domingo, 29 de outubro de 2023

Golda, um filme mais do que nunca real

Por Murillo Victorazzo*

Existem filmes bons, filmes não tão bons mas oportunos e filmes bons e oportunos. "Golda, a mulher de uma nação", lançado em agosto, é um exemplo do último caso. Em meio às tensões do episódio mais recente da interminável e triste série da vida real que coloca em choque, de forma latente ou explícita, Israel e palestinos, a obra do diretor israelense radicado nos Estados Unidos Guy Nattiv nos remete a exatos 50 anos atrás, quando outro episódio envolvendo judeus e árabes explodiu, com consequências militares, políticas e econômicas ainda mais graves.

Não foi por acaso que o grupo terrorista Hamas invadiu Israel no último dia 7 de outubro e perpetrou a barbárie que o mundo viu contra milhares de civis. Em 1973, igualmente no Yon Kippur ( "o dia do perdão"), a data mais sagrada do judaísmo, os israelenses, focados em jejuns e ida a sinagogas, viram surpresos Egito e Síria invadirem seu país em um desdobramento da Guerra dos Seis Dias, de 1967. Aquele conflito resultara na ocupação por Israel de parte dos territórios dos dois países vizinhos - a Península do Sinai e as Colinas de Golã - além das palestinas Cisjordânia e Faixa de Gaza (respectivamente sob administrações jordaniana e egípcia) e da parte oriental de Jerusalém,

A Guerra do Yon Kippur durou apenas 20 dias, mas foi o momento em que os israelenses se viram mais perto de uma derrota para os árabes, o que, na prática, significaria o fim do Estado judeu, então com apenas 25 anos de existência. Ao contrário de seis anos antes, Israel, embora ciente da movimentação perto de suas fronteiras, optou por não fazer "ataques preventivos". Em menos de dois dias, Golã e Sinai foram reocupadas pelos inimigos, com baixas israelenses muito acima das sentidas nas primeiras horas das três guerras anteriores. 

Logo caiu a Linha Bar Lev, estruturas fortificadas na margem oriental do Canal de Suez graças as quais Israel imaginava deter por pelo menos 48 horas qualquer tentativa do Egito de invadir o Sinai: em apenas 10 horas, 500 tanques egípcios atravessaram o canal. Naqueles vinte dias, a península seria palco de uma das maiores batalhas de tanques verificadas desde a Segunda Guerra Mundial. Ao final da guerra, cerca de 2.500 israelenses estavam mortos, um saldo estarrecedor para um país que, após três impressionantes vitórias, imaginava-se inexpugnável, muito em razão de sua poderosa força aérea. 

Dois meses antes, em uma palestra para oficiais da Escola de Estado Maior do Exército israelense, Moshe Dayan, então ministro da Defesa de Israel, jactara-se da supremacia sobre os vizinhos: "Nossa superioridade militar é o resultado conjunto da fraqueza árabe e da nossa força. Sua fraqueza decorre de fatores que não irão se alterar rapidamente: baixo nível de educação, tecnologia e integridade dos seus soldados, desunião entre os árabes e o peso decisivo do nacionalismo extremo". A euforia da Guerra dos Seis Dias transformava-se repentinamente em um sangrento pesadelo.

No comando do país estava Golda Meir, uma ucraniana que crescera nos Estados Unidos após seus pais fugirem dos progrons antissemitas estimulados pelo czar russo e emigrara, em 1921, para um kibutz em território palestino, então protetorado britânico. Ainda nos Estados Unidos, Golda tornou-se ativa integrante do movimento sionista trabalhista e para lá, duas décadas depois, voltou por um breve momento a fim de levantar US$ 50 milhões de dólares na busca pela viabilização do sonho sionista. A maior parte gasto em armamentos. "Algum dia, quando a História for escrita, se dirá que houve uma mulher judia que conseguiu o dinheiro que tornou possível o Estado [de Israel]", viria afirmar David Ben Gurion, primeiro signatário da declaração de independência e primeiro premiê israelense. 

Principal nome do sionismo de esquerda e seu correligionário no Mapai (movimento socialista), a legenda que, fundida a outras menores, originou o tradicional Partido Trabalhista - grupo que governou o país initerruptamente de sua fundação até 1977 e hoje encontra-se bastante fragilizado na política interna de Israel, Ben Gurion nomeia Golda, também signatária da declaração de independência, embaixadora em Moscou e logo depois ministra do Trabalho (1949-56), do Interior (1970) e das Relações Exteriores (1956-66). Em 1969, com a morte do sucessor de Ben Gurion, Levi Eshkol, ela se torna a primeira e única mulher a ocupar a chefia de governo israelense.

“Golda, assim como Theodor Herzl [fundador do movimento sionista internacional] e Ben-Gurion, foram os principais responsáveis pela constituição do Estado de Israel e pelo estabelecimento das bases do Estado israelense moderno”, explica Silvia Ferabolli, coordenadora do Núcleo de Pesquisa sobre as Relações Internacionais do Mundo Árabe (NUPRIMA) da UFRS.

É essa mulher que é muito bem interpretada por Helen Mirren (vencedora do Oscar de melhor atriz, em 2007, por seu papel como Elizabeth II em “A Rainha”) no filme que mostra seu dias mais tensos como primeira-ministra. Tensão que se somava a outro drama: a luta contra um câncer agressivo. A doença, mantida sob segredo, debilitava ainda mais a já natural frágil aparência de um senhora de 75 anos. Frágil aparência que escondia a habilidade política e a firmeza com que tratava seus adversários.  

Em uma época em que as mulheres ainda engatinhavam na luta por maiores espaços políticos, seu pulso forte levou a alguns estereótipos que hoje podem parecer sexistas, mesmo que com intuitos elogiosos. "Golda reúne as qualidades de uma mulher - intuição, perspicácia, sensibilidade, compaixão, com a de um homem - força, determinação e praticidade", disse certa vez um diplomata israelense. "Golda Meir é o único homem de meu gabinete", chegou a declarar Ben Gurion.

Com excelente caracterização e adotando precisamente os contidos tom de voz e gestos que a caracterizavam, Mirren consegue exprimir bem essa personalidade: entre tarefas de casa, pesadelos, vômitos e choros com os números de mortos anotados em uma singela caderneta, a firmeza necessária para liderar um ministério de um país em guerra; pressionar Henry Kissinger, o poderoso secretário de Estado dos Estados Unidos, a apoiá-la com armas, sem demonstrar temor com um possível conflito direto com os soviéticos; e, sem meias palavras, ameaçar dizimar 30 mil militares egípcios cercados ( fazer “um exercito de 30 mil viúvas”). A trama mostra, por outro lado, sua insegurança nas tomadas de definições no campo de guerra: "Eu não sou chefe militar, eu sou uma líder política".

O filme, embora sobre uma guerra, não é propriamente um filme de guerra. Cenas do front de batalha se resumem a algumas poucas de arquivo e uma em que um aterrorizado Mosh Dayan vê do alto de um helicóptero suas tropas serem bombardeadas inclementemente pelos sírios em Golã. O recurso que Nativv utiliza para melhor evidenciar os horrores da guerra são áudios verdadeiros de militares no campo de campo de combate, utilizados na ficção como comunicação com a sala de comando, sempre sob a escuta dos chefes militares e de uma Golda ou angustiada e impotente ou discretamente aliviada. 

O atordoamento de Mosh Dayan, até então considerado um herói nacional e brilhante estrategista militar, é uma das cenas que mais chamam atenção. Desesperado, chega a aventar o uso de armas nucleares, de pronto descartada pela primeira-ministra, passagem confirmada por Abraham Rabinovich, autor de um livro sobre aquela guerra. "Dayan teve uma crise nervosa. Tudo o que ele havia planejado ou imaginado havia falhado. E ele começou a falar às pessoas do seu entorno sobre o risco da possível queda do Terceiro Templo [ o Estado de Israel], deprimindo a todos à sua volta", conta Rabinovich ao serviço em espanhol da BBC . Embora o filme não retrate, hoje muitos historiadores também confirmam que Golda chegou a pensar em suicídio no segundo dia do conflito.

"Golda" é acima de tudo um filme político, no qual se reconstitui, além das negociações com Kissinger e o presidente egípcio Anuar Sadat, as inúmeras reuniões de gabinete, onde ela, junto a seus assessores militares, passa do pânico da aniquilação até mesmo pessoal à formulação da estratégia de ataque no Canal de Suez que muda os rumos da guerra. Uma vitória não apenas militar mas fundamentalmente política, por abrir espaço para o Acordo de Camp David, em 1978, dois meses antes de sua morte. Junto à oficialização da paz entre Cairo e Tel Aviv após 30 anos de beligerância, o Egito, em troca da recuperação do Sinai, tornava-se o primeiro país árabe a reconhecer formalmente o Estado de Israel como legítimo e soberano.

No entanto, os altos custos humanos e a erosão na imagem de invencibilidade não se apagam, e talvez aqui more um dos pecados do filme: não melhor explicar o que levou Israel a optar por não fazer ataques preventivos. A trama limita-se a mostrar Golda falando a Kissinger sobre "respeito a seu presidente". De fato, além de desejar evitar novamente a pecha de agressor a fim de não inviabilizar ajuda externa caso necessário, havia tal comprometimento com os norte-americanos, preocupados com as consequências de uma nova guerra para suas relações com os países árabes. A Guerra Fria com a União Soviética pesava mais para eles.

Washington só aceita a ceder armamentos para seu aliado, ajuda fundamental para a reversão de tendência da guerra, quando fica clara a ajuda militar de Moscou a Egito e Síria. Em retaliação, os países árabes produtores de petróleo fazem um profundo corte na oferta do combustível, dando origem, em 1974, ao "choque de petróleo" que causou inflação, recessão e desemprego nos países importadores do produto.

As causas dos supostos erros no serviço de informação são tangencialmente abordadas, embora tenham sido o principal motivo a levar Golda a depor em uma comissão após a guerra, cena a partir da qual o filme se inicia. Ganha ainda menos destaque o enorme desgaste político interno que se sucede, resultando em sua renúncia em abril de 1974. "Na manhã daquela sexta feira [6 de outubro], eu deveria ter ouvido as advertências do meu próprio coração e ordenado uma convocação (...) nunca mais serei a pessoa que era antes da guerra do Yon Kippur", escreveu ela em sua autobiografia.

A pouca profundidade ao lidar com certos aspectos da guerra e do contexto político em um filme de apenas 100 minutos talvez explique por que, em entrevista à CNN, o roteirista Nicholas Martinou recomenda aos telespectadores lerem mais sobre o conflito. “É difícil fazer com que alguém que não sabe nada passe a saber o suficiente para entender completamente a história. Pode ser um filme que as pessoas precisem ver algumas vezes antes que possam entender por inteiro”, diz.

Seja como for, em um momento em que a resposta de Israel a um ataque militar (diferenciando-se, claro, que, desta vez, em forma de injustificável terrorismo) é novamente colocada sob escrutínio da opinião pública internacional e o atual primeiro-ministro, Benjamim Netanyahu, é ferozmente criticado interna e externamente por sua conduta antes e depois do ataque terrorista do Hamas, o filme é oportuno por mostrar como o conflito árabe-israelense é um círculo vicioso do qual não se consegue escapar, levando a episódios que, se não iguais, são bastante semelhantes. 

Diante da equivocada polarização ideológica sobre o atual conflito, o filme também é oportuno porque, embora passe longe desses pontos, falar de Golda Meir é evidenciar que ser de esquerda nunca foi necessariamente ser comunista, e sua aversão aos soviéticos comprova. Serve ainda mais para, fundindo a cabeça de alguns à direita e à esquerda, refrescar a memória sobre como a esquerda tem papel protagonista na criação e desenvolvimento do Estado de Israel. Se, além de tudo já dito, não são os kibutz, símbolo do país, um projeto de cunho socialista? 

Em linhas gerais, um embate acerca de Israel permeia os debates acadêmicos: o conflito decorrente de sua fundação é resistência a colonialismo ou um choque de nacionalismos? Israel é ou não um caso de settler colonialism? O conceito de sionismo vem sendo ressignificado como discurso político e leva parte da esquerda, por considerar colonialismo impossível de coexistir com sua ideias, a negar a existência do sionismo de esquerda e flertar com o antissemitismo ( mesmo que camuflado sob a retórica do "antissionismo"). Segmentos à direita e à esquerda, explícita ou implicitamente, negam ou minimizam o direito de existência de um dos lados como Estado. Ignoram que não é apenas na Questão Palestina que nacionalismos dão luz a contradições ideológicas. E Golda é um ótimo exemplo dessa contradição. 

Ainda que considerada hoje uma estadista por muitos em Israel e outras partes do mundo, Golda foi uma figura controversa. Durante seu governo, a expansão dos assentamentos na Cisjordânia e a Faixa de Gaza foi acelerada, pois, para ela, o controle desses territórios considerados estratégicos era essencial para a segurança de Israel. Em entrevista ao The Sunday Times assim que se tornou premiê, ela já havia ido além e disparara: "Não há algo assim como palestinos (...) Não é como se houvesse um povo palestino na Palestina considerando a si mesmo como um povo e nós viéssemos, os jogássemos fora e tomássemos deles o seu país. Eles não existem e têm em Arafat, nascido no Egito, o seu líder." 

Quem dera o mundo fosse tão simples a ponto de podermos tudo separar em uma caixinha preta e outra branca. Por focar na guerra, o filme opta por um enfoque positivo sobre a primeira-ministra. Certeza só há uma: para o azar dos israelenses, Netanyahu não é Golda Meir.

*Murillo Victorazzo é jornalista, com Especialização em Política & Sociedade (Iesp-UERJ) e MBA em Relações Internacionais (FGV-Rio)