segunda-feira, 25 de março de 2019

A conspiração e a ultradireita do governo

Por Demétrio Magnoli ( O Globo, 25/03/2019)

Diante de uma lápide, no antigo cemitério judeu de Praga, à sombra da noite, reúnem-se 12 rabinos, representantes das tribos de Israel. O mais venerável toma a palavra. No seu discurso, proclama que “18 séculos pertenceram a nossos inimigos”, mas “o século atual e os futuros pertencerão a nós”. Em seguida, explica que a luta pela hegemonia mundial se desenrolará nos planos político, econômico e religioso, por meio da tomada de controle das finanças, do poder de Estado, dos meios de comunicação e das instituições educacionais.

A estrutura narrativa da conspiração encontra seu paradigma no mito da conspiração judaica, que emerge em romances baratos, artigos fantasiosos de jornal e uma célebre falsificação da polícia czarista russa, na passagem do século 19 para o século 20. O historiador Raoul Girardet segue a trilha desses textos no ensaio “A conspiração”, que faz parte do livro “ Mitos e mitologias políticas ” , publicado em 1986. É um guia inesperado para compreender o que se passa, hoje, no governo Bolsonaro.

A facção ultradireitista do governo, formada por seguidores de Olavo de Carvalho, nutre-se da ideia da conspiração. No lugar dos judeus, o Bruxo da Virgínia coloca os “liberais globalistas” e os “comunistas”, ligados por um pacto de dominação global que almeja destruir as “nações de sangue”. Se a constrangedora visita presidencial aos EUA nos ensina algo, a lição é que a paranoia conspiratória sedimentou-se como convicção fundamental do próprio presidente.

O Bruxo da Virgínia não inventou a versão contemporânea da conspiração mundial. De fato, ele apenas reproduz a tábua da fé da alt-right, a direita nacionalista americana, que tenta organizar um movimento nacionalista internacional. A crença difunde-se entre os fiéis pelo labirinto das redes sociais, em fragmentos de informação descontextualizada, boatos ferozes e acalorados rumores. Uma concha protetora providenciada pela aversão à imprensa profissional isola a seita da torrente de notícias que descortinam a complexidade do mundo.

A conspiração seduz, hipnotiza, encanta os espíritos. Sua narrativa simples, similar às do conto de fadas e do folhetim, oferece explicações completas para fenômenos complexos. Sua força persuasiva floresce no solo da ignorância histórica e da preguiça intelectual. Não é preciso ler, estudar, investigar: a teoria conspiratória eleva qualquer um à condição de sábio. A conspiração é o travesseiro, o lençol e o cobertor dos incultos. O Bruxo da Virgínia, que sabe disso, fez dela o núcleo do seu modelo de negócios.

Depois que deita raízes, a teoria conspiratória é invulnerável à prova negativa — e, inclusive, alimenta-se dela. Postos diante de contestações lógicas ou factuais, os espíritos tomados por ela retrucam que o autor da refutação faz parte da própria conspiração. Experimente sugerir a um “aluno de Olavo” que o keynesianismo fechou caminhos às proposições socialistas. Ele responderá que o interlocutor é um arauto do keynesianismo — isto é, do “marxismo cultural” espraiado nas instituições, na mídia e nas universidades. Nas bolhas das redes sociais, a resposta patética passa como contrarrefutação indiscutível.

Figuras imersas no caldo de cultura da conspiração inclinam-se a fantasiar pequenos complôs cotidianos— e a reagir articulando, eles mesmos, complôs paroquiais. O MEC, comandado por um discípulo do Bruxo da Virgínia, é um microcosmo desse fenômeno. A crônica guerra civil que o paralisa, contrapondo fanáticos “olavetes” a assessores técnicos e militares, evidencia a inviabilidade de um governo submetido ao paradigma conspiratório. Governar exige um mínimo de respeito a regras de administração e alguma estabilidade política. Nada disso é compatível com as quimeras que movem a facção ideológica do bolsonarismo.

“Se continuar assim, mais seis meses e acabou”, pressagiou Olavo de Carvalho sobre o governo Bolsonaro, no jantar em Washington, pouco antes de tomar assento ao lado do presidente. O Bruxo da Virgínia tem os meios para demonstrar o acerto de sua profecia.




quarta-feira, 13 de março de 2019

Socialismo ‘millennial’ nos EUA

Por Fernando Vallespín ( El País, 11/03/2019)

Uma das maiores fraturas políticas atuais, junto com a urbana/rural, é a de gerações. E, mais do que em outros lugares, isto se torna visível no mundo anglo-saxão. Se fossem apurados unicamente os votos dos menores de 25 anos nas últimas eleições legislativas britânicas, o Partido Conservador não teria obtido nem um só assento na Câmara dos Comuns.

 O voto dos jovens, que já tinha sido majoritariamente contrário ao Brexit, foi em massa para o Partido Trabalhista, que vinha se reaproximando das suas bases pelas mãos do imprevisível líder Jeremy Corbyn. Nas eleições de 2017, soube cortejar com acerto as ânsias de ascensão social frustradas pela crise econômica.

Apesar de suas muitas diferenças, nos Estados Unidos encontramos uma tendência parecida. E aqui o mais relevante é observar como os millennials, a geração nascida entre 1981 e 1996, conseguiram romper o tabu do qualificativo de “socialista” nesse país. Uma pesquisa do Gallup mostra que 51% dos jovens têm uma visão positiva do socialismo.

Esse último dado aparece em um amplo artigo da The Economist – destacado já na sua capa – em que se aprecia certa perplexidade quanto ao fenômeno. O semanário britânico chama a atenção para a “ingenuidade” de muitas dessas posições no que se refere ao seu conhecimento sobre a realidade da economia e a política fiscal, mas é compreensivo com tais atitudes, dada a desigualdade galopante, a assimetria na oferta de oportunidades e os problemas ambientais.

No meu entender, entretanto, a condescendência crítica da publicação em relação às possíveis soluções políticas que o novo socialismo norte-americano oferece erra o alvo. Ainda estamos longe de saber se ele tem algum tipo de “programa”, ou se responde mais a elementos expressivos que a outra coisa. A grande pergunta a fazer não é se existe uma nova sensibilidade esquerdista entre os jovens – algo que parece confirmado –, e sim em que se concretizará.

Deixemos agora de lado o que possa ocorrer em outros países democráticos, sujeitos também em parte à mesma dinâmica, e nos concentremos no fenômeno tal como se apresenta nos Estados Unidos, porque é justamente aí que encontramos seus traços mais interessantes.

 É preciso pensar que se trata do único país desenvolvido onde nunca existiu uma tradição socialista propriamente dita, e onde o esquerdismo se aglutinava em torno do difuso qualificativo de “liberal”, mais ou menos equivalente ao nosso “progressista”. Quem ia além e defendia uma maior ruptura com o status quo era tachado de “radical”, sem maior especificação.

O fato de atualmente se recorrer a outro epíteto, “socialista” ou “democrata-socialista”, como gostam de se descrever personagens como a jovem congressista Alexandria Ocasio-Cortez, é, portanto, algo mais que uma curiosidade. Expressa uma tentativa de explorar novos territórios de ação política, não se filiar pura e simplesmente ao socialismo histórico de estirpe marxista.

Aqui é onde se deve buscar sua originalidade, isso de dar as costas ao esquerdismo norte-americano tradicional – ou ao europeu – e tentar abrir outros caminhos. Quais são eles é a grande questão. E não há uma resposta simples. Entre outras coisas, porque tampouco está construindo um relato propriamente dito ao qual possa atrelar uma práxis política.

Constrói das ruínas do frustrado projeto de Obama ou o do próprio Bernie Sanders, que voltará a tentar a sorte nas primárias do Partido Democrata. Mas tampouco se ergue do nada. O movimento Occupy Wall Street deixou atrás de si uma pletora de novas publicações, sites e comunidades de ativistas na rede que continuam em funcionamento, fazendo barulho e ocupando boa parte do espaço público.

A única certeza é que o socialismo norte-americano compartilha as três premissas fundamentais da esquerda do Partido Democrata: a) uma crítica sem paliativos à desigualdade social criada pela economia neoliberal e pelas medidas fiscais dos últimos anos em favor dos que mais têm; b) a acusação aos hiper-ricos e às grandes empresas de ter descuidado das suas obrigações comunitárias e transformado seu enorme poder econômico em contínuos privilégios políticos; e c) a exigência de subverter este estado de coisas com programas sociais expansivos que vão muito além do direito a uma saúde universal.

Se parassem por aqui, entretanto, os socialistas "millennials" seriam identificados apenas como uma ala social-democrata desse partido. Mas seus objetivos parecem mais amplos.Para a maioria dos que se sentem identificados com esse rótulo, a semântica do que é “socialismo” não se deixa reduzir exclusivamente à dimensão convencional.

David Graeber, um anarquista convicto, autor do livro Bullshit Jobs, ao ser perguntado pelo que significa para ele este socialismo millennial, deixou bem claro: “Eu o compararia ao que ocorreu com o feminismo e o abolicionismo na sua época. Trata-se de alterar as percepções morais das pessoas”.

Por isso, não pode deixar de lado as questões identitárias: “Socialismo é feminismo, socialismo é antirracismo, socialismo é LGTBI”. Recordemos que foi nesta necessidade de teimar no identitário e na diversidade – as questões divisoras por antonomásia – que intelectuais como Mark Lilla viram a explicação para o triunfo de Trump. A outra identidade, a branca, sentiu-se também interpelada e, no final, deu no que deu.

O socialismo millennial, seguindo o caminho esboçado por políticos como Sanders e movimentos como o Occupy, voltou para politizar a desigualdade, que já não é mais vista como uma externalidade inevitável. Além disso, os jovens norte-americanos vivem cotidianamente o endividamento decorrente das caras tarifas universitárias e o pagamento dos planos de saúde.

Para atingir o objetivo é preciso mirar nas grandes fortunas, às quais Ocasio, por exemplo, gostaria de impor uma alíquota fiscal de 70%. Aqui a classe média, cujos salários mal se moveram em termos relativos nas últimas quatro décadas, também deveria ser parte da coalizão. A opressão não se articula só a partir de critérios econômicos: abandonar em seu nome a luta pelo reconhecimento de determinadas minorias fica totalmente excluído.

Hoje haveria, além disso, novos desafios que hipotecam nosso futuro e exigem uma ação política imediata. O mais urgente é, certamente, a mudança climática. O Green New Deal seria o instrumento para isso. Não resta alternativa senão reestruturar a economia para alcançar dois fins ao mesmo tempo: eliminar as emissões de gases do efeito estufa e aproveitar esse impulso de reorganização das políticas econômicas para criar uma maior prosperidade para todos, uma nova redistribuição dos recursos.

E há também os novos desafios sobre o emprego derivados da robotização e da aplicação maciça da inteligência artificial. Em contraste indubitável com a sensibilidade norte-americana majoritária, falar de algo como uma renda básica de reinserção deixou de ser tabu. Se muitos jovens caem rendidos perante esta nova forma de “socialismo”, isto se deve em grande parte a que as questões e os desafios do futuro encontraram finalmente um espaço na agenda da política cotidiana.

A experiência acumulada de todo o esquerdismo mostra que o mundo real não se deixa impressionar por quem trata de questioná-lo. Devem passar para o primeiro plano as disputas relativas ao “que fazer?”, e a estratégia necessária para traduzir os objetivos em políticas efetivas. E é aqui que o socialismo millennial se encontra com os maiores problemas.

Porque, de um lado, não pode prescindir – carrega-o em seu DNA geracional – da criatividade e da espontaneidade que as redes permitem. Mas, por outro, como se viu com o próprio Occupy, sem uma conexão efetiva com as instituições da democracia formal tudo pode ficar afinal reduzido a meros fogos de artifício. Sem se incorporar às instituições não há mudança, mas ficar encaixado em suas dinâmicas, Obama que nos desculpe, nos condena à frustração.

Mas por enquanto não se veem como caminhos excludentes, e jogam em ambas as dimensões. E com bastante êxito. Ocasio volta a ser um exemplo interessante porque conseguiu que sua presença no Congresso monopolizasse todos os olhares. Não por acaso, transmite os detalhes do que ali ocorre através de suas contas do Twitter e Instagram, aproximando do grande público os detalhes da vida parlamentar, até agora opacos. Ao mesmo tempo, isso não a impede de mostrar um profissionalismo irrepreensível, como se viu no seu rigoroso interrogatório do ex-advogado de Trump Michael Cohen.

O desafio para este novo autoproclamado socialismo está em transferir a essas mesmas instituições as energias democráticas que se encontram no seu ativismo de base. O projeto tem e terá sentido na medida em que puder se articular em torno de uma matriz de organizações locais, debate on-line, diferentes fórmulas de ativismo ou experimentos que conectem a auto-organização de grupos com os fins públicos, algo assim como a criação de companhias tipo Uber ou Airbnb de propriedade social, dos quais nos fala Graeber.

Resta muito por fazer, mas que a The Economist ande preocupada mostra claramente que se trata de algo além de um mero impulso utópico.