segunda-feira, 25 de julho de 2016

Turquia e Rússia: uma desigual reaproximação

Por Jeffrey Mankoff (Foreig Affairs, 20/07/2017)

A normalização do laços entre Turquia e Rússia no final de junho foi uma das raras boas notícias para o país. Sob a pressão de uma onda de guerrilha curda, de ataques terroristas e o auto-proclamado Estado Islâmico; um afluxo maciço de refugiados sírios; problemas econômicos decorrentes das sanções russas; e crescente atrito com União Europeia e Estados Unidos; o presidente turco Recep Tayyip Erdogan parece ter decidido que seu país já não podia pagar por uma guerra fria com Moscou.

Ao pedir desculpa pela derrubada de um avião de guerra russo em novembro de 2015, Erdogan pavimentou o caminho para a retomada dos laços econômicos e de maior cooperação em segurança entre os dois países. O pedido de desculpas, no entanto, não diminuirá a influência crescente da Rússia no quintal da Turquia.

Esta  ampla mudança geopolítica  —  vista no crescimento do poder russo na região do mar Negro, no Cáucaso e no Médio Oriente, muitas vezes às custas de Ancara — pôs fim à curta parceria estratégica russo-turca surgida na primeira década deste século.

Nos próximos anos, essa crescente influência vai continuar a limitar as possibilidades de uma parceria genuína entre Ancara e Moscou. E embora os ruídos com o Ocidente causados pela tentativa de golpe criem oportunidade de maior cooperação a curto prazo, deixa, por outro lado, a Turquia mais fraca e, portanto, mais vulnerável à coerção russa.

A primeira década deste século viu uma estreita parceria russo-turca transformar séculos de confronto. As ambições estratégicas dos dois países começaram a convergir: ambos esperavam moldar um maior papel para si na ordem global e foram se frustrando cada vez mais com o que eles viam como recusa do Ocidente em lhes dar um lugar à mesa.

Ancara e Moscovo começaram a concentrar-se na cooperação econômica, aprofundando laços comerciais e de investimento. Até 2015, Rússia era o terceiro maior parceiro comercial da Turquia, quarta maior fonte de investimento estrangeiro e o principal fornecedor de gás natural. Turistas russos tornaram-se frequentes nas cidades turcas.

A decisão russa de novembro de 2015 de impor sanções sobre a Turquia após derrubada do caça debilitou fortemente a economia turca. Moscou centrou suas sanções nos três pilares das relações econômicas bilaterais: agricultura, construção e turismo.

Entre outras medidas,proibiu a importação de alimentos turcos, restringiu as atividades de empresas de construção turca na Rússia, proibiu voos charters entre os dois países e cancelou um acordo de isenção de visto finalizado em 2010. A gigante de gás russa Gazprom engavetou planos de construir um novo gasoduto através do mar Negro para a Turquia, e a Rosatom, empresa estatal nuclear, suspendeu a construção de um reator na cidade turca de Akkuyu.

Tomados em conjunto, de acordo estimativa do Banco Europeu para Reconstrução e Desenvolvimento, as sanções diminuiriam o PIB  turco em 0,7 pontos percentuais em 2016 caso fossem mantidas.

Igualmente prejudiciais para a Turquia foram os efeitos do confronto com a Rússia na crise na Síria. Junto com o Irã e a milícia xiita Hezbollah, os russos apoiam o governo deBashar al-Assad, contra a Turquia, que, juntamente com Estados árabes do Golfo e ocidentais, dão suporte a vários grupos rebeldes sunitas, em busca da deposição de Assad.

Nos meses após o incidente com o caça, Moscou intensificou as ações contra interesses turcos na Síria, usando sua Força Aérea para atacar rebeldes apoiados por Erdogran. Por sua vez, mais sírios  se refugiaram na Turquia, que agora abriga mais de três milhões de refugiados.

Ao mesmo tempo, a Rússia forneceu apoio adicional para o Partido da União Democrática Curdo (PYD), baseado na Síria — motivo de angústia entre os líderes turcos, que vêem o PYD como uma extensão do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), grupo que luta um sangrento conflito separatista  no sudeste da Turquia e que tomou vida nova no ano passado.

Os russos permitiram ainda que o PYD abrisse um escritório de representação em Moscou e, através de bombardeios aéreos, abriram caminho para os curdos sírios ganharem territórios (Ankara protestou que armas russas entregues ao PYD teriam sido contrabandeadas na fronteira sírio-turco, caindo nas mãos do PKK.)

Neste contexto, não deveria ser surpresa a brusca mudança de postura de Erdogan, a fim de restaurar os laços com a Rússia. Emparedado pelo surto de ataques do Estado Islâmico na Turquia, o fracasso de sua estratégia para a guerra civil síria, o isolamento internacional mais profundo, o agravamento do conflito com o PKK e os custos econômicos e estratégicos da retaliação russa, ele pareceu convencido a não mais pagar pelo confronto com Moscou.

A demonstração de arrependimento de Erdogran parece destinada a preparar o caminho negociar sua demanda pela deposição de Assad (algo aparentemente improvável há algum tempo) em troca do fim das sanções russas e o do apoio russo ao PYD. Se bem-sucedida, Ancara será capaz de focar seus desafios mais imediatos no PKK e  no Estado Islâmico — neste último caso, talvez em conjunto com a Rússia.

Nas últimas semanas, a Rússia cancelou as proibições impostas aos voos charter para cidades turísticas turcas e autorizou negociações com vistas à normalização dos dos laços econômicos. Na sequência do atentado suicida no Aeroporto Internacional de Istambul, os chanceleres russos e turcos reuniram-se em Sochi e concordaram em retomar  contatos militares e a cooperação antiterrorismo.

Qualquer detènte russo-turca, no entanto, provavelmente não irá restaurar a parceria estratégica que definiu a relação entre Ancara e Moscou antes do conflito sírio. As primeiras sementes desta parceria foram semeadas na década de 1990, mas foi quando Erdogan tornou-se primeiro ministro, em 2003, que realmente floresceram.

Como agora, Erdogan e o presidente russo Vladimir Putin, dois homens autoritários que compartilham alguma química pessoal, tinham em comum a frustração com uma ordem internacional dominada pelo Ocidente que estimulou a integração plena entre os dois países. Tanto a Turquia de Erdogan Turquia como a Rússia de Putin compartilham alguns interesses econômicos — por exemplo, enviar o gás russo para a Europa por meio de dutos pela Turquia.

O que, no entanto, realmente possibilitou a parceria russo-turca foi a retirada do poder militar de Moscou das fronteiras turcas após o colapso da União Soviética. Da guerra da Crimeia à Guerra Fria, a insegurança da Turquia perante tal poder forçou-a a amarrar-se aos Estados mais poderosos da Europa e América do Norte  — França e o Reino Unido na década de 1850, Alemanha durante a I Guerra Mundial e a OTAN, a partir da década de 1950.

Isso mudou em 1991, quando o esfarelamento militar da Rússia e o declínio de sua influência nos Balcãs, no Mediterrâneo Oriental e no Cáucaso do Sul acabaram com a ameaça representada por ela pela primeira vez em séculos, permitindo que a Turquia prosseguisse com uma política externa mais ambiciosa, com o intuito de aprofundar o seu papel no Oriente Médio.

Nos últimos anos, no entanto, as Forças Armadas da Rússia se fortaleceram, em grande parte como resultado do enorme programa de modernização de defesa do país, iniciado em 2008.

Na vizinhança da Turquia, Moscou está reforçando sua presença militar. Criou zonas de exclusão área no Mar Negro, onde, desde a anexação da Crimeia, em 2014, tem trabalhado para atualizar suas forças navais. Moveu forças adicionais e equipamentos para sua base naval na cidade síria de Tartus e fechou acordos com Assad para posicionar outras em outros locais do país, especialmente em Latakia.

Em dezembro de 2015, Putin prometeu reforçar seu contingente de cinco mil militares na Armênia, na fronteira turca, e estabeleceu um sistema de defesa aérea conjunto com aquele país. (Alguns destes passos, tais como a implantação das forças adicionais na Armênia, podem não acontecer na sequência da aproximação russo-turca, mas a maioria deles provavelmente resistirá.)

Essas mudanças,  uma vez mais, tornaram Ancara vulnerável à coerção russa. Ao mesmo tempo, os interesses estratégicos de Rússia e Turquia divergiram: não só na Síria, mas também na Ucrânia, a qual a Rússia tem trabalhado para desmembrar enquanto a Turquia aprofunda laços, e no Cáucaso, onde a renovada luta entre Armênia e Azerbaijão exacerbou a rivalidade entre Ancara e Moscou na região.

O golpe fracassado na Turquia pode amenizar algumas destas tensões no curto prazo, já que Moscou, ao contrário dos EUA e outros aliados turcos da OTAN, estará disposta a olhar de outra forma a "caça as bruxas" contra oponentes domésticos de Erdogran. Com efeito, a Rússia provavelmente levará vantagem com o distanciamento turco em relação ao Oeste e tentará puxá-la para perto.

Nem importa que a Força Aérea turca, que tanto se irritou com as violações russas do espaço aéreo e incentivou robustas respostas a elas, agora se encontra diante da ira do Erdogan pelo papel central desempenhado no plano para derrubá-lo. (Na verdade, os pilotos que abateram o jato russo estavam entre os presos após o fracasso do golpe).

A longo prazo, porém, as conseqüências do golpe irão exacerbar a insegurança relativa da Turquia. O expurgo de militares conduzido por Erdogran vai deixá-lo menos capaz de resistir à expansão do poder russo, ainda mais com o estranhamento  de seus aliados ocidentais.

Com a Turquia enfrentando as incertezas mais profundas vista em décadas, Erdogan não está em posição de afastar-se de Moscou. Rússia vai continuar a expandir a sua influência na vizinhança compartilhada, oferecendo Ancara apenas a perspectiva de um relacionamento desigual.

segunda-feira, 18 de julho de 2016

O dia em que Erdogram foi Chávez: por que engolimos tiranetes

Por Murillo Victorazzo

Os regimes não liberais ( no sentido político, não necessariamente econômico), cuja característica mais perigosa é a extrema concentração de poderes no Executivo e o desprezo pelas minorias, separam-se tanto das democracias de fato como das ditaduras por uma tênue linha. Transitam entre estas com nuances, roupagens democráticas ou cerceamento de direitos em maior ou menor graus, que dificultam a atuação da comunidade internacional e a aplicação de normas em favor dos direitos humanos e liberdades civis.

Em abril de 2002, um grupo de militares chegou a tirar Hugo Chávez do poder. Com o apoio de grandes empresários, inclusive donos de veículos de comunicação, detiveram-no, colocaram no seu lugar Pedro Carmona, presidente de uma das principais entidades patronais, dissolveram o Parlamento e a Corte Suprema e anularam a Constituição de 1999, entre outros atos à margem da lei.

Após repúdio internacional, mobilização popular e reação da outra parte das Forças Armadas, fiéis a seu colega de farda, o levante foi sufocado. Em 48 horas, o presidente reeleito pelo povo dois anos antes estava de novo à frente do Palácio Miraflores.

Umas das principais vozes a se levantar contra a ruptura da ordem constitucional na Venezuela foi o então presidente brasileiro Fernando Henrique Cardoso, cabeça das pressões e do manifesto assinado por líderes latino-americanos contra a quartelada. Posição oposta a dos Estados Unidos de George W. Bush, que prontamente reconhecera o governo golpista, acompanhado apenas da Espanha.

Embora por razões e em contexto diferentes, aquele filme foi  repetido na última sexta-feira na Turquia, quando o também polêmico presidente Recep Erdogran balançou após parcela das Forças Armadas colocar seus tanques nas ruas e anunciar estar tomando o poder. A "defesa da democracia e dos direitos individuais" era sua justificativa.

Manifestantes em peso desafiaram metralhadoras e blindados e foram às ruas em defesa de Erdogran. Partidos políticos representados no Parlamento, inclusive os de oposição, posicionaram-se ao lado do governo eleito, assim como toda a comunidade internacional - desta vez unanimemente, inclusive os EUA. Em apenas uma madrugada, forças de segurança (militares e policiais) desmobilizaram os rebelados. A rapidez com qual foi derrotado  o movimento, porém, não refletia seu saldo sangrento: cerca de 300 pessoas mortas.

Quando as armas quase o depuseram, Chávez começava a colocar em prática  sua retórica populista-nacionalista.  Expropriara terras, aproximara-se de Fidel Castro e ganhar poderes com a Carta de 1999, referendada por dois terços da população. No entanto, ainda não havia descambado para o autoritarismo explícito visto em anos recentes. Não haviam, por exemplo, notícias de adversários presos.

O ataque à democracia liberal inerente ao projeto chavista já dava sinais. Passos semelhantes aos de Erdogran, que, depois de três mandatos como primeiro-ministro, elegeu-se presidente em 2014, com o voto popular e em primeiro turno. Desde então, com a submissão de primeiros-ministros aliados, vinha acumulando funções alheias às de chefe de Estado, cargo mais protocolar no parlamentarismo turco. Não por outro motivo, trabalhava para  a convocação de nova Constituinte, através da qual se implantaria o presidencialismo.

Considerado até pouco tempo atrás um islamista moderado, capaz de fazer conviver a democracia secular com o Islã político, Erdogran passou a ser visto com preocupação e ceticismo pelo mundo e pela oponentes internos por avançar também o sinal da laicidade fundada por Kemal Atatürk há quase cem anos.

O fim da proibição do uso de véus islâmicos em locais públicos e a tentativa de criminalizar o adultério e proibir a bebida alcoólica me certos locais foram vistos como indicadores da islamização de seu governo. Perseguições a adversários e ataques até policiais à imprensa, sempre sob a retórica típica dos protoditadores da "traição à pátria", tornavam-se mais frequentes.

Reconduzido ao cargo, Chávez se fortaleceu. Reelegeu-se em 2006, após derrotar um referendo revogatório dois anos antes, quando quase 60% dos eleitores disseram querer a continuação de seu mandato. Progressivamente foi  endurecendo o regime, conforme ele se fragilizava economicamente. A cada crítica,  o apoio dos norte-americanos e de empresários ao golpe de 2002 era relembrado para reforçar a ideia de ser vítima de boicotes e conspirações das elites e do "império yankee". Hoje o protoditador Maduro esta aí.

Ainda que rapidamente sustado, as tensões decorrente da última sexta-feira não cessarão imediatamente na Turquia. Mais do que a volta do fantasma das quarteladas, tempos que pareciam ter ficado para trás, o levante expôs graves fissuras no regime turco e dá a Erdogran a oportunidade de, vestido com o mesmo uniforme de vítima, aumentar a perseguição aos seus adversários. Sob  o argumento de, em suas palavras, "eliminar o vírus golpista" do Estado, acelerará o processo de concentração de poderes.

A alusão à volta da pena de morte; as mais de sete mil detenções, entre eles seis mil militares e 755 magistrados; a destituição de 30 dirigentes políticos, como governadores e prefeitos; e a demissão de 8.500 policiais, evidenciam essa direção. Uma verdadeira caça a bruxas se iniciou.  A imagem de um parlamentarismo estável e laico, exemplo raro no Oriente Médio e norte da África, não condiz mais com a verdade.

Aspirante à potência regional - objetivo número um da política externa de Erdogran -, a Turquia é estratégica geopoliticamente, na luta contra o terrorismo e nas discussões sobre refugiados com a União Europeia, além de membro da OTAN. A instabilidade de um país com estas credenciais causa arrepios aos líderes ocidentais. Tudo que não precisam é de um aliado cujo único contraponto a regimes islâmicos seja ditaduras militares, dicotomia comum no Oriente Médio e norte da África.

Algumas vozes acusaram os Estados Unidos de terem se pronunciado contra o golpe somente após evidências de sua insustentabilidade. Integrantes do governo turco foram além: insinuaram digitais norte-americanas no golpe. Teorias que, se não podem ser descartadas, fazem a alegria do presidente turco, que não tardou para pressionar publicamente pela deportação de seu maior inimigo, o clérigo moderado Fethullah Gülen. Radicado na Pensilvânia, ele é acusado de ser o mentor do levante. Pela mesma cartilha usada por Chávez, Erdogran enforca internamente posando de enforcado pelos "imperialistas ocidentais".

Historicamente, os Estados Unidos, quando não apoiaram, foram complacentes com os ditadores seculares, "o mal menor", na luta contra a islamização política de Estados. Em 2013, diante da deposição por militares do islâmico Mohammed Mursi, eleito pelo povo egípcio apenas um ano antes, a diplomacia de Obama "mostrou-se preocupada" com a situação e, com o golpe bem sucedido, suspendeu boa parte da ajuda militar ao país.

Dois anos depois, contudo, cessou a sanção. A luta contra o terrorismo falou mais alto, mesmo não se podendo dizer que o general Abdel-Fattah al-Sisi, eleito em pleito, embora direto, carente de legitimidade e imparcialidade, tivesse colocado o Egito no trilho da democracia. Muito pelo contrário.

Ilações são complicadas de se analisar, pois fogem ao concreto . O fato é que o secretário de Estado, John Kerry, no início da noite de sexta-feira, em conversa por telefone com o chanceler turco, ofereceu "apoio absoluto ao governo eleito". Jogada de cena ou não, uma resposta mais rápida e assertiva do que a emitida sobre Egito, provavelmente por ele e os europeus terem consciência do protagonismo turco na região e, portanto, no contexto atual, dependerem mais da Turquia do que o contrário.

Não se sabe qual seria a reação das potências ocidentais na hipótese de sucesso golpista. Mas, diante dessa dependência, parece pouco provável que, além de estrilar, tivessem espaço de manobra suficiente para pressionar a médio prazo os militares em favor de liberdades e direitos. Do mesmo modo, acontece agora com Erdogran, com a faca e esse queijo para lidar com Estados Unidos e europeus em sua espiral autoritária, eufemismo para, partir de agora, não se dizer ditatorial.

Os regimes não liberais, tornam o mundo mais complexo. Mas é preciso ressaltar que, se eles, por serem mutantes e complexos, embarreiram ações do Ocidente na defesa da democracia,  uma sociedade internacional cujo lastro retórico e normativo seja a manutenção de mandatos constitucionais, mesmo que existam variáveis pragmáticas, cria barreiras para a proliferação de governos autocráticos, sem o mínimo de legitimidade popular. Se não por razões morais, pelo perigo de se abrir precedentes, a objetividade legal é melhor do que a subjetividade política.

A quebra de normas através da força nesses casos, além de ser uma caixa de pandora que como seu alvo, acaba por perseguir e cercear direitos, torna o opressor um falso oprimido. O caminho é a vigilância, a pressão diplomática, a negociação caso a caso, por mais lentos e muitas vezes falhos que sejam.

quinta-feira, 14 de julho de 2016

Messi X CR7: a mais tola disputa do mundo

Por Murillo Victorazzo

Sabe-se lá por que, o ser humano, não sei se desde sempre, mas certamente nos últimos tempos, a péssima mania de separar em dois lados incomunicáveis, de forma maniqueísta, tudo que envolve gostos, preferências, visões de mundo. 

Quando o alvo é alguém com personalidade, digamos, polêmica, as divisões se acentuam ainda mais, muitas vezes misturando o modo de ser com suas realizações. Os defeitos são realçados, enquanto as virtudes são minimizadas, quando não negadas. Ou o contrário. Se há outro para contrapô-lo, um elogio a este é visto como crítica a ele.

O futebol, passional por natureza, não teria como escapar, como visto na míope discussão sobre quem é o melhor jogador do mundo.

Marrento, antipático, narcisista, midiático, "fominha". Todos esses adjetivos sempre perseguiram Cristiano Ronaldo com eficácia maior do que o melhor dos zagueiros conseguiria. E, admitamos, motivos não faltaram para tachá-lo assim em algum momento. Seu modo de ser, solenemente ignorado pelos seus fãs mais passionais, serve para seus detratores diminuírem sua coleção de títulos em clubes e seu raro talento, que aliado à invejável força física, tornou-o diferenciado.

Ao passar, muitas vezes, a imagem de se considerar o Pelé do século XXI, Ronaldo causava o efeito oposto entre seus detratores: joga nada, é puro marketing. Sacrilégio de ambos. Falta de discernimento típica desses dias em que as pessoas parecem ver tudo através de uma televisão preta e branca, sem nuances.

Nesse mundo binário, o outro lado, o vilão ou bandido, se chama Lionel Messi. Sem personalidade, "modinha", favorecido por jogar num timaço com o Barcelona, e agora, após perder pênalti em mais uma final desperdiçada com a seleção argentina, "amarelão". Assim os "ronaldetes" rotulam um dos maiores gênios que o futebol nos deu. Elogios para recordes, dribles, golaços, jogadas de plasticidade incomum? Nenhum, nunca.

Para o azar do argentino,  ao conquistar a Eurocopa, Ronaldo conseguiu, além de uma façanha inédita para seu país, diferenciar-se do "rival" em termos de desempenho com a camisa de seu país. Pronto, prato feito para a velha ladainha de distinguir craques em função de títulos com seleções, critério que, se já era pouco consistente até poucas décadas atrás, quando representavam de fato os melhores times do mundo, hoje me dia, com os clubes europeus juntando sem a barreira da nacionalidade os maiores talentos possíveis do plante, perde qualquer sentido.

Alguém em sã consciência considera Kleberson e Cafu melhores que Falcão e Leandro? Ou prefere em seu time Burrochaga, OlarticoecheaTrezeguet, Petit, Lucatoni, Gattuso, Völler no lugar de Zizinho, Cruyff, Zico, Sócrates, Di Stéfano, Puskas, por exemplo?  

Duvidariam que Barcelona, Real Madrid, Chelsea, PSG, Bayern são superiores a grande parte das seleções, talvez a todas? Que a Champions League tem nível igual ou superior a Copas do Mundo e Eurocopas? Sem falar da imprevisibilidade de um torneio de sete jogos, sendo quatro eliminatórios sem jogo de volta, a cada quatro anos.

Rejeitar esse argumento não é afirmar que Ronaldo não é o maior dos últimos tempos. É inegável, aliás, que ele esteja à frente do argentino na disputa pela Bola de Ouro de 2016. Mas o título da Eurocopa e a ausência de conquistas argentinas em duas décadas pouco deve servir como parâmetro para, no futuro, nos virarmos e concluirmos qual foi  melhor - se é que temos que escolher. 

Prefira o madrilista ou o barcelonista, as razões para escolha devem ser seus gols, jogadas, passes, estilo, importância para suas equipes, e títulos, é claro, mas como um todo, durante toda carreira e sem fracassos em seleções como divisor de águas. Assim como a Eurocopa não faz de Ronaldo melhor do que Messi, um hipotético tetra mundial argentino em 2018 não tornará irrefutável o contrário, caso o "hermano" decida voltar à alviceleste.

Da mesma forma que se Iguaín não tivesse perdido três gols feitos, um em cada jogo, nas três finais que a Argentina disputou recentemente. Possivelmente Messi poderia hoje se gabar de ser campeão do mundo e da América em um espaço de três anos.

 Limitarmo-nos a esse tolo Fla x Flu acaba, além de tudo, por prejudicar o próprio capitão luso, craque de dimensão ainda maior depois do torneio, mas não por ter sido campeão meramente.

Sua determinação e liderança - provada até em vídeo-; o choro comovente na final, ao se ver, contundido, fora da partida;  e o discurso na chegada a Lisboa, no qual dedicou a conquista aos imigrantes, numa indireta ao radicalismo xenófobo em ascensão na Europa, mostraram um CR7 que poucos conheciam. Atitudes que humanizaram uma personagem marcada pelo narcisismo e acusada de egocentrismo. 

Se o torneio não pode sacramentar o reinado de Ronaldo no mundo do futebol, é certo que lhe assegurou espaço definitivo na galeria dos grandes ídolos históricos - os verdadeiros, aqueles que, além de craques, sabem o que representam para torcida e companheiros e fazem por merecer o carinho e admiração de tantos, até de "messiânicos".

Messi continua a ser o melhor para muitos dentro do gramado, inclusive para mim. Mas Ronaldo deu um passo à frente no quesito personalidade. Na balança dos prós e contras, defeitos ficaram merecidamente relegados; falso rótulos, como seu individualismo, esquecidos, virtudes descobertas e talento reafirmado.

Até por nenhuma das escolhas ser absurda, se  podemos nos deliciar vendo dois atletas desse nível, para que gastar tempo vociferando qual o melhor? Aproveitemos o privilégio que o futebol de hoje nos dá.

segunda-feira, 11 de julho de 2016

Por que rememorar (e esquecer) a Guerra Civil de 1932?

Por Daniel Bonin Barreto (Carta Capital, 8/7/2016)

Sou paulista, nascido em uma pequena cidade do interior, chamada Itararé. Desde muito cedo escutava, de meus familiares e conhecidos, histórias que relacionavam a minha cidade com acontecimentos maiores, conhecidos por “Revolução de 1930” e “Revolução Constitucionalista de 1932”.

Utilizando uma fala muito pertinente de Leandro Karnal, temos uma tradição de não chamar de “Guerra Civil” movimentos violentos que envolveram a história do Brasil. Falamos em revoltas, revoluções, insurgências e não lembramos do caráter do confronto como de mobilização civil e disputas bélicas entre habitantes de um mesmo país.

Hoje, passados 84 do maior confronto armado em território brasileiro no século XX, as lembranças que se envolvem com 1932 são geralmente de caráter saudosista, civilista, patriótico, regionalista e, em certa medida, elitista, quando não utilizados como argumento para a soberania e independência de São Paulo.

Acreditem: uma rápida pesquisa pelas redes sociais nos apresenta grupos de movimentos separatistas, muito bem engajados, dos mais radicais aos “constitucionais”, que pretendem, como os “bravos de 1932”, colocar São Paulo nos trilhos.

Este tipo de movimento e a valorização de certos ideais (escolhidos) se confundem, muitas vezes, com o trabalho de pesquisa histórica. Por conseguinte, a temática sobre os paulistas é cada vez mais deixada de lado pela produção acadêmica no Brasil. Coincidência? Acredito que não.

A brecha da produção histórica abre caminho para a difusão de ideais no mínimo perigosos acerca de um acontecimento extremamente importante na conjuntura do Governo Provisório de Getúlio Vargas. Muito já foi e ainda é escrito sobre a Guerra Civil de 1932. No entanto, assim como se percebe como outros assuntos de nossa violenta história, a leitura desses acontecimentos não tem alcançado, como deveria, a população.

Além das organizações que fervilham pelas redes sociais, a identidade e a memória de 1932 estão presentes em importantes nomes na cidade de São Paulo. A Avenida 23 de Maio (data da morte dos paulistas Martins, Maragaia, Dráusio e Camargo, que de suas iniciais se originou o MMDC) e a Avenida 9 de Julho (data de estopim do movimento) são dois bons exemplos.

Já o Obelisco do Ibirapuera é o principal local de homenagem ao movimento, a partir da construção do que se chama de “memória oficial”. No local estão guardados os restos mortais de centenas de combatentes paulistas mortos. São militares, estudantes, profissionais liberais, operários. As maiores vítimas de uma causa com forte poder de cooptação popular, tramada pela Frente Única Paulista, junção do Partido Republicano Paulista (PRP), dos oligarcas, com o Partido Democrático (PD), composto pela burguesia média paulista ascendente nos anos 1930.

Nos cabe uma atenção muito especial em como aspectos de simbolismo foram utilizados pela imprensa paulista na propagação do imaginário que visava construir São Paulo livre. Recorreu-se, entre vários elementos, à figura histórica do bandeirante paulista.

O bandeirante, como se sabe (não se deixando esquecer seu protagonismo no massacre das populações nativas por muito tempo), era fruto da miscigenação de europeus e indígenas, quando também não de negros, e foi ilustrado pelas publicações dos jornais paulistas em 1932 de uma maneira bastante peculiar: um homem branco, forte, alto, implacável e irredutível em seus propósitos.

Neste quesito, do trabalho da imprensa paulista em 1932, há de se reconhecer como os jornais diários incorporam o discurso das classes dirigentes. O Estado de S. Paulo, que dois anos antes exaltou o triunfo de Vargas, passou a empreender uma verdadeira cruzada pela vitória. Assim também fizeram os jornais Folha da Manhã, A Gazeta,Diário Nacional, entre muitos outros.

As rádios, inclusive as emissoras de tenentistas que foram invadidas, davam a tônica da campanha. Proclamava-se a vitória na voz emocionada e vibrante de Cesar Ladeira.

Os partidos políticos, a imprensa e os setores dominantes exaltavam uma vitória impossível. A população, num esforço descomunal, doava dinheiro e ouro em prol de uma guerra que, se vitoriosa, alcançaria uma nova Constituição, proposta ampla e ao mesmo tempo carregada de incertezas de melhorias sociais para os que pegavam em armas.

Neste sentido, cabe um questionamento: que tipo de Constituição as lideranças do movimento desejavam? Ou, mais especificamente, todo o esforço visou somente uma nova Constituição para o país?

Estudantes universitários passaram a construir máquinas de combate, mulheres deixaram suas famílias para costurar e, em alguns casos, comandar os hospitais de guerra e homens adultos, de diferentes profissões, marcharam a um front desconhecido. A historiadora Maria Helena Capelato, em uma das melhores obras sobre 1932, destaca como o trabalho de domínio das consciências serviu para que o episódio adquirisse uma aparente característica de larga participação das camadas sociais, com objetivos de solucionar as necessidades de todos os envolvidos:

O domínio das consciências, uma das técnicas mais eficazes de controle social, foi levado nesse período às últimas consequências. A “grande imprensa” veiculou a ideologia dominante através das manchetes, editoriais, anúncios, artigos; falou a “todos” e por “todos”, adequando os valores “eternos” às necessidades imediatas suscitadas pelas conturbações políticas e sociais. (CAPELATO, Maria Helena. O movimento de 1932 – a causa paulista. São Paulo, Brasiliense, 1982, p. 32)

Se o movimento conseguiu envolver praticamente todas as classes sociais, vale ressaltar que, como em muitas guerras regionalistas, 1932 também produziu seus excluídos. Ou melhor, tentou-se mobilizar populações marginalizadas para impedir, sob qualquer alegação, que a causa pudesse ser fator de exclusão. Todavia, ao arregimentar homens negros e tribos indígenas, e criar batalhões específicos para essas populações, quase sempre separados dos outros voluntários e militares, São Paulo dava mostras de sua face mais segregacionista.

Em menos de três meses de guerra, o número oficial de mortos pelo lado dos constitucionalistas foi próximo a 700 (contando os restos mortais no Obelisco Mausoléu). Sem dúvidas, este número passa a ser bem maior se incluirmos civis não contabilizados e soldados das tropas legalistas. Para se ter uma ideia da gravidade desses dados, a participação brasileira na libertação da Itália durante a Segunda Guerra Mundial fez menos vítimas fatais. Portanto, o Brasil assistiu nos anos 1930 a uma luta curta, ingrata e perdida – desde o seu começo.

Como o título deste texto sugere, há muito o que se lembrar e esquecer com relação ao movimento. Quando, em 17 de abril deste ano, acompanhava na TV o espetáculo circense em que se transformou a votação da Câmara Federal sobre o afastamento da presidente Dilma, percebi como o discurso raivoso, reacionário e conservador ainda insiste em tomar para si a memória de um acontecimento político complexo.

Me refiro à fala do deputado Eduardo Bolsonaro, (PSC-SP) filho de Jair Bolsonaro. Antes de proferir seu voto, o deputado esbravejou que tomava sua decisão “pelo povo de São Paulo nas ruas com o espírito dos revolucionários de 32...”

Sua expressão de rememorar a Guerra de 1932 transmite uma suposta seriedade no voto e comprometimento com a decisão. Pobres paulistas e brasileiros.... Enquanto a memória das batalhas e do derramamento de sangue servir para compor este tipo de fala, estaremos longe de encontrar a resposta mais sensata para, de fato, entender o porquê da valorização de 1932.

sexta-feira, 8 de julho de 2016

BRICS ainda é prioridade estratégica para o Brasil

Por Oliver Stuenkel* (El País, 1/7/2016)

Há quase dez anos, em 2007, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva era um dos palestrantes mais esperados no Fórum Econômico Mundial de Davos. Um enorme fluxo de investimentos transbordava um dos mercados emergentes mais empolgantes do mundo, e o chanceler Celso Amorim — que mais tarde seria considerado “o melhor ministro das relações exteriores do mundo” pela revista norte-americana Foreign Policy — estava começando a expandir a presença econômica e diplomática do Brasil ao redor do mundo.

Era a primeira vez que um país da América do Sul estabelecia uma rede tão ampla de embaixadas, a ponto de rivalizar com as de grandes potências. Um ano mais cedo, Amorim começara a se encontrar regularmente com seus pares na Rússia, Índia e China para discutir como os países BRIC poderiam fortalecer seus laços de cooperação e articular posições para lidar com desafios globais de forma conjunta. O grupo BRICS (que desde 2010 passou a incluir a África do Sul) se tornou rapidamente uma das inovações mais importantes da política mundial desde a virada do século, e foi capaz de chamar a atenção de potências tradicionais para a necessidade de adaptar estruturas globais a novas realidades.

De volta a 2016, o desempenho da economia brasileira é um dos piores do mundo, o país é comandado por um Governo interino envolto em escândalos e abalado por protestos, medidas de austeridade e uma espantosa investigação de esquemas de corrupção que ameaça as carreiras de grande parte da elite política do Brasil. Observadores internacionais consideram os BRICS como algo do passado, e alguns analistas brasileiros acreditam que o grupo já não deve ser prioridade para a política externa brasileira.

Eles não poderiam estar mais errados.

A sugestão de negligenciar o BRICS não leva em consideração as amplas vantagens estratégicas que a participação no grupo traz ao Brasil. Não tratá-lo como uma prioridade (por exemplo, se esquivando de ir à Cúpula anual) seria um erro cabal. Há três razões pelas quais o grupo é essencial para os interesses estratégicos do Brasil.

A primeira e mais importante é que a adesão aos BRICS providencia ao Brasil acesso direto e institucionalizado às lideranças políticas em Nova Déli e Pequim — um privilégio que o país não necessariamente teria de forma automática a cada ano. Apesar da desaceleração do crescimento econômico, espera-se que a China cresça em torno (ou até mais) de 6% em 2016 e 2017. O desempenho da Índia tem sido ainda melhor e espera-se que o país crescerá mais rápido do que a China.

O FMI prevê que a China e a Índia contribuirão com mais de 40% da expansão da economia global até 2020 – em comparação, os Estados Unidos contribuirão com apenas 10%. Atualmente, já se contabiliza mais riqueza privada na Ásia do que na Europa, e espera-se que a China, independentemente da atual desaceleração, supere os Estados Unidos como a maior economia do mundo.

O Brasil deve fazer muito mais para se adaptar a essa nova realidade, e não há dúvidas de que o futuro do país dependerá em grande parte da Ásia. O grupo BRICS importa neste contexto porque representa muito mais do que cúpulas presidenciais anuais. Na realidade, o grupo inclui mais de 15 reuniões a nível ministerial por ano, que auxiliam na promoção de cooperação intra-BRICS em áreas tão diversas como agricultura, educação, economia, ciência e tecnologia — sem mencionar o Novo Banco de Desenvolvimento, criado no âmbito do BRICS.

Em segundo lugar, a próxima reunião de Cúpula do BRICS na Índia em outubro é uma chance única para o presidente interino Michel Temer apresentar como ele está tentando superar as atuais adversidades do Brasil. Com a reputação do país em frangalhos, investidores asiáticos precisam ser reassegurados de que a investigação sobre corrupção em andamento é um passo na direção certa, que em última instância levará o Brasil a ser um país mais amigável para investidores. Temer, portanto, deveria ser acompanhado dos principais líderes da sua equipe econômica, os quais deveriam visitar investidores em vários centros financeiros asiáticos após o encontro da cúpula.

Finalmente, a adesão do Brasil ao grupo BRICS, junto com seu status de membro fundador no Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura (AIIB) e o Novo Banco de Desenvolvimento do BRICS, são sinais importantes de que a presença global estratégica do país estabelecida na primeira década do século 21 é permanente e não será afetada substancialmente pela crise atual. As instituições citadas acima são símbolos de um maior deslocamento em direção à Ásia, que impactará o Brasil mais do que muitos estão cientes.

Enquanto a China se tornou o maior parceiro comercial do Brasil em 2009, a elite brasileira na política, nos negócios, na mídia e na academia estão ainda lamentavelmente ignorantes em relação à China e à Ásia como um todo. Pouquíssimos diplomatas brasileiros falam chinês e jovens estudantes nas melhores universidades brasileiras ainda preferem passar seus semestres de intercâmbio em Barcelona ou Paris em vez de Pequim ou Xangai. Não há um único programa de dupla diplomação entre universidades brasileiras chinesas e, no lugar de enviar correspondentes para a China, muitos jornais brasileiros compram conteúdo relacionado à China de jornais estrangeiros.

Isso mostra que o Brasil está entre os grandes países menos preparados para o surgimento de uma ordem mundial centrada na Ásia. Considerando a crescente influência da China na América do Sul, esta falta de preparo cria sérios riscos estratégicos. Como a influência crescente da China na Venezuela afeta os interesses nacionais brasileiros? Como a região como um todo deveria responder ao papel da China? Nenhuma dessas questões tem sido abordada a sério. 

O fato de que alguns pensadores (particularmente entre a esquerda da América Latina) ainda veem o crescimento da influência chinesa na região como positiva simplesmente porque Pequim é tido como adversário de Washington mostra quão incipiente é o debate na região — como o exemplo africano mostra, as coisas são bem mais complexas do que isso.

Independentemente da orientação ideológica de seu Governo, qualquer país no mundo hoje deve construir o conhecimento necessário para se envolver significativamente com a Ásia (e especialmente a China), que será em breve o centro econômico do mundo. Com o grupo BRICS, o Brasil já tem a sorte de ser parte de um fórum institucionalizado que facilita esse processo.

É pouco provável que o Brasil se afastará do grupo de maneira abrupta. O chanceler sabe da importância do BRICS. No entanto, considerando que há algumas dúvidas em Pequim e Déli em relação ao compromisso do novo Governo com o grupo, José Serra faria bem em enviar um sinal inequívoco de que o Brasil está disposto a não só manter, mas a fortalecer a cooperação intra-BRICS.

* Oliver Stuenkel é professor-adjunto de Relações Internacionais da FGV/SP

A Otan ainda existe? Aliança parece ter esquecido o seu propósito

Por Jochen Bittner* (UOL/NY Times, 08/07/2016)

Tratados são feitos para transformar uma vontade em uma obrigação. Mas o que acontece quanto essa vontade muda? Os eleitores britânicos acabaram de dar um exemplo, apesar de mal informados, ao rejeitarem a ideia de que os tratados da União Europeia acrescentam valor ao seu país. Por mais desconfortável que possa ser, há motivo para se olhar de forma crítica para um acordo ainda mais antigo que une as nações do Ocidente: o tratado da Otan.

Assinado há 67 anos, o tratado encerra a promessa de que um ataque a um dos países membros da organização será considerado um ataque a todos. Essa cláusula de solidariedade, o Artigo 5º, foi escrita por políticos de outra geração, com experiências mais duras em uma ordem mundial mais simples. É claro, você nunca sabe até ser testado, mas vale a pena perguntar: o pensamento que mantém a Organização do Tratado do Atlântico Norte já está morto?

Sim, era apenas um exercício. Mas quando a Polônia pediu no mês passado aos seus aliados da Otan para ajudar a rechaçar invasores hipotéticos que penetraram no seu país pelo leste, a Alemanha ficou irritada. O exercício, chamado Anakonda, com 25 mil tropas de mais de 20 países, o maior desde o final da Guerra Fria, visava ser uma mensagem para Moscou, uma demonstração de força antes da cúpula da aliança nesta semana, em Varsóvia. Berlim enviou uma mensagem própria para a Polônia, contribuindo com um total de 400 soldados, nenhum integrante de tropas de combate.

Além da participação modesta da Alemanha, o ministro das Relações Exteriores alemão, Frank-Walter Steinmeier, atacou o mais recente exercício da Otan no Leste Europeu como "brandir sabres e dar gritos de guerra barulhentos". A aliança, disse Steinmeier, faria bem em "não proporcionar quaisquer desculpas para um novo velho confronto".

Era uma lógica que alguém esperaria ouvir do ministro das Relações Exteriores russo, não do alemão. Steinmeier também disse que a Alemanha não estava se esquivando de sua responsabilidade e de que ninguém poderia considerar o posicionamento previsto de quatro batalhões adicionais na Polônia, Estônia, Letônia e Lituânia como uma ameaça à Rússia. Mas mesmo assim, sua declaração foi, na melhor das hipóteses, ambivalente.

A ambivalência pode causar grandes estragos a uma aliança cujo valor de dissuasão se apoia exclusivamente em sua credibilidade. A Alemanha não é o único país europeu a tornar indistinta a linha entre dissuasão e fomentação de guerra. A França, me dizem fontes na Otan, oficialmente não queria chamar o Anakonda de um exercício de guerra da Otan, por medo de desagradar o governo russo, como se o Kremlin não tivesse expandido enormemente o orçamento militar russo nos últimos 15 anos, mesmo sem nenhuma provocação externa.

Se exercícios podem criar rachas na aliança ocidental, o presidente russo não precisa de muita imaginação para perceber como submeter a Otan a um teste definitivo: empregar uma tática híbrida de guerra para mergulhar os Estados Unidos e os europeus em dúvida sobre se uma ação militar é necessária e que diplomacia é possível. O presidente Vladimir Putin poderia, por exemplo, instigar sentimentos separatistas entre os cidadãos de etnia russa na Lituânia e fornecer armas para os mais exaltados entre eles. Então ele só precisaria se reclinar e assistir a aliança militar mais poderosa na história se desintegrar enquanto briga em torno de como reagir.

É fácil imaginar como o cenário se desdobraria: a Polônia e os países bálticos pediriam por uma resposta forte para prevenir outra anexação, como a da Crimeia. Alemães e franceses pediriam por negociações com Moscou, duvidando que o Artigo 5º seja invocado. Gregos, italianos e espanhóis deixariam claro que suas economias já sofreram demais devido às sanções contra Rússia após a anexação da Crimeia. E grande parte do público por toda a Europa, manipulado pela propaganda russa, se perguntaria se os russos não estão certos em tentar apoiar seus conterrâneos nos países bálticos. Afinal, não foram os imperialistas Estados Unidos que provocaram isso tudo, alguns argumentariam, assim como agentes de Washington estiveram por trás do golpe em Kiev?

Os autores do tratado da Otan, em 1949, podiam contar com algo que alguém poderia chamar de patriotismo ocidental. Ao menos esse sentimento existia na esfera do governo. Mas hoje ele deu lugar ao relativismo e falta de confiança. O que antes eram princípios de política externa sólidos agora são moeda de troca em campanhas eleitorais, tanto pela esquerda quanto pela direita.

O Partido Social-Democrata de Steinmeier está buscando um novo parceiro de coalizão e tentando se abrir aos eleitores que consideram a Otan como, no mínimo, uma coagressora no tabuleiro de xadrez da Eurásia. E Donald Trump ataca a Otan para inflamar os sentimentos de injustiça nos Estados Unidos, acusando os aliados europeus de "explorarem" o contribuinte americano. Barack Obama usou palavras diferentes para dizer a mesma coisa. Ele chamou os europeus de "caronistas" não dispostos a gastar uma "parcela justa" em defesa, uma alegação que certamente não está errada.

A Otan tenta impedir esse declínio empunhando seu maior sabre. Fontes dentro da aliança dizem que a dissuasão nuclear é uma prioridade. Um artigo publicado dias antes da cúpula em Varsóvia na revista "Otan Review" parece articular a nova posição. O que é necessário agora, diz o artigo, é "enfatizar a natureza dissuasiva e de último recurso das armas nucleares". O quartel-general da Otan quer transformar os países bálticos no que Berlim Ocidental já foi: um fio de disparo nuclear. Mas o governo alemão pode rejeitar isso como uma provocação ainda maior a Moscou, e o que visaria fortalecer a determinação poderia criar ainda mais rachas na aliança.

A Otan sempre foi um casamento de conveniência, mas não sem nenhum afeto. Mas com todas essas dúvidas partindo a aliança (sua coesão política, suas cadeias de causa e efeito e a disputas em torno dos custos de segurança), é difícil imaginar que a Europa e os Estados Unidos elaborariam, caso tivessem a chance em 2016, outro Artigo 5º.

*Jochen Bittner é um editor político do semanário "Die Zeit"