Por três anos, os ucranianos padeceram com os devaneio sanguinários de Hitler. Embarreirado pelo domínio naval britânico à oeste e no Pacífico, o ditador via na União Soviética a saída para seu almejado império territorial. Conforme suas próprias palavras, um ariano "Jardim do Éden", despovoado de eslavos, onde, no pós-guerra, se desenvolveria uma colônia agrícola e energética (Generalplan Ost) para a Alemanha e um gigantesco campo de deportação, trabalho forçado e assassinato de judeus (a "Solução Final"). Com esse objetivo, Hitler mandou às favas as regras tradicionais de guerra. Isentou suas tropas de responsabilidade legais e, além de execuções sumarias, fez da inanição arma de aniquilamento de civis e militares soviéticos.
Foram, porém, as atrocidades russas as que mais deixaram marcas na Ucrânia. Havendo já sofrido por séculos cerceamento político, econômico e cultural pelo Império russo, o país padeceu diante de dois genocídios perpetrados pelo ditador comunista. Entre 1932 e 1933, com o Holomodor ("A Grande Fome"), quando a feroz retaliação, através do confisco de alimentos e sementes, contra os camponeses que resistiam à coletivização de terras piorou as consequências sociais inevitáveis da ineficácia daquela política. Para Stálin, aqueles agricultores não eram vítimas, mas culpados pelo seu fracasso, boicotadores inimigos da revolução.
Depois, durante o "Grande Terror" ( 1937-38), o país tornou-se um dos principais palcos do expurgo que atingiu o próprio partido comunista e a NKVD, mas majoritariamente grupos nacionais vistos por Stálin como agentes externos que ameaçavam a integridade do Estado soviético - lógica diferente do marxismo-leninismo e seu internacionalismo proletário. Através da fome, fuzilamento e deportações para os gulags (campos de trabalho forçado na Sibéria ou Cazaquistão), os dois extermínios totalizaram cerca de quatro milhões de mortes. Os primeiros sinais de democracia só viriam com a independência ucraniana na década de 90.
Assim como todos os demais países circunscritos nas "terras de sangue", é bastante relevante a presença de grupos étnicos vizinhos na Ucrânia. Ainda hoje pouco menos de 25% de sua população é de origem russa, em sua maioria concentrados no sul e especialmente leste do país, locais onde o russo é o idioma principal. Esse perfil multinacional de Estados com fronteiras impostas de cima para baixo por tratados e guerras é crucial para entender os conflitos na região.
A presença de russos, bielorrussos e ucranianos justificou a invasão da metade oriental da Polônia em 1939. Era necessário, segundo Stálin, defendê-los daqueles que estavam invadindo a metade ocidental - os alemães, com quem, em cláusula secreta do pacto Molotov-Ribbentrop, compactuara a divisão do leste europeu em duas de influência.
Do mesmo modo, a considerável comunidade russa na Ucrânia e Bielorrússia sempre embasou os tentáculos de Moscou, dos mais leves aos mais severos, sobre ambos. A própria Rússia é um país multiétnico. "A Rússia nunca foi um Estado-nação como entendemos esse conceito no Ocidente. A Rússia foi um império, mas nunca um Estado-nação", diz Mira Milosevich, analista para Rússia e Eurásia do Real Instituto Elcano da Espanha, à BBC News.
Com a desintegração da União Soviética, "tudo que havia sido construído em mais de mil anos foi em grande parte perdido", diz Milosevich. Um sentimento de humilhação não apenas politica e econômica, mas cultural. Tamanha perda de identidade levou Putin a considerar o colapso soviético, independente de sua crítica ideológica àquele regime, como "a maior catástrofe geopolítica do século 20": "Foi a desintegração da Rússia histórica sob o nome de União Soviética".
O despencar da Cortina de Ferro aparentava ser o "fim da História", como o cientista político conservador Francis Fukoyama definiu a aparente hegemonia irreversível da democracia e do capitalismo liberais, em um sistema internacional unipolar liderado os Estados Unidos. A fragilidade de uma Rússia em transição foi entendida por Washington, seja no governo republicano de George W. Bush ou do democrata Bill Clinton, como oportunidade para expandir a OTAN para o leste. A letargia de Moscou em algum momento terminaria. Era preciso aproveitar aquele vácuo temporário para fortalecer a aliança antes que o inimigo acordasse.
O primeiro sinal veio com o fim da Alemanha Oriental. Acuada, a ainda União Soviética teve que aceitar uma Alemanha unificada nos braços da OTAN, o que acarretava engolir tropas da aliança em território até então sob sua órbita de influência. Quase quatrocentos mil militares soviéticos tiveram que abandonar Berlim e arredores entre 1990 e 1994. Uma "linha vermelha", porém, precisava ser riscada: como defesa prévia, a OTAN teria que assegurar que não incorporaria os demais países do extinto Pacto de Varsóvia. Mísseis e soldados ocidentais a poucos quilômetros de suas fronteiras era inadmissível.
Em busca de um bom relacionamento capaz de ampliar acordos de não-proliferação nuclear , o então secretário de Estado norte-americano, James Baker, sinalizou ao líder soviético Mikail Gorbachev concordar com a contrapartida. A promessa, contudo, nunca foi oficializada. Se a Casa Branca indicasse suas pretensões reais, Moscou inviabilizaria qualquer negociação sobre a desnuclearização da Ucrânia, terceira maior reserva nuclear do mundo após Rússia e Estados Unidos.
Somente após a assinatura do acordo tripartite que cedeu aos russos as armas nucleares em território ucraniano em troca de garantias a respeito da soberania de Kiev, os Estados Unidos puderam iniciar sua política de "portas abertas". Entre 1997 e 2009, República Checa, Hungria, Polônia, Bulgária, Romênia, Eslováquia, Eslovênia, Croácia e Albânia ingressaram na aliança. Em 2004, para ainda maior incômodo russo, seguiram o mesmo caminho as ex-repúblicas soviéticas bálticas Estônia, Letônia e Lituânia. A desconfiança se instalava definitivamente no Kremlin. A sensação de traição se juntara ao de humilhação.
Os disfuncionais anos liberais de Yeltsin e sua errática transição democrática reforçaram a sensação de um país em colapso e permitiram ao Ocidente colocar em prática sem maiores resistência suas pretensões. A ascensão de Putin a partir do inicio deste século, porém, alterou a correlação de forças. Com ele, reemergia o que Aleksandr Dugin, cientista político e considerado referência intelectual do presidente russo, define como "eurasianismo": uma concepção de ordem multipolar crítica à hegemonia norte-americana e que "preconiza a integração, na base da civilização comum", do território do antigo império russo ou da União Soviética".
Tornava-se, portanto, prioridade a restauração do status de potência da Rússia após uma década em que consideram terem sido mantidos à margem das principais decisões do mundo. "Putin se vê como o salvador da Rússia", resume Milosevich. Reemergia o ideal, intrínseco à grande parte da sociedade do país, da "Grande Rússia". E, além da Bielorrússia, sob a ótica dessa identidade eurasiana, nenhum outro país é tão visto como "quintal" como a Ucrânia. Um sentimento que encontra raízes ainda antes dos czares, na Kievan Rus, a medieval federação eslava que reunia boa parte do que são hoje os três países e cuja capital era a hoje capital ucraniana. A Rússia nasceu em Kiev, já escreveu Putin.
Para ele, se não é possível reaver como antes as terras ucranianas e seu consequente amplo acesso ao Mar Negro, é inaceitável perdê-las de sua órbita. "O Ocidente pensa que a União Soviética era somente uma criação comunista e aqueles Estados eram independentes antes dela. Nunca existiram como Estados e representam apenas distritos administrativos sem nenhum significado histórico ou político dentro do Império russo ou da União Soviética. Foram criados com suas atuais fronteiras após o colapso soviético", argumentou Dugin em entrevista à Folha de São Paulo, em 2014.
A crescentes receitas do petróleo ofereceram a Putin os meios econômicos para seu projeto. A modernização das Forças Armadas se insere nesse contexto como ponto fundamental. Recuperava com ela o poder de barganha russo, para além de suas ogivas nucleares nem sempre funcionais para certos tipos de deterrência. Hoje, em proporção ao PIB, os gastos com defesa do país são maior que os dos Estados Unidos e cerca do dobro dos membros da OTAN. Como exemplo, em uma década, mais de mil aeronaves foram adquiridas, segundo o Kremlin
A partir desse cenário, ganhou proeminência na agenda externa de Moscou um novo acordo sobre armas nucleares de curto e médio alcance na Europa, em substituição ao abandonado por Trump - e principalmente o processo de admissão da Ucrânia ( além de Bielorrússia e Geórgia) no organismo transatlântico, em andamento desde 2008. É imperioso, para Putin, a permanência do vizinho como um "Estado tampão"; um "algodão" entre os cristais russos e ocidentais que se atritam.
A Rússia se sente ameaçada pelo Ocidente. Razões não faltam. "Eles [a OTAN] deveriam ter tratado a Rússia como um aliado em potencial, ter fortalecido o país, mas foram na direção oposta. São vocês que vieram até nossas fronteiras e agora dizem que a Ucrânia se tornará um membro da OTAN. Ou, mesmo que não se junte à OTAN, que bases e sistemas de ataque serão instalados em seu território por meio de acordos bilaterais", defendeu-se Putin em resposta a uma jornalista britânica em dezembro
A crise com o vizinho vem em um crescente desde a "Revolução Laranja", em 2004, quando passeatas, vigílias e greves pressionaram a Suprema Corte do país a anular, diante de evidências de corrupção, fraude e intimidação, a eleição de Viktor Yanukovych, candidato preferido de Putin. Em nova votação, saiu-se vencedor o anteriormente derrotado Viktor Yushchenko, favorável a uma aproximação político-econômica com o Ocidente.
Como pano de fundo, era a História dando sinal de vida. Atrocidades dos mais variados tipos de crueldade e terror deixam marcas perenes em milhões de famílias dizimadas ou divididas. Projetos de poder são atualizados. O país expunha as latentes cisões internas decorrentes dos traumas da submissão ao czarismo e stalinismo e a presença relevante de uma comunidade russófona.
Inúmeras versões se disseminaram a respeito do envolvimento externo tanto no levante como no processo eleitoral, seja por parte de Putin ou da Casa Branca e aliados. Debita-se até hoje na conta do Kremlin a tentativa de envenenamento do então candidato Yushchenko, cujo rosto desfigurado correu o mundo. O fato inegável foi a perda de influência russa sobre seu histórico "quintal'.
Contudo, embates internos no governo e os fracassos nos índices econômicos reforçaram a oposição e, em 2010, Yanukovych foi eleito, sinalizando uma volta ao colo da Mãe Rússia. Entre suas promessas, a paralização do processo de adesão à OTAN e tornar o russo o segundo idioma oficial do país. Yushchenko, porém, mostrou no decorrer de seu governo autonomia maior do que Moscou esperava.
Impelido pela crise econômica, abriu um processo de aproximação com a União Europeia, cancelado após ameaças de sanções russas. É à Rússia que se destina grande parte das exportações da Ucrânia, cuja matriz energética depende do gás do vizinho. A desistência de Yushchenko empurrou novamente milhares de ucranianos para a Praça da Independência, em Kiev, no que ficou conhecido como Euromaidan ( Euro: Europa, maidan: praça). Catalisados por denúncias de corrupção contra o governo, pressionavam o governo a assinar o acordo de cooperação com o bloco, primeiro passo para futura adesão a ele.
A violenta resposta de Yushchenko, com tropa de choque e leis contra liberdade de expressão, disseminou o movimento para outras regiões do país, em uma crescente bola de neve que ampliou as pautas e os grupos participantes. De liberais pró-Ocidente até nacionalistas de extrema direita, milhares resistiram por semanas às forças de segurança e o frio de 20 graus negativos até que, após 200 mortos, Yushchenko caíu.
A crise, no entanto, não só não terminara como ganharia contornos mais graves. Enquanto o novo governo interino decidia assinar o acordo com os europeus e se comprometia com reformas necessárias ao processo de admissão, a Rússia recusava-se a reconhecê-lo, tachando a Euromaidan como golpe de estado. No sul e leste, a instabilidade foi estopim para o recrudescimento de ações armadas de separatistas pró-Rússia, acusados pelo Ocidente de serem financiados por Moscou.
Em março de 2014, o ataque de um desses grupos à base do Exército ucraniano em Sinferopol, na Crimeia, península onde, por acordo, sedia-se também a frota naval russa no Mar Negro, veio acompanhado de uma silenciosa e fulminante invasão russa à região. Voluntários civis se somaram ao que acreditavam ser a "libertação da Crimeia". Uma ocupação necessária para proteger a maioria russa ali presente, segundo Putin, em retórica semelhante a de Stálin.
Difícil precisar a proporção, mas, de fato, boa parte da população local concordou com a invasão, referendada em votação não reconhecida pelo Ocidente por ter sido, segundo esses países, realizada "sob a mira de Kalashnikovs". Em Donbas, região das províncias russófonas de Donetsk e Luhansk, secessionistas chegaram a declarar independência de Kiev e a formação da Novorossia (Nova Rússia), reforçando rumores de presença militar e tentativa de anexação russas.
Em 2015, o Acordo de Minsk, mediado por França a Alemanha, obteve um cessar-fogo. As tensões, todavia, permaneceram latentes. Continuam emperradas as negociações para eleições monitoradas por organismos internacionais em Donbas e sobre o nível de autonomia a ser dada àquelas províncias. O Kremlin considera Paris e Berlim responsáveis pelo fracasso do acordo. Em novembro, chegou ao ponto de publicar correspondência privada entre as três diplomacias a fim de demonstrar a leniência ocidental com a postura reticente do governo de Volodymyr Zelensky, um ex-comediante "antissistema" e apoiador do
Euromaidan.Sanções econômicas à Rússia foram impostas por Estados Unidos e União Europeia após a anexação da Crimeia. O cessar-fogo foi, por diversas vezes, violado pelos dois lados. Segundo a AFP, o conflito resultou em aproximadamente 13 mil mortos até hoje. Em 2017, a União Europeia isentou cidadãos ucranianos de visto de entrada no espaço Schengen. O Parlamento da Ucrânia aprovou, dois anos depois, reformas constitucionais que pavimentam a entrada na OTAN e no bloco europeu. Em 2020, o país tornou-se o sexto estado a receber o status de "parceiro da OTAN com capacidades expandidas", juntando-se a Austrália, Finlândia, Geórgia, Jordânia e Suécia.
A Ucrânia acusa a Rússia de continuar a aparelhar separatistas. Moscou garante que o Ocidente age igual: enquanto suspeita que o centro de treinamento ucraniano em construção com ajuda britânica seja, na verdade, uma base militar estrangeira, vê barcos de patrulha e drones serem fornecidos por Estados Unidos e Turquia respectivamente e instrutores militares ocidentais desembarcarem em número cada vez maior em Kiev. Para seu incômodo ainda maior, cresceram os exercícios militares de países da OTAN no Mar Negro.
Em abril passado, alegando serem meros exercícios militares, Putin deslocou tropas para a fronteira ucraniana. Recuou, mas poucos meses depois enviou seu recado de outra forma: em forte artigo publicado no site do Kremlin, após descrever as relações históricas entre as duas nações, acusou Zelensky de conduzir um "projeto antirrusso". "Aqueles que colocarem a Ucrânia contra a Rússia destruirão seu próprio país", ameaçou. Quase ao mesmo tempo, em junho, um destroier britânico navegou por águas territoriais ao largo da Crimeia, não reconhecida por Londres como pertencente à Rússia, o que provocou disparos russos contra sua direção. Em novembro, um bombardeiro norte-americano voou perto da fronteira russa no Mar Negro.
Não se conhece precisamente a razão para Putin dobrar a aposta no final do ano passado, ao voltar a enviar forças militares e armamentos - desta vez, cerca de 130 mil militares - para as proximidades do território ucraniano. Não só o fez como emitiu sinais mais assertivos. Exigiu "garantias de segurança juridicamente vinculantes a longo prazo" a respeito da não incorporação da Ucrânia pela OTAN, assim como a não instalação de bases e sistemas de armas de logo alcance no país - a partir do qual mísseis podem chegar a Moscou em pouco mais de cinco minutos. Reivindica ainda a retirada de tropas e equipamentos dos países bálticos e Europa Oriental.