sábado, 11 de abril de 2020

A pandemia de Coronavirus vai alterar para sempre a Ordem Mundial

Por Henry Kissinger* ( The Wall Street Journal, 03/04/2020)

A atmosfera surreal da pandemia do Covid-19 me remete a como me senti quando jovem na 84ª Divisão de Infantaria durante a Batalha do Bulge. Agora, como no final de 1944, há uma sensação de perigo difuso, não direcionado a qualquer pessoa em particular, mas golpeando aleatoriamente e com devastação. Mas há uma diferença importante entre aquele tempo distante e hoje. A resistência americana, à  época, fortificou-se por um propósito nacional final. Agora, em um país dividido, um governo eficiente e visionário é necessário para superar obstáculos sem precedentes em magnitude e alcance globais. Manter a confiança pública é crucial para a solidariedade social, para a relação das sociedades entre si e para a paz e estabilidade internacionais.

As nações se sustentam e florescem na crença de que suas instituições podem prever calamidade, mitigar seu impacto e restaurar a estabilidade. Quando a pandemia do Covid-19 acabar, muitas instituições de países serão percebidas como tendo falhado. Se este julgamento é objetivamente justo é irrelevante. A realidade é que o mundo nunca mais será o mesmo depois do coronavírus. Discutir agora sobre o passado só torna mais difícil fazer o que tem que ser feito.

O coronavírus nos atingiu com escala e ferocidade sem precedentes. Sua propagação é exponencial: os casos nos EUA estão dobrando a cada cinco dias. Nesta escrita, não há cura. Suprimentos médicos são insuficientes para lidar com as ondas crescentes de casos. As unidades de terapia intensiva estão à beira do colapso. O teste é inadequado para a tarefa de identificar a extensão da infecção, muito menos reverter sua propagação. Uma vacina bem sucedida pode estar de 12 a 18 meses de distância.

A administração dos EUA fez um trabalho sólido para evitar catástrofes imediatas. O teste final será se a propagação do vírus pode ser detida e depois revertida de maneira e escala que mantenham a confiança do público na capacidade dos americanos de se governarem. O esforço de crise, por mais vasto e necessário, não deve apagar a tarefa urgente de lançar uma iniciativa paralela para a transição da ordem pós-coronavírus.

Os líderes estão lidando com a crise em escala nacional, mas os efeitos na dissolução da sociedade não reconhecem fronteiras. Embora o ataque à saúde humana seja temporário, a agitação política e econômica que desencadeou pode durar gerações. Nenhum país, nem mesmo os EUA, pode em um esforço puramente nacional superar o vírus. Abordar as necessidades do momento deve, em última análise, ser associado a uma visão e um programa colaborativo globais. Se não pudermos fazer as duas coisas em conjunto, enfrentaremos o pior de cada um.

Tirando lições do desenvolvimento do Plano Marshall e do Projeto Manhattan, os EUA são obrigados a realizar um grande esforço em três domínios. Primeiro, reforçar a resiliência global a doenças infecciosas. Triunfos da ciência médica como a vacina contra a poliomielite e a erradicação da varíola, ou a maravilha estatística-técnica emergente do diagnóstico médico através da inteligência artificial, nos levaram a uma complacência perigosa. Precisamos desenvolver novas técnicas e tecnologias para o controle de infecções e vacinas proporcionais a grandes populações. Cidades, estados e regiões devem se preparar consistentemente para proteger seu povo de pandemias através de estocagem, planejamento cooperativo e exploração nas fronteiras da ciência.

Segundo, esforce-se para curar as feridas da economia mundial. Os líderes globais aprenderam lições importantes da crise financeira de 2008. A crise econômica atual é mais complexa: a contração desencadeada pelo coronavírus é, em  velocidade e escala globais, diferente de tudo o que se sabe na história. E medidas necessárias de saúde pública, como o distanciamento social e o fechamento de escolas e empresas estão contribuindo para a dor econômica. Os programas também devem buscar amenizar os efeitos do caos iminente sobre as populações mais vulneráveis do mundo.

Terceiro, salvaguardar os princípios da ordem mundial liberal. A base fundadora dos governos modernos é a cidade murada protegida por governantes poderosos, às vezes despóticos, outras vezes benevolentes, mas sempre fortes o suficiente para proteger o povo de um inimigo externo. Pensadores iluministas reformularam esse conceito, argumentando que o propósito do Estado legítimo é suprir as necessidades fundamentais do povo: segurança, ordem, bem-estar econômico e justiça. Os indivíduos não podem proteger essas coisas por conta própria. A pandemia provocou um anacronismo, um renascimento da cidade murada em uma época em que a prosperidade depende do comércio global e do deslocamento das pessoas.

As democracias mundiais precisam defender e sustentar seus valores iluministas. Um recuo global evolvendo equilíbrio de poder com legitimidade fará com que o contrato social se desintegre tanto internamente quanto internacionalmente. No entanto, esta questão milenar de legitimidade e poder não pode ser resolvida simultaneamente ao esforço para superar a pandemia. A contenção é necessária em todos os lados — tanto na política interna quanto na diplomacia internacional. As prioridades devem ser estabelecidas.

Passamos da Batalha do Bulge para um mundo de prosperidade crescente e dignidade humana reforçadas. Agora, vivemos um período histórico. O desafio para os líderes é gerenciar a crise enquanto constroem o futuro. O fracasso pode incendiar o mundo.

*tradução livre do blog

quarta-feira, 8 de abril de 2020

Por que Bolsonaro recuou e não demitiu Mandetta

Por Carolina Botelho* (Nexo, 07/04/2020)

A última segunda-feira (6) foi um dia especialmente tenso para o país. Não pelos motivos ordinários que já estamos nos acostumando a naturalizar em relação ao presidente da República, seus filhos e seus apoiadores. Não, esse dia foi um pouco além. A ameaça real de demissão do único ministro que parece valorizar a ideia de república como se espera de um gestor público tornou-se quase palpável e já havia sido anunciada. Bolsonaro iria mandar embora o seu ministro da Saúde, o único do time que tem se preocupado e agido para poupar vidas num período horrível da história das epidemias com o qual o mundo “quase” todo, ou pelo menos, o mundo “civilizado”, tem se preocupado. 

O presidente ao final do dia voltou atrás, ou melhor dizendo, voltaram atrás na decisão de Bolsonaro. Quem foi? Essa é uma importante interrogação neste momento. Quem fez Bolsonaro voltar atrás? Em uma democracia na qual os eventos ocorrem de maneira tranquila, seria esperado que as instituições políticas e sociais recomendassem ao presidente a prudência necessária diante da ameaça da covid-19, e ele aceitaria.

 No caso brasileiro, as instituições têm cumprido seu papel, mas Bolsonaro despreza todas elas, desqualifica o debate científico e deslegitima os especialistas. O resultado dessa equação é simples, nossa democracia perde diariamente, mas ontem pareceu diferente. Uma grande parcela dos analistas afirma que foram os generais que hoje circulam em torno de Bolsonaro para conter seus “excessos” que exigiram a marcha à ré do presidente. E eu concordo, só que essa não é toda a resposta. Dito isso, reformulo mais uma vez a frase: a quem os generais ouviram para depois fazerem Bolsonaro recuar?

Tenho insistido em um tema muito frequente nos estudos das ciências sociais, aquela ciência mais desprezada e desqualificada por Bolsonaro (por quê?): a teoria das elites. Estudei um pouco sobre ela na graduação e também utilizei a teoria na minha dissertação de mestrado há quase duas décadas. Em 2019, ao oferecer um curso para a graduação, julguei o assunto importante para incluir na bibliografia e não me arrependo. 

Recentemente, o Datafolha mostrou que 51% das pessoas entrevistadas disseram que Bolsonaro mais atrapalha do que ajuda no combate ao coronavírus e 39% reprovam o presidente de modo geral. Seria algo simples de aceitar, mas esse dado traz um resultado mais interessante. Bolsonaro é mais mal avaliado por mulheres (43% de reprovação), pessoas com curso superior (50%) e mais ricos (acima de 10 salários mínimos mensais, 46%).O presidente dirá que não confia em pesquisa, mas a teoria das elites explica por que o Datafolha está correto e parte dos brasileiros desembarcou da sandice do projeto Bolsonaro. 

Embora a metodologia tenha sido alterada nas últimas pesquisas devido ao isolamento social, entre os mais ricos, a reprovação ao presidente subiu de 28% em dezembro para 46% em abril. A importância desse grupo nas sociedades não é trivial. Bottomore, um teórico das elites, já mostrou que elas são capazes de exercer um verdadeiro poder de veto aos rumos do desenvolvimento econômico e político de um país. 

Como observou Elisa Reis, até as possibilidades de uma mudança gradativa no Brasil dependem consideravelmente da aquiescência das elites. Segundo ela, “a importância das elites está na direção e no controle que elas podem exercer sobre a complexa e difícil transição de uma forma de organização social para outra”. Abram De Swaan tratou da emergência de políticas nacionais de bem-estar social na Europa. Para ele, a percepção das elites sobre os problemas sociais possui um significado fundamental. 

No caso da Europa, e como bem lembrou também Elisa Reis, De Swaan mostra que as elites viram vantagens na coletivização de soluções a problemas sociais e que o poder público tornou-se o agente natural na provisão de “bens de cidadania” como educação, saúde e previdência. Para De Swaan, a elite é, em regra, interesseira e age com o objetivo de evitar os “negative external effects” que ele exemplifica com epidemias, poluição, crimes, rebeliões e migrações. 

No meu estudo realizado no mestrado, a minha hipótese principal sugeria que não há, entre as elites brasileiras, semelhanças com as analisadas por De Swaan, ou seja, não existe entre elas uma consciência sobre a interdependência das classes sociais, o que viabilizaria uma mobilização para a solução dos problemas no Brasil, de forma cooperativa, para facilitar a criação de políticas sociais que favorecessem os pobres. 

Entretanto, até aquele momento, ainda não tínhamos sentido o peso de uma epidemia, ou melhor, de uma pandemia como o que estamos experimentando hoje em nossas vidas. Concretamente falando, a sociedade corre muitos riscos, caso o governo não tome medidas urgentes. Digo toda a sociedade porque os efeitos negativos serão partilhados por todos. Está certo que recairá mais para alguns grupos do que para outros, mas todos vão perder. A começar pela contaminação por um vírus até então pouco conhecido e letal, que entrou no país via elite, mas também pela falta de leitos, a crise econômica que se agravará, a ameaça de convulsão social e de saques pelos grupos que estão desassistidos. 

Todos vão ser afetados.A marcha à ré de Bolsonaro só foi possível porque uma parte considerável do grupo da elite captado pelas pesquisas se sentiu ameaçada. O que por sua vez, não garante longa permanência ao seu ministro da Saúde, mas dá fôlego a algumas políticas de controle da epidemia. Resta saber o que esse grupo pensa sobre a importância da democracia.

*Pesquisadora da PUC-Rio, professora e pós-doutoranda do Ence/IBGE. É doutora em ciência política pelo Iesp/Uerj, mestre em sociologia e antropologia pela UFRJ e PhD Fellow do CLAS/UC Berkeley (EUA).

sexta-feira, 3 de abril de 2020

Um falso militar no Planalto

Por Murillo Victorazzo

Em vídeo conferência pelo Instituto da Democracia, o cientista político Leonardo Avritzer, professor da UFMG, finalizou sua participação resumindo a essência de Jair Bolsonaro: "O Exército era conhecido como instituição capaz de gerar ordem e se preocupar com a ordem. Bolsonaro veio pra mudar essa concepção: é militar, mas gosta da desordem"

Quem acompanha a carreira política do atual presidente e suas atitudes neste seus 15 meses no Planalto há de concordar. É possivelmente um dos principais e perigosos paradoxos do atual governo. Bolsonaro foi eleito e invoca a imagem de militar, mas sua política de confronto, que estimula o conflagração social e institucional, não se furtando para tal até disseminar mentiras em cadeia nacional de TV, vai de encontro ao que ele (e tantos) se julga ser: é, na verdade, muito mais um político desequilibrado e populista do que capitão. 

Nada surpreendente para quem tem, em sua folha corrida no Exército ( um "mau militar", como disse Geisel), repreensões que fariam corar de vergonha o mais bad boy arruaceiro dos estudantes secundaristas. Espanta mesmo é ver setores da caserna, mesmo sem cargo no governo, seguirem-no fielmente. E ignorarem o risco à imagem das Forças Armadas.