segunda-feira, 28 de março de 2022

Não é uma guerra qualquer

Por Murillo Victorazzo*

"Não somos seus órfãos. Vocês eram os estupradores e levarão um chute no saco se tentarem novamente". Pelo linguajar, poderia ser apenas mais uma troca de xingamentos comum nas redes sociais. Tratava-se, porém, de um acadêmico polonês com cargo na burocracia da União Europeia respondendo a um comentário do chanceler russo. "A OTAN busca tomar os territórios que ficaram órfãos com o fim da União Soviética", tuitara Sergey Lavrov. Em tons semelhantes, comentários de terceiros ajudaram a dar mostras de como andam os ânimos entre poloneses e russos.

A Guerra na Ucrânia reavivou ressentimentos que pareciam pelo menos represados. Não é por acaso que países do leste europeu são os mais enfáticos na resposta a Putin. Emblemática foi a viagem de trem dos chefes de governo polonês, tcheco e esloveno a uma Kiev sob bombardeio russo semana passada, a fim de demonstrar "apoio inequívoco da União Europeia à liberdade e independência da Ucrânia". Tampouco é sem razão a Polônia portar-se como o país da OTAN a defender ajuda militar mais robusta a Kiev. Varsóvia insiste em doar caças ao vizinho e criar uma perigosa zona de exclusão aérea, linha tênue para o embate direto entre a aliança transatlântica e Moscou.

Se não foi uma república soviética, grande parte do território polonês foi subjugado pelo Império russo durante quase um século e, na era comunista, o país resumiu-se a um dos tantos Estados fantoches atrás da totalitária Cortina de Ferro. Faz quase 80 anos que Moscou, nos momentos finais da Segunda Guerra, aproveitou a marcha vitoriosa rumo a Alemanha para empurrar geograficamente o país para o oeste. Através deportações, assassinatos e prisões, redesenhou as fronteiras polonesas, com o intuito de expandir o gigantesco Estado soviético. A mesma Polônia que, seis anos antes, fora o alvo principal do Pacto Molotov-Ribbentrop, a partir do qual Hitler e Stalin decidiram dividi-la como lhes convinha e iniciaram a dupla ocupação militar.

As vítimas da guerra de hoje são civis ucranianos e militares de ambos os lados, mas as seríssimas repercussões vão muito além daquelas fronteiras. Talvez nem fosse preciso repetir o potencial destruidor de um conflito que abarque diretamente Rússia e a aliança transatlântica. Envolveria diretamente quatro das cinco potências nucleares (quatro dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU) e duas das três forças armadas mais poderosas do mundo. Na última quinta-feira, o porta-voz do Kremlin reafirmou o direito de usar armas nucleares se for provocado pela OTAN e considerar ameaçada sua "existência". Embora a retórica venha tons acima da prática, uma sinal do singular perfil desestabilizador do atual cenário internacional.

Falar do petróleo é lugar comum. São notórios o peso da Rússia, terceiro maior produtor, e as consequências da guerra no mercado internacional da estratégica commodity. No entanto, outros insumos essenciais também sofreram relevantes impactos. Sendo, por exemplo, o segundo maior produtor de potássio do mundo, as restrições impostas ao país já alteraram a oferta de fertilizantes. De forma semelhante, estando a Ucrânia entre os oito principais produtores de trigo, a devastação militar de seu território afetou o preço do produto. As repercussões na inflação de alimentos dos países mais pobres e a consequente piora da fome na África e outras regiões mais carente já motivam estudos da FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura).

O que se vê hoje é uma guerra econômica, com sanções de dimensões nunca antes aplicadas, cujos efeitos colaterais podem alcançar não apenas quem as aplicou como países alheios ao embate, da interdependência dos sistemas econômico e financeiro internacionais. Após Putin, em represália, anunciar a exigência de pagamento em rublos para manter os contratos de fornecimento de gás, a Alemanha, prevenindo-se de eventuais cortes, anunciou, nesta quarta-feira, dia 30, um plano de emergência contra racionamento. Metade dos domicílios alemães dependem do gás russo. Segundo a Acnur (a agência da ONU para refugiados), mais de três milhões pessoas emigraram da Ucrânia em um mês e perto de 6,5 milhões tiveram que se deslocar internamente. É a maior crise humanitária na Europa desde a Segunda Guerra.

Realinhamentos estratégicos se iniciaram. Os Estados Unidos piscaram o olho para Venezuela por petróleo, no que pode ser o inicio de diálogo com o regime de Maduro, aliado de Putin. Embora condenando a invasão, a Arabia Saudita, além de negar o pedido da tradicional aliada Casa Branca para aumentar a produção do combustível, vetou a expulsão da Rússia da Opep+, clube que reúne a Opep e outros grandes produtores. O tíbio apoio saudita aos Estados Unidos evidencia as transformações no Oriente Médio, iniciadas após a decisão norte-americana, ainda no governo Obama, de priorizar Rússia e China como agenda de política externa. O vácuo levou os sauditas e outros países árabes a reforçarem parcerias com Pequim e Moscou.

A diminuição do apoio norte-americano à guerra no Iêmen e as críticas de Joe Biden, durante a campanha eleitoral de 2020, ao príncipe herdeiro Mohammed bin Salman, acusado da morte de um jornalista, ajudaram a esfriar ainda mais a confiança da monarquia wahabista na Casa Branca. Riad, semana passada, reafirmou as negociações com Pequim para o lançamento de contratos de petróleo remunerados em yuan. Mais de 25% do petróleo saudita é exportado para a China, o que leva alguns especialistas tomarem a possível iniciativa como um ataque ao status do dólar como moeda de reserva mundial. Fundos de pensão russo investem na petrolífera estatal saudita.

A Rússia é hoje grande exportadora de armas e equipamentos bélicos para Egito, Turquia e Síria. Usinas nucleares foram construídas (ou estão sendo) nos dois primeiros países em parcerias com Moscou. A ditadura de Bashar al-Assad saiu do corner graças a vigorosa intervenção militar do Kremlin a seu favor na sangrenta guerra civil síria. Israel, com profundos laços culturais com os russos ao mesmo tempo que depende da visceral relação com os Estados Unidos, mostra-se hesitante, receoso das consequência de um forçoso rompimento com Putin na balança de poder regional.

Tel Aviv precisa do presidente russo nas suas relações com Damasco e nas discussões sobre o reestabelecimento do acordo nuclear iraniano de 2015, rasgado por Trump em 2019. A Rússia é integrante, ao lado de França, Reino Unido, China, Alemanha, do grupo que tenta trazer Washington e Teerã de volta à mesa de negociações. São por essas razões que o país é considerado atualmente a única potência com trânsito livre em todo o Oriente Médio.

A China, embora parceira do Kremlin, prefere a discrição das abstenções, certa de que é quem mais tem a ganhar com a guerra. Jogando parada, não concorda com as sanções, mas vê uma economicamente enfraquecida Rússia caindo em seu colo. Em caminho oposto, o apoio japonês a todas as decisões ocidentais levou Moscou a paralisar as negociações para um acordo de paz definitivo entre os dois países relativo ainda à Segunda Guerra Mundial. Até hoje não há um tratado formal. Em jogo, o controle de quatro ilhas ao norte do território japonês, ocupadas pelos russos desde 1945. Se não havia seguido Washington nas sanções aplicadas após a anexação da Crimeia, em 2014, Tóquio, que tem disputa territorial também com a China, viu-se obrigado a enfatizar seu apoio ao principal aliado, com quem tem vital tratado de segurança.

A de certa forma vitoriosa persuasão nuclear russa, dada a prudência ocidental no apoio à Ucrânia, evitando ao máximo o embate direto, tem potencial para desestabilizar o regime de não-proliferação nuclear. Kim Jong Un certamente se sentirá estimulado a reforçar o programa norte-coreano. A teocracia iraniana pode seguir o caminho, aproveitando-se, quem sabe, de melhor posição para barganha nas negociações do acordo nuclear, diante de europeus e norte-americanos carentes de petróleo. A Alemanha voltou a praticar uma politica de defesa ativa, com envio de armas para o exterior e decisão de dobrar o orçamento militar, deixando para trás o pacifismo decorrente das marcas do nazismo. Nem mesmo um Ministério das Relações Exteriores sob comando dos Verdes foi capaz de evitar a quebra de simbólico paradigma.

A OTAN, passou de "morte cerebral", como resumiu o presidente francês, Emmanuel Macron dois anos atrás, a uma aliança mais coesa, melhor financiada e atraente para novos membros. Suécia e Finlândia logo tornaram-se alvos de ameaças de represálias explícitas por parte de Kremlin assim que indicaram, semanas atrás, voltar a debater em seus Parlamentos a adesão à aliança. Matéria do Financial Times do dia 29 mostrou como o governo finlandês se prepara para entrar em um possível "modo de crise": "kits de sobrevivência" espalhados por diversas localizações do país, reservas de seis meses de grãos e combustíveis, farmacêuticas obrigadas a estocar medicamentos importados, em um país onde um terço da população é reservista, prédios precisam por lei ter abrigos antibombas e cuja capital Helsinque é repleta de túneis subterrâneos. São quase 1,5 mil quilômetros de fronteiras com a Rússia.

Alexander Dugin é um cientista político ideólogo do "eurasianismo", uma concepção de ordem multipolar crítica à hegemonia norte-americana e que "preconiza a integração, na base da civilização comum", do território do antigo império russo ou da União Soviética". Influente nos meios militares russos onde deu aulas na década de 90, é hoje, se não seu "guru", como equivocadamente é rotulado por muitos, um declarado entusiasta de Putin por ver nele seus ideais.

De certa forma, Lavrov, em seu tuíte, foi ao encontro do que Dugin afirmou à Folha de São Paulo logo após a anexação da Crimeia. Para o intelectual russo, os Estados que se separaram após a desintegração soviética, em 1991, "nunca existiram como Estados e representam apenas distritos administrativos sem nenhum significado histórico ou político dentro do Império russo ou da União Soviética”. Putin já declarou considerar o colapso soviético, independente da crítica ao comunismo, "a maior catástrofe geopolítica do século 20". “Foi a desintegração da Rússia histórica sob o nome de União Soviética", afirmou.

Dugin é admirador de Halford Mackinder, geógrafo britânico que se notabilizou nos estudos da geopolítica no início do século passado por desenvolver a Teoria do Heartland. Para Mackinder, ao contrário do que o consenso da época dizia, não era mais o controle dos mares que conduzia países a hegemonias. Em decorrência de avanços tecnológicos na indústria bélica e de base, a supremacia do poder naval terminara. Ferrovias e o motor à combustão permitiam a integração, deslocamento e ocupação física de grande massas continentais.

Sob essa ótica, Mackinder acreditava que a Rússia, por seu gigantesco território contínuo, rico em recursos minerais e terras aráveis, seria o "pivô geográfico" do planeta, dada sua destacada posição na "Ilha-Mundo", os territórios localizados na Europa, Ásia e Africa, onde se concentram cerca de três quartos das terras emersas (Estados povoados). A porção central da Eurásia, portanto, seria o "coração da Terra - o Heartland, inacessível pelo mar e vulnerável apenas por ataques terrestres vindo do leste europeu. "Quem domina o leste da Europa, domina o Heartland. Quem domina o Heartland, reina na 'Ilha-Mundo'. Quem domina a 'Ilha-Mundo' governa o mundo inteiro", concluiu.

Mackinder, por isso, temia uma aliança da Rússia com a Alemanha, à época bem mais industrializada. As características complementares das duas economias permitiriam a constituição de uma poderosa indústria bélica e invencíveis forças armadas, tornando o Heartland inexpugnável ao poderio naval britânico. A aliança nunca aconteceu, mas foi com o geógrafo britânico em mente que Karl Haushofer deu aulas de geopolítica para Hitler na prisão, após a tentativa de golpe de 1923. O Pacto Molotov-Ribbentrop e o seu posterior rompimento pelos alemães, dando início à invasão da União Soviética, encontravam base teórica em Mackinder. Vinha daí a inspiração para o Generalplan Ost do ditador nazista, que previa transformar a parte ocidental do território soviético em colônia agrícola e energética, com assentamento de alemães espalhados por ele.

Sob mesma influência, os Estados Unidos, com o advento da Guerra Fria, reformularam sua estratégia diplomática e militar. George Kennan, o diplomata norte-americano ideólogo da Containment no final da década de 40, embora não fosse entusiasta de determinismos geográficos, via espelhada sua política na Teoria do Rimland, de John Spykman. Rimland são as regiões costeiras e bordas eurasiáticas. Em complemento, mas com conclusão diferente da de Mackinder, Spykman defendia que seria quem dominasse tais áreas os hegemônicos no planeta, por serem elas vitais na contensão dos que possuem o Heartland.

Na avaliação de Spykman, os Estados Unidos detinham poderio econômico inigualável e privilegiada posição geográfica, sem vizinhos hostis e cercado por dois gigantescos oceanos, o que inibia ataques diretos a seu território. No entanto, fazia-se necessária uma política externa intervencionista no Rimland, para assim bloquear o expansionismo soviético sobre a Eurásia. Através do desenvolvimento do poder aeronaval e de bases ao redor do leste europeu, na Alemanha, Itália, Turquia, Coreia do Sul e Japão, Washington, a partir de uma concepção geopolítica, cercou o inimigo ideológico.

Em seu livro "Fundamentos da Geopolítica”, lançado em 1997, Dugin deixa claro por que, para ele, a ideia de uma civilização da “Grande Rússia”, que abrange ucranianos e bielorrussos e cujo berço foi Kiev, encontra eco na teoria de Mackinder: "Em geopolítica, há dois polos absolutos de poder. O poder naval, que pertence ao Ocidente, e o poder terrestre, que é a Rússia. Há uma briga para controlar o Heartland". Em 2011, Putin propôs a formação da União Econômica da Eurásia, logo assinada por Rússia, Bielorrússia e Casaquistão. A deposição do aliado Victor Yanukóvich na Ucrânia e a guerra civil que se sucedeu no leste do país, em meio a discussões sobre a entrada na União Europeia, embarreiraram a ampliação do bloco. O que veio depois já muito se sabe.

A polêmica expansão para o leste da OTAN foi mais do que debatida nos últimos meses. Também os riscos de "afeganistização" de uma Ucrânia com territórios perdidos, armas poderosas nas mãos de civis e a previsão de queda de 35 % do PIB. Putin deve conseguir garantias de que o vizinho não entrará para a aliança ocidental, mas a instabilidade regional pode até piorar a médio-prazo. A mobilização da OTAN no leste europeu não cessou. Ao contrário, aumentou. Pesam também incertezas sobre como o aparente recrudescimento de seu regime se refletirá nas relações com a vizinhança e na atuação em organismos internacionais. Não se descarta, por outro lado, seu enfraquecimento, à medida que a situação econômica do país piore. A instabilidade política em um país como a Rússia sempre traz preocupações e consequências além de suas fronteiras.

A guerra na Ucrânia marca o retorno da insegurança à Europa, sensação que parecia ter ficado nas páginas de História desde a ampliação do bloco europeu, cuja concepção fora justamente a integração como fórmula para a paz. Disputas territoriais sempre dão calafrios em Estados, pois podem abrir precedentes. Países com problemas semelhantes costumam ser bastante cuidadosos em suas reações políticas, pois elas podem se voltar contra eles no futuro. É uma das razões do posicionamento sutil da China em relação a quem, dias antes da invasão, declarou ter um "parceria sem limites". Os delicados imbróglios acerca de Taiwan e Tibet exigem, ao mesmo tempo, a tradicional defesa da integridade territorial e a cautela para aferir a reação da comunidade internacional, tendo em vista uma hipotética incursão militar sua à "ilha rebelde".

A geopolítica é apenas uma lente de se ver as relações internacionais. Céticas quanto ao determinismo geográfico, outras correntes de estudos, sejam de cunho institucional, econômico ou político, complementam-na ou se chocam com ela. A Napoleão, por exemplo, são atribuídas duas frases que retratam as nuances: "A política de um país está em sua geografia" e "Eu, eu mesmo faço as circunstâncias". Questões geopolíticas podem instrumentalizar ou ser instrumentalizadas por visões ideológicas, como a Containment de Kennan, e étnico-culturais, no caso do Eurasianismo de Dugin e Putin.

Não se pode negar, porém, os indícios de contemporaneidade de Mackinder, ainda mais se levarmos em conta que na "Ilha-Mundo" situa-se a China, com a parte noroeste de seu território incluída por neomackinderianos no Heartland. Vizinha da Rússia ao nordeste, uma potência em ascensão ainda mais poderosa economicamente que, em uma década, elevou em quase 80% seu investimento em defesa. Diferente da hoje parceira, uma potência “anfíbia”, nas palavras de estudiosos militares, por ser dona de crescente poderio terrestre e aeronaval.

É justamente no Mar da China Meridional que se encontram os mais perigosos pontos de atritos geopolíticos e militares com o Washington e seus aliados asiáticos. Ano passado, os norte-americanos deram largada para sua nova, e por hora suavizada, versão da Containment. Desta vez, nas franjas marítimas chinesas. O Aukus, pacto militar entre Austrália (Au), Reino Unido (Uk) e Estados Unidos (Us) permitirá aos australianos a construção de submarinos nucleares com tecnologia norte-americana, além de acordos em áreas como inteligência artificial, tecnologia quântica e cibersegurança. Nas palavras oficiais, uma medida para "promover a segurança e a prosperidade na região do Indo-Pacífico".

Poucos anos antes, saiu do esquecimento o Quad (Diálogo de Segurança Quadrilateral), fórum que reúne Estados Unidos, Japão, Índia e Austrália. Seus membros afirmam não ser uma organização de segurança regional e sim uma "reunião informal das principais democracias do Indo-Pacífico". No entanto, além de reuniões entre os quatro chefes de governo, exercícios militares conjunto já foram realizados, o último, em 2020, na Baía de Bengala, nordeste do Oceano Índico. Na declaração do último encontro, os líderes alertaram contra “qualquer tentativa de mudar o status quo [nas águas] do Mar do Sul da China e do Mar do Leste da China”, uma resposta ao sinais de projeção militar chinesa em ilhas reivindicadas por Pequim e construções de outras artificiais.

Os olhos de Mackinder estariam certamente arregalados com a "Nova Rota da Seda", ambicioso megaprojeto de infraestrutura chinês que prevê financiamentos para a construção de ferrovias, usinas, gasodutos, entre outras obras, em países asiáticos, europeus e africanos, permitindo a criação de uma grande malha integrada sob a influência de Pequim. As relações entre China e Rússia são as melhores desde um breve período com Stalin e Mao, mas há, como sempre houve, uma potencial rivalidade. Seja cooptando um isolado Kremlin ou por eventuais choques futuros entre eles, a disputa pelo liderança da Eurásia continuará sendo balizadora das relações internacionais.

O que está em jogo não é "apenas" mais uma guerra, é a disputa pela legitimidade de alterar a ordem internacional. Ao contrário do que gritam certos militantes, sempre presos a seus chavões ideológicos, as atenções da mídia não estão voltadas para Ucrânia porque as “vítimas são brancas" - o que é diferente de constatar o racismo enfrentado por refugiados e comparar ao modo com que parcelas da população europeia receberam recentemente africanos e muçulmanos. Todas as mortes são lamentáveis; todas as guerras são condenáveis. Sim, há conflitos na Palestina e Iémen, há guerras civis na África. Mas as implicações da guerra ucraniana alcançam perigosamente outra dimensão a curto, médio e longo-prazo. Um acordo de paz pode até ser assinado amanhã, mas ela não terá terminado. Esta é a razão.

Através da imprensa ocidental, o mundo tomou conhecimento de crianças vietnamitas queimadas por bombas napalm jogadas por norte-americanos. Milhões reuniram-se em passeatas no Ocidente pedindo o fim de uma traumática guerra que tensionou socialmente os Estados Unidos. A pressão funcionou. A ilegal Guerra do Iraque, perpetrada unilateralmente por Washington a partir de mentiras, foi condenada pela opinião pública internacional graças a uma extensa cobertura televisiva. Quantos milhões de cartazes contra George W. Bush vimos, pelas TV e jornais, em ruas europeias e norte-americanas. Causou comoção as fotos de prisioneiros iraquianos torturados e humilhados por militares norte-americanos. Se Bush conseguiu ser reeleito, grande parcela do eleitorado do país se mobilizou contra aquela invasão. A encruzilhada em que ela se transformou fragilizou seu segundo mandato, ajudando-lhe a sair pelas portas dos fundos da Casa Branca no inicio de 2009.

Se não era obviamente seu objetivo, convém a Putin o quadro atual de “guerra de fricção”, na qual nenhum lado tem força para avançar, mas tampouco consegue fazer o inimigo recuar. Assim como no Afeganistão e Iraque, a estagnação retira o conflito de manchetes e cobertura 24 horas das TVs a cabo, como já se pode notar. Visibilidade nunca interessa a autocratas invasores. Atrapalha narrativas oficiais e será sempre obstáculo para crimes de guerra.

segunda-feira, 14 de março de 2022

O dilema israelense

Por Murillo Victorazzo

Em surpreendente viagem secreta, o primeiro-ministro israelense, Naftali Bennett, esteve em Moscou no último dia 5 a fim de se reunir com Wladimir Putin. Horas depois, antes de partir para Alemanha, telefonou para Volodymyr Zelensky. Era o início de seus esforços para mediar o conflito entre Rússia e Ucrânia, juntando-se na missão ao presidente turco, Recep Tayyip Erdogan. 
Palco dos primeiros encontros entre os chanceleres dos dois países em guerra, a Turquia, embora membro da OTAN ( guarda ogivas nucleares norte-americanas), é sócia de Moscou em diversos negócios e necessita da boa vontade russa para a defesa de seus interesses estratégicos na região do Mar Negro e Oriente Médio. Em dilema semelhante, ainda que por razões diferentes, encontra-se Israel, com seus profundos laços históricos, políticos e econômicos com Estado Unidos, Rússia e Ucrânia.

A relação com Washington é simbiótica. Embora nunca tenha passado de 3% da população norte-americana, a comunidade judaica é forte politicamente no país, com proporções bem maiores nas elites políticas. Veio ironicamente da Rússia uma das principais levas migratórias. Em 1881, para fugir do pogrom que sucedeu o assassinato do czar Alexandre II, autor de reformas modernizantes na estrutura socioeconômica russa, dois milhões de judeus buscaram segurança nos Estados Unidos.

Enquanto é aliado chave dos interesses norte-americanos no Oriente Médio, Israel, segundo relatório do Capitólio, recebeu desde 1948, ano de sua criação, cerca de US$ 150 bilhões em assistência, financiamento e fundos, entre os quais os voltados para equipar suas forças armadas. É o "maior destinatário da assistência externa cumulativa dos EUA desde a Segunda Guerra Mundial", revela o documento. Em memorando assinado pelos dois governos em 2016, está previsto ajuda militar de quase 40 bilhões de dólares entre 2019 e 2028. Além do visceral apoio político de Washington às suas demandas na arena internacional, estimativas indicam que cerca de um quarto do orçamento militar israelense vem dos contribuintes norte-americanos.

Por outro lado, Moscou é fundamental para Israel em seu política de defesa regional. Principal aliado do ditador Bashar al-Assad, Putin tem sido o fiador das incursões militares dos israelenses dentro do território sírio, onde buscam combater milicias xiitas apoiadas por Irã que ali operam. O espaço aéreo da Síria está na prática controlado pelos russos. Ruídos com o Kremlin podem resultar na inviabilização dessas ações e a consequente aproximação desses grupos para perto de suas fronteiras, assim como risco de maiores tensões com o regime de Damasco.

A Rússia também é, junto com Reino Unido, China, França, Alemanha, importante ator nas negociações para restaurar o acordo nuclear com o Irã, inviabilizado com a saída dos Estados Unidos sob a gestão Trump e entendido por Israel como ameaça à sua segurança. Biden pretende reavivá-lo, mas o antagonismo com Moscou criou indefinições ainda maiores para o processo. A abrupta retirada trumpista justificou o abandono iraniano de qualquer compromisso previsto. Segundo a Agência Internacional de Energia Atômica, Teerã possui hoje estoque de urânio enriquecido correspondente a mais de 15 vezes o limite estabelecido em 2015. A busca por alternativas ao petróleo russo pode fortalecer sua posição, dono que é da quarta maior reserva do mundo, hoje alvo de pesadas sanções. Resta saber como reagiria o regime do aiatolás, aliado do Kremlin na região, a uma tentativa de aproximação norte-americana.

Os interesses estratégicos se misturam aos fortes laços culturais. Segundo o The New York Times, os judeus soviéticos e seus descendentes somam, em Israel, aproximadamente 1,5 milhão de pessoas - pouco mais de 15% da população. Desse total, um terço têm origem russa e quase a mesma quantidade é proveniente da Ucrânia. Era no leste europeu, tanto nas repúblicas da União Soviética como em seus Estados satélites e os que assim se tornaram depois da Segunda Guerra, que a grande maioria dos judeus do mundo se encontrava até 1939. Foi em proporção ainda maior que ali ocorreram os horrores do Holocausto: quase 90% dos cerca de seis milhões de assassinados eram nativos da região.

Na Polônia, por exemplo, pouco mais de 10% da população era judaica. Em nenhum outro país havia percentual maior. Dos pouco mais de três milhões de judeus poloneses, sobreviveram às atrocidades nazistas apenas cerca de duzentos mil. Cerca de dois milhões e meio de judeus soviéticos morreram sob os fuzis e as câmaras de gás do III Reich. Na Ucrânia, contabiliza-se quase 500 mil vítimas, cerca de 20% dos judeus do país - o restante conseguiu fugir ou fora anteriormente deportado. Foi o Exército Vermelho quem libertou as áreas em que se localizavam todos os campos de extermínio, a grande parte dos campos de concentração e o emblemático Gueto de Varsóvia, cidade considerada à época o centro da cultura hebraica internacional. No local, perto de meio milhão de judeus foram confinados em apenas 400 hectares delimitados por cercas e muros, vigiados por sentinelas.

Sob esse trauma, centenas de milhares de judeus soviéticos optaram pela segurança do recém-criado Estado de Israel, logo que ele foi proclamado. Um êxodo inicialmente bem visto por Stálin, interessado em ter o Reino Unidos fora do Oriente Médio e que contava com esses vínculos e a gratidão ao Exército Vermelho para transformar o novo Estado judeu em um Estado socialista. O bloco comunista europeu não só apoiou em peso as articulações na ONU para a formação do novo Estado como o ajudou militarmente na guerra contra os países árabes que o invadiram horas após a assinatura de independência. Soldados judeus foram treinados na Polônia, enquanto armas foram doadas pela Tchecoslováquia e enviadas através da Iugoslávia e outros países balcânicos. 

O sionismo de esquerda tinha papel de destaque entre os fundadores da pátria hebraica, a começar por David Ben-Gurion, seu primeiro chefe de governo, nascido na Polônia, e Golda Meir, primeira embaixadora na União Soviética, bastante admirada pela elite moscovita. Nascida em Kiev e criada nos Estados Unidos, ela se tornaria, duas décadas depois, uma das primeiras-ministras israelenses mais marcantes.

Não tardou, porém, para Stálin mudar suas percepções. De influenciável, Israel passou a ser visto como influenciador dos judeus ainda residentes atrás da Cortina de Ferro. Com o alvorecer da Guerra Fria e o crescente poderio econômico dos Estados Unidos, o líder soviético iniciou uma política de isolamento cultural, com intuito de afastar a "pureza russa" das concepções de vida ocidentais, perigosas para o prestígio interno de seu regime. A narrativa oficial precisava ser a de que os russos haviam sido ao mesmo tempo os principais carrascos e as maiores vítimas de Hitler. Era preciso, portanto, minimizar o Holocausto como apenas mais um aspecto da ocupação alemã.

Dar a dimensão verdadeira daquele extermínio racial obrigava, além do mais, o regime soviético a expor a colaboração de alguns de seus cidadãos com o Reich. Não foram raros os civis, além dos prisioneiros de guerra, que auxiliaram os alemães na perseguição e administração dos territórios ocupados durante os quase quatro anos de subjugação - inclusive dos corredores da morte dos campos de extermínio de Treblinka, Sobibor e Belzec. A lembrança destruía o mito da população soviética unida corajosamente em torno da honra do Estado comunista. 

A própria hoje invadida Ucrânia contou com uma milícia paramilitar nacionalista, o Exército Insurreto Ucraniano (UPA), que, pretendendo posteriormente derrotar os comunistas e alcançar a independência, chegou a colaborar no início com a Wehrmacht (as forças armadas alemãs), fato frequentemente recordado por Putin para reforçar a acusação de ser o vizinho celeiro de neonazistas. Ignora obviamente os cerca de três milhões de ucranianos, muitos membros do Exército Vermelho, mortos pelos alemães. Em uma triste coincidência, um dos primeiro bombardeios russos sobre Kiev, no início do mês, atingiu uma torre de TV próxima a Baby Yar, o emblemático barranco em que, na véspera do Yom Kippur de 1941, cerca de 35 mil dos 200 mil judeus da cidade foram fuzilados em dois dias. Era primeira operação com vistas a exterminar toda comunidade judaica de uma grande cidade. Hoje há no local um Memorial do Holocausto.

Ao mesmo tempo que a Segunda Guerra não deveria ser entendida como uma guerra de libertação de judeus, estes não eram mais confiáveis. Passavam a ser percebidos, conta o historiador Timothy Snyder em seu livro "Terras de Sangue", como "cosmopolitas desarraigados", por, forasteiros mesmo nascidos no país, não terem apego sincero à cultura russa, e portanto, suscetíveis à influência do capitalismo norte-americano, ou "sionistas", o que denotava preferir os valores de outro Estado nacional (Israel), o qual, para piorar, já nascera sob a dependência do apoio de Washington. Com a eclosão da Guerra da Coreia, em 1952, tropas norte-americanas encontravam-se perto das fronteiras orientais soviéticas. Pela retórica stalinista, apesar da aparente contradição, a correlação entre cosmopolitismo e nacionalismo ganhava sentido.

Para uma mente obcecada com a segurança do regime, o cenário era terreno fértil para teorias conspiracionistas. Judeus, apontados por Hitler como a gênese do comunismo ( “judeo-bolchevismo”), passaram a ser acusados de integrar, como espiões, um grande complô dos Estados Unidos que incluiria assassinatos de membros dos aparatos estatais de Moscou e seus satélites. Através de farsas judiciais e confissões sob tortura, iniciaram-se perseguições, assassinatos e expurgos nos governos e partidos comunistas soviético e do leste europeu, interrompidos com a morte de Stalin, em 1953. "Stalin matou menos de algumas dezenas de judeus em seus últimos anos de vida. Se queria de fato uma derradeira operação de terror nacional, o que não é nada certo, ele foi incapaz de levá-la a conclusão", pondera Snyder.

Nikita Kruschev denunciou, em discurso no Congresso do PCUS, as políticas de extermínio e deportação das décadas de 30 e 40 comandadas por seu antecessor. Contudo, embora o antissemitismo stalinista do pós-guerra nunca tenha alcançado tal ordem de grandeza, o silenciamento do Holocausto e o discurso da ameaça sionista permaneceram após os anos 50 no país e em alguns outros países de seu bloco, como Polônia e Tchecoslováquia, reverberados inclusive por judeus comunistas, emparedados pelo riscos dos julgamentos falseados. Supostas conexões judaicas serviam para desacreditar e afastar da vida pública rivais nas disputas internas daqueles regimes. Com a Alemanha Ocidental integrada à OTAN, em 1954, o revisionismo histórico em que os eslavos haviam sido os alvos prioritários dos nazistas fortalecia a imagem oficial do leste europeu novamente ameaçado pelos alemães - desta vez aliados a Washington. 

Para os soviéticos e satélites, a Guerra Fria dava prosseguimento à Segunda Guerra, e Israel sendo, ao lado dos alemães ocidentais, marionete dos Estados Unidos, era apenas mais uma instância do imperialismo capitalista, cuja deformação resultara no nazismo. O Estado judeu, portanto, nada tinha de vítima. Ao contrário, fazia parte de uma ordem que perpetrara crimes contra a humanidade. Charges polonesas chegaram a retratar as forças armadas israelenses como a Wehrmacht. A acusação de sionismo não mais se restringiu a judeus e descendentes. Frequentemente assim foram tachados intelectuais e críticos do regime. O antissemitismo afastou o Estado judeu da União Soviética. Eleitoralmente majoritária nas décadas de 50 e 60, a esquerda israelense se solidificou no tom socialdemocrata. 

Em sentido oposto, como causa ou consequência, os Estados Unidos, de início cauteloso por temer prejudicar as relações com países árabes, reforçaram seus vínculos com Israel no decorrer da Guerra Fria. Enquanto na Crise do Suez, em 1956, pressionam pela retirada das tropas israelenses do Sinai, na Guerra dos Seis Dias, em 1967, mostram-se seu principal sustentáculo. No conflito, em luta contra a Liga Árabe, agora apoiada pelos soviéticos, Israel ocupa novamente a península egípcia, além da Faixa de Gaza, a Cisjordânia, Colinas de Golã. Era o início da visceral parceria entre Washington e Tel Aviv.

A ascensão de Putin realinhou em parte as relações de Moscou com Israel, necessariamente ambíguas pela simultânea proximidade com países árabes, como a Síria, e a teocracia iraniana. Muitos se surpreenderam com sua presença na comemoração, em Israel, dos 75 anos da libertação do campo de Auschwitz. “Putin tem se mostrado um grande amigo dos judeus, do judaísmo e do Estado de Israel", afirmou à época Osias Wurman, cônsul honorário de Israel no Rio de Janeiro, à Sputnik Brasil, sucursal da agência internacional de notícias do governo russo.

O chefe do Kremlin frequentemente participa de cerimônias judaicas e é amigo do rabino -chefe de Moscou. Uma proximidade explicada, segundo biógrafos, pelos laços afetivos criados em sua infância, quando o menino Wladimir, de família muito pobre, foi muitas vezes alimentado por uma família judia vizinha. Também judeu foi seu professor de boxe, figura paternal para ele. Recentemente, um jornal ligado ao Hezbollah aproveitou-se dessas relações para "denunciar" que Putin, na verdade, seria judeu, e não cristão ortodoxo.

Israel votou a favor da resolução da Assembleia Geral da ONU que condenou a invasão russa. Em reunião com o secretário de Estado norte-americano, Antony Blinken no dia 7, o ministro das Relações Exteriores, Yair Lapid, reafirmou a condenação. Disse, segundo o portal de notícias Ynet News, um dos maiores de Israel, que, embora converse com todos os lados e considere que "a ordem mundial está mudando", "não há alternativa à liderança dos Estados Unidos no mundo, que esteja determinada a impedir guerras e massacres”.

O país, no entanto, evitou seguir seu principal aliado e a União Europeia nas sanções à economia russa Tampouco fechou seu espaço aéreo à Moscou e manteve os voos das companhias áreas locais para a Rússia. Segundo a rádio israelense Kan, a razão para o governo Bennet se recusar a vender seu sistema de defesa aérea Iron Dome a Ucrânia teria sido "medo de irritar Putin". Não por acaso, na mesma semana da votação em Nova York, o vice- embaixador russo na ONU, Dmitry Polyanskiy, reafirmou o não reconhecimento da soberania israelense sobre as Colinas de Golã. "Fazem parte da Síria. Estamos preocupados com os planos anunciados de Tel Aviv para expandir a atividade de assentamento nas Colinas de Golã ocupadas, o que contradiz as disposições da Convenção de Genebra de 1949", escreveu em seu perfil no Twitter.

Massivos protestos ocuparam as ruas de Tel Aviv exigindo um posicionamento mais enfático contra Putin por parte de Bennet, filho de imigrantes norte-americanos, com alguns anos da infância e da vida profissional vividos nos Estados Unidos. Por outro lado, Putin conta com a simpatia dos mais entusiasmados eleitores do ainda forte politicamente ex-premiê Benjamim Netanyahu. Os dois nutrem excelentes relações pessoais e ideológicas, o que indica um quadro ainda mais complexo caso Netanyahu estivesse ainda na chefia do governo. 

Em suas últimas campanhas eleitorais, o Likud, seu partido, fez questão de ressaltar o vínculo, expondo faixas com foto dos dois juntos ( assim como com Trump) em sua sede. A estratégia gerou críticas de seus opositores, contrários ao enaltecimento de um autocrata por parte do então líder de uma democracia liberal. Seus simpatizantes, contudo, entenderam como sinal de livre acesso aos principais governantes do mundo. É no Canal 14, emissora associada ao ex-primeiro-ministro, onde se vê uma das poucas coberturas menos críticas às ações do Kremlin na Ucrânia.

Ministro das Relações Exteriores e da Defesa no gabinete de Netanyahu e líder do Yisrael Beytenu , o atual ministro da Economia, Avigdor Liberman, é moldavo com ascendência russa. Foi para ser a voz dessa parcela russófona da população, sua base tradicional, que ele fundou, em 1999, o secularista e nacionalista partido, vital para a manutenção da frágil e heterogênea coalisão governista, que inclui da centro-esquerda e partido árabe à direita religiosa. Bennet conta com apenas 61 dos 120 assentos no Knesset, o parlamento israelense.

A guerra pode também repercutir no cenário social interno. Ao fim da primeira semana do conflito, quatro mil judeus ucranianos já haviam fugido para Israel. Além dos perto de 10 mil israelenses, há ainda na Ucrânia aproximadamente outras 200 mil pessoas aptas à Lei do Retorno, norma que garante cidadania israelense a qualquer judeu no mundo, seus cônjuges e descendentes não judeus até a terceira geração, o que pode implicar em uma nova onda da Aliá, o nome hebraico para a imigração para o Estado judeu. Setores da opinião pública mostram-se, ademais, reticentes em acolher refugiados que não preencham os requisitos da lei.

Disposto a ser o porta-voz das demandas dos dois lados, Bennet continua com as chamadas telefônicas para Moscou e Kiev. De concreto, por hora, a disposição do governo israelense em construir um hospital de campo no oeste da Ucrânia a fim de fornecer assistência humanitária. Apesar da decepção com alguns posicionamentos de Tel Aviv, o conselheiro de segurança nacional da Ucrânia, Andriy Yermak, elogiou os esforços: "Israel empreendeu a difícil, mas nobre missão de mediar a busca pela paz e acabar com a agressão da Rússia", tuitou. Zelensky, filho de judeus e cujo avô lutou no Exército Vermelho durante a Segunda Guerra, foi convidado a discursar no plenário do Knesset no próximo domingo. De imediato, o embaixador russo pediu uma reunião de emergência com o presidente da Casa, Mickey Levy.

Nesse delicado equilíbrio, Israel torce para que a guerra não se amplie a ponto de atingir diretamente algum membro da OTAN. Terá assim que optar pelas aliança estratégica com Washington, vendo-se obrigado a arcar com os custos das prováveis retaliações de Moscou.

 Enquanto cerca de 15 mil pessoas foram detidas em protestos contra a guerra na Rússia, Putin, nesta quarta-feira, dia 16, afirmou, em cadeia nacional de TV, que a sociedade russa precisa passar por uma "autopurificação", que "fortaleça" o país e permita distinguir os "patriotas" dos "bastardos "e "traidores", aqueles que estão "mentalmente" no Ocidente, não "com o nosso povo". Palavras que remetem à retórica de Stálin sobre cosmopolitismo e "pureza russa" em sua justificativa para a política de perseguições daquela época.

Novamente, deploráveis decisões de um nada democrático inquilino do Kremlin, em luta contra o não mais "reacionário", mas "globalista" ou "liberal" Ocidente, podem afastar Tel Aviv de um país com quem tem laços tão profundos. Se desta vez os judeus como um todo não são os perseguidos, é coincidentemente um potencial cidadão israelense quem preside o país alvejado.