domingo, 14 de outubro de 2012

O inferno de Dante e os traidores da nação

Por Murillo Victorazzo

Entre tantos ensinamentos que aprendi com meus pais, um em especial me veio à cabeça nesses meses de campanha eleitoral: o honesto não precisa se vangloriar de sua honestidade. Ela é uma obrigação, um pré-requisito tão óbvio, que deveria estar implícito na análise sobre qualquer pessoa. Não preciso e, algumas vezes, desconfio de quem precisa de arroubos verbais para reafirmar o próprio caráter.

Sei, porém, que, na nossa política -e não é de hoje -, a honestidade, de tão escassa, tornou-se um diferencial. O noticiário dos últimos dias só confirma nosso infortúnio. É julgamento de mensalão, é CPI do Cachoeira e suas ramificações (como a promíscua relação entre o governador Cabral e a empreiteira Delta), são os casos envolvendo prefeitos da região metropolitana... Nessas últimas eleições, nos deparamos ainda com a suposta compra de um pequeno partido (PTN) pela campanha do prefeito reeleito Eduardo Paes.

Vendo tal panorama, veio-me à cabeça A Divina Comédia, eterna obra de Dante Alighieri. Épico poema, marco do Renascimento, ela, já no século XIV, abordava os desvios do homem. Em sua viagem ao inferno, guiado pelo poeta italiano Virgílio, Dante descreveu o local como nove círculos de sofrimentos crescentes, proporcionais à gravidade do pecado, localizados dentro da Terra.

Baseado naquela visão de inferno, em instante de devaneio, fiquei imaginando para onde iriam, após suas mortes, os protagonistas desses escândalos São tantos pecados que certamente galgariam vários círculos. Quem sabe, para começar, o quarto, as Colinas de Rochas, que representam a ganância, onde pródigos e avarentos se encontram e acabam por ter que carregarem enormes pesos de barra e moedas de ouro uns contra os outros. (abaixo, ilustração de Gustavo Duré representando o quarto círculo)




Teriam eles também lugar garantido no Maleboge, o oitavo círculo, onde ficam os fraudadores. Sofreriam no quinto de seus 10 fossos, destinado aos corruptos, submersos em um piche fervente. Se permanecessem com a cabeça para fora, seriam atingidos por flechas atiradas por demônios. Segundo Alighieri, eles deveriam ficar escondidos sob o piche porque suas negociações sempre são feitas às escondidas.

Alguns, em especial aqueles que na oposição pregavam a ética, mas revelaram-se ser iguais ou pior do que os que combatiam, também teriam lugar no sexto fosso: os dos hipócritas. Penariam no inferno com roupas brilhantes, porém pesadas como chumbo. Peso que deveriam ter sentido, ainda vivos, em suas consciências; o peso de seu falso brilho.

Mas a esses "marginais do poder", como definiu brilhantemente o ministro Celso de Mello em seu voto no STF acerca dos réus do mensalão, ainda estaria reservado o último e pior círculo: o lago Cocite. Nele estão os traidores! Lá, não há fogo, e sim muito frio. Congelado, o lago, localizado no centro da Terra, é formado pelas lágrimas dos condenados e pelos rios do inferno que nele deságuam seu sangue.

Para Alighieri, a traição é o mais grave e sórdido de todos os pecados, pois se trata de um crime contra alguém que confia no pecador e, por isto, está indefeso. Á época, o poeta já destinava uma das quatro esferas do lago aos traidores da pátria.

Confesso que me satisfiz ao imaginar a alma desses políticos que não dignificam seus mandatos delegados pelo povo, traindo quem deles espera melhores condições de vida, submersa no gelo até o pescoço, na esfera de Antenora. Por alguns minutos, apropriei-me do inferno de Dante, aprovando-o como se fosse meu também.

Em artigo publicado no jornal O Globo semana retrasada, o escritor Marco Lucchesi, também usando a Divina Comédia para falar sobre a expectativa em relação ao julgamento no STF, foi no alvo: "Crime bárbaro: aqueles que a deviam servir acabam por desservi-la de modo infame e imperdoável. Penso no Lúcifer devorando os que traíram o poder que lhes foi conferido, através do lídimo processo democrático. A traição (...) ocupa a parte mais funda do Inferno e a mais afastada de Deus, como se formasse um cordão sanitário".

Ainda que algumas definições de pecado tenham mudado entre os séculos XIV e XXI, a gravidade de outros permanece a mesma. O inferno de Dante é um retrato poético brilhante que serve para nos demonstrar a perversidade desses fatos que, infelizmente, nos são impostos dia após dia. E, mesmo ainda acreditando na Justiça dos homens, em especial nos nobres ministros da Suprema Corte brasileira, nos confortar por nos fazer imaginar que, pelo menos em outra dimensão, o crime não compensa.

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Nem ressaca nem marola: a onda PSOL e a esmagadora reeleição de Paes no Rio

Por Murillo Victorazzo

Historicamente palco de acirradas eleições municipais, a cidade do Rio de Janeiro viu, este ano, uma para lá de previsível disputa. Com 20 partidos em sua coligação e o apoio do governador Sérgio Cabral, da presidente Dilma Rousseff, do ex-presidente Lula e dos três senadores fluminenses, o prefeito Eduardo Paes (PMDB) em momento algum viu ameaçada sua reeleição já no primeiro turno.

Com 64,6% dos votos válidos, Paes sagrou-se vice-campeão de votos entre as capitais do país. Perdeu por pouco para o prefeito reeleito de Porto Alegre, José Fortunati (PDT), que chegou aos 65,2%. Seu mar de votos, porém, não ofusca o ótimo desempenho de Marcelo Freixo. De um partido pequeno e com campanha muito mais pobre, o socialista surpreendeu ao atingir os 28,1%.

Quando se iniciou o horário eleitoral na TV e no rádio, muitos indagavam se Freixo, com pouco mais de um minuto, teria fôlego para ameaçar a poderosa máquina peemedebista. O tamanho da onda vermelha que se formava na Zona Sul e Grande Tijuca (Tijuca, Vila Isabel, Andaraí, Méier) era a incógnita que revelaria se os cariocas voltariam às urnas no final de outubro. As comparações com a onda verde de Fernando Gabeira, originada nas mesmas regiões da cidade em 2008, eram inevitáveis.

Após 45 dias de palanque eletrônico, porém, o que se constatou foi que Freixo não só teve fôlego para avançar como cresceu tanto quanto Paes, mesmo este ocupando metade do tempo destinado aos candidatos (em agosto, as pesquisas indicavam um placar de 47% a 12% de intenções de votos totais). Uma performance superior a de Gabeira, que, no primeiro turno de quatro anos atrás, obteve 25% dos votos válidos.

No entanto, embora o percentual de Freixo e Gabeira tenham sido próximos, suas ondas propagaram-se de forma diferente. Gabeira suplantou Paes com facilidade na Tijuca e Zona Sul, ultrapassando a maioria absoluta dos votos na região. Nos bairros mais nobres (Leblon, Ipanema, Copacabana e Lagoa), bateu a casa dos 60%. Em muitos pontos das zonas Oeste e Norte, no entanto, não atingiu sequer os 15%.

Já Freixo, em que pese tenha alcançado a faixa dos 40% na Zona Sul e Grande Tijuca, venceu o prefeito em apenas uma zona eleitoral. Conseguiu, entretanto, surpreender nas zonas Norte e, em especial, Oeste, ficando entre inimagináveis 25% e 30% em pontos de Olaria, Engenho de Dentro, Padre Miguel e Realengo. Sua votação foi mais espalhada do que a de Gabeira, que teve nos bairros nobres um verdadeiro bunker.

Dois dados retratam bem a diferença entre as duas candidaturas: ambas tiveram seu pior desempenho na mesma 246º ZE, que reúne seções de Campo Grande e Santa Cruz, na Zona Oeste. Freixo, porém, levou lá quase o dobro de votos de Gabeira: 15,6% x 8,9%.  Por outro lado, enquanto o teto do socialista foi de 48%, em Laranjeiras/Cosme Velho, o do verde chegou aos 64%, em Ipanema (Freixo teve 37%).

O perfil esquerdista de Freixo em muito explica por que ele, embora com ótima votação, não encontrou nos bairros nobres respaldo igual ao de Gabeira. Sentia-se na classe média/alta mais à direita grande dificuldade em votar no PSOL, legenda vista como radical, por mais incômodo que as denúncias que pairam sobre o PMDB fluminense causasse. Não por acaso, o tucano Otávio Leite atingiu naqueles locais o patamar dos 5% (o dobro do obtido no total).

Paes, que, em 2008, tornara-se uma espécie de persona non grata para grande parte da elite carioca, dobrou, este ano, sua votação entre eles: alcançou a média de 52%. Falaram mais alto a rejeição ideológica e as obras que se multiplicam pela cidade, em detrimento do discurso da ética, geralmente tão priorizado nesses setores.

Em contrapartida, o socialista herdou grande parte dos eleitores que depositavam, no passado, seus votos no PT e no brizolista PDT, mas hoje refutam a aliança com o PMDB. Uma migração inviável de ocorrer com Gabeira devido a sua aproximação com PSDB e DEM. Some-se a isso o reconhecimento por seu trabalho na CPI das milícias, assunto que toca em especial a população da Zona Oeste, e encontramos a resposta para seu bom desempenho em bairros menos elitizados.

É bem verdade que Gabeira foi para o segundo turno, quando então perdeu para Paes por meros 55 mil votos. Mas, naquela disputa, ressalve-se, o então prefeito César Maia sofria grande desgaste e nomes como Marcello Crivela (PRB) e Jandira Feghali (PCdoB) atingiram os dois dígitos. A Freixo, faltaram outras candidaturas oposicionistas com maior poder de fogo para tirar votos do prefeito e forçar o segundo turno.

Imaginava-se que esse papel caberia à chapa Rodrigo Maia/Clarissa Garotinho, por, em tese, terem capilaridade no eleitorado mais pobre. Entretanto, mais do que a estagnação, o que se viu foi o desmantelamento da chapa. Antes do horário eleitoral, eles tinham 6% de intenções de votos. Terminaram com pouco menos do que 3%. De Otávio Leite pouco se esperava, pois a debilidade do PSDB carioca, depois do ocaso de ex-governador Marcelo Alencar, tornou-se crônica.

As famílias Maias e Garotinho foram, sem dúvida, as grandes derrotadas na capital fluminense. Rodrigo e César (DEM), de certo modo, debilitaram-se ainda mais que Clarissa e Anthony (PR), cuja força maior tradicionalmente vem da Baixada Fluminense e do interior do estado. A esposa e mãe Rosinha, ainda que sob recurso no TSE, foi reeleita prefeita de Campos com respeitáveis 70% dos votos.

Além de ter que se deparar com o pífio papel protagonizado pelo filho, César viu ele próprio sair politicamente menor. Ao decidir sair candidato a vereador, imaginava ele ser não apenas o mais votado da cidade. Almejava ser recordista de votos e, com este ativo, ser o líder natural de uma oposição mais combativa do que a da última legislatura. Integrantes do DEM afirmavam que o ex-prefeito projetava receber, no mínimo, 100 mil votos, o que levaria o partido a conquistar cerca de oito das 51 cadeiras da Câmara. Menos do que isto, sentir-se-ia derrotado.

A estratégia do ex-prefeito fazia algum sentido. Ninguém ficou mais tempo no gabinete principal do Palácio da Cidade do que ele. Por mais desgastado que estivesse, tendo ficado apenas em quarto lugar na corrida de 2010 para o Senado, doze anos no poder sedimentam um eleitorado cativo suficiente para se destacar em eleições proporcionais. Mas, abertas a urnas, veio o choque de realidade: com constrangedores (para ele) 44 mil votos, em um eleitorado de 4,7 milhões, César foi apenas o terceiro mais votado, e seu partido, bem distante das previsões, fez somente três vereadores, cinco a menos que quatro anos atrás.

Aquele que um dia sonhou ser presidente da República, liderando o campo conservador, mostrou ter se apequenado. Um declínio cada vez mais agudo iniciado em meados de seu terceiro e último mandato no Executivo municipal. Levando-se em conta a fraqueza do DEM nacionalmente e a hegemonia do PMDB no Rio de Janeiro, não parece arriscado dizer que é um melancólico fim de carreira.

Paes conseguiu votação histórica - em números absolutos e proporcionais-, usufruirá de maioria esmagadora no Legislativo (39 dos 51 vereadores) e teve êxito na missão de penetrar em segmentos que lhe eram muito críticos. Rompeu com chavões como o que apenas os mais pobres, "desinformados" e "sem instrução" votariam nele. Em 90 das 97 zonas eleitorais, faturou a maioria absoluta. Mais do que votos, ganhou maior estatura política.

Freixo, no entanto, também saiu politicamente vitorioso. Mesmo diante de dificuldades estruturais de campanha, polarizou praticamente sozinho com o prefeito. Ao contrário do que alguns diziam, sua candidatura não foi apenas "modinha" de universitário, ou "papo de intelectual". Seu partido, além de tornar-se a maior bancada de oposição (quatro vereadores), consolidou-se como o preferido da esquerda tradicional carioca. Os 115 mil votos de legenda, em contraste com os 20 mil de um PT a reboque do PMDB, sinalizam a mudança.

O crescimento do PSOL carioca encontrou ainda eco do outro lado da Baía da Guanabara. Em Niterói, terra natal de Freixo, seu candidato, Flávio Serafini, teve surpreendentes 18,4%. Ficou em terceiro lugar, atrás do petista Rodrigo Neves e do pedetista Felipe Peixoto. Definitivamente, se a onda vermelha não causou forte ressaca nas praias peemedebistas, chamá-la de mera marola é um grave erro de interpretação dos fatos.

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Em tempo: foi no noroeste do estado do Rio de Janeiro, em Itaocara, que, no último dia 7, o PSOL elegeu seu primeiro prefeito: Gelsimar Gonzaga, um ex-cortador de cana de 48 anos que virou dirigente sindical nos anos 80 e ajudou na fundação tanto do PT quanto de seu dissidente PSOL, em 2005.