sexta-feira, 31 de março de 2023

A sétima vida de Bibi?

Murillo Victorazzo

Bibi. A sonoridade do apelido talvez não corresponda a sua personalidade e seu estilo político. Com pequenas diferenças no tom extremado, Benjamin Netanyahu é, ao lado de Donald Trump, Wladimir Putin, Victor Orban, Jair Bolsonaro, Giorgia Meloni e Marine Le Pen, um dos expoentes da direita radical internacional. Controverso, suscita paixões e ódios, marca também de seus semelhantes, polarizadores por natureza. Extremamente habilidoso, carismático para muitos, dono de ótima oratória e pouco sutil em seus embates, é daquelas "raposas" políticas raras de se encontrar. Raposa com alma de gato, dadas as inúmeras vidas políticas que sempre aparentou ter. 
Desde o seu primeiro mandato, amigos e inimigos se surpreendem com a resiliência de Netanyahu. Eleito primeiro-ministro de Israel pela primeira vez em 1996, caiu em 1999, voltando a liderar um gabinete dez anos depois. Entre períodos de alta popularidade e crises que o obrigaram a convocar seguidas eleições sem que ninguém conseguisse a maioria na Knesset (o Parlamento israelense), havia deixado o cargo em 2021 já como o mais longevo premiê da História do país. Ultrapassara o lendário fundador da pátria judaica, o trabalhista David Ben-Gurion, principal voz do sionismo socialista.

Fragilizado por seu indiciamento por suborno e fraude, Netanyahu não conseguira articular uma aliança que lhe desse os 61 votos necessários para permanecer no poder. Seu partido, o Likud, porém, continuou a ser o mais votado. A coalizão governista que se formou tinha em comum apenas um ponto: a rejeição ao seu nome. Tão ampla quanto heterogênea, unindo ex-aliados nacionalistas, liberais, árabes-israelenses e partido de centro-esquerda, o Gabinete do centrista Yair Lapid não tinha como durar muito tempo. As contradições internas eram grandes. Aproveitando-se delas, Netanyahu voltou ao cargo em dezembro, após o quinto pleito em quatro anos. Uma vitória apertada, é verdade, mas suficiente para reforçar sua imagem de fênix.

Para muitos, era o prenúncio de outros tantos anos sob sua liderança, dada as dificuldades de uma oposição unida. Mas, em apenas três meses, tudo mudou. Uma polêmica proposta de reforma judicial colocou em ebulição o país. Há treze semanas, Israel é palco de gigantescas manifestações. Uma greve geral paralisou as principais cidades na última terça-feira, empresários e agências de rating alertam sobre fuga de investimentos e militares se negam a cumprir missões, indisciplina polêmica porém emblemática para um político que tem a segurança nacional como mantra. Ex-chefes do Mossad, o renomado serviço de inteligência externa, e do Shin Bet, agência de segurança interna, juntaram-se às críticas com fortes declarações.

Elaborado pelo ministro da Justiça, Yariv Levin, também do Likud, o projeto permite a anulação de decisões da Suprema Corte pelo Knesset. Bastaria a maioria simples de 61 votos. Nas democracias liberais mundo afora, é o Judiciário quem tem a palavra final. Prevê ainda mais três vagas para o Legislativo na comissão que nomeia juízes. Hoje ela é formada por oito membros: o ministro da Justiça, dois parlamentares (geralmente um da coalizão e um da oposição), dois advogados eleitos pela Ordem dos Advogados e três juízes da Suprema Corte, sendo um deles o presidente. A alteração daria à coalizão governista maioria. 

Israel não tem um Constituição escrita, mas conta com "leis básicas", que, desde sua fundação, têm status constitucional, e "leis comuns". Pela proposta, toda as leis básicas aprovadas com menos de 61 votos perderiam retroativamente esse status. É o caso da lei do "respeito ao homem e a sua liberdade”, baliza dos direitos humanos no país. "É justamente esta lei que mais incomoda o governo hoje em dia, pois é com base nela que a Suprema Corte veta a grande maioria das ações consideradas ilegais na Cisjordânia", afirma João Koatz Miragaya, editor do site Conexão Israel e do podcast "Do lado esquerdo do muro", título alusivo à posição geográfica do país em relação ao muro que o separa da Cisjordânia.

Ameaçado também está o acesso da sociedade civil à Suprema Corte. Há cerca de 20 anos, é permitido que, em determinadas questões, entidades não-estatais recorram ao Judiciário, direito que passaria a ser restrito à(s) pessoa(s) diretamente afetadas. Diversas organizações de direitos humanos recorrem à Corte para evitar abusos na Cisjordânia, muitas vezes em auxílio a quem não tem recursos para buscar a Justiça.

 “Nosso Estado decidiu experimentar um método de autodestruição. Israel chegou a uma situação muito perigosa em relação à segregação interna devido ao plano da direita para enfraquecer o sistema judiciário e transformar o país em uma ditadura. Tenho 70 anos. Nunca imaginei que chegaríamos a este ponto. Este é o maior perigo existencial desde a independência.", afirmou à BBC Tamir Pardo, ex-comandante do Mossad.

Tamanha reação tem sua razão de ser. Um dos orgulhos israelenses é a autoimagem de "única democracia" do Oriente Médio. Acostumados com turbulências envolvendo o país em suas relações internacionais e a Questão Palestina, a comunidade internacional se espanta com a inusual convulsão interna, que, porém, tem potencial para se refletir no campo externo. A Casa Branca não mediu palavras e pediu a retirada do projeto. A discórdia atingiu o próprio governo: após contundente discurso no Knesset contra o projeto, o ministro da Defesa, Yoav Gallant, foi demitido. 

Diante das pressões e do clima conflagrado, Netanyahu anunciou, em um pronunciamento em que afirmou querer evitar uma guerra civil, a suspensão da tramitação da reforma até o fim do recesso legislativo, em maio. A greve-geral cessou, mas as manifestações continuam. Neste sábado, mais de 200 mil pessoas aglomeram-se na Kaplan, uma das principais avenidas do centro de Tel Aviv. A região metropolitana da cidade tem cerca de 1,5 milhão de habitantes. Muitos exigem o arquivamento imediato. A oposição coloca em dúvida a palavra do premiê. 

As posições de Netanyahu  em relação ao conflito com os palestinos são notórias. "Linha dura" com o Hamas, milícia terrorista que administra a Faixa da Gaza, e pouco preocupado com críticas a operações militares consideradas desproporcionais, é não só defensor dos assentamentos na Cisjordânia, ilegais sob o Direito Internacional, como defende sua expansão. Apoio a uma Palestina independente nunca estive em sua agenda. Em 2009, condicionou a abertura de negociações à desmilitarização do hipotético país, o que não foi aceito pelos palestinos. Ainda como líder do Likud, exortou os conservadores contra o Acordo de Oslo, assinado em 1993 pelo então primeiro-ministro Ytzhak Rabin e o líder da OLP, Yasser Arafat. Intermediado pelo presidente norte-americano Bill Clinton, foi o momento em que árabes e israelenses estiveram mais próximos da paz. Dois anos depois, Rabin foi assassinado por um judeu ortodoxo crítico ao acordo.

Netanyahu sempre foi um aliado pouco confiável. Umas das formas de castrar a ascensão de novas lideranças no próprio Likud era distribuir as principais pastas a membros dos outros partidos da coalizão, boicote que, de outra forma, atingia também essas siglas, com ele obstruindo a autonomia orçamentária desses ministérios. Contudo, diferente de outros nomes da direita radical, não se caracterizava pela retórica populista antissistema. Jogava o jogo partidário e respeitava os checks and balances institucionais típicos de uma democracia liberal. Na política externa, cacifou-se ao estabelecer, em 2020, relações diplomáticas com Bahrein, Marrocos e Emirados Árabes Unidos - os históricos Acordos de Abrão. Até então, entre os países árabes, apenas Jordânia e Egito mantinham relações com Israel.

O estilo centralizador, apesar de tudo, era digerível enquanto havia credibilidade. Quando tornou-se o primeiro premiê do país a ser réu, no cargo, por corrupção, parceiros tradicionais começaram a abandoná-lo. Restou-lhe atrair a frente ultranacionalista Sionismo Religioso e os ultraortodoxos religiosos do Yahadut Hatorá (Judaísmo da Torá) e Shas, legendas até então às margens do debate público, mas para as quais Netanyahu se viu obrigado a dar ministérios importantes. Dos 64 assentos que lhe dão maioria parlamentar, 32 pertencem a elas.  

Entre esses ministérios, coube o da Segurança Pública ao líder do Sionismo Religioso, Itamar Ben-Gvir. Conhecido por gestos teatrais e retórica incendiária a favor da total anexação da Cisjordânia, Ben-Gvir, ainda na juventude, juntou-se ao Kach, movimento racista criado pelo rabino Meir Kahana e colocado na ilegalidade pelo próprio Likud 30 anos atrás. Defensor de um Estado judeu teocrático onde não-judeus não teriam direito a voto, o kahanismo, na década de 90, utilizou-se da violência política contra palestinos, levando os Estados Unidos a considerá-lo uma organização terrorista. O atentado mais fatal ocorreu em 1994, quando Baruch Goldstein invadiu uma mesquita em Hebron e matou 29 pessoas, além de 150 feridos. 

Ben-Gvir foi proibido de servir às Forças Armadas e, em 2007, condenado por incitação ao racismo e terrorismo. Em entrevista recente à TV, mostrou orgulhoso a foto de Goldstein na parede da sala de sua casa. Poucos anos atrás, jornais israelenses estamparam fotos suas ao lado de um homem que vestia camisa pedindo a libertação do assassino de Rabin. Outro membro do Sionismo Religioso, o ministro das Finanças, Bezalel Smotrich, gravou semana passada um vídeo em que afirma que "não há história ou cultura palestinas. Não existe povo palestino". No dia da greve-geral, kahanistas foram às ruas defender Netanyahu.

Israel tem  hoje o governo mais à direita de sua História. Assim que os resultados da eleição saíram em novembro, o cientista político Gayil Talshir, da Universidade Hebraica de Jerusalém, interpretou-os de maneira pouco otimista: "Israel está a caminho de se tornar a Hungria de Orbán". Segundo o próprio premiê húngaro, seu regime é uma democracia iliberal, enquanto a União Europeia o rotula como autocracia eleitoral. Qualquer que seja o nome dado, a reforma judicial confirma os maus presságios de Talshir. 

Embora encabeçada por Netanyahu, ela desperta forte entusiasmo entre seus aliados extremistas, que comungam com ele a vontade de tutelar a Suprema Corte. Suas consequências são nítidas: o empoderamento de deputados radicais religiosos e de ultradireita, sem amarras para cercear direitos de minorias, sejam elas os árabes ou a comunidade LGBTQIA+.  É sempre bom ressaltar que a democracia liberal não é apenas a "vontade da maioria"; é, antes de tudo, o respeito aos direitos fundamentais de todos. É esse caráter contramajoritário liberal dos Justiça que essa leva atual de populistas de direita deseja minar em todos os países em que obtêm o poder.

As circunstâncias internas e internacionais levaram Netanyahu a dar mais passos à direita. Junto com o interesse em escapar da condenação, seu filho Yar, bastante influente nas decisões do pai, mimetizou toda retórica trumpista. Nas redes sociais e em seu programa de rádio, ele ataca frequentemente as "elites esquerdistas" do país que dominariam a academia, o oficialato do exército e da polícia, os meios de comunicação e seriam financiados por estrangeiros, como George Soros. O chorume retórico é conhecido dos brasileiros: Yar é uma espécie de Carlos Bolsonaro com menos idiossincrasias. Teria sido dele a ideia de colocar detectores de metal na entrada da Esplanada das Mesquitas há alguns anos, o que gerou uma crise diplomática com a Jordânia e protestos violentos dos palestinos. São essas "elites progressistas ocidentais" que Putin, em defesa de sua invasão à Ucrânia, diz combater...

"O discurso populista de ataques às supostas elites e ao deep state encontrou eco em parte significativa da direita israelense. O governo não tem como explicar para o setor radical de sua base o fortalecimento do Hamas e da Jihad Islâmica, o porquê de não voltar a ocupar a Faixa de Gaza e nem anexar totalmente a Cisjordânia em todos estes anos, uma vez que teve todo o poder em suas mãos. Sendo assim, eles culpam os pkidim, funcionários concursados, que seriam quem realmente manda, o tal do deep state. Seriam eles os responsáveis pelos problemas do país, que freiam a direita a realizar seu governo tal qual gostariam. O Judiciário seria um desses obstáculos", explica Miragaya em seu perfil no Twitter. Familiar, não? Olavo de Carvalho vive.

Essas práticas e discursos são analisados nos livros "Como as democracias morrem", de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, e "Crises da democracia", de Adam Przeworski, hoje no pódio dos cientistas políticos mais lidos do mundo. São exemplos de "jogo duro constitucional", como conceituado pelos primeiros, ou de "subversão sub-reptícia", nas palavras do segundo: o uso de instrumentos constitucionais que fogem do "espírito da lei" e, utilizados dessa forma recorrentemente, corroem, aos poucos e por dentro, a democracia. Por enquanto, foi aprovado "apenas" o projeto de lei que passa exigir a concordância de dois terços do Gabinete para declarar um primeiro-ministro inapto. Afastamento apenas em casos de incapacidade física e mental e que exigirá a ratificação por uma supermaioria do Knesset.

Netanyahu, no entanto, encontra-se em uma encruzilhada. A suspensão da tramitação do projeto foi mal recebida por seus companheiros de coalizão, enquanto o secretário de Estado dos Estados Unidos, Antony Blinken, repetia que ela mina "os valores democráticos compartilhados sobre os quais se baseiam os laços EUA-Israel". Smotrich conclamou os militantes de seu grupo a saírem às ruas: “Somos a maioria, vamos fazer ouvir a nossa voz. Não vamos deixar que nosso voto e o Estado sejam roubados de nós”. Levin, em comentário nas redes sociais, assegurou a um apoiador que "fará esforço supremo para que a justiça seja feita e aprovemos a legislação na próxima sessão. Vamos organizar manifestações em todo o país para que eles saibam o que a maioria quer. Espero que aqueles que nos prejudicaram de dentro parem com isso". 

Nos comentários da postagem, Lapid, hoje líder da oposição, retrucou: "Para todos aqueles que estavam se perguntando por que eu sou completamente cético. Netanyahu precisa deixar claro que essa não é sua opinião, com seu ministro da Justiça confessando que as negociações são uma farsa". Ben-Gvir, sem surpresa alguma, foi o mais incendiário: ameaçou renunciar, o que significaria a dissolução do Gabinete, e disparou contra Washington: "A reforma judicial não pode ser parada e não podemos nos render à anarquia. Israel não é outra estrela na bandeira americana. Espero que o presidente dos Estados Unidos entenda isso". Na última quarta-feira, cerca de 30 mil pessoas se reuniram em Tel Aviv em apoio ao premiê. Não faltaram faixas com xingamentos a Biden. Até uma bandeira confederada, utilizada pela extrema-direita norte-americana, fez-se presente.

Crítico da expansão de assentamentos judaicos na Cisjordânia, Biden entende, antes de tudo, que a crise interna dissemina a cizânia nos quartéis israelenses, inflama os palestinos e tira o foco da prioridade da política externa de Netanyahu: o Irã, considerado o principal e mais perigoso inimigo de Israel. Ao tomar posse dois anos atrás, estava disposto a ressuscitar o acordo nuclear com os iranianos, o que exigiria o afrouxamento das sanções. No entanto, o pouco entusiasmo dos persas, a decisão deles de fornecer armas à Rússia e a recente violenta repressão ao protestos contra o governo nas ruas de Teerã levaram-no a uma mudança de tom. Netanhyahu sempre foi contra qualquer tipo de acordo com os aiatolás e agora poderia beneficiar-se de uma mais incisiva pressão dos Estados Unidos. Não importa a irritação de outros membros do governo, o premiê sabe, ou deveria saber, que apenas junto à Casa Branca impedirá a construção do arsenal nuclear iraniano.

Sem os norte-americanos, Israel tampouco conseguirá normalizar as relações diplomáticas com a Arábia Saudita, outra meta de Netanyahu que se tornou ainda mais primordial após o anúncio, semana passada, do estabelecimento de relações entre Riad e Teerã, mediado pela China. Biden é o único líder que pode oferecer à monarquia absolutista dos Saud as garantias de segurança que exigem. Desde que voltou suas atenções ao embate com os chineses e, mais recentemente à guerra na Ucrânia, o Oriente Médio perdeu a primazia no radar dos Estados Unidos. Entretanto, o que seria concretização da expansão dos Acordos de Abrão, como inicialmente buscado em 2020, serviria como relevante contraponto à crescente presença de Pequim na região.

O momento para o acordo parecia mais favorável durante a gestão Trump. Pode soar estranho, visto que a retórica do Islã como ameaça ao Ocidente é basal na direita reacionária internacional. Mas tanto o sanguinário príncipe saudita Mohammad bin-Salman, como o premiê israelense e o ex-inquilino da Casa Branca compartilham uma visão etnorreligiosa de mundo. Para eles, soberania nacional é preservar as características "originais" de seus países, o que explica verem a imigração como ameaça.

"O atual gabinete de Israel há tempos flerta com bin-Salman. A aversão ao muçulmanos fica dentro de suas fronteiras. Fora, a extrema-direita criou o espantalho do globalismo e se une às monarquias islâmicas contra ele. É aí que os interesses se encontram", explica Guilherme Casarões, professor de Relações Internacionais da FGV-SP e coordenador do Observatório da Extrema-Direita. A proximidade é comprovada nas votações na ONU sobre assuntos relacionados a direitos humanos e costumes. Inclusive com o voto do Brasil de Bolsonaro, que elevou ao topo de sua lista de viagens essas monarquias. "Temos certas afinidades", disse o ex-presidente sobre o comprovadamente assassino bin-Salman. Sobraram joias em retribuição. Também não são poucas as notícias acerca de supostos financiamentos sauditas para partidos de direita radicais europeus. Sim, esses que, lá como cá, falam defender a “liberdade”…

Netanyahu precisa da boa vontade de Biden, um casamento que já sofrera abalos com seu hesitante posicionamento acerca da invasão russa. Mais do que as afeições pessoais e a proximidade ideológica entre Putin e ele, um bom relacionamento com o Kremlin é crucial para a manutenção, sem restrições, das incursões militares israelenses na Síria, ataques geralmente aéreos que visam destruir instalações de organizações apoiadas pelo Irã, como o Hezbollah. A Rússia é o principal sustentáculo do regime de Damasco. Na última sexta-feira, mísseis foram lançados pela sexta vez neste mês. Um oficial da Guarda Revolucionária Iraniana morreu, informou Teerã.

Informações de que os russos têm enviados para o Irã armas norte-americanas capturadas na Ucrânia reforçaram a percepção de uma crescente cooperação militar entre os dois países. “O Irã está ganhando importante conhecimento e experiência no campo de batalha na Ucrânia, que acabará sendo transferido para seus perigosos representantes no Oriente Médio. Isso representa sérios desafios para a região e para a segurança de seus cidadãos”, acusou o secretário de Defesa dos Estados Unidos, Lloyd Austin, em entrevista coletiva ao lado de Gallant, em Tel Aviv, no início do mês.

"O presidente dos EUA não será capaz de dedicar tempo substancial a essas duas questões [Arábia Saudita e Irã] enquanto o teatro palestino arder em chamas. Ele dificilmente lutará para convencer sua administração a ajudar o governo israelense enquanto Israel estiver se distanciando do Ocidente (por não apoiar firmemente a Ucrânia) e enfraquecendo sua democracia (aprovando a reforma judicial)", escreveu, em artigo na revista Foreign Affairs, Amos Yadlin, ex-chefe de inteligência militar das Forças de Defesa de Israel e ex-diretor-executivo do Instituto de Estudos de Segurança Nacional.

O clima em Israel é de tenso impasse. Na última quinta-feira, o presidente Isaac Herzog convocou representantes da coalizão governista e da oposição para tentar avançar em negociações. Netanyahu não pode participar, pois está proibido pela Justiça de se envolver pessoalmente em assuntos que signifiquem conflito de interesses. Acuado pela ameaça de renúncia de Ben-Gvir, o premiê prometeu criar uma Guarda Nacional que ficaria sob direção do ministro. Pode-se imaginar o potencial explosivo de uma milícia sob ordens de um extremista com seu historico. Uma milícia oficial, destinada a policiar locais em que palestinos e israelenses vivem próximos.
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Na Itália da década de 20, outra “raposa”, o liberal Giovani Giolitti, também na tentativa de voltar a ser primeiro-ministro, convidou para sua chapa um pequeno partido até então similarmente restrito às franjas da sociedade por suas posições extremadas e violência política. Seu líder se chamava Benito Mussolini. Giolitti imaginou ser possível domesticá-lo, mas, além de não conseguir maioria, viu o fascismo, ainda com apenas 20 deputados, ganhar peso relativo e ser chancelado pela democracia liberal para posteriormente implodi-la por dentro. O conteúdo dos movimentos são distintos; mas comparação serve para ressaltar o perigo da normalização de ideias extremadas por líderes do mainstream político.

O dilema está colocado. Uma certeza há: os Estados Unidos são imprescindíveis à segurança de Israel. Netanyahu talvez esteja apostando na volta de Trump em 2024. Ninguém sabe, contudo, até onde o republicano iria. Refém de seus aliados radicais, o governante que sempre se portou como o defensor dos interesses nacionais, vê sua imagem se desgastar rapidamente. Temendo a cadeia, reforça, com a reforma, a percepção de que está disposto a erodir os alicerces de Israel em busca de benefícios pessoais. Pesquisas realizadas nesta semana revelaram números nunca antes tão negativos a ele: perto de 70% da população não confiam no premiê. Se as eleições fossem hoje, o governo perderia 11 cadeiras e cairia. O felino Bibi pode estar ao fim de mais uma vida. Será a sétima?

sábado, 25 de março de 2023

O caos em dois idiomas

Por Murillo Victorazzo

Há 75 anos, israelenses e palestinos compartilham o caos. Em maior ou menor intensidade, esta é possivelmente a palavra que melhor resume o cenário regional desde que foi declarada a independência de Israel, após, um ano antes, resolução da Assembleia Geral da ONU aprovar a divisão em dois do protetorado britânico da Palestina. O novo país era a concretização, pelo menos em parte, dos ideais da Organização Sionista Mundial, criada no final do século XIX por Theodor Herzl.

O termo, criado por Nathan Birnbaum, deriva do Monte Sião, colina de Jerusalem onde, segundo o Antigo Testamento e a Torá, localizava-se a fortaleza conquistada por David "sob os desígnios de Deus". Ali, Deus havia escolhido manifestar-se ao seu povo e foi a partir de onde Davi expandiu seu reino. Ali, anos mais tarde, seu filho Salomão construiu o primeiro grande templo do judaísmo. Sião passou a ter o mesmo significado bíblico que a cidade sagrada, ao redor da qual os sionistas almejavam a volta do povo judeu livre sob um Estado próprio.

O sionismo articulou-se fomentado pela violenta onda de pogroms contra a comunidade judaica russa perpetrada, entre 1881 e 1883, pela polícia secreta do czar Alexandre III, um massacre que resultou na primeira grande leva de imigrantes judeus para os Estados Unidos. Tantos outros optaram pela Palestina, dando início à primeira Alyia - onda de imigração para a "Terra Prometida". As cerca de seis milhões de mortes causada pelo Holocausto reforçaram na comunidade internacional a necessidade do Estado judeu. O nazismo havia sido derrotado três anos antes da independência, e as chocantes imagens de campos de concentração e de extermínio ainda estavam sendo reveladas ao mundo.

A "Diáspora" milenar se encerrava. A "Terra Prometida" por Deus aos descendentes de Abraão se tornava realidade. No entanto, poucas horas após David Ben-Gurion, no dia 14 de maio de 1948, encabeçar a lista de assinaturas da proclamação de independência, os exércitos de Síria, Egito Iraque, Jordânia, Líbano e Arábia Saudita iniciaram, em três frentes diferentes, um ataque militar ao país recém criado. Os árabes não aceitavam a divisão das terras palestinas, mas, derrotados um ano depois, viram não apenas a consolidação do Estado de Israel como a anexação por ele boa parte dos territórios destinados ao que deveria ser um futuro Estado palestino. A Cisjordânia ficou sob gestão da Jordânia; a Faixa de Gaza, do Egito; e, o mais simbólico, dividiu-se Jerusalém,  cidade sagrada também para cristãos e muçulmanos e que, pela resolução de 1947, deveria permanecer sob jurisdição da ONU: a parte ocidental tornava-se israelense e a oriental, onde se encontra a "Cidade Velha", administrada pelos  jordanianos.
Durante as Guerra dos Seis Dias (1967) e do Yom Kippur (1973), Israel anexou a Cisjordânia, Gaza, a parte oriental de Jerusalem, a Colina de Golã síria e a egípcia Península do Sinai, esta devolvida, anos depois, a Cairo. Tirou, em 2005, suas tropas da Faixa de Gaza, mas criação do Estado palestino jamais se firmou e, a cada dia, torna-se mais distante. Os argumentos são inúmeros, não cabe aqui esmiuçá-los. O fato é que quase um milhão de palestinos foram expulsos de suas terras apenas entre 1948-1949. A muitos deles só restou fugir para campos de refugiados. O Direito Internacional foi mandado às favas.

Em 1952, a ONU criou um desses campos na cidade de Jenin, ao norte da Cisjordânia. É esse campo, hoje com cerca de 15 mil pessoas abrigadas em 2,5 quilômetros quadrados, o palco de boa parte das ações da quarta temporada de "Fauda", disponível na Netflix desde o início do ano. O título significa caos em árabe, mas a produção é israelense e narra os embates de uma força especial do Shin Bet (a agência de segurança interna de Israel) contra organizações terroristas islâmicas. Além da expertise militar, o pequeno e secreto grupo se distingue por falar fluentemente árabe, conhecer profundamente a cultura do inimigo e, portanto, conseguir se disfarçar com facilidade em meios aos palestinos, um traço que reforça o ineditismo da série: ela é a primeira de grande porte falada em árabe e hebraico. Dado o constante uso dos dois idiomas em uma mesma cena, a plataforma de streaming utiliza colchetes nas legendas para diferenciar o primeiro.

Protagonista e cocriador da obra, Lior Raz serviu como agente infiltrado de forças de contraterrorismo e viu uma namorada ser assassinada a facadas por um terrorista em Jerusalém. Sua experiência de vida certamente ajudou-lhe a moldar Doron, um amargurado agente que passa pelas quatro temporadas entre o combate e a aposentadoria. Suas escolhas muitas vezes pouco protocolares o colocam na linha tênue entre o heroísmo, a indisciplina e a imprudência, o que o faz viver em um círculo vicioso de erros, traumas e remorsos. Desperta, por isso, a mistura de ira e admiração entre seus chefes e colegas, um equipe que comunga forte amizade e sofre dramas pessoais decorrentes de suas profissões. O histórico militar além dos três anos de alistamento obrigatório não é exclusivo de Raz. Outros atores e produtores também emprestam aos personagens seus currículos como mista'arev (soldado treinado para se infiltrar entre os civis árabes)

Apesar de israelense, "Fauda" parece desejar dosar nas cores quando retrata terroristas. Obviamente não se busca relativizar suas atrocidades; os 'vilões" são nítidos. Mas Raz e Avi Issacharoff, o outro criador da obra, abordam as distintas motivações que podem levar um jovem ao extremismo. Expõe as particularidades do conflito, como a não rara vingança pessoal, que se entrelaça às razões e dinâmicas militar, política e religiosas, numa espiral de sangue que ultrapassa gerações de famílias. Mortes que se retroalimentam e empurram, seja com arma na mão ou bala no peito, gente que pouco ou nada tinha a ver com uma guerra intermitente com feições de guerrilha urbana. Um conflito em que inimigos, pouco visíveis e muito difusos, convivem diariamente, misturados a uma proporção muito maior de inocentes. Quase sempre em um espaço geográfico estreito e densamente povoado.

Acima de tudo, a série tem a virtude de destacar o sofrimento e os dilemas de familiares e conhecidos dos terroristas: pais que se desesperam com a "perda" de seus filhos para essas organizações, a ponto de correrem risco de vida por, desesperados, confrontar os líderes; esposas abandonadas, outros, contudo, compreensivas ou mesmo incentivadoras. Parentes que não escolheram a violência, mas, de repente, se veem no meio dela. Cidadãos comuns coagidos pelas armas a ceder suas propriedades para ataques criminosos. Nesta mais recente temporada, o fio condutor é a encruzilhada legal, afetiva e profissional de Maya (Lucy Ayub), uma palestina irmã de um terrorista, casada com um israelense e, assim como o marido, policial do Estado de Israel.

"Fauda" consegue assim explicar - para quem tem boa vontade, claro - que humanizar personagens não é fazer falsas equivalências, ainda que sutilmente critique políticas de Israel, "um país que ocupa e mata crianças", como acusa, na série, um libanês. Deixa no ar, por exemplo, se algumas práticas fora da legalidade do protagonista, na velha máxima dos fins que justificam os meios, não o nivelam ao inimigo.

Quem acompanha a série desde o início pode ainda notar como os produtores optaram por, em cada temporada, antagonizar a equipe de Doron com vertentes diferentes do terrorismo. Na primeira (2015) e terceira temporada- esta passada basicamente na Faixa de Gaza, os algozes são membros do Hamas; na segunda, é a vez do Estado Islâmico; e, nesta última, do Hezbollah. Ao chamar ao palco o grupo xiita libanês, "Fauda" internacionaliza sua trama, o que, como consequência, coloca em cena o Mossad, a conhecida e temida agência de inteligência externa israelense, e faz abordar, embora superficialmente, a rivalidade entre xiitas e sunitas.

O Hezbollah não é "apenas" mais um grupo terrorista. Fundado em reação à invasão israelense em 1982, é, além de um partido com presença relevante no Parlamento libanês, uma milícia fortemente organizada, treinada pela Guarda Revolucionária Iraniana e com estrutura similar ao do próprio Exército do país. Por ocupar parcelas do território do Líbano e organizar nessas regiões ações sociais paralelas às do governo oficial, muitos consideram-no um Estado dentro do Estado. Um apêndice do Irã entre os libaneses, cumplicidade discutida quando se aproxima o clímax da série. "Eles [os iranianos] não estão nem aí para vocês. Veja o que eles fizeram com o seu país. Beirute era considerada a Paris do Oriente Médio. Em vez de nomearem um governo, destruíram o Estado", acusa um agente israelense em diálogo com um líder da organização, que, financiada também por Damasco, tem células na Europa, ponto inicial da temporada. Além de Jenin e Tel Aviv, os personagens, por isso, percorrem Bruxelas, a fronteira sírio-libanesa e Beirute.

Em situações não apenas da quarta temporada, Raz e Issacharoff abordam ainda a delicada situação do Fatah, partido rival do Hamas e que comanda a Autoridade Palestina na Cisjordânia. Os casos de corrupção dessa incipiente burocracia é terreno fértil para a perda de sua legitimidade perante os palestinos. Um sentimento que reforça, para alguns, a percepção de subserviência à Tel-Aviv e serve, portanto, como ímã para o extremismo.

Para Issacharoff, essas nuances são o segredo do sucesso de "Fauda", eleita pelo New York Times a melhor série internacional de 2017, ano da segunda temporada. Em 2019, o jornal americano colocou-a em oitavo lugar entre as melhores da década. Segundo ele, até membros do Hamas assistem: "Eles falam comigo sobre isso. Alguns membros presos em cadeias de Israel já me pediram links para assistir aos episódios”, afirmou à Folha de São Paulo ainda durante as gravações da terceira temporada, lembrando do dia em que, esperando um líder da organização para fazer uma entrevista, um dos soldados comentou: “As coisas não acontecem exatamente assim como está no seriado. Mas é bem parecido”.

"Por 40 minutos, eles [o Hamas] conseguem se pôr no lugar do outro e sentir o que eles sentem. Isso é incrível. Parte do segredo aqui é que nós não tentamos julgar ninguém. Isso confunde as pessoas, mas as deixa muito curiosas (...) Comecei a receber e-mails de israelenses falando que, pela primeira vez na vida, estão compreendendo e tendo pena do outro lado”, afirma.

Talvez não seja bem por aí. Em seu site, o Hamas acusou a série de "criminalizar os palestinos" e estimular a ocupação "sionista". Não suficiente, foi além e iniciou a gravação de "Os punhos dos homens livres" (tradução livre), trama toda passada na Faixa de Gaza, com o intuito de mostrar o que entendem ser a versão palestina sobre o assunto. O grupo terrorista administra o território e lá controla o canal de TV Al Aqsa. Em entrevista à France Express (AFP) no início do ano, o diretor Mohamed Soraya assegurou que, “em Gaza, não é boa ideia admitir que assistiu" à produção israelense. Até mesmo o prestigiado jornal israelense Hareetz abriu espaço para artigos com títulos como "´Fauda` não é apenas ignorante, desonesto é absurda. É uma incitação anti-palestina" e "Como ´Fauda` romantizou o lado mais repugnante da ocupação israelense".

Certos ou errados, a série, de fato, busca mostrar aos israelenses que, entre os palestinos, há repulsa ao terrorismo. No entanto, se logo no primeiro episódio da primeira temporada, um deles tem seu carro confiscado ilegalmente por guardas israelenses, aspectos mais graves da ocupação, como despejos e a expansão de colônias judaicas na Cisjordânia, não ganham espaço. Nada se diz da dinâmica política interna de Israel, em um momento em que autoridades e parlamentares do governo mais à direita  de sua História vêm perdendo o pudor, com propostas que oficializam a segregação. Semana passada, o ministro das Finanças, Bezalel Smotrich, gravou um vídeo em que afirma que "não há história ou cultura palestinas. Não existe povo palestino". Uma declaração que lembra a de Putin a respeito da Ucrânia dias antes de invadir o país. A velha simbiose dos extremos...

A Questão Palestina é um conflito regional que irradia tensões e suscita acalorados debates pelo mundo. Em todos os países, setores da direita se alinham automaticamente aos argumentos do premiê Benjamin Netanyahu e seu partido, o Likud, enquanto setores da esquerda agem igual no sentido inverso, sempre repetindo palavras de ordem e preconcepções. De um lado, alguns confundem crítica ao governo de plantão israelense com antissemitismo; do outro, camuflam antissemitismo e/ou antissionismo com a luta pelo Estado palestino. Uns ignoram o direito de defesa de Israel, cercado por grupos terroristas que, por definição, não diferenciam alvos militares da população civil e explicitamente negam seu direito de existência; outros minimizam a legitimidade da constituição de uma Palestina independente e os vários casos de desrespeito aos Direitos Humanos nos territórios ocupados. Para uns, Israel é cúmplice do "imperialismo" norte-americano; para outros, o Islã é "ameaça ao Ocidente". Nesse binarismo histérico e raso, todo israelense torna-se um racista defensor do "apartheid" na Cisjordânia e Faixa de Gaza e todo palestino, terrorista ou conivente ao terror. As reações à série, portanto, são esperadas. É possível inclusive que alguém perceba essa resenha como parcial também. Ideologias exacerbadas enviesam interpretações de textos.

Seja como for, para quem prefere fugir a essas questões, 'Fauda" é, mais do que tudo, um excelente thriller militar, com longas e bem treinadas cenas de combate que tiram nosso fôlego e congelam nossos olhos em frente à TV. A experiência real dos atores é um ativo. Cenários quase sempre movimentados e barulhentos, uma direção ágil e a mão nervosa de câmeras em constantes movimentos são garantias de angústia e adrenalina em todos os 12 episódios. Sangue não falta, mas longe de ser uma carnificina vulgar. Mas, possivelmente por priorizar esse perfil, joga sem grandes explicações siglas, órgãos e fatos históricos, o que pode deixar os menos informados um poucos perdidos. É agradável para quem curte conhecer dogmas, ritos e cerimônias muçulmanas e judaicas. Muitas dessas ocasiões, por sinal, servem de pano de fundo para o que virá depois: a ação de Doron e amigos, o que é bastante emblemático.

Lançada pela emissora Yes, esse thriller, contudo, diferencia-se dos demais do gênero por nos dar um final nem sempre feliz, as vitórias serem momentâneas e ambos os lados, de alguma forma, sempre perderem. Talvez por isso seja a obra mais vista na história do canal. Na busca pela verossimilhança, contou com (in) felizes coincidências. Pouco antes da terceira temporada ir ao ar, uma ação do exército israelense foi descoberta enquanto realizava uma ação secreta na Faixa de Gaza. Soldados israelenses de origem árabe entraram em Gaza à paisana, mas foram identificados por militantes do Hamas, causando a morte de um coronel. O mesmo local e enredo semelhante da ficção. 

Em janeiro, enquanto chegava na Netflix a quarta temporada, o governo de Israel deflagrou uma operação no campo de refugiados de Jenin que resultou em nove mortos, entre eles uma idosa. Sob a justificativa de se antecipar a atentados, agentes à paisana entraram escondidos em um caminhão frigorífico. Um apartamento situado no meio de Jenin foi cercado. A semelhança com a série chama a atenção. Em março, outra operação terminou com quatro vítimas fatais; uma delas, um adolescente. Imagens que remetem à Operação Escudo Defensivo, tragédia de 20 anos atrás que entrou pra História como o “Massacre de Jenin”: em meio à Segunda Intifada, foram enviados 150 tanques, o campo foi sitiado, a eletricidade cortada, em uma feroz batalha com saldo de, segundo a ONU, 56 palestinos mortos, entre crianças, idosos, mulheres e terroristas. Não por acaso, a operação é citada em “ Fauda” como algo a ser evitado. “Acho que a realidade é sempre mais forte que a ficção. Está sempre um passo à nossa frente”, diz Issacharoff. 

"Fauda" é também um jargão militar israelense utilizado para se referir a uma operação fracassada, com perdas elevadas. O título não poderia condizer melhor com a trama, que, se não é imparcial, como muito dificilmente seria, escapa do maniqueísmo barato. Para evitar spoiler, uma dica apenas: o final é repleto de simbolismo. O caos, afinal, é bilíngue.

       "Ouça, Ó Israel! O Senhor, nosso Deus, é o único Senhor".

     ["'Em nome de Alá, o Clemente, o Misericordioso, Soberano no Dia do Juízo"]

quarta-feira, 22 de março de 2023

Seriedade, por favor

Murillo Victorazzo

Por sua atuação e escolhas, Sergio Moro, independente do que pensemos sobre ele, tornou-se adversário das duas maiores forças populares desse país: o petismo e o bolsonarismo. Esmagado entre elas, apequenou-se eleitoralmente, a ponto de lhe restar tentar uma vaga no Senado no Paraná. Eleito a duras penas, em uma campanha em que, para vencer, não hesitou em Alvaro Dias, até então não apenas seu aliado como figura essencial em sua entrada no mundo partidário. Chegou a tentar atrelá-lo ao PT, pasmem. O diretório local do partido de Bolsonaro hoje tenta sua cassação no TRE.

Moro preferiu o discurso ético seletivo no segundo turno ao apoiar Bolsonaro, mesmo após acusá-lo de aparelhamento da PF e obstrução às investigações contra seus filhos - razão, como afirmara, de sua saída do ministério. Bolsonaro que ajudou a fechar o caixão da Lava-Jato com, em outras situações, sua escolha para PGR e desmobilização de sua base raiz em articulações no Congresso. Flavio, por sinal, beneficiou-se de decisões do STF sobre a operação. Ok, é do jogo político optar pelo que lhe é mais conveniente. Mesmo negando, ele é um político. Inegável, porém, que iniciara o mandato legislativo como uma figura secundária. Até que hoje a PF revelou um esquema do PCC para matá-lo.

Em outras palavras, a PF subordinada ao “comunista” que almejaria ocupar o Estado - e “defensor de bandido” - Flávio Dino tirou Moro da margem do debate público. Deu-lhe visibilidade perdida e ajudou a rememorar o papel de “xerifão” que o ex-juiz busca, agora, até com razão, vitimizado. No mínimo, deveriam aplaudir a não interferência. Mas o bolsonarismo tem a cara de pau de, na leviandade mais repugnante, tentar associar o plano ao PT. E a evidência seria a rancorosa declaração de Lula sobre sua vontade, quando preso, de “foder Moro” dada ontem. Um estranho caso de confissão pública de um crime. Que timing!

Baixarias sem sentido assim não surpreendem vindo de políticos, ainda mais desse grupo ideológico. Nem de militantes dispostos a, por ardil ou adestramento, reverberar. Dos outros espera-se o mínimo de discernimento e responsabilidade. Bora debater políticas públicas - e com seriedade? Ou só são capazes do pânico moral e da deslegitimação do adversário?