domingo, 30 de janeiro de 2022

Olavo de Carvalho resolveu ficar no lado burro da cultura ocidental

 Por Celso Rocha de Barros ( Folha de São Paulo, 31/01/2022)

Em um dado momento da vida, Olavo de Carvalho resolveu ir morar no lado burro da cultura ocidental. Tornou-se politicamente influente quando o Brasil se tornou seu vizinho. Se Olavo de Carvalho tivesse morrido, digamos, em 2001, talvez tivesse entrado para a história como um agitador cultural de certo interesse. Já tinha defeitos seríssimos, mas formou alguns alunos bons, que depois abandonaram seu grupo. Divulgava autores conservadores que podem ter sido importantes para os jovens conservadores dos anos 90. Escrevia bem.

No começo dos anos 2000, Lula foi eleito presidente e Olavo foi morar nos Estados Unidos, em circunstâncias estranhíssimas. A partir daí, sua inserção no debate brasileiro muda. Conforme o PT se fortalece, aumenta a demanda por ideias que descrevessem o PT como um participante ilegítimo da democracia brasileira (um braço do Foro de São Paulo, por exemplo). E Olavo adquire o repertório do conspiracionismo reacionário americano, que exacerba seus piores defeitos.

Como divulgador dos influencers da extrema direita americana, conquistou uma audiência razoável na internet brasileira. Se tivesse ficado só nisso, já teria causado algum dano ao nosso debate público. Mas, sejamos honestos, os alunos do "Curso Online de Filosofia" já eram burros antes da matrícula.

Olavo só veio para a primeira divisão em 2018, quando o Brasil caiu para a última. O bolsonarismo adotou o olavismo como ideologia oficial do movimento. Era importante ter uma ideologia oficial, fosse qual fosse. Bolsonaro queria ter um movimento seu, pessoal, que o ajudasse a não ser controlado pelos militares que o cercavam. O sectarismo de Olavo foi instrumental para isolar os bolsonaristas em uma bolha relativamente isolada da discussão (e das denúncias) da grande mídia.

No meio bolsonarista, Olavo floresceu: nunca houve a menor possibilidade de alguém no bolsonarismo saber que ele estava errado sobre Kant, Marx ou Rorty. O atual ministro da Cultura estava na novela "Mutantes", da TV Record. Se Olavo lhe dissesse que Heidegger era uma das Paquitas, o ministro acreditaria.

E foi assim que um sujeito em franca decadência intelectual, que achava Isaac Newton burro e não sabia se a terra era plana ou esférica, indicou, não um, mas dois ministros da Educação brasileiros, além do pior chanceler do mundo. As ideias dos extremistas americanos que Olavo trouxe para o Brasil tiveram evidente influência na atitude negacionista do bolsonarismo diante da pandemia. Olavo defendia um golpe militar abertamente desde o impeachment de Dilma.

E agora morreu Olavo, depois de anos ensinando a direita brasileira a desconfiar da democracia e da ciência. O que devemos nos perguntar é: como o Brasil decaiu a ponto de Olavo ter se tornado mais influente à medida que se deixava degenerar intelectual e moralmente? Por que não houve uma resposta de direita racional à crise do petismo? A direita brasileira é poderosa demais para ter que se preocupar com bons argumentos? Havia defeitos nas ideias de esquerda que facilitaram a proliferação de respostas tão ruins? Em que momento nos tornamos incapazes de falar sobre nossos problemas e começamos a delirar?

E, sobretudo: como se sai desse sonambulismo?

quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

As "Terras de Sangue" e a "civilização ocidental" de Bolsonaro: as contradições vêm à tona

 Por Murillo Victorazzo

"Terras de Sangue" é como o historiador norte-americano Timothy Snyder denomina, em seu livro com o mesmo título, o largo espaço territorial no leste europeu onde se cruzaram as ambições de Hítler e Stálin. Entre a Polônia e o oeste da Rússia, passando por Ucrânia, Bielorrússia e países bálticos, 14 milhões de pessoas foram assassinadas entre 1932 e 1945 tanto pelo III Reich quanto pelo Politburo soviético. 

Mortes não resultantes de confrontos de guerra, mas de políticas de extermínio em massa, sejam pela rapidez de uma execução à bala, o sufoco progressivo da intoxicação em câmaras de gás ou a lenta agonia diária da privação intencional de alimentos. Grande parte mulheres, crianças e idosos. Camponeses, elites intelectuais e culturais, prisioneiros de guerra, famílias em geral, cujos únicos "crimes" eram ser o que eram. Culpados por suas identidades nacionais, classistas ou religiosas, na intersecção dos interesses geopolíticos dos dois regimes mais sanguinários que o século XX presenciou. 

Em termos proporcionais, nenhum país europeu sentiu como a Bielorrússia as consequências da II Guerra Mundial. Ao final do conflito, metade de sua população havia sido morta ou deportada. No entanto, foi sua vizinha Ucrânia quem, além de vítima do expansionismo racista de Berlim, destacou-se como alvo do totalitarismo em nome do "proletariado" de Moscou. Carnificina poucas vezes vistas na humanidade, em espaço de tempo de pouco mais que uma década.

É essa Ucrânia que hoje se vê novamente como palco de sério conflito por hora diplomático envolvendo Rússia e Ocidente, cujos reflexos poderão ser sentido até em Brasília. “O risco de uma guerra na área da OSCE (Organização para a Segurança e Cooperação na Europa) é hoje maior do que nos últimos 30 últimos anos”, alertou , semana passada, o chanceler polonês, Zbigniew Rau.

Foi, por exemplo, em Kiev, em setembro de 1941, que Hitler, na procura pelo "fortalecimento da germanidade", lançou pela primeira  vez uma força tarefa da SS com a especifica missão de matar todos os judeus nativos de uma grande cidade. O comunismo era judeu, pregava o Führer, e, portanto, se um bombardeio do NKVD (a polícia secreta soviética) matara centenas de funcionários do escritório de ocupação alemão, a retaliação deveria cair sobre toda a comunidade. Em pouco mais de um dia, foram executadas perto de 35 mil pessoas.

Por três anos, os ucranianos padeceram com os devaneio sanguinários de Hitler. Embarreirado pelo domínio naval britânico à oeste e no Pacífico, o ditador via na União Soviética a saída para seu almejado império territorial. Conforme suas próprias palavras, um ariano "Jardim do Éden", despovoado de eslavos, onde, no pós-guerra, se desenvolveria uma colônia agrícola e energética (Generalplan Ost) para a Alemanha e um gigantesco campo de deportação, trabalho forçado e assassinato de judeus (a "Solução Final"). Com esse objetivo, Hitler mandou às favas as regras tradicionais de guerra. Isentou suas tropas de responsabilidade legais e, além de execuções sumarias, fez da inanição arma de aniquilamento de civis e militares soviéticos. 

Foram, porém, as atrocidades russas as que mais deixaram marcas na Ucrânia. Havendo já sofrido por séculos cerceamento político, econômico e cultural pelo Império russo, o país padeceu diante de dois genocídios perpetrados pelo ditador comunista. Entre 1932 e 1933, com o Holomodor ("A Grande Fome"), quando a feroz retaliação, através do confisco de alimentos e sementes, contra os camponeses que resistiam à coletivização de terras piorou as consequências sociais inevitáveis da ineficácia daquela política. Para Stálin, aqueles agricultores não eram vítimas, mas culpados pelo seu fracasso, boicotadores inimigos da revolução.

Depois, durante o "Grande Terror" ( 1937-38), o país tornou-se um dos principais palcos do expurgo que atingiu o próprio partido comunista e a NKVD, mas majoritariamente grupos nacionais vistos por Stálin como agentes externos que ameaçavam a integridade do Estado soviético - lógica diferente do marxismo-leninismo e seu internacionalismo proletário. Através da fome, fuzilamento e deportações para os gulags (campos de trabalho forçado na Sibéria ou Cazaquistão), os dois extermínios totalizaram cerca de quatro milhões de mortes. Os primeiros sinais de democracia só viriam com a independência ucraniana na década de 90.

Assim como todos os demais países circunscritos nas "terras de sangue", é bastante relevante a presença de grupos étnicos vizinhos na Ucrânia. Ainda hoje pouco menos de 25% de sua população é de origem russa, em sua maioria concentrados no sul e especialmente leste do país, locais onde o russo é o idioma principal.  Esse perfil multinacional de Estados com fronteiras impostas de cima para baixo por tratados e guerras é crucial para entender os conflitos na região. 

A presença de russos, bielorrussos e ucranianos justificou a invasão da metade oriental da Polônia em 1939. Era necessário, segundo Stálin, defendê-los daqueles que estavam invadindo a metade ocidental - os alemães, com quem, em cláusula secreta do pacto Molotov-Ribbentrop, compactuara a divisão do leste europeu em duas de influência.  

Do mesmo modo, a considerável comunidade russa na Ucrânia e Bielorrússia sempre embasou os tentáculos de Moscou, dos mais leves aos mais severos, sobre ambos. A própria Rússia é um país multiétnico. "A Rússia nunca foi um Estado-nação como entendemos esse conceito no Ocidente. A Rússia foi um império, mas nunca um Estado-nação", diz Mira Milosevich, analista para Rússia e Eurásia do Real Instituto Elcano da Espanha, à BBC News. 

Com a desintegração da União Soviética, "tudo que havia sido construído em mais de mil anos foi em grande parte perdido", diz Milosevich. Um sentimento de humilhação não apenas politica e econômica, mas cultural. Tamanha perda de identidade levou Putin a considerar o colapso soviético, independente de sua crítica ideológica àquele regime, como "a maior catástrofe geopolítica do século 20": "Foi a desintegração da Rússia histórica sob o nome de União Soviética".

O despencar da Cortina de Ferro aparentava ser o "fim da História", como o cientista político conservador Francis Fukoyama definiu a aparente hegemonia irreversível da democracia e do capitalismo liberais, em um sistema internacional unipolar liderado os Estados Unidos. A fragilidade de uma Rússia em transição foi entendida por Washington, seja no governo republicano de George W. Bush ou do democrata Bill Clinton, como oportunidade para expandir a OTAN para o leste. A letargia de Moscou em algum momento terminaria. Era preciso aproveitar aquele vácuo temporário para fortalecer a aliança antes que o inimigo acordasse.
   
O primeiro sinal veio com o fim da Alemanha Oriental. Acuada, a ainda União Soviética teve que aceitar uma Alemanha unificada nos braços da OTAN, o que acarretava engolir tropas da aliança em território até então sob sua órbita de influência. Quase quatrocentos mil militares soviéticos tiveram que abandonar Berlim e arredores entre 1990 e 1994. Uma "linha vermelha", porém, precisava ser riscada: como defesa prévia, a OTAN teria que assegurar que não incorporaria os demais países do extinto Pacto de Varsóvia. Mísseis e soldados ocidentais a poucos quilômetros de suas fronteiras era inadmissível. 

Em busca de um bom relacionamento capaz de ampliar acordos de não-proliferação nuclear , o então secretário de Estado norte-americano, James Baker, sinalizou ao líder soviético Mikail Gorbachev concordar com a contrapartida. A promessa, contudo, nunca foi oficializada. Se a Casa Branca indicasse suas pretensões reais, Moscou inviabilizaria qualquer negociação sobre a desnuclearização da Ucrânia, terceira maior reserva nuclear do mundo após Rússia e Estados Unidos. 

Somente após a assinatura do acordo tripartite que cedeu aos russos as armas nucleares em território ucraniano em troca de garantias a respeito da soberania de Kiev, os Estados Unidos puderam iniciar sua política de "portas abertas". Entre 1997 e 2009, República Checa, Hungria, Polônia, Bulgária, Romênia, Eslováquia, Eslovênia, Croácia e Albânia ingressaram na aliança. Em 2004, para ainda maior incômodo russo, seguiram o mesmo caminho as ex-repúblicas soviéticas bálticas Estônia, Letônia e Lituânia. A desconfiança se instalava definitivamente no Kremlin.  A sensação de traição se juntara ao de humilhação.

Os disfuncionais anos liberais de Yeltsin e sua errática transição democrática reforçaram a sensação de um país em colapso e permitiram ao Ocidente colocar em prática sem maiores resistência suas pretensões. A ascensão de Putin a partir do inicio deste século, porém, alterou a correlação de forças. Com ele, reemergia o que Aleksandr Dugin, cientista político e considerado referência intelectual do presidente russo, define como "eurasianismo": uma concepção de ordem multipolar crítica à hegemonia norte-americana e que "preconiza a integração, na base da civilização comum", do território do antigo império russo ou da União Soviética". 

Tornava-se, portanto, prioridade a restauração do status de potência da Rússia após uma década em que consideram terem sido mantidos à margem das principais decisões do mundo. "Putin se vê como o salvador da Rússia", resume Milosevich. Reemergia o ideal, intrínseco à grande parte da sociedade do país, da "Grande Rússia". E, além da Bielorrússia, sob a ótica dessa identidade eurasiana, nenhum outro país é tão visto como "quintal" como a Ucrânia. Um sentimento que encontra raízes ainda antes dos czares, na Kievan Rus, a medieval federação eslava que reunia boa parte do que são hoje os três países e cuja capital era a hoje capital ucraniana. A Rússia nasceu em Kiev, já escreveu Putin.

Para ele, se não é possível reaver como antes as terras ucranianas e seu consequente amplo acesso ao Mar Negro, é inaceitável perdê-las de sua órbita. "O Ocidente pensa que a União Soviética era somente uma criação comunista e aqueles Estados eram independentes antes dela. Nunca existiram como Estados e representam apenas distritos administrativos sem nenhum significado histórico ou político dentro do Império russo ou da União Soviética. Foram criados com suas atuais fronteiras após o colapso soviético", argumentou Dugin em entrevista à Folha de São Paulo, em 2014.

A crescentes receitas do petróleo ofereceram a Putin os meios econômicos para seu projeto. A modernização das Forças Armadas se insere nesse contexto como ponto fundamental. Recuperava com ela o poder de barganha russo, para além de suas ogivas nucleares nem sempre funcionais para certos tipos de deterrência. Hoje, em proporção ao PIB, os gastos com defesa do país são maior que os dos Estados Unidos e cerca do dobro dos membros da OTAN. Como exemplo, em uma década, mais de mil aeronaves foram adquiridas, segundo o Kremlin

A partir desse cenário, ganhou proeminência na agenda externa de Moscou um novo acordo sobre armas nucleares de curto e médio alcance na Europa, em substituição ao abandonado por Trump - e principalmente o processo de admissão da Ucrânia ( além de Bielorrússia e Geórgia) no organismo transatlântico, em andamento desde 2008. É imperioso, para Putin, a permanência do vizinho como um  "Estado tampão"; um "algodão" entre os cristais russos e ocidentais que se atritam.

A Rússia se sente ameaçada pelo Ocidente. Razões não faltam. "Eles [a OTAN] deveriam ter tratado a Rússia como um aliado em potencial, ter fortalecido o país, mas foram na direção oposta. São vocês que vieram até nossas fronteiras e agora dizem que a Ucrânia se tornará um membro da OTAN. Ou, mesmo que não se junte à OTAN, que bases e sistemas de ataque serão instalados em seu território por meio de acordos bilaterais", defendeu-se Putin em resposta a uma jornalista britânica em dezembro

A crise com o vizinho vem em um crescente desde a "Revolução Laranja", em 2004, quando passeatas, vigílias e greves pressionaram a Suprema Corte do país a anular, diante de evidências de corrupção, fraude e intimidação, a eleição de Viktor Yanukovych, candidato preferido de Putin. Em nova votação, saiu-se vencedor o anteriormente derrotado Viktor Yushchenko, favorável a uma aproximação político-econômica com o Ocidente. 

Como pano de fundo, era a História dando sinal de vida. Atrocidades dos mais variados tipos de crueldade e terror deixam marcas perenes em milhões de famílias dizimadas ou divididas. Projetos de poder são atualizados. O país expunha as latentes cisões internas decorrentes dos traumas da submissão ao czarismo e stalinismo e a presença relevante de uma comunidade russófona.  

Inúmeras versões se disseminaram a respeito do envolvimento externo tanto no levante como no processo eleitoral, seja por parte de Putin ou da Casa Branca e aliados. Debita-se até hoje na conta do Kremlin a tentativa de envenenamento do então candidato Yushchenko, cujo rosto desfigurado correu o mundo. O fato inegável foi a perda de influência russa sobre seu histórico "quintal'.

Contudo, embates internos no governo e os fracassos nos índices econômicos reforçaram a oposição e, em 2010, Yanukovych foi eleito, sinalizando uma volta ao colo da Mãe Rússia. Entre suas promessas, a paralização do processo de adesão à OTAN e tornar o russo o segundo idioma oficial do país. Yushchenko, porém, mostrou no decorrer de seu governo autonomia maior do que Moscou esperava.

 Impelido pela crise econômica, abriu um processo de aproximação com a União Europeia, cancelado após ameaças de sanções russas. É à Rússia que se destina grande parte das exportações da Ucrânia, cuja matriz energética depende do gás do vizinho. A desistência de Yushchenko empurrou novamente milhares de ucranianos para a Praça da Independência, em Kiev, no que ficou conhecido como Euromaidan ( Euro: Europa, maidan: praça). Catalisados por denúncias de corrupção contra o governo, pressionavam o governo a assinar  o acordo de cooperação com o bloco, primeiro passo para futura adesão a ele. 
 
A violenta resposta de Yushchenko, com tropa de choque e leis contra liberdade de expressão, disseminou o movimento para outras regiões do país, em uma crescente bola de neve que ampliou as pautas e os grupos participantes. De liberais pró-Ocidente até nacionalistas de extrema direita, milhares resistiram por semanas às forças de segurança e o frio de 20 graus negativos até que, após 200 mortos, Yushchenko caíu. 

A crise, no entanto, não só não terminara como ganharia contornos mais graves. Enquanto o novo governo interino decidia assinar o acordo com os europeus e se comprometia com reformas necessárias ao processo de admissão, a Rússia recusava-se a reconhecê-lo, tachando a Euromaidan como golpe de estado. No sul e leste, a instabilidade foi estopim para o recrudescimento de ações armadas de separatistas pró-Rússia, acusados pelo Ocidente de serem financiados por Moscou. 

Em março de 2014, o ataque de um desses grupos à base do Exército ucraniano em Sinferopol, na Crimeia, península onde, por acordo, sedia-se também a frota naval russa no Mar Negro, veio acompanhado de uma silenciosa e fulminante invasão russa à região. Voluntários civis se somaram ao que acreditavam ser a "libertação da Crimeia". Uma ocupação necessária para proteger a maioria russa ali presente, segundo Putin, em retórica semelhante a de Stálin.

Difícil precisar a proporção, mas, de fato, boa parte da população local concordou com a invasão, referendada em votação não reconhecida pelo Ocidente por ter sido, segundo esses países, realizada "sob a mira de Kalashnikovs". Em Donbas, região das províncias russófonas de Donetsk e Luhansk, secessionistas chegaram a declarar independência de Kiev e a formação da Novorossia (Nova Rússia), reforçando rumores de presença militar e tentativa de anexação russas. 

Em 2015, o Acordo de Minsk, mediado por França a Alemanha, obteve um cessar-fogo. As tensões, todavia, permaneceram latentes. Continuam emperradas as negociações para eleições monitoradas por organismos internacionais em Donbas e sobre o nível de autonomia a ser dada àquelas províncias. O Kremlin considera Paris e Berlim responsáveis pelo fracasso do acordo. Em novembro, chegou ao ponto de publicar correspondência privada entre as três diplomacias a fim de demonstrar a leniência ocidental com a postura reticente do governo de Volodymyr Zelensky, um ex-comediante "antissistema" e apoiador do Euromaidan.
 
Sanções econômicas à Rússia foram impostas por Estados Unidos e União Europeia após a anexação da Crimeia. O cessar-fogo foi, por diversas vezes, violado pelos dois lados. Segundo a AFP, o conflito resultou em aproximadamente 13 mil mortos até hoje. Em 2017, a União Europeia isentou cidadãos ucranianos de visto de entrada no espaço Schengen. O Parlamento da Ucrânia aprovou, dois anos depois, reformas constitucionais que pavimentam a entrada na OTAN e no bloco europeu. Em 2020, o país tornou-se o sexto estado a receber o status de "parceiro da OTAN com capacidades expandidas", juntando-se a Austrália, Finlândia, Geórgia, Jordânia e Suécia.

A Ucrânia acusa a Rússia de continuar a aparelhar separatistas. Moscou garante que o Ocidente age igual: enquanto suspeita que o centro de treinamento ucraniano em construção com ajuda britânica seja, na verdade, uma base militar estrangeira, vê barcos de patrulha e drones serem fornecidos por Estados Unidos e Turquia respectivamente e instrutores militares ocidentais desembarcarem em número cada vez maior em Kiev. Para seu incômodo ainda maior, cresceram os exercícios militares de países da OTAN no Mar Negro. 

Em abril passado, alegando serem meros exercícios militares, Putin deslocou tropas para a fronteira ucraniana. Recuou, mas poucos meses depois enviou seu recado de outra forma: em forte artigo publicado no site do Kremlin, após descrever as relações históricas entre as duas nações, acusou Zelensky de conduzir um "projeto antirrusso". "Aqueles que colocarem a Ucrânia contra a Rússia destruirão seu próprio país", ameaçou. Quase ao mesmo tempo, em junho, um destroier britânico navegou por águas territoriais ao largo da Crimeia, não reconhecida por Londres como pertencente à Rússia,  o que provocou disparos russos contra sua direção. Em novembro, um bombardeiro norte-americano voou perto da fronteira russa no Mar Negro.

Não se conhece precisamente a razão para Putin dobrar a aposta no final do ano passado, ao voltar a enviar forças militares e armamentos - desta vez, cerca de 130 mil militares - para as proximidades do território ucraniano. Não só o fez como emitiu sinais mais assertivos. Exigiu "garantias de segurança juridicamente vinculantes a longo prazo" a respeito da não incorporação da Ucrânia pela OTAN, assim como a não instalação de bases e sistemas de armas de logo alcance no país - a partir do qual mísseis podem chegar a Moscou em pouco mais de cinco minutos.  Reivindica ainda a retirada de tropas e equipamentos dos países bálticos e Europa Oriental.

A movimentação se junta à já em curso com a Bielorrússia, governada por ditador aliado seu e a partir de onde, como insinuou, pode posicionar armas nucleares voltadas contra Kiev. O Kremlin, entretanto, nega qualquer intuito de invasão e invoca a "indivisibilidade da segurança", termo referente ao Protocolo de Istambul, assinado, em 1999, pelos países da OSCE, entre os quais Rússia e membros da OTAN. Segundo o documento, cada país é “livre para escolher seus arranjos de segurança, incluindo tratados de aliança”, mas, ressalta Moscou,  “os Estados não fortalecerão sua segurança à custa da segurança de outros Estados”.

"A Rússia é um país que ama a paz. Mas não precisamos de paz a qualquer custo. A necessidade de obtermos garantias formais de segurança é algo incondicional", avisou o embaixador russo na OSCE, Alexander Lukashevich. Joe Biden ou qualquer outro inquilino da Casa Branca não podem se dizer surpresos com a reação virulenta. Ainda em 1997, os riscos da "política de portas abertas" foram abordados por George Kennan, o cérebro da estratégia norte-americana de contenção da União Soviética, em 1947, e um dos principais ideólogos da doutrina realista dos estudos de relações internacionais. 

Em artigo publicado no New York Times ( "A fateful error") meses antes da conferência que oficializou o convite à Hungria, Polônia e República Tcheca, Kennan afirmou que a expansão para o leste seria "o mais fatal erro de política externa norte-americana no período pós-Guerra Fria". A decisão, escreveu ele, estimulava a "tendência nacionalista, antiocidental e militarista" na opinião pública russa. "Terá efeito adverso para o desenvolvimento da democracia na Rússia; restaurará a atmosfera de Guerra Fria nas relações Leste-Oeste", profetizou.

Basicamente com os mesmos argumentos, foi enviada uma carta aberta ao Senado, responsável por ratificar o convite. Organizada por Susan Eisenhower, filha do ex-presidente Eisenhower (e primeiro comandante da OTAN), e assinada por 50 nomes de peso, entre eles, Robert McNamara, ex-secretário de Defesa de John Kennedy, o texto alertava para o "erro político de proporções históricas" do convite. Também clamando não ratificação, outro artigo ( "NATO: a debate recast" ) foi publicado no New York Times. Dividia a autoria do texto com um senador democrata o republicano Brent Scowcroft, negociador do tratado de reunificação alemã.

Biden garante que Washington defenderá a "integridade territorial" e a "autonomia" ucraniana". Qualquer movimento russo, afirma, será considerado uma invasão, embora descarte uma reação militar norte-americana. Londres já admitiu ser "improvável" o envio de soldados britânicos para a Ucrânia.  Mas, ao contrário dos serviços de inteligência dos Estados Unidos e Reino Unido, Zelensky minimiza o risco de invasão a curto-prazo. Em declarações públicas, pareceu mais preocupado com a desestabilização interna que o "pânico" pode causar.

Uma certeza apenas há: cenários assim, entre blefes e guerra de informações, não raramente saem do controle. Nesta segunda-feira, 24, a OTAN informou que seus integrantes estão colocando tropas em prontidão para reforçar as forças aliadas no leste europeu. Perto de dez mil soldados norte-americanos foram colocados em alerta para, se necessário, serem enviados a esses países. Familiares dos funcionários das embaixadas dos Estados Unidos e Reino Unidos começaram a ser retirados da Ucrânia. Washington recomendou a todos seus cidadãos no país a saída imediata.

O número de soldados mobilizados por Putin sugere mais um plano para anexação de Dumbas do que a ocupação completa da Ucrânia. Também entre as hipóteses está uma intervenção suficiente para substituir Zelensky por alguém alinhado a Moscou. O recente histórico, todavia, torna pouco crível que um governo com esse perfil consiga estabilizar o país. "Se for esse o plano russo, é mais uma evidência que o Kremlin não entende a Ucrânia. As figuras políticas pró-Rússia estão entre os políticos menos populares no país e não teriam credibilidade no governo", publicou em seu perfil no Twitter Ian Bremmer, CEO da Eurasia Group, maior consultoria política dos Estados Unidos.

Mas maniqueísmo é insumo pouco útil para se interpretar as relações internacionais. Putin quer testar o Ocidente. Sabe que seriam altos para Biden os custos políticos, econômicos e humanos de uma intervenção militar direta em uma região não percebida, em boa parte de uma sociedade polarizada, como prioritária para a segurança nacional. Uma resposta militar da OTAN só teria que ser automática caso a Ucrânia já a integrasse. É a essência do organismo a cláusula de "defesa coletiva" entre seus membros.

Sabe ainda mais da inviabilidade de a Ucrânia ser aceita na OTAN a médio-prazo. Em dezembro, funcionários do Departamento de Estado dos EUA disseram à Kiev ser improvável a aprovação de sua adesão na próxima década. Nunca nem houve um cronograma formal de admissão. Não interessa ao organismo transatlântico agregar países com grupos separatistas armados e territórios ocupados, caso da Crimeia. Foi, aliás, para impedir a reconquista do território separatista da Ossétia do Sul, protetorado russo, pelo presidente pró-Ocidente Mikheil Saakashvili que Moscou invadiu a Geórgia em 2008, inviabilizando qualquer chance de entrada do país na organização transatlântica.

Ao mesmo tempo que não se pode refutar o discurso de Putin sobre o uso da Ucrânia como pretexto para a contensão, através de sanções, do "progresso da Rússia", não interessa a um autocrata ter em sua vizinhança países ocidentalizados, voltados aos valores da democracia liberal e capazes de usufruir os eventuais benefícios econômicos resultantes da cooperação com o Ocidente. Ademais, convém ao "salvador da pátria" eurasiana também instrumentalizar para ganhos internos as tensões hoje nem tão latentes com vizinho, assunto de apelo na nacionalista sociedade russa. Em 2024, haverá eleições...

Em um cenário pouquíssimo provável, Moscou pode até conseguir, com a invasão, excluir a Ucrânia da da OTAN, sua prioridade Mas jamais obterá o recuo de forças e equipamentos ocidentais instalados na Europa Oriental e Mar Báltico. Ao contrário, uma ataque militar russo obrigará a aliança a reforçar sua presença nesses países, militarizando ainda mais o que foram as "terras de sangue" e acarretando proporcional aumento de tensão permanente.  

Excelente estrategista, Putin não é avesso ao risco - as operações na Chechênia, Crimeia e Geórgia são a prova. Mas os incentivos devem superar os custos estimados. Sairá desmoralizado se não agir de alguma forma, porém não se encontra preso a incursões militares. Poderá realizar ataques não-convencionais, como cibernéticos, afim de desestabilizar a infraestrutura da Ucrânia ( corte de energia, por exemplo); reforçar o apoio militar ao separatistas de Donbas e/ou reconhecer suas autoproclamadas "repúblicas do povo" de Donestsk e Luhansky, atraindo-as inclusive para algum tipo de bloco junto com a Bielorrússia; e fixar de forma permanente tropas e armas nucleares estacionadas na Bielorrússia.  

A dependência europeia do gás russo é outro ativo nas mãos do Kremlin. A possibilidade de corte no envio sempre é lembrada. Como provocação, há ainda a opção de colocar mais mísseis de curto alcance em Kaliningrado -  enclave russo entre a Polônia e a Lituânia. "As respostas dos Estados Unidos e da Europa a essas etapas "intermediárias" são mais difíceis de se coordenar e é onde Putin tem a melhor oportunidade de dividir e enfraquecer a OTAN", adverte Bremmer.

A resposta da Casa Branca e aliados também tende a fugir das vias bélicas. Provavelmente virão em forma de sanções de intensidade proporcional à ação de Moscou. Estão na mesa barreiras ao acesso ao sistema financeiro internacional, bloqueio comercial de bens estratégicos, fornecimento de armas a insurgentes ucranianos ( problemático diante da presença  entre eles de ultranacionalistas de cunho fascista) e represálias diretas a Putin, poupado em 2014. Um dos alvos, como a admitiu a ministra das Relações Exteriores alemã, poderá ser o gasoduto Nord Stream 2, projeto bilionário ainda não ativo que liga os campos de produção russos à Alemanha através do Mar Báltico.

Mas, nesse jogo de xadrez, os custos do Ocidente não se resumem às consequências diretas e locais do conflito. O comandante da Marinha alemã, Kay-Achim Schönbach, teve que se demitir semana passada por, além de considerar a Crimeia um "caso perdido", afirmar que não custa nada dar a Putin o que ele quer e "provavelmente merece": "apenas respeito". Talvez o almirante esteja equivocado sobre o presidente russo, mas é inegável seu acerto ao observar: "Precisamos da Rússia para conter a China".

Implodir abruptamente as pontes com Putin significa empurrá-lo de vez para os braços de Xi Jinping. Os Estados Unidos assim se arriscariam a ver a "cooperação estratégica bilateral" entre China e Rússia ser elevada a níveis de aliança formal, talvez até na área de segurança. Uma parceria que vem sendo incrementada a partir da crise da Crimeia, em 2014, quando, embora não reconheçam a anexação da região, os chineses ofereceram o vital apoio econômico e diplomático após as sanções impostas pelo Ocidente. Desde então, aumentaram os exercícios militares conjuntos. 

Em visita a Pequim esta semana, Putin e Jinping exibiram sincronia não vista desde os tempos de Mao e Stálin. Em nota conjunta, acusaram “certos Estados e certas alianças e coalizões políticas e militares” de minar a “estabilidade estratégica global” e afirmaram não haver "áreas proibidas de cooperação". "As partes opõem-se a uma maior expansão da Otan e apelam à Aliança do Atlântico Norte para que abandone as suas políticas com uma ideologia da Guerra Fria e respeite a soberania, a segurança e os interesses de outros países, a diversidade de seus padrões civilizacionais e histórico-culturais", diz o texto em que o caráter "sem precedentes" da relação é frisada e no qual a Rússia considera "Taiwan parte inseparável da China". 

Na reunião, os dois países firmaram acordo para a construção de mais um gasoduto para o fornecimento do combustível russo para os chineses, que, por hora, permanecem cautelosos em relação a um apoio mais amplo a Moscou. Compreendem que pioraria as tensões com os Estados Unidos e as relações com a União Europeia, seu segundo maior parceiro comercial, com possíveis reflexos no modo como o bloco lida com as pretensões de Taiwan. Além do mais, Kiev é acessório relevante da Iniciativa Cinturão e Rota (a "nova rota da seda"), a rede internacional de infraestrutura chinesa que envolve diversos países da Ásia, Europa e África.

Moscou pode ainda devolver na mesma moeda a interferência em sua esfera de influência por parte dos norte-americanos. E é aqui que o cenário pode se tornar mais delicado para o Brasil. Na última semana, Sergei Ryabkov, vice-ministro de Relações Exteriores, não excluiu a possibilidade de enviar soldados e infraestrutura militar para Cuba e Venezuela. Em 2008, em resposta à presença militar da OTAN no Mar Negro, em decorrência da crise na Geórgia, Putin deslocou para o Caribe uma frota naval para manobras militares com a Marinha venezuelana. Dez anos depois, em gesto de apoio a Maduro, então sob pressão de Trump, enviou quatro aviões - dois deles bombardeiros - a fim de realizar novos exercícios conjuntos. Desde 2019, um acordo bilateral prevê o envio recíproco de frotas das duas forças navais.

Cuba e Venezuela receberam, nos últimos anos, grande volume de investimentos estatais da Moscou, cujo apoio foi fundamental para Maduro se segurar no poder até hoje. Putin criticou diversas vezes a "interferência externa" na infindável crise política venezuelana, enquanto aumentava as joint-ventures entre as duas gigantescas companhias petrolíferas. Calcula-se que, em seus cerca de 20 anos, o chavismo gastou US$ 11 bilhões em armamentos russos.

Desde sua eleição, Bolsonaro tomou como estratégia de inserção internacional um bandwagoning (alinhamento automático) ainda mais problemático do que os de costume. Optou por ir à reboque menos da superpotência do que dos interesses e ideologia do seu inquilino até 2020. Reverberou Trump, exaltado pelo ex-chanceler Ernesto Araújo como o "único homem capaz de salvar o Ocidente". Um Ocidente propagandeado como sinônimo de "civilização judaico-cristã", termo por si só controverso, mas que sustenta, a partir da teoria do "choque de civilizações" desenvolvida pelo influente cientista político republicano Samuel Huntington, o discurso político do Islã como ameaça principal a Washington. 

Ao importar acriticamente as teses da direita conservadora norte-americana, conforme adestrava seu finado "guru" Olavo de Carvalho, o governo brasileiro gestou duas anomalias cujas contradições agora se ressaltam. A primeira é dizer defender o que não é: exceto por se localizar geograficamente no Hemisfério Ocidental, o Brasil não é entendido como Ocidente, no sentido político, econômico e cultural, em que pese as influências ocidentais em nosso processo de formação como nação. Nem assim é reconhecido pelos países que o são. Aqui não cabe detalhar as razões, mas é uma condição consensual nos estudos das relações internacionais e correlacionados.

O termo sempre foi evitado pelo Itamaraty em sua linguagem diplomática oficial por trazer mais polêmicas do que benefícios concretos. Os diplomatas brasileiros preferiam utilizar o traço ambíguo do país como um ativo que lhe permitia ser um dos poucos capazes de dialogar com as potências ocidentais ao mesmo tempo que tem - ou tinha - legitimidade para liderar países não ocidentais.

Em "Trump e o Ocidente", artigo publicado em seu blog antes de ser nomeado chanceler, Araújo deixava claro as razões de seu entusiasmo pelo então presidente norte-americano: " Trump propõe uma visão do Ocidente NÃO baseada no capitalismo e na DEMOCRACIA LIBERAL, mas na recuperação do passado simbólico, da história e da cultura das nações ocidentais (...) o NACIONALISMO como indissociável da essência do Ocidente. Em seu centro, está não uma doutrina econômica e política (...) é o anseio por Deus, o DEUS QUE AGE NA HISTÓRIA". O trecho vai ao encontro da emblemática declaração do então candidato Bolsonaro em discurso na Paraíba, em 2017: "Não tem essa historinha de Estado laico não. Somos um Estado cristão, e a minoria que for contra que se mude. As minorias têm que se curvas às maiorias".

Essa concepção enviesada de "valores ocidentais" encontra-se na verdade mais nos "inimigos" do Ocidente do que nele próprio. Um conservadorismo ( reacionarismo, na verdade) político e cultural distante do liberalismo predominante, em matizes distintas, desde o fim da II Guerra nos Estados Unidos e na Europa capitalista e cujas características são Estado laico, o poder da razão acima da fé, integração internacional e regional, checks and balances institucionais, Justiça independente e contramajoritária (garantia de direitos de minorias) e economia de mercado. Liberalismo no qual a liberdade é um meio para o bem comum, à esquerda ou à direita. Não o rascunho ultraliberal de Mises a que foi resumida a doutrina pelo bolsonarismo, com seus clichês ardilosos sobre "Estado mínimo" e liberdades individuais.

Putin é a antítese do liberalismo, como sua repressão à imprensa, adversários e movimentos sociais evidencia. Ano passado, um polêmico referendo alterou normas constitucionais a fim de lhe permitir ir além de seu quarto mandato, que termina em 2024. Sem Trump e com péssimas relações com os principais líderes europeus e Biden, o presidente brasileiro viu em seu convite para visitar a Rússia a chance de refutar as acusações de ser pária internacional e agradar sua base interna mais fiel, afeita a "valores conservadores". Por outro lado, é do interesse do líder russo estender as mãos a Bolsonaro, com vistas de atrair a terceira maior economia do hemisfério americano para seu lado.

A reaproximação com a Igreja Ortodoxa Russa, uma vertente do cristianismo, é marca do projeto de poder autocrata de Putin, que busca revalorizar a cultura czarista - e tudo que isto lhe propicia - após décadas de perseguições religiosas do ateísmo comunista e de irrelevância política do Patriarcado de Moscou (como se chama a cúpula ortodoxa local) nos breves anos liberais de Yeltsin - o que, aliás,  mostra a imprecisão de reduzir “civilização cristã" à Ocidente.

"O Ocidente sabe pouco ou nada da verdadeira história da Rússia. A Rússia não é um país liberal nem pretende ser. Nós temos outros valores, outra história, outra moral. Se o Ocidente identifica seus próprios valores como universais, é impossível entender Putin", afirmou Dugin à Folha ao defender a proibição constitucional do casamento igualitário, além de outras políticas homofóbicas praticadas pelo Kremlin. No dia em que Olavo morreu, Dugin postou uma foto a seu lado para lamentar.

A convergência na agenda "conservadora" já vem sendo notada em organismos internacionais, como a ONU, onde Brasil e Rússia compartilham votos contra pautas relacionadas a direitos humanos e reprodutivos, além do que chamam de "ideologia de gênero". Situações em que se aliam a autocracias e monarquias absolutistas árabes, destinos frequentes das visitas oficiais de Bolsonaro. 

O Emirados Árabes Unido e o regime wahabista da Arábia Saudita, um dos países em que mais se perseguem cristãos e onde mulheres têm direitos cerceados, mereceram elogios de Eduardo Bolsonaro pelo "qualidade de vida sensacional" e por serem "monarquias sempre sinalizando por abertura". Merecia o troféu "Passada de pano" do ano passado. Considerado (como ele) pária pelo Ocidente após ser acusado pelo assassinato de um jornalista, o príncipe herdeiro saudita foi chamado de "irmão" pelo governante brasileiro.
  
Salvo a histeria eleitoreira de Trump em 2020, não precisa ser leitor atento para notar, como exposto acima, quem está mais próximo da China, se Biden ou Putin, principal aliado da ditadura síria de Bashar al-Assad e parceiro estratégico da teocracia iraniana, com quem negocia a ampliação de uma usina nuclear construída pelos russos no país persa. Ao contrário de Estados Unidos e União Europeia, o Kremlin, não considera Hamas e Hezbollah organizações terroristas. Putin mantém crescente contato de alto nível com o grupo palestino, chegando a convidar seus líderes para uma visita a Moscou, e considera o libanês "uma força política significativa" no país. Não faz muito tempo, Bolsonaro, já como presidente, prometia a seus templários digitais seguir os passos de Washington e aliados.

Não por acaso, a próxima viagem de Bolsonaro está prevista para ser à Hungria de Victor Orbán, assumidamente um iliberal" e em conflito constante com a União Europeia, a ponto de ser ameaçado de expulsão do bloco. Em encontro com Putin recentemente, Orbán reiterou ser contra sanções como ferramenta de pressão e o envio de militares da OTAN (da qual  a Hungria faz parte) para as proximidades do conflito.

É fácil notar a contradição em Bolsonaro ao se dizer defensor da "liberdade" e do "Ocidente cristão". Em resumo, trata-se de alguém que, embora se veja ( ou via) com legitimidade para falar em nome da "civilização ocidental", não é ocidental e, desprezado pelas lideranças ocidentais, apega-se, como boia de salvamento no sistema interestatal, àqueles que representam o oposto do que garantia proteger.

Mas apesar do paradoxo, a busca por diversificação de parceiros e a equidistância com países cujos interesses colidem condiz com a tradição de atuação internacional do Brasil. O timing da visita a Moscou, contudo, não poderia ser pior. Prevista para acontecer entre os dias 14 e 17, muito provavelmente se dará no auge dos "exercícios" russos. A ida a Moscou neste momento arrisca piorar as já esgarçadas relações com Washington e União Europeia.

Os Estados Unidos já iniciaram pressões. Por duas vezes em um mês, o secretário de Estado Antony Blinken cobrou, em conversa telefônica com o chanceler Carlos Alberto França, a necessidade de uma resposta "forte e unida" contra uma possível agressão russa à Ucrânia: "O Brasil tem a responsabilidade de defender os princípios democráticos e proteger a ordem baseada em regras".  A Casa Branca já fez chegar ao Itamaraty sua preocupação de que a viagem, nas atuais circunstâncias, sinalize o apoio brasileiro às ações do Kremlin. Cancelá-la seria a melhor maneira de ressaltar o isolamento de Putin. 

Na primeira reunião de emergência do Conselho de Segurança da ONU sobre o tema, o Brasil, recém-eleito membro rotativo graças a um tradicional acordo de rodízio, iniciou seu malabarismo diplomático. Votou a favor da convocação do encontro, proposto pelos Estados Unidos, sem deixar de repetir o mantra histórico do Itamaraty:  a defesa da resolução pacífica de disputas, o princípio de soberania e integridade territorial, além da proteção ao direitos humanos. Ressalvou, entretanto, serem legítimas as "preocupações de segurança de todas as partes, inclusive as da Rússia e da Ucrânia". Fosse Trump ainda presidente...

A diplomacia brasileira mostrou-se contrária a sanções unilaterais, preocupação para o Itamaraty e o agronegócio nacional. Caso os Estados Unidos optem por suspender a Rússia do sistema de pagamentos internacionais, conhecido como Swift, exportadores brasileiros poderão ter dificuldades em receber pelo que vendem ao mercado do país. Em 2014, a neutralidade do governo Dilma diante da anexação da Crimeia e as consequentes sanções ocidentais ocasionaram críticas. Setores da direita, entre eles Bolsonaro, acusaram o Planalto de ignorar os direitos humanos e a democracia. 

O Brasil é membro dos BRICS. Não interessa nenhuma posição hostil à Moscou. Embora não esteja entre os nossos dez principais parceiros comerciais, a Rússia é grande consumidora de produtos agropecuários brasileiros e exportadora de um quinto dos fertilizantes usados aqui. Pecuaristas esperam diminuir o déficit comercial brasileiro com o país a partir deste ano, quando passa a vigorar o acordo que prevê a volta das exportações de carne brasileira, o que ajudaria a compensar o embargo chinês sobre o produto. Com a Ucrânia, a pauta se restringe à tecnologia aeroespacial. 

Por outro lado, apesar de pouco provável no atual panorama, os riscos de retaliação de uma Casa Branca pragmática porém nada simpática a Bolsonaro permanecem no horizonte. A começar com a eventual retirada do status de aliado-extra OTAN, adquirido recentemente, o que resultaria abreviar um processo ainda embrionário de cooperação em desenvolvimento de tecnologia de defesa e o acesso preferencial a compras de equipamento militar norte-americano. Além obviamente de ruídos em outros itens da vasta e complexa relação bilateral. Um eventual reflexo no processo de aceitação pela OCDE também não pode ser descartado. Direitos humanos e democracia constam nas contrapartidas levadas em conta. Como o “clubinho dos ricos” interpretará o namoro com o Kremlin, ou a mesmo a neutralidade brasileira, em um eventual ataque russo?

Bolsonaro garante que o conflito não estará na pauta das reuniões em Moscou. "Se esse assunto vier à pauta, será por parte do presidente Putin", disse à TV Record. Mas é notória a importância dada por ele e seu grupo mais íntimo às redes sociais, especialmente quando confrontado com baixos números de aprovação e a apenas nove meses da eleição. 

A mitigação da verborragia ideológica iniciada pelo chanceler Carlos Alberto França após a queda de Araújo já é alvo de contestações na militância e entre alguns parlamentares bolsonaristas. O proselitismo reacionário é inerente ao próprio presidente e seus filhos. Nas redes sociais  bolsonaristas, pipocam demonstrações de apreço a Putin e desprezo pelos "globalistas" Biden, Trudeau, Macron, Johnson, Merkel, Scholzs, rotulados também de "esquerdistas" - embora o aliado de Maduro seja o russo…

Seria apenas divertido analisar o contorcionismo verbal bolsonarista caso Moscou transponha para a América Latina o conflito europeu, se o quadro não trouxesse consequências práticas. A espetaculosa postura ideológica contra Maduro, jogando com a histeria anticomunista eleitoral interna e à reboque dos interesses de Trump, implodiu qualquer tipo de ponte com Caracas, fundamental na tentativa de evitar que a tensão chegue às portas brasileiras. Uma eventual presença militar russa na Venezuela exigirá posicionamento mais preciso do Itamaraty, emparedado entre tropas do “globalista” Biden na Colômbia e forças do "conservador" Putin como reforço ao socialista Maduro.

A politica externa de Bolsonaro abandonou qualquer projeto de liderança regional ao priorizar o alinhamento submisso ao então morador da Casa Branca. Renegado pelos líderes ocidentais e sem credibilidade para criticar ditadores e autocratas, haja vista quem sobrou como aliados e seu silêncio sobre democracia no trato com eles, agora a maior economia e mais populoso país da região poderá se ver em uma encruzilhada custosa qualquer que seja a posição tomada - e em papel secundário no que deveria ser sua área de influência.

O diabo mora nos detalhes, afirma o chavão popular, e são neles que se veem legítimas demandas intercaladas a projetos de poder e interesses, como quase tudo na política internacional. Reforça a pobreza intelectual e estratégica de dividir a sociedade internacional em dois lados estanques, erro potencializado quando se importa tradições político-culturais alheias.

Bolsonaro, assim como Trump, nunca defendeu o Ocidente. Ambos apenas manejaram eleitoralmente uma concepção radicalizada, de fundo religioso, com abordagem seletiva sobre democracia. A mútua admiração entre o norte-americano e Putin, há tempos conhecida, causou ao ex-morador da Casa Branca sérios embaraços enquanto esteve no poder. No entanto, abstraindo-se juízo de valor, sua atuação externa encontrava raízes no pensamento político e social do país, que, como superpotência, dava-lhe vastos recursos de poder para sustentá-la.

Apesar da tensão, as negociações estão em andamento. Os custos de um conflito bélico na Ucrânia são altos para todos. O mais provável é que a escalada militar não siga a retórica, e algum acordo seja alcançado. Algo como uma moratória formal sobre a expansão da OTAN e o compromisso de não colocar mísseis de alcance intermediário na Europa. Cogita-se também restrições a forças militares nos mares Báltico e Negro e algum mecanismo de transparência recíproca. 

Mas conflitos de high politics, quando passado sangrento e inimizades históricas entre países repletos de hard powers entram em erupção, são como andar às cegas em loja de cristais. Não é lugar para polemistas virtuais incendiários.  Mais do que nunca a política externa precisa ser deixada nas mãos das do profissionalismo do Itamaraty, capaz de extrair o máximo que puder da posição natural do Brasil. 

O peso das relações comerciais com a Rússia não supera os riscos políticos de uma viagem ao país no meio de turbilhão deste porte. A visita, essencialmente de cunho político-eleitoral, serve apenas pra explicitar a ausência de estratégia de longo prazo e as inconsistências ideológicas do bolsonarismo, desesperados com a perda do esteio trumpista. "Não conheço na história da diplomacia brasileira uma viagem tão inoportuna como esta", disse à "Veja" Rubens Ricúpero, ex-embaixador em Washington e ex-subsecretário-geral da ONU. Mesmo quando parece acertar, Bolsonaro erra.