola pra tanta gente que tem sede de sambar.

Se o botequim é a nossa sede, a rua é o nosso palco. Logo, a Avenida é para onde a rua deve ir. Grito no canal que desemboca na Zona do Mangue: Levanta-te, Ismael! Traz contigo os velhos bambas que, tidos como marginais, inventaram isso que hoje buscamos tomar com as mãos sujas de confetes. Vem a mim a Escola do povo! A “grade” é uma corda velha e frouxa. Clamo pelo espírito de “um” Arengueiro. “Pra vadiar, pra agitar a massa, pra atiçar e embalar a multidão.” Na linha do “vai como pode”, tudo é fantasia.

À guisa de enfeite, uma lata d’água sobre a cabeça de um corpo que verga com graça. Dos morros, quero uma corte de reis e rainhas de mazelas desconhecidas. Gente que se concentre, mas pra desfilar, prefira o asfalto da Presidente Vargas. Goles de álcool e delírio inflamam Pamplona a acender a gambiarra da decoração de uma velha Avenida. Na retina dos olhos de quem vê, brilha o cortejo de tempos idos: O samba “no pó e na poeira,” “o pires na mão” , a “raça costumeira”.

No muro, em letras garrafais, um mascarado mal trajado alardeia: “A SAPUCAÍ É NOSSA!” O portão que mantém a Avenida fechada tomba. Em convulsão de riso e mordaz alegria, “gente sem colarinho” vibra como um CORDÃO tingido com as cores da carne e das fantasias de nossa gente. De assalto, e sem ensaio prévio, toma-se uma Avenida que, por ironia, marcha involuntariamente em direção a uma praça. A praça que a “massa amassada” quer tomar. Há na festa uma fresta. E, pelas frestas dessa festa, resolvi fazer meu carnaval.

Derrubados os portões que separam a “rua da Avenida” vos digo: “O rei que manda na folia está nu!” Mais do que nu. Está morto! Rei morto, Rei posto. Com pressa e ânsia convoco: Vem a mim Caciques que partem de Ramos! Quero irmanados os beberrões do Bola Preta! Quero de novo “o bafo que sopra da boca da onça”! Bate-bolas suburbanos cercam entradas e saídas para estourarem bombas de confete e serpentina.

Os clarins das Bandas dão o tom do “xeque-mate”. Dobram a curva que desemboca na Avenida os travestidos. Os estandartes de muitos blocos. Os afoxés. Gente que já veio e não vem mais. Gente que nunca veio e sempre quis vir. Um baile a céu aberto de foliões cheirando a álcool e a suor. Que pintam e bordam. Que deitam e rolam. Que cantam e dançam fazendo do samba um “pagode”, de um “pagode” uma mensagem, da mensagem, a redenção: “é o povo, quem produz o show e assina a direção.”

Por hora, não sou mais o desfile de sempre. Não sou mais a Escola que fui. Rasguei a minha fantasia. Deixo nua a verdade daquilo que sou: Sou um Bloco de sujo que desfila sem governo e que as mãos não podem me botar cabresto. Sou um Arlequim de cetim ordinário. Sou um Diabinho sem capricho. Um pierrot em desalinho. Um Mascarado “mal ajambrado”. Uma Colombina sem posses. Um mandarim que o sapato furou. “Mandei às favas a ordem”; desprezo as filas; “não dou bola” à renda investida; ao governo; ao órgão oficial; a TV – se liga, ou se desliga.

Acendo aqui um rastro de pólvora e confete que anuncia a Mangueira que virá. Quem ficar, que se segure. Faz tempo, me disseram, que “a madeira de dar em doido é jequitibá.” Pergunto-lhes: Quem há de impedir a Mangueira passar? Zombando, sorrio, e sigo cantarolando: “Olha o bloco de sujo…Que não tem fantasia…Mas que traz alegria…Para o povo sambar….Olha o bloco de sujo…Vai batendo na lata…Alegria barata…Carnaval é pular”.

                                 (Pesquisa, desenvolvimento e texto: Leandro Vieira)

sexta-feira, 7 de julho de 2017

Maluf e Temer, tudo a ver

Por Murillo Victorazzo

"A economia está melhorando. Se nossa Ferrari está bem pilotada pelo Ayrton Senna, para que mudar de piloto?", indagou o velho Paulo Maluf de guerra ao justificar seu voto a favor do rejeição da denúncia da PGR contra o presidente Michel Temer.

Depois de Adhemar de Barros, cujo eleitorado cunhou em São Paulo o famoso "rouba, mas faz", Maluf é a mais famosa personificação do lema, sempre evocado, durante tanto tempo, por seus simpatizantes. Não surpreende, portanto, que solte essa pérola.

Porém, desta vez, nem tal ladainha cínica serve. Quem de fato deseja estabilidade econômica, acredita que reformas são necessárias, já percebeu que com um governo tão acuado, com o chefe e tantos assessores pegos com a boca na botija, o efeito será o oposto: não tem credibilidade, não vai governar; gastará seu tempo e capital pra se defender.

Só um paranoico ideológico bastante à direita refuta essa obviedade, prefere apenas ver a "assombração" Lula em todos os cantos. Ou os Malufs da vida, que algo receberão em troca.

domingo, 11 de junho de 2017

Terrorismo de conveniência

Por Adriana Carranca (O Globo, 11/11/2017)

Esqueça o terrorismo. O que está por trás do isolamento diplomático e econômico do Qatar, capitaneado pela Arábia Saudita, é a maior reserva de gás natural do mundo, sob as águas do Golfo Pérsico, que o pequeno país compartilha com Irã, na margem oposta. Há cerca de um mês, o emir qatari anunciou que retomaria o desenvolvimento do Campo Norte, após 12 anos de moratória autoimposta, oficialmente, para avaliação técnica — extraoficialmente, por pressão dos sauditas.

Arábia Saudita, berço do Islã sunita, e Irã, teocracia xiita, encarnam não apenas a disputa milenar pela sucessão de Maomé e o domínio do mundo muçulmano, como uma guerra econômica. São, respectivamente, o segundo e o terceiro países da Opep em reserva de petróleo, atrás da Venezuela (que perde dos concorrentes pelo preço alto de extração). Analistas projetam para daqui a 25 anos, ou antes, o pico de demanda mundial por petróleo e o início do seu declínio, enquanto a demanda por gás continuará crescendo, por enquanto, a perder de vista.

O Campo Norte — South Pars, para Teerã — responde por 60% das exportações do Qatar, mas vinha perdendo competitividade para EUA, Austrália e Rússia. Em novembro, o Irã firmou acordo com a francesa Total (na qual o fundo Qatar Holding teria participação) para desenvolvimento do South Pars II, no primeiro negócio fechado após o acordo histórico com EUA que relaxou as sanções econômicas contra o regime dos aiatolás. Daí a paciência da Arábia Saudita com o pequeno Qatar ter se esgotado, mesmo antes de suas reservas naturais.

Menor país do Conselho de Cooperação do Golfo, o Qatar era considerado insignificante até o xeque Tamim bin Hamad Al Thani, pai do atual emir, assumir o poder, em 1995, e começar a perseguir autonomia e uma política externa independente do vizinho gigante. Pouco mais de 20 anos, uma série de crises diplomáticas e duas tentativas de golpe depois — ambas atribuídas pelos qataris aos sauditas —, o Qatar se tornou o país mais rico do mundo, em renda per capita, e se projetou como um ator regional influente, ameaçando a supremacia geoestratégia de Riad.

O Qatar diversificou a economia, investiu na Europa e Ásia, transformou Doha em um hub econômico, financeiro e cultural, com Qatar Airways entre as maiores companhias aéreas do mundo; fundou a rede Al Jazeera, que concorre em audiência internacional com BBC e CNN — embora os interesses do Qatar afetem sua credibilidade, é a emissora que mais se aproxima de um modelo “independente” no Mundo Árabe, que expõe e enfurece as monarquias vizinhas.

O xeque comprou símbolos ocidentais como o clube Paris Saint-German e a loja Harrod’s, em Londres, onde sua mulher pretendia transformar o Cornwall Terrace, projetado pelo arquiteto do Buckingham Palace, em um palácio para o filho e novo emir, xeque Tamim, que se prepara para sediar (não sem acusações de compra de votos e uso de trabalho escravo) a Copa do Mundo em 2022.

Ao abdicar em favor do jovem, o xeque ameaçou monarcas vitalícios. O emir apoiou a Primavera Árabe e a eleição de Mohammed Mursi, no Egito, deposto em 2013 por militares, que têm apoio da Arábia Saudita — a perspectiva de eleições e o Islã político são vistos como ameaça existencial às monarquias do Golfo. É acusado de financiar grupos radicais na Síria ao mesmo tempo em que se aliou à Otan na Líbia e abriga uma base aérea, de onde os EUA lançam operações militares em toda a região.

Os argumentos para o isolamento do Qatar foram o jogo duplo na política externa e financiamento do terrorismo, mas estas são acusações das quais a própria Arábia Saudita é alvo. É a ascensão econômica e política do Qatar, com influência regional e internacional, que irrita Riad e os vizinhos do Golfo e provoca fissuras no bloco há mais de duas décadas, intensificadas pela possibilidade de aproximação com Irã, arqui-inimigo da Arábia Saudita.

O primeiro atentado do Estado Islâmico no Irã, em momento tão delicado, somou-se à crise. A Guarda Revolucionária acusou Riad. O EI, como se sabe, deriva da al-Qaeda, de origem saudita, e é integrado por ex-militares de Saddam Hussein, deposto pela invasão americana e substituído por um governo xiita no Iraque — o quarto país da Opep em reservas de petróleo, em disputa, como na Síria.

São grupos que se escondem sob a couraça da religião, mas servem a interesses econômicos de quem os financiam, sequestrando a fé de dois bilhões de pessoas, entre as quais está a maioria das vítimas do terrorismo e das guerras.