quinta-feira, 7 de março de 2013

Qual socialismo cabe em Caracas?

Por Clóvis Rossi (Folha de São Paulo, 07/03/2013)

O socialismo do século 21 de Hugo Chávez é menos socialista que o do século 20, se por socialismo se entender a estatização dos meios de produção. 
É o que mostra o Banco Central da Venezuela: o reinado de Chávez aumentou, sim, a participação do Estado na economia, mas o setor privado ainda responde por 58,2% do Produto Interno Bruto. O Estado avançou de 35%, quando Chávez assumiu, em 1999, para 41,8% em 2012.

A pergunta seguinte é óbvia: se, como parece mais provável hoje, Nicolás Maduro se eleger presidente, haverá mais avanço do Estado ou alguma recuperação do setor privado? 
A boa lógica manda cravar a segunda hipótese. Simples de explicar: o vice-presidente é tido como homem de confiança da liderança cubana, uma das razões, talvez a principal, para que tenha sido ungido por Chávez como seu sucessor.

Se Cuba está abrindo espaço para o setor privado, não faria sentido recomendar o contrário a Maduro. 
Até porque a liderança cubana tem interesse vital em que a Venezuela dê certo: de 20% a 22% da economia cubana é gerado pela estreita associação com a Venezuela.

E, para a Venezuela dar certo, é indispensável refazer as pontes com o setor privado. Não bastam os programas sociais que fizeram a glória eleitoral de Chávez e serão parte fixa da agenda política venezuelana pelo futuro previsível. 
Para manter tais programas, o setor privado terá que ser chamado a cooperar porque o papel do Estado como locomotiva econômica aproxima-se da exaustão.

A ineficiência da economia venezuelana reflete-se em dois fenômenos que minam a popularidade de qualquer governo: inflação exagerada (20,1% em 2012, o mais alto índice da América Latina) e desabastecimento (20,4% dos produtos que os consumidores pedem na rede comercial não estavam disponíveis em janeiro).

Para não falar no deficit público, que, em 2012, situou-se na altura de 11,9% do PIB, patamar insustentável no médio prazo e que, obviamente, dificulta a expansão do gasto público, principal motor do crescimento de 45% que a economia da Venezuela conheceu nos anos Chávez.

Há, portanto, razões de sobra para supor que Maduro, se de fato se eleger, olhará menos para o socialismo cubano do século 20 e mais para o "lulismo", cujo líder "também fez do 'povo' e do alívio da pobreza uma prioridade, e, com melhor gerenciamento e sem a polarização no confronto com o 'império', teve impressionante sucesso", como escreve Jon Lee Anderson para a "New Yorker".

Até porque rótulos como "socialismo do século 21" contam pouco ou nada para as massas, como depõe para "El País" Beatriz Lecumberri, ex-chefe do escritório da agência France Presse em Caracas: "O socialismo e a luta contra o capitalismo não impregnaram um povo consumista, individualista e convencido de que o petróleo resolverá seus problemas".

Ou, como dizia o então líder chinês Deng Xiaoping, "não importa a cor do gato, desde que ele pegue o rato". 
Maduro terá, pois, que decidir com que socialismo pegar o rato da prosperidade venezuelana.

quarta-feira, 6 de março de 2013

Chávez: nem Deus, nem o diabo

Por Murillo Victorazzo

Chávez não era o generoso democrata, salvador dos latinos americanos, como alguns da esquerda preferiam acreditar.Tampouco era o diabo na Terra, o "anti-Cristo", o "herdeiro" de Stálin, um perigo para o Brasil (seria o mesmo que o gato ter medo do rato), como a direitona conservadora, representada por colunistas como Reinaldo Azevedo, Merval Pereira, Diogo Mainardi, pregava.

A receita do petróleo, que, até sua eleição, ia apenas para as mãos de uma elite corrupta e parasita, com ele, chegou ao andar debaixo. Com a criação das "missões", financiada por este dinheiro, Chávez fez por merecer toda a admiração e gratidão que os mais pobres lhe dedicavam.

Em seu governo, a pobreza na Venezuela caiu mais de 20%, e o país passou a registrar a menor desigualdade entre ricos e pobres entre nações latino-americanas, de acordo com relatório da ONU. As taxas de analfabetismo e de mortalidade infantil despencaram.

Por outro lado, embora seus fanáticos defensores não queiram ver, era sim um protoditador. Ainda que não haja notícias de mortos e desaparecidos políticos, perseguiu adversários, restringiu liberdades individuais, prinicipalmente a de expressão, e, pior, deu respaldo a terroristas como os das Farc.

Sua plataforma econômica, exageradamente estatista/nacionalista, já se mostrava inflacionária. O desabastecimento é um drama cotidiano para venezuelanos. Sua retórica antiamericana era não apenas demagógica e anacrônica como hipócrita: 75% das exportações de petróleo vão para o Tio Sam.

Na balança dos prós e contras, Chávez criou um regime que não deve ser seguido por país algum. Mas não se pode negar: seu estilo caudilho boquirroto externava uma personalidade polarizadora e contraditória, como de tantos outros líderes da História.

Contradição que pode ser sintetizada no fato de ter sido um projeto de tirano com respaldo - não apenas uma vez - do voto popular.

terça-feira, 5 de março de 2013

O tiro no pé italiano: um país à beira do abismo

Por Murillo Victorazzo

Ao colocar seu cargo à disposição e antecipar as eleições gerais, o primeiro-ministro italiano, Mário Monti, desejava dar ao povo a chance de formar um governo mais forte, capaz de atravessar a tempestade da grave crise econômica sem maiores indefinições. Seria necessário um governo avalizado pelo eleitorado para   prosseguir nas reformas necessárias.

Monti sabia que seu severo pacote de austeridade fiscal seria reprovado pelo voto popular. Diante de tamanha recessão e desemprego, os italianos extravasariam nas urnas sua indignação. Após os intermináveis escândalos, a centro-direita do famigerado Sílvio Berlusconi parecia não ter fôlego para voltar ao poder. A vitória cairia no colo da centro-esquerda de Pier Bersani.

O que ele não imaginava, mais do que obter meros 10% dos votos, é que o pleito fosse ter efeito inverso. Para formar o necessário governo de maioria, Bersani precisava que sua coligação levasse metade mais dos parlamentares na Câmara e no Senado. Conseguiu na primeira, mas não no segundo. A pulverização do eleitorado em três partes quase iguais embaralhou o jogo parlamentar, que poderia se ajustar com alianças se não fossem o segundo e terceiro colocados quem são.

Para a perplexidade e deboche dos mercados e imprensa mundiais, as urnas mostraram um Berlusconi ainda com força - mais do que se suponha e se desejava (menos de um ponto percentual atrás do centro-esquerdista) - e revelou ao planeta o comediante Beppe Grillo. Este, sem dúvida, a maior e mais desagradável surpresa. O grande responsável por Bersani ter "vencido, mas não levado", como o próprio admitiu.

A complicada situação econômica exacerbou o desencanto dos italianos com os políticos tradicionais, que não cansam de ilustrar o noticiário com escândalos de corrupção. Grillo foi a voz do protesto de um povo desiludido, apreensivo com o futuro. O outsider que costuma aparece em cenários similares em todos os cantos do mundo. Seu partido, que se diz movimento, não tem sede nem hierarquia: todos militantes debatem pelas redes sociais. Vendeu-se como o "diferente de tudo que está aí", um homem íntegro e idealista.

Não há, até hoje, motivos para duvidar do caráter de Grillo. No entanto, uma pessoa que se dispõe a posar quase nu na capa de uma revista para fazer propaganda não pode ser levada a sério. Alguém que nega a política ao entrar nela é, querendo ou não, nada mais do que um populista. Dizer-se apolítico é a forma mais conveniente - e temerária - de se fazer política.  Apenas o radicalismo prosaico e presunçoso explica um postulante a premier ter como o lema um palavrão. Em seus discursos, mandava "todos" (os políticos) para "aquele lugar" como se fosse um mantra.

Pode-se até tentar compreender a reação do eleitor, considerado irresponsável por muitos na mídia europeia. Ele responde com fígado o que seu estômago e bolso sentem. Mas espera-se de quem deseja liderar uma nação ou ser o porta-voz das sonhadas transformações o discernimento entre política e politicagem. Deve-se combater a segunda, nunca a primeira.

Pregar e praticar a ética, ainda que necessário, não é o suficiente para querer liderar uma nação. Voto de protesto, sem consistência, é bom para movimento estudantil, não para formar um governo. Agora, com o cacife de um quarto dos votos, Grillo dá sinais de que não se aliará a ninguém. Logo que os resultados saíram, chamou Bersani de "morto que fala", ao insinuar que não dará voto de confiança a coalizão alguma. Por não entender que se aliar a alguém não significa torna-se igual ao aliado, sinaliza preferir ver o circo pegar fogo.

Sem maioria, Bersani não conseguirá formar um governo, e o presidente Giorgio Napolitano acabará obrigado a convocar novas eleições. Aos olhos da população, significará que o poço do descalabro do sistema político atual é ainda mais fundo. Quanto maior for a indignação, ainda maior será o número de votos em mim, deve pensar o comediante. Nada mais do que uma tática maquiavélica.

A favor de Grillo, seus aliados afirmam que ele não poderia  receber mais de 8 milhões de votos prometendo se livrar do sistema estabelecido e logo depois se aliar à "velha guarda". Decepcionaria seus eleitores. Embora plausível, do ponto de vista deles, tal argumento, por si só, explica o perigo de candidaturas deste tipo em um parlamentarismo. Tendem a se ver no dilema de ou engolir algum grau de pragmatismo, correndo o risco de, à primeira vista, desiludir os seus, ou cair na armadilha da inoperância.

Ainda mais preocupante é quando, majoritários, os "puros" descambam para a caça às bruxas messiânica. Historicamente, o autoritarismo foi seu fim. A retórica niilista de que nada presta, de aversão às instituições da democracia representativa, produziu na própria Itália, Benito Mussolini. Pavimentou, numa Alemanha caótica, a estrada de Adolf Hitler.

Não por acaso, ano passado, no rastro dessa mesma crise, o mundo se assustou com a expressiva votação do partido neonazista na Grécia e da extrema-direita xenófoba de Marine Le Pen na França. No Brasil, discurso e conjuntura semelhantes elegeram Fernando Collor, um dos governos mais corruptos e instáveis de nossa República. Outsiders sempre foram sinônimos de instabilidade e frustração.

Alguns jornais brasileiros de imediato simplificaram Grillo, rotulando-o de "o Tiririca da Itália". Afinal, embora o humor do primeiro tenha mais a ver com uma mistura de Bussunda com Rafinha Bastos, como ressalvou, no "Globo", o colunista Nélson Motta, do que com o besteirol ingênuo e oco do segundo, ambos são comediantes cujos milhões de votos foram inesperados sinais de protesto. Neste aspecto, a comparação faz sentido. Contudo, o palhaço deles é algo maior - e isto não necessariamente é um elogio.

Afora o brasileiro ter tornado-se "apenas" mais um deputado enquanto o italiano é o líder de seu partido, o que, no Parlamentarismo, significa o nome da sigla para chefiar o governo, a diferença reside nas ideias e no seu significado para o futuro do país. Tiririca não tem nada a dizer e nada representa para o falido quadro partidário brasileiro. Grillo, para o mal ou para o bem, quebrou o paradigma do, ainda que não oficial, bipartidarismo italiano. Até então, as eleições eram uma disputa entre os partidos Democrático e O Povo da Liberdade, ambos com outras pequenas legendas a seus reboques. Um furacão político nada efêmero que já deixou rastros.

Infelizmente, porém, tais ideias, quando não são prosaicas e apolíticas, são demagógicas e/ou arriscadas. Entre elas, estão defender um "salário-solidariedade" de mil euros para desempregados, a redução da semana de trabalho a 20 horas por semana e revisão da presença da Itália na União Europeia. Grillo, assim, seria, digamos, um Tiririca com mais verniz, com algo mais a falar, mas mais perigoso - ainda que ele talvez não tenha consciência do risco que representa.

A diferença entre o veneno e o remédio é a dose. Qualquer economista, não importa de que escola teórica fosse, pregava, com razão, um ajuste fiscal na Itália. Era inevitável. Mas a intensidade do pacote patrocinado por Bruxelas e Berlim e aplicado por Monti, nos moldes que a ortodoxia liberal aplaude, mostrou-se ser um fardo grande demais para a população. Nada, porém, que justifique propostas populistas. Na política e na econômica, não há (ou não deveria haver) espaço para maniqueísmos.

As crises são o cenário ideal para se propagar propostas imediatistas tão caras aos populistas. Se até mesmo David Cameron aproveitou o momento para praticar a eurofobia tradicional de seu partido, ao prometer plebiscito sobre a permanência da Grã Bretanha na União Europeia, imagina Grillo e nacionalistas de outros países. As chances de que europeus implodam pelo voto o bloco ou a Zona do Euro não são desprezíveis. Em economia, contudo, nem sempre o que é bom a curto-prazo - ou parece ser - é de fato o certo a longo-prazo.

Grillo, apesar de ter se destacado principalmente entre os mais jovens - justamente a faixa do eleitorado mais atingida pelo desemprego e suscetível a bravatas radicais, utópicas -, conseguiu sucesso até perante os ditos formadores de opinião, aqueles dos quais se espera maior grau de politização. Um sinal da intensidade dos dias de fúria vividos na "Bota" nesses últimos meses. Mas não é inédito ver a classe média perder a racionalidade quando ela sente seu bolso e emprego serem corroídos. Depois se arrependem...

Da Alemanha, o líder do partido social-democrata, Peer Steinbrück, adversário de Ângela Merkel nas próximas eleições, não perdoou. Conhecido pela franqueza pouco comum em políticos de sua posição, disparou, referindo-se ao desempenho de Berlusconi e Grillo: "Estou estarrecido que a Itália tenha votado nestes dois palhaços". No embalo da sinceridade alemã, uma das mais importantes revistas do mundo, a inglesa "The Economist", trouxe, na capa de sua última edição, os dois lado a lado, sob o título "Escolha o palhaço". No subtítulo: "Como o desastre da eleição da Itália ameaça o futuro do euro".

Quando o voto de protesto ajuda a piorar a situação, a indignação torna-se nada mais do que um tiro no pé. O maior derrotado dessas eleições é o próprio país, que agora enfrenta uma severa crise econômica sob uma instabilidade política de proporções ainda não mensurada e com sua credibilidade perante a comunidade internacional mais arranhada do que a dos políticos que tanto rejeitou. Em recessão, a Itália se vê, se não sem governo, com um governo com data de validade próxima.

Os italianos, mesmo inconscientemente, ao desejarem se afastar do precipício, deram alguns passos a mais rumo a ele.