domingo, 22 de outubro de 2017

Fim do 'globalismo', como quer Trump, ameaça a paz mundial

Por Max Boot* (Foreign Policy/Folha de SP, 23/10/2017)

O epíteto que define a Era Trump é "globalista". Esse é o termo de insulto para todos os fins que o presidente e seus mais fervorosos apoiadores gritam a qualquer pessoa que discorde de sua agenda populista. Durante a campanha no ano passado, Donald Trumptuitou que a opção era "entre o americanismo" e o "globalismo corrupto" de Hillary Clinton.

Seu antigo estrategista Steve Bannon, que pensa que "os globalistas estriparam a classe trabalhadora americana e criaram uma classe média na Ásia", teria chamado o assessor econômico Gary Cohn, um ex-presidente do Goldman Sachs, de "Gary Globalista".

Um assessor do Conselho de Segurança Nacional foi demitido pelo assessor de Segurança Nacional, H.R. McMaster, por distribuir um memorando afirmando que Trump é ameaçado por uma coalizão infame de "globalistas", juntamente com "atores do Estado profundo", "banqueiros", "islamistas" e "republicanos do establishment" (seria divertido imaginar um encontro de todos esses inimigos de Trump).

Está na hora de alguém se manifestar a favor do "globalismo", termo que só é insultante se você não ponderar as alternativas. Claro, o globalismo tem seus lados negativos. Mas, perguntamo-nos, o que é o oposto de globalismo? Provincianismo? Tribalismo? Nacionalismo? Nenhum deles é interessante.

Provincianismo, segundo o dicionário, é "o modo de vida ou de pensamento característico das regiões fora da capital de um país, especialmente quando considerado não sofisticado ou de mentalidade estreita". Essa é uma descrição bastante boa de Trump e seus seguidores, mas supostamente uma que eles não adotariam —sem dúvida eles consideram essa definição emblemática do desprezo que as elites cosmopolitas lhes dedicam.

Tribalismo? Foi isso o que nos deu os genocídios em Ruanda e na antiga Iugoslávia, e que hoje é responsável pelo massacre na Síria e no Iêmen e pela limpeza étnica dos rohingya em Mianmar. Está até levando à violência na Espanha, onde a polícia nacional quebrou cabeças para impedir um referendo sobre a independência da Catalunha. E, como comenta Andrew Sullivan em um brilhante ensaio na revista "New York", o tribalismo está envenenando o clima político nos EUA.

Nacionalismo? É a ideologia defendida no passado pelos militaristas alemães e japoneses e hoje por ditadores em Moscou, Pequim, Caracas, Harare, Ancara e Pyongyang, entre outros lugares. Uma forma diluída de nacionalismo pode ser benigna, mas a variedade à toda prova foi responsável por pelo menos tantas atrocidades quanto o tribalismo, ideologia da qual muitas vezes não se distingue.

Que horrores, em comparação, nos deu o globalismo? Se você escutar as arengas dos apoiadores mais loucos de Trump, poderia imaginar que a ONU, o Conselho de Relações Exteriores e a Comissão Trilateral despacharam hordas de patrulheiros em helicópteros pretos para reprimir nossas liberdades, enquanto George Soros, os Rothschilds e outros "banqueiros internacionais", que por acaso são judeus, destroem nossa economia.

Existe uma longa tradição de promotores de conspirações à margem da extrema-direita, remontando à paranoia do século 19 sobre os maçons, a Igreja Católica, a rainha da Inglaterra e —um tema constante— banqueiros judeus (infelizmente, o antissemitismo nunca sai de moda).

Desnecessário dizer que essas teorias conspiratórias são malucas. Eu trabalhei no Conselho de Relações Exteriores durante 15 anos e nunca vi um helicóptero preto pousar na cobertura. Nunca sequer presenciei uma conversa sobre destruir a soberania americana. As pessoas que acreditam nessas coisas provavelmente também acreditam que os alienígenas estão se comunicando com elas por meio de suas obturações dentárias.

Raciocinar com elas é impossível. Mas também há formas mais brandas de preconceito antiglobalista, e para os que detêm tais opiniões vale a pena citar como o registro real da globalização foi benéfico.

Em séculos passados, é verdade, a globalização muitas vezes foi conquistada à ponta de sabre ou de arma; impérios como o mongol, o otomano, o espanhol, o britânico e o francês puseram povos e culturas díspares em estreito contato ao disseminar seu próprio domínio imperial. Mas desde o século 19 o meio predominante de globalização foi o livre comércio e a livre migração —o movimento voluntário de bens e pessoas.

Houve uma grande onda de globalização anterior a 1914, quando milhões de pessoas migraram do Velho Mundo para o Novo, e bens e investimentos fluíram ao redor do globo. Segundo uma estimativa, os ativos estrangeiros em 1914 representaram uma porcentagem do PIB mundial maior do que em qualquer outro momento até 1985. O resultado foi uma vasta melhora no padrão de vida desfrutado por homens e mulheres comuns no mundo ocidental.

Soando muito como um precursor de Jeff Bezos, John Maynard Keynes escreveu que em 1914 "o morador de Londres podia encomendar por telefone, tomando seu chá matinal na cama, os vários produtos da Terra toda, na quantidade que considerasse adequada, e razoavelmente esperar a entrega à sua porta".

Essa também foi uma era em que os ancestrais de muitos americanos de hoje —incluindo Donald Trump e Steve Bannon– chegaram a nossas plagas: a família Trump veio da Alemanha e a de Bannon, da Irlanda. Naquele tempo, as fronteiras eram tão porosas que não havia necessidade de passaportes, vistos ou ficha corrida.

Se as fronteiras fossem rigidamente policiadas na época como são hoje, o "refugo miserável" da Europa jamais teria dado em nossa "praia pujante" e não seríamos a nação que somos hoje.

A época áurea do globalismo parece ainda melhor comparada com o que veio depois. A Primeira Guerra Mundial, seguida do isolacionismo, protecionismo e iliberalismo no período entre guerras, destruiu aquela era dourada do fim do século e trouxe um mundo de horrores inimagináveis. Só depois da morte de 100 milhões de pessoas (o número combinado das duas guerras mundiais) uma nova era de globalismo se ergueu das ruínas.

Os EUA assumiram a liderança para produzi-la, criando instituições como o Acordo Geral de Tarifas e Comércio (Gatt, precursor da Organização Mundial do Comércio) para reduzir as barreiras comerciais, e instituições como a Organização das Nações Unidas (ONU) e a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) para manter a paz coletiva.

Com o incentivo americano, os europeus decidiram passar a cooperar em vez de lutar, levando à criação, sucessivamente, da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, a Comunidade Econômica Europeia e depois, em 1993, a União Europeia.

Grandes países asiáticos como Japão, Coreia do Sul e China protegeram mais enciumadamente sua soberania, mas também se integraram à economia mundial em vez de seguir políticas autárquicas como haviam feito antes.

O resultado dessas tendências foi uma diminuição sem precedentes nas guerras e um aumento da geração de riqueza. Steven Pinker, de Harvard, e Joshua Goldstein, da Universidade Americana, relatam que entre 1945 e 2011 o índice de mortalidade global caiu de 22 por 100 mil pessoas para 0,3, antes de subir para 1,4 em 2014 em consequência da guerra civil na Síria, a disseminação do Estado Islâmico e outros conflitos.

Mas mesmo esse índice elevado está muito abaixo do que a humanidade teve de suportar durante a maior parte de sua história sangrenta anterior à era pós-1945, quando guerras de agressão foram contidas pela lei internacional apoiada pelo poderio militar ocidental.

Enquanto isso, Max Roser e Esteban Ortiz-Ospina, de Oxford, calculam que a porcentagem da população global que vive na extrema pobreza diminuiu de 84% em 1820 para 16% em 2010 —e continua caindo (eles calcularam que teria caído abaixo de 10% em 2015.).

Isso não é total ou principalmente consequência da globalização —avanços tecnológicos como a Revolução Industrial e a Revolução Verde merecem a maior parte do crédito—, mas ela teve um papel importante em disseminar inovações aos que precisam delas. O mundo seria ainda mais rico hoje se não fosse pelo período sombrio entre 1914 e 1945, quando a globalização entrou em retrocesso.

Certamente, o globalismo pode ter efeitos colaterais negativos —pode ser explorado por criminosos e terroristas e pode ser perturbador para as comunidades tradicionais, sejam aldeias na África ou cidades industriais nos Apalaches. É legítimo criar programas de bem-estar social e educação para melhorar o impacto dessas mudanças nos trabalhadores que correm o risco de ser deixados para trás.

Mas o globalismo não é uma trama nefasta para destruir a soberania, como parecem imaginar os Trumpkins. A professora da Universidade de Londres Or Rosenboim, que escreveu um livro sobre o assunto, comenta que "o globalismo há muito permitiu um lugar para o nacionalismo e a soberania nacional enquanto sugeria que algumas necessidades e práticas humanas transcendem as fronteiras nacionais".

Questões transnacionais incluem a promoção do comércio e a batalha contra as violações dos direitos humanos, doenças, pobreza, terrorismo e cartéis do crime. O fato de que há mais cooperação internacional do que costumava haver em todas essas áreas não é, como imagina Trump, um complô contra a América, mas sim um complô da América para aumentar seu bem-estar —e o de seus aliados e parceiros comerciais.

Enquanto o globalismo pode ser perturbador e difícil de lidar em curto prazo —ele destrói alguns empregos e cria outros—, seus efeitos em longo prazo são enormemente benéficos.

A principal ameaça que enfrentamos hoje é que o globalismo pode mais uma vez entrar em retrocesso como fez em 1914, porque os EUA —durante tantas décadas seu principal defensor— podem agora, sob Trump, tornar-se um obstáculo em vez de uma ajuda ao comércio e à cooperação transnacionais.

*Tradução: Luis Roberto Mendes Gonçalves

O rei e a Cataluña: ecos do passado

Por Murillo Victorazzo

De sua tribuna, um rei vem a público defender o cumprimento da lei para a manutenção da ordem - no caso específico a integridade territorial. Sobre a decorrente violência estatal contra alguns de seu súditos, nenhuma palavra dada, deixando no ar a sensação de que a considera um secundário, inevitável e justificável efeito colateral.

Os agredidos pertencem a uma região de forte identidade cultural própria, com histórico de lutas - armadas ou não - contra anexação ou restrição de autonomia impostas por governos autoritários. Dias depois, líderes separatistas são presos e o governo central destitui o governo e parlamento local.

 As cenas nos remetem aos livros e filmes históricos sobre a época dos monarcas absolutistas, que, ungidos ao trono segundo o Direito Divino (de Deus vinha seu poder e apenas a Ele tinha que explicar) e desejosos de manter seus reino e poder, mostravam-se insensíveis a vozes populares. Mas, guardadas as enormes proporções, podem ser vistas na Catalunha espanhola ultimamente.

Há três anos, Felipe VI herdou a Coroa espanhola de seu pai, Juan Carlos I, com a tarefa de não deixar fomentar o republicanismo no país. Em um cenário de alta recessão e desemprego, as notícias de gastos abusivos e corrupção envolvendo a família real balançavam a credibilidade da monarquia.

Enquanto jovens iam às ruas protestar contra o sistema econômico e político, no chamado movimento dos "Indignados", que colocou em xeque o bipartidarismo tradicional espanhol, Juan Carlos viajava para a África a fim de participar do seu hobby predileto, a supérflua e pouco razoável caça a elefantes.

Sua filha, a infanta Cristina, entrava para a História como a primeira descendente da Coroa a depor na presença de um juiz, no rastro do escândalo protagonizado por seu marido, Iñakli Urdangarin. Acusava-se o genro real de desviar dinheiro público para a fundação presidida por ele. Extratos bancários mostravam que parte do capital da instituição sem fins lucrativos havia sido utilizado para pagar as volumosas despesas pessoais do casal, como, por exemplo, sapatos de 900 euros.

No dia do depoimento de Crisitina, centenas de manifestantes antimonarquia se colocaram à frente do tribunal. Um deles dava o tom: “A nossa monarquia é uma instituição arcaica, medieval e está totalmente protegida por uma máfia. É a pedra angular da corrupção que há neste país”.

Já debilitado pela idade, o monarca preferiu abdicar. Um rei jovem passaria a imagem de uma Coroa oxigenada, pensou resumidamente Don Juan, ele próprio um monarca respeitado dentro e fora de suas fronteiras por seu legado democrático. Seu protagonismo no sepultamento do entulho fascista de seu antecessor, El Generalísimo Francisco Franco é indiscutível.

Neto de Afonso VIII, cuja abdicação significou o início da Segunda República, Juan Carlos subiu ao trono em 1975, após a morte de Franco, que governou com mãos de ferro a Espanha por quase 40 anos. O período franquista, consolidado após uma das mais sangrentas guerras civis do século XX, teve como uma de suas marcas o sufocamento cultural, político e administrativo das regiões autônomas do país - o catalão, por exemplo, foi proibido de ser ensinado e praticado em locais públicos na Catalunha.

Prestes a morrer, na beira dos 80 anos, ao ter que escolher seu sucessor, Franco imaginara que o retorno à monarquia seria a garantia da manutenção dos pilares católicos ultraconservadores de seu regime. Além do que, em um país como a Espanha, de histórico imperial mas pouca coesão interna, traço expresso no separatismo latente de algumas de suas regiões, ninguém melhor do que um rei para manter o status quo unificador.

Mas, dono do cetro, o novo rei monarca não seguiu à risca o imaginado pelo ditador. Convocou eleições diretas para a elaboração de uma nova Constituição e renunciou através dela a muito de seus poderes. A nova Carta reservava-lhe, seguindo as monarquias modernas, apenas a Chefia de Estado. Seu papel seria o de representante da nação perante o exterior, chefe supremo das Forças Armadas e, principalmente, fiador da estabilidade institucional do país. Devolvia ainda autonomia  a região catalã.

A Espanha, a partir de então, tinha um Parlamento independente e, na Chefia de Governo, um presidente de gobierno  (como lá se chama o primeiro-ministro), designado pela maioria parlamentar originária da vontade popular. O pulso forte de Juan Carlos contra a tentativa de golpe em 1981, quando militares franquistas insatisfeitos invadiram armados o Parlamento, serviria para carimbar definitivamente nele a imagem de democrata e unificador do Espanha, que, entre gabinetes socialistas e conservadores, modernizaria sua economia nas décadas finais do século XX.

A crescente contestação a ele, portanto, alertava para a considerável perda de prestígio da Coroa. Não por acaso, assim que se anunciou sua abdicação, milhares de pessoas em diferentes cidades foram às ruas para festejar e logo pedir um referendo sobre o fim da monarquia.  Na Catalunha, onde a crise já servira para estimular a convocação de  uma consulta popular separatista, posteriormente barrada por Madrid, a mobilização ganhou dimensão maior.

Nada surpreendente para uma região cuja torcida (pelo menos, grande parte dela) de seu principal time faz há anos coro pela secessão aos exatos 17 minutos e 14 segundos de toda partida jogada em seu estádio. Uma referência ao ano de 1714, quando um levante catalão foi sufocado pelas tropas de Felipe V - notem a coincidência irônica do nome - e Catalunha, definitivamente anexada ao Reino da Espanha, deixando de ter direito a governo próprio.

O motivo da empolgação parecia óbvio. A queda da monarquia sempre será terreno fértil para separatistas. Uma república recém-criada traz consigo incertezas e disputas políticas, um vácuo de poder deixado pelo fim de um dos poucos traços positivos de uma forma de governo que ignora a chancela popular na escolha da chefia de Estado em pleno século XXI: o perfil unificador do rei, em muito oriundo de sua neutralidade acerca dessas disputas.

Símbolo permanente do Estado - e não de governos - o rei está imune e acima dos cotidianos embates parlamentares e decisões governamentais, sendo assim visto com legitimidade para falar em nome de toda nação.

É por ser o símbolo da integridade do território nacional que é compreensível o tom elevado de Felipe VI contra o referendo do mês passado, que, embora com participação de pouco mais de 40% dos possíveis eleitores, decidiu com 90% dos votos pela emancipação.

No entanto, pela imagem de isenção legitimadora, esperava-se no discurso real um tom conciliatório, em busca do diálogo, e o rechaço à repressão policial contra quem apenas queria praticar o direito de votar, mesmo o Tribunal Constitucional considerando a votação ilegal. Bom senso real pacifica mais do que qualquer leitura rígida sobre parágrafos constitucionais.

A crítica a Felipe não é um posicionamento a favor dos separatistas nem concordância com todos os passos de Carles Puigdemont, presidente catalão e líder do grupo. Há inúmeros argumentos a favor e contra o movimento. Sinais econômicos, por exemplo, já evidenciam seu risco.

Porém, como sintetizou um catalão indignado ao Globo, "um rei representa um povo, a todos, e não apenas uma parte". A frase deveria ser ouvida não apenas pelo rei, mas por ambos os lados.  A independência está longe de ser unanimidade na Catalunha. Muito pelo contrário, todas as pesquisas a mostram dividida.

Entende-se também o rápido posicionamento da União Europeia contra o referendo. Faz todo sentido o presidente francês, Emanuel Macron, ser solidário ao primeiro-ministro espanhol, Mariano Rajoy. Tudo o que Macron não deseja é instabilidade em suas fronteiras e no bloco pelo qual tanto luta para fortalecer. A vitória do "Sim" periga abrir a Caixa de Pandora dos movimentos similares existentes em países da região. Mas, ressalte-se, mesmo em Bruxelas vozes se levantaram contra os excessos policiais e a favor do diálogo.

Com sua abdicação, Juan Carlos voltou a ganhar pontos entre os espanhóis. Felipe VI, com sua jovialidade, e notícias como a condenação de Urdangarin, que deu à família real ares de igualdade perante a população ao mostrar que a Justiça é para todos, abafaram as ainda minoritárias porém barulhentas vozes republicanas na Espanha.

Contudo, a resposta virulenta dada por Rajoy e avalizada por Felipe, se não vão no sentido oposto para todo o país, reaviva a memória do autoritarismo tão dolorosa para os catalães, capaz de indignar mesmo os contrários à independência. Se Madrid e Barcelona esticam perigosamente as cordas, reforçar a imagem histórica de oprimidos tem potencial aglutinador - e bem pior, é fermento para radicalizações com armas e terror.

De Rajoy e seu partido, pode-se não esperar muito. Mas de Felipe, com poderes limitados mas grande força simbólica e referendadora, espera-se, em suas manifestações, prudência, sensibilidade política. Caso contrário, arrisca-se a entrar no imaginário catalão da mesma forma que seu xará tão longinquamente antecessor, com as consequências que dele podem vir.

Buen sentido, Majestad, aunque puede ser una quimera.

terça-feira, 17 de outubro de 2017

E a Somália, coleguinhas?

Por Murillo Victorazzo

Com mais de 300 mortos  após explosão de dois carros-bombas , o  ataque terrorista do último domingo na Somália foi provavelmente o maior desde o 11 de setembro. A autoria ainda é desconhecida, mas tudo indica ser o grupo Al Shabab, uma espécie braço auxiliar da Al Queda, que luta contra o frágil governo central, de cunho islâmico moderado.

No Brasil, a tragédia não mereceu manchete de nenhum portal ou jornal. No máximo, chamada com foto. Dentro dos diários, nada mais do que uma página reservada - e olhe lá. O Globo, por exemplo, preferiu dar a matéria principal da editoria Internacional às eleições na Venezuela. Nos sites desta tarde, nenhum destaque para os desdobramentos do caso. Telejornais noticiam através de breves notas cobertas.

Nada parecido com aquelas intermináveis horas de especialistas analisando e entradas ao vivo vistas nos atentados na Europa e Estados Unidos. Para lembrar, o recente massacre em Las Vegas  de razões ainda desconhecidas mas descartado como terrorismo fundamentalista islâmico, resultou na morte de quase 60 pessoas. O último atentado em Londres,  em junho, através de faca e atropelamentos, deixou oito vítimas fatais.

A diferença de tratamento incomoda. Não se trata de fazer a tenebrosa competição de tragédias, comum nas redes sociais, apontando o dedo para quem não colocou bandeira da Somália em seu perfil ou hastag "força, Somália". Trata-se de olhar para o papel da imprensa, ela que, queiram ou não, é protagonista no dimensionamento dos debates e comoções.

Embora possam ser reprováveis, é explicável, por razões sócio-culturais e tecnológicas, que tragédias ocorridas no Ocidente ganhem mais destaque. Coberturas instantâneas e extensas, com material próprio, são dificultadas quando a emissora não tem correspondente próximo à região e o local não dá condições de segurança e infraestrutura para o trabalho da imprensa. E, provavelmente acima de tudo, pesa a autoimagem do brasileiro em relação a Europa e Estados Unidos.

Apesar deles não nos colocarem no hall dos ocidentais, no sentido político econômico e cultural do termo, o senso comum nacional é o contrário: principalmente nossa elite econômica e cultural, com exceções, assim se vê.

Mais do que o fato indiscutível de serem o centro político do mundo, parece óbvio que esta autoimagem se reflita na pauta dos grandes meios de comunicação. E aqui não vai uma crítica, apenas uma constatação. Deixem para os sociólogos avaliarem autoimagens.

Seria, portanto, utópico esperar igualdade de destaque e reação afetiva - mesmo que vidas humanas aqui não valham mais do que lá. O que nos é próximo ( não em termos geográficos necessariamente) tende a nos chocar mais. Quantos sabem onde fica, costuma ou deseja conhecer a Somália? Que país é esse?

Mas tudo tem limites. Não equiparar é muito diferente de relegar desproporcionalmente fatos cruciais e com impactos iguais ou até maiores para a compreensão do planeta . Mais de 300 vidas civis perdidas ao mesmo tempo sem razão alguma, apenas para causar terror, sempre será motivo para "parar as máquinas" seja onde for. Se não por solidariedade a um país já tão instável e pobre, por bom jornalismo.

E bom jornalismo é ter talento para superar dificuldades operacionais e saber, na dosagem certa, como mostrar os fatos, além de tudo a fim de evitar a difusão de conclusões reducionistas.

O atentado na Somália faz parte do intrincado quebra-cabeças chamado Oriente Médio, com as conhecidas implicações para o mundo - e teria o didático papel de realçar que o terrorismo islâmico não é um mero "choque de civilizações", ou uma luta entre religiões. Ainda que esses facínoras persigam o cristianismo, perseguem tanto ou mais o muçulmano que não lê o Alcorão como eles.

Das duas uma: ou há um exagero tupiniquim na cobertura do que acontece no chamado Primeiro Mundo ou estamos minimizando exageradamente o que se passa nos demais lugares. Um desserviço do jornalismo brasileiro ao mundo e ao ser humano.

segunda-feira, 16 de outubro de 2017

Huck e o faro do DEM

Por José Roberto de Toledo (Estadão, 16/10/2017)

O abandono da pré-candidatura presidencial de João Doria pelo DEM é relevante não por de onde o partido está saindo mas por onde ele está entrando. Segundo a repórter Andreza Matais, “o foco do DEM se voltou para Luciano Huck”. O DEM não é exatamente um campeão das urnas, mas é o melhor perdigueiro político que Brasília já criou. Sente o cheiro de poder e é capaz de apontar sua direção bem antes do resto da matilha.

Se o PMDB está no governo sem grandes interrupções desde o fim da ditadura militar, o DEM permanece lá desde a própria. Só não aderiu às raras administrações para as quais não foi convidado. O ex-PFL é mais resiliente do que qualquer outro partido. Mesmo sem muito voto, emplacou dois vices que sentaram na cadeira presidencial: Marco Maciel e Rodrigo Maia. Sem contar Sarney, que nunca foi do PFL no papel, mas sempre foi da família.

Nada mal para uma defecção do lado perdedor. Seu segredo é farejar as mudanças políticas antes que ocorram. Foi assim em 1985 quando, diante da inexorável derrota de Maluf no colégio eleitoral, seus pais fundadores aderiram ao oposicionista Tancredo Neves e desertaram as fileiras do PDS. Nascia o PFL.

Repetiriam a dose em 1989, abandonando o candidato do partido, Aureliano Chaves, durante a campanha presidencial. Primeiro, tentaram teleguiar Silvio Santos rumo à Presidência, inseminando-o no nanico PMB. O TSE abateu a manobra em pleno ar, e os pefelistas acabaram aderindo a Fernando Collor. Foram recompensados com ministérios – como já haviam sido por Sarney e viriam a ser por Itamar, FHC e, mais recentemente, Temer.

Conhecido pela ironia e franqueza, Claudio Lembo gosta de referir-se aos filiados de seu partido como “perseguidos pelo poder”. A definição não poderia ser mais verdadeira, desde que se compreenda o real sentido da perseguição, obviamente.

Por isso, se os resilientes ex-pefelistas fazem posição de pointer inglês com o focinho voltado para Luciano Huck, é bom prestar atenção. O que levaria o experiente DEM a apostar – de novo – num apresentador de TV sem nenhuma experiência política?

Não são poucos os motivos. O primeiro é o vácuo que se forma no campo mais popular do eleitorado se Lula não puder se candidatar. Cruzamentos de pesquisas de intenção de voto indicam que um terço dos eleitores do ex-presidente votam apenas em Lula (e, imagina-se, em quem ele endossar). Ou seja, dois terços (20% ou mais do eleitorado total) estariam sem eira e com pouca beira caso o nome do petista não apareça na urna em 2018.

Quem teria mais facilidade (ou menos dificuldade) para conquistar esse eleitor pobre e desassistido? Um apresentador de TV ultraconhecido e cujo programa consiste, basicamente, em dar assistência a pessoas pobres, ou um ex-apresentador de TV nem tão conhecido assim cuja frase, copiada, é “você está demitido”?

O fato de já ter muito recall dispensa Huck de se expor ao fogo (inimigo e amigo) de uma pré-campanha. Ele pode deixar para anunciar sua eventual candidatura aos 45 minutos do 2º tempo, ou seja, o dia 7 de abril de 2018. Essa é a data limite para quem for participar das eleições de outubro descer do umbuzeiro.

Outra vantagem de Huck é que ele é autofinanciável. Além de ter um patrimônio capaz de bancar parte da própria campanha, tem amigos com bolsos mais fundos do que a maioria.

Quais os pontos fracos do apresentador? O principal deles é não ser levado a sério como presidenciável. Seu paraquedas é vistoso demais. Vale lembrar, porém, que a inexperiência é o único defeito que não piora com o tempo. Huck é um dos patronos do “fundo cívico” eleitoral. Está sentindo o vento. O DEM fariscou.