quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

Tristes coincidências

Por Murillo Victorazzo

Há 103 anos, surgiu na Itália um movimento fortemente personalista. Nutriam ódio visceral a tudo que entendiam como socialismo e alvejavam não apenas a “classe política” mas todas as instituições civis - responsáveis, segundo eles, pela decadência moral da nação. Defendiam a ideia de um povo-uno, a partir da qual consideravam “antipatrióticos”, por “dividirem o país”, dissensos entre grupos e classes sociais. Seu partido era seu país…

Para eles, seu idolatrado líder - tido como carismático, antissistema e dono de discursos diretos e incendiários - não se resumia a um representante, mas a propria encarnação desse povo. “Il Duce ha sempre ragione” (O ‘Duce’ tem sempre razão), afirmavam pinturas nos muros de cidades italianas. Exaltavam as armas, o militarismo e a virilidade masculina. Instrumentalizaram boa parte das forças de segurança. Pouco mais de uma década depois, ganharam no Brasil uma variante tropicalizada e com forte viés cristão: o integralismo, cujo lema era “Deus, Pátria e Família”.

Mais do que o ineditismo de ser o primeiro movimento de massas à direita, entraram para a História por ter como principal modus operandi a naturalização da violência política: primeiro como linguagem, depois como prática. São fatos reais, não opiniões. Lembrou algo? Haja coincidências…

sábado, 26 de novembro de 2022

O limite do ranço

Por Murillo Victorazzo

Eu sei que ninguém está preocupado com o que penso, mas eu vou falar bem detalhadamente, porque o saco já está cheio. A antipatia que Neymar desperta em muitos brasileiros não nasceu com sua declaração de voto em Bolsonaro, tanto que outros jogadores optaram publicamente pelo atual presidente sem receber em troca o mesmo desapreço. O atacante é sim um homem de 30 anos que aparenta sofrer da "síndrome do Peter Pan": mimado, repleto de atitudes reprováveis dentro e fora de campo e com enorme dificuldade de autocrítica, o que o tornou, há muitos anos, mal visto por tantos não apenas no Brasil.

Quem não se lembra da declaração de Renê Simões sobre ele ainda em 2010? Quem esqueceu, basta um “Google”. Ali dava-se ainda o benefício da dúvida a um menino de 18 anos possivelmente deslumbrado. Não é preciso aqui recordar as polêmicas envolvendo seu nome em Copas anteriores nem como, em determinadas ocasiões, reagiram a seu comportamento muitos torcedores dos clubes por qual jogou. Não é diferente no PSG. Seu talento é proporcional à sua arrogância. Zombar de dependência química de comentarista que o critica, por mais errado que este pudesse estar, foi o gol contra mais recente. É alguém que não conta com minha afeição - e sua preferência política pouco peso tem nisso.

É compreensível , portanto, o ranço por parte de tantos, inclusive muitos eleitores de Bolsonaro, pensamento que pode ter se alterado convenientemente após seu engajamento à direita, o que, em contrapartida, reforçou inegavelmente a antipatia em setores da esquerda. Comparações com as relações entre CR7 e portugueses e Messi e argentinos são equivocadas. Ignoram suas posturas profissionais, o modo como compreendem o papel de ídolo e o seus tamanhos  para a história do futebol dos dois países. 
Nada, porém, justifica debochar, deliciar-se com sua lesão, e minimizar sua importância como principal jogador brasileiro. Se tua antipatia a Neymar já se tornou ódio e rancor, pense pelo menos nos companheiros de time que sentirão sua falta como maior referência em campo. Pense nos demais brasileiros que desejam apenas ver sua seleção campeã e, gostemos ou não, sem o camisa 10 a tarefa se torna mais complicada, por mais que a dependência seja bem menor este ano. Pense como seria muito melhor estarmos todos focados em enaltecer a promissora estreia da equipe, sem polêmicas desnecessárias. Isto não te tornará "Neymarzete".

Copa do Mundo é o momento em que milhões de pessoas pouco acostumadas com futebol despertam para o esporte. Normal, essa é uma das graças do evento. Quase sempre as consequências são apenas risadas, gafes, opiniões sobre ângulos diferentes. Nada mais chato do que ser bedel de torcedor. O problema é a minoria incapaz de guardar por um minuto sequer o crachá de militante. Na verdade, do que imaginam ser militante.

Militar em um torneio tão grandioso assim é compreensível e até necessário. É, aliás, grandioso justamente por ultrapassar os gramados. Mas é preciso saber pelo que militar e de que maneira. São legitimas e merecem os aplausos os protestos contra a monarquia absolutista e teocrática do Qatar, emociona ver o choro de mulheres iranianas em estádios. Em se tratando de seleções, geopolítica e inimizades históricas inevitavelmente vêm à tona. Quem não está curioso para assistir ao Irã x EUA decisivo que se aproxima? Mas picuinha e falta de discernimento nada tem a ver com politização. 

O que penso de Neymar como pessoa não mudará com o Hexa - e é de lamentar a aparente pouca preocupação do jogador e sua assessoria em buscar entender as razões de uma antipatia tão forte que já extrapolou, entre alguns, para uma perseguição irracional e leviana. Até seu choro é sempre de cara colocado em dúvida. Quando parte de um argentino, é amor à camisa. Com ele, é encenação. Prejulga-se atos seus a partir de frames captados de fotos. Ignoram a quantidade de faltas que sofre; preferem o estigma sarcástico do “cai cai”. 

O craque, assim como alguns de seus companheiros, como Raphinha, deveria se perguntar por que um país que não cansou de exaltar Zizinho, Pelé, Garrincha, Zico, Rivelino, Romário, Ronaldo, entre outros, mesmo eventualmente criticados em certos momentos, vê parcela de sua população destilar tamanha aversão ao, pelo menos por enquanto, maior nome de seu principal esporte. Não, seu erro não foi ter nascido no Brasil. Iguala-se, porém, a quem não simpatiza quem prefere gastar o tempo vibrando com a desgraça alheia. Nem notam que, além de tudo, acabam por ajudá-lo a vitimizar-se, reação típica de Neymar mesmo quando está equivocado. Desta vez, com razão.

Copa do Mundo é também momento de confraternização entre povos. Se iranianos e norte-americanos trocam cumprimentos e se respeitam no gramado e nas arquibancadas, por que preferir destilar rancor contra outro brasileiro, que está ali para vestir a camisa pelo qual você diz estar torcendo? Não se trata de patriotada demagógica, mas de estar cansado de energia negativa e querer apenas torcer, divertir-se e orgulhar-se, pelo menos por um mês, do que fazemos de melhor: festa e jogar futebol. Um futebol cujo estilo único é sinônimo desse país perante o mundo. Um estilo que tem em Neymar um fiel discípulo. Uma camisa, a mais pesada entre todas, admirada em todos os continentes. 

Dificilmente terei Neymar como ídolo algum dia. Não é uma pessoa que procuraria ter como amigo. Quero sim ele brilhando muito em campo no Qatar. Se entendem como "culpa cristã" ter empatia por um atleta que se viu assustado pela possibilidade de ficar de fora do maior evento do planeta, que seja por interesse: uma seleção sem Neymar é uma seleção menos forte. O adversário olha de outra forma. Melhorem. Até pra ranço há limites.

domingo, 9 de outubro de 2022

O que está em jogo

Murillo Victorazzo

Tudo bem, pode parecer repetitivo escrever, mas alguns, uns de forma genuína outros nem tanto, não conseguem juntar os pontos e apegam-se a palavras de ordem simultaneamente banais e presunçosas, como se algum eleitor fosse a favor de corrupção. Voltemos então no tempo: escolha um PGR arrivista, ausente da lista tríplice produzida pelos membros do MP, que ajuda a destruir a estrutura da Lava-Jato e arquiva todas as denúncias sobre o governo, sem sequer serem investigados indícios fornecidos por outros órgãos, CPIs e imprensa. Remaneje inúmeros delegados da PF que "coincidentemente" atuavam em casos envolvendo sua família e gestão. Empodere as Forças Armadas com milhares de cargos civis e as insufle como avalista final de eleições, fragilizando o controle civil sobre o poder militar, inerente às principais democracias no mundo. Leve a política para dentro também dos quartéis de outras forças de segurança.

Use a máquina e seu poder político ( sigilos, pressão na Receita, promessas de indicações para magistrados de tribunais inferiores) para, a partir de uma decisão do tão criticado STF, embarreirar denúncia do MP contra o filho - em um caso de peculato e lavagem de dinheiro que reúne assessores (muitos laranjas) alocados também no gabinete do pai quando parlamentar, a começar da filha de foragido abrigado em residência do advogado da família presidencial , além de outros parentes de milicianos notórios. Não é “fake news” recordar que a mãe e esposa de Adriano da Nóbrega, líder  do Escritório da Morte, trabalhavam no escritório de Flávio na Alerj. Nóbrega, que possuía, até ser assassinado, relações financeiras demonstradas com o amigo de Jair, o famoso Queiroz. Assim é fácil afirmar que nada foi provado, enquanto, anos atrás, acusavam de cara outros políticos baseados apenas em delações e reportagens, cercando virtual e politicamente magistrados por condenações. É incrível como o Brasil, em especial o bolsonarismo, naturalizou tais círculos de amizade. Nem com uma pulga atrás da orelha ficam.

Depois de entregar a Casa Civil, coração do governo, e vários órgãos de segundo escalão ao Centrão, dê ao grupo acesso livre, discricionário e nada transparente a dezenas de bilhões de reais ( "orçamento secreto). Filie-se a um partido desse grupo e fortaleça eleitoralmente sua bancada no Congresso, entregando consequentemente àqueles caciques donos de fichas criminais pouco igualáveis poder de gestão de fundos partidário e eleitoral ainda mais robustos.
 
Não bastasse, garantida uma base mais ampla no Congresso a partir do ano que vem, insinua, emulando Hugo Chávez, aumentar o número de integrantes do STF, onde muitos destes parlamentares estão sob investigação ou são réus. Com direito à explícita chantagem: “se não baixarem a temperatura”. Não captaram ainda? Desenho: além do risco democrático embutido na proposta, é do interesse também do Centrão uma Suprema Corte acuada e aparelhada. Ou vocês acham que, com tamanho poder de barganha, não serão indicados para tantas novas vagas nomes que corroborem seus interesses, como Nunes Marques? Tudo isso depois de, quatro anos atrás, o filho Eduardo afirmar que bastava "um soldado e um cabo" para fechar o STF e alguns de seus simpatizantes clamarem, em passeatas e redes sociais, pelo mesmo fim.

Em troca de mais poder político, dinheiro e fiscalização frouxa, um Centrão com maior musculatura deu aval ao projeto autocrático de Bolsonaro. É o pior dos mundos, mesmo se ignorado seu teor reacionário e teocrático. Um projeto cujo DNA é a deslegitimação, com discurso hipócrita antissistema, das instituições, a fim de enfraquecê-las e assim controlá-las. De órgãos de pesquisa como INPE a controladorias de forças de segurança, passando pelo fim da participação da sociedade civil em conselhos ministeriais. Hugo Chávez cassou concessão de emissora de televisão opositora alegando irregularidades fiscais. Lembram-se das ameaças recentes contra a Rede Globo com o mesmo tom supostamente moralizador?

Sim, Lula sempre foi aliado do coronel bolivariano, mas, sem ignorar a corrupção e o que implicava no relacionamento com o parlamento e a presença de radicaloides em segmentos minoritários do PT, em oito anos de seu governo jamais importou para cá práticas semelhantes de coerção institucional nesses níveis, nem mesmo na economia. Ao contrário do que difundem os histéricos bolsonaristas que conseguem ver socialismo naqueles anos. Um governo que tinha um dos maiores empresários do país como vice-presidente, um representante do agronegócio no Ministério da Agricultura, Henrique Meireles no Banco Central e dirigentes dos grupos Sadia e Volkswagem no Ministério da Indústria e Comércio. Rejeitou, por saber o grau de instabilidade que causaria, proposta de possibilidade de terceiro mandato, quando atingia 80% de popularidade. George W. Bush o via como o irmão adulto e moderado do caudilho venezuelano e a ele recorreu em diversos momentos. Isto são fatos, não opinião.

Com Legislativo sob controle através do dinheiro, Forças Armadas instrumentalizadas, o tribunal revisor constitucional e a PGR tutelados, reforça-se o desequilíbrio institucional, esfacela-se a transparência e aumenta-se a impunidade. Sem freios e contrapesos, não há democracia e, portanto, não há combate à corrupção- nem a exposta no primeiro mandato, que muitos insistem em não ver, ou minimizam,  muito menos as de um eventual segundo mandato. Não por acaso, essa turma insiste na cantilena de que “na ditadura militar não havia roubo”. Ditadura, aliás, que, ao mesmo tempo que lhe retirou poderes, também aumentou o colegiado do STF.

Ou vocês realmente acham que respeita as leis quem, não bastasse tal repertório, já admitiu ser sonegador em programa de TV e praticar garimpagem irregular? Que acredita na democracia liberal quem, além de tudo já citado, passou décadas defendendo fuzilamento de presidente, elogiando torturador de mulheres ( algumas grávidas), exaltando como estadistas ditadores como Medici, Pinochet e Stroessner e afirmando que o “erro da ditadura foi ter matado poucos”, porque não se resolve nada “sem guerra civil”? “Se inocentes morrerem, paciência”, minimizou.  Esse mesmo Bolsonaro que planejou atentado terrorista na adutora de Guandu apenas no final da década de 80, como sempre foi de conhecimento na caserna bem antes de sua entrada na política, apesar da absolvição por dubiedade de exame grafológico, em recurso à tribunal militar. Não por uma causa ideológica nem como combate à regime de exceção, apenas para reivindicar melhores soldos. 

Acham mesmo que foram meras “frases mal colocadas”, assim como na falta de empatia de expressões como “e daí, não sou coveiro?" e outras tantas do tipo em meio a uma pandemia cuja condução por ele, repleta de teorias irresponsáveis, seria ainda mais repetitivo relembrar?  Permanecem pensando assim mesmo juntando todos os pontos acima? Ainda acreditam ser essa eleição um plebiscito sobre quem roubou, fazendo uma linha de corte simploriamente quantitativa para ilegalidades toleráveis, no fundo em função de afeições e preferências ideológicas? Bolsonaro faz, com mais esperteza retórica, o que acusa os outros de terem feito.

quinta-feira, 16 de junho de 2022

Soberania é dar exemplo

Murillo Victorazzo

Não, meu caro bolsonarista. Não são narrativas. São fatos, e se você não se lembra deles, eu os recordo:

Bolsonaro praticou garimpagem ilegal na década de 80. Repreendido por seus superiores de farda, desdenhou publicamente e estimulou outros militares a agirem de forma igual. Em 2012, foi autuado por pesca ilegal em Angra dos Reis, um episódio que terminou, coincidência ou não, com a exoneração do responsável pela multa em 2019, já sob seu governo. Por décadas, criticou a legislação ambiental produzida nos anos FHC e PT, chamando-as de "socialistas". A mesma legislação que, acuado nos fóruns internacionais, agora enaltece para provar que o "Brasil é quem melhor protege suas florestas" - ao mesmo tempo que propõe ou apoia projetos de lei que a fragilizam.

Bolsonaro cresceu politicamente prometendo "acabar com o ativismo". Eleito, em detrimento do corpo técnico, enfraqueceu, inclusive financeiramente, órgãos como Funai e Ibama: apoiado pelo ruralismo mais atrasado, nomeou policiais sem expertise para suas chefias e direções; empoderou o discurso de grileiros e garimpeiros ao constantemente tachar os funcionários concursados de "xiitas"; e pressionou por flexibilização de multas ambientais.

Qualquer calouro de economia sabe distinguir fluxo de estoque. Dados do INPE - órgão estatal ( não, não é a Globo, o Foro de SP nem a Greta) mostram o forte aumento do desmatamento da Amazônia nesses quase quatro anos de governo. Outros números comprovam o recrudescimento de crimes na região, assim como de invasões a terras indígenas. Confrontado, Bolsonaro e seus bovinos preferiram desqualificar as denúncias. Optaram por virar suas metralhadoras verborrágicas para a "mídia esquerdista" e hipocrisias europeias - o que não anula os vergonhosos dados oficiais, em área em que, pela postura proativa nas três décadas anteriores, o Brasil era capaz de moldar as normas internacionais. Uma das raras em que podemos ser global player.

Sim, Chico Mendes, em 1989, e Dorothy Stang, em 2005, foram mortos na Amazônia. O que difere, porém, é, além do contexto, a reação do governo. Não precisava ser muito sábio pra imaginar a repercussão internacional que teria o homicídio de um jornalista inglês em uma região que mobiliza atenções mundiais - alguns por interesses sim, mas tantos outros por preocupações genuínas. Ainda mais acompanhado de um reconhecido indigenista, demitido de seu cargo de coordenador-geral de índios isolados da FUNAI três anos atrás e substituído por um pastor evangélico, defensor da evangelização de indígenas, uma volta de quase 500 anos no tempo.

Mas, não bastasse a Justiça ter que entrar em ação para agilizar o envio de apoio às buscas, já que a velocidade com que o Exército responde ao TSE não foi vista para suas verdadeiras atribuições constitucionais, o presidente da República escolheu relativizar o caso ("sempre ocorreu") e culpabilizar as vítimas pela "aventura". Duas pessoas que se arriscaram para denunciar crimes - e proteger o que seu governo deveria proteger. Uma postura certamente diferente da como agiria caso os homicídios tivessem ocorrido em uma comunidade dominada pelo tráfico no Rio De Janeiro. Estaria até agora vociferando contra a "bandidagem", que boa é a morta. É mera coincidência os suspeitos fazerem parte de grupos como grileiros, garimpeiros, madeireiros ilegais, pescadores em áreas de conservação, todos integrantes de sua poderosa ($$) base eleitoral no norte do país, com tentáculos no aliado Centrão?

Não são narrativas, é notório. Tão notório quanto as desastrosas declarações do delegado presidente da FUNAI. Ecoando Bolsonaro, Marcelo Xavier achou mais conveniente apontar o dedo para as vítimas. A fim de tentar se eximir, acusou Bruno Ferreira e Don Phillips de não terem comunicado aos órgãos de segurança suas entradas em terra indígena. “O problema é que, infelizmente, as pessoas sabem do risco e insistem em ir lá sabendo desses riscos". Bruno não só tinha autorização como, na verdade, o desaparecimento nem se deu nessas áreas. 
Xavier fez ainda questão de frisar que o indigenista não estava em missão oficial da FUNAI. É um estranho caso de agente público que atua contra os direitos de quem deveria proteger. Não há diálogo, afirma Alberto Terena, coordenador executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), a maior organização indígena do país.

É fato que sempre houve dificuldades para a presença estatal na Amazônia. No entanto, as políticas ambiental e indigenista do atual governo não apenas as reforçaram abruptamente, seja por ações ou declarações. Parecem sinalizar o desejo pelo caminho oposto: a ausência de Estado. Faltava um símbolo para essa inédita degradação institucional, já tão mal vista interna e externamente. Não falta mais. Se militares e bolsonaristas, presos a teorias anacrônicas, temem por "interferência" estrangeira, é justamente o presidente da república quem mais dá argumentos aos que dizem que "os brasileiros não sabem cuidar da Amazônia". Imagem é tudo. Soberania é saber governar; é proteger; é dar exemplo.


terça-feira, 7 de junho de 2022

Uma história nem tão portuguesa

Murillo Victorazzo*

Localizado a cerca de 80 quilômetros de Lisboa, Glória de Ribantejo foi um pacato vilarejo de Portugal, extinto administrativamente em 2013, após ser integrado a freguesias vizinhas. À época, contava com pouco mais de três mil habitantes, o que nos permite imaginar o quão pequeno era na década de 60, quando serviu de palco para a “guerra fria” entre Estados Unidos e União Soviética. Um episódio pouco conhecido até mesmo em Portugal e que agora a Netflix ajuda a dar conhecimento com "Glória", sua primeira série original portuguesa.

A obra gira em torno da RARET (Radio American Retransmission), uma central de retransmissão da Rádio Europa Livre (sediada em Monique), instalada em 1951 no lugarejo e a partir da qual, entre músicas de artistas tradicionais como Amália Rodrigues, difundiam-se, além de programas e discursos anticomunistas, notícias e obras censuradas para países do lado leste da Cortina de Ferro, o que suscitava constante tentativa de bloqueio dos sinais por parte de Moscou e governos satélites.

Com a transferência de funcionários da CIA e do Departamento de Estado, além de técnicos contratados, a presença americana tornou-se tão marcante que a vila passou a ser vista por seus próprios moradores como  "um Estados Unidos dentro de Portugal”. Todo ano, no dia 4 de julho, data da independência da superpotência, americanos e portugueses confraternizavam-se, em uma grande festa na praça central, com fogos, bandeirinhas dos dois países, música, comida e bebida. A grande maioria sem saber detalhes do que acontecia dentro da rádio.

É a partir deste fato histórico que se desenrola a ficção, passada em 1968 e disponível desde novembro do ano passado no streaming. Seu protagonista é João Vidal (Miguel Nunes), filho de Henrique Vidal (Marcello Urgeghe), um integrante do alto escalão da ditadura protofascista de Antonio Oliveira Salazar. Após servir na guerra colonial no Guiné, João passa a simpatizar com o movimento comunista, sendo recrutado pela KGB para ser espião em seu país. Consegue, graças a influência do pai, um emprego como engenheiro na RARET, de onde passa boicotar seu funcionamento e enviar informações para Moscou. 

"A guerra não se faz só com armas e aí entramos nós”. Assim Gonçalo (Afonso Pimentel), amigo e colega de trabalho de João, resume os objetivos da rádio. Entre dramas amorosos, cenas de suspense, tramoias políticas e situações que remetem aos costumes machistas do interior luso da época, “Glória” levanta uma antiga e perene questão: até aonde é justificável ir em nome de uma ideologia, seja ela qual for?

De família de alta sociedade, João é um idealista, incomodado com o racismo, a opressão e a injustiça social que Lisboa impõe às suas colônias africanas. Bonito, bondoso, educado, amoroso e gentil com todos, vê-se obrigado a matar, sequestrar, usar da força física, além de bem jogar o jogo de sedução, em prejuízo até de mulheres que pouco têm a ver com o enfrentamento político. Tudo com o intuito de concretizar as missões designadas pelo sombrio Alexander Petrovsky (Adriano Luz), seu recrutador e chefe direto dentro da agência de inteligência soviética.

É inegável o apelo da trama a clichês, como retratar ricos "bons moços" engajados em lutas sociais de esquerda. É compreensível, porém, esse artifício, dados os inúmeros jovens de classe média e alta que não só optaram pela causa socialista como entraram para a luta armada em meados do século passado. A legitimidade de certas ações de grupos revolucionários acarreta debates até hoje não apenas na dramaturgia. No decorrer dos dez episódios, a contradição entre esses dois lados do protagonista adquire contornos mais fortes.

Igualmente lugar comum é forçar nas cores de personagens espiões soviéticos, sempre solitários, sisudos, enigmáticos, maquiavélicos, vestidos com sobretudos negros e prontos para assassinar, em contraste com funcionários da CI de perfis menos maniqueístas, divididos entre o "dever com a pátria líder do mundo livre" e a vida social e familiar, em meio a relacionamentos amistosos com empregados e churrascos para conquistar a vizinhança. Assim são contrapostos o russo Alexander e o casal americano Anne e James Wilson. Ah, claro, não poderia deixar de haver também uma linda e fria espiã russa que usa seus dotes físicos para obter segredos.

Apesar dos chavões, “ Glória” tem o diferencial de nos brindar com algo pouco conhecido no Brasil, em que pese as relações umbilicais com Portugal: um pouco da História de nossa ex-metrópole. Ainda que de forma tangencial, mostra-nos o clima repressivo do dia a dia do Estado Novo (1933-1974), regime comandado pelo "professor Salazar", ideólogo e líder do integralismo luso. Movimento ultraconservador de cunho nacionalista e católico, o salazarismo baseava-se na Doutrina Social da Igreja e inspirou o integralismo brasileiro de Plínio Salgado. Hoje reverberado pelo bolsonarismo, o lema “Deus, Pátria e Família" foi importado de Salazar por Salgado.

"A ordem não é produto espontâneo da sociedade, mas filha da inteligência e da autoridade", disse certa vez Salazar, frase, na série, capaz de mudar por alguns instantes os ânimos de uma alegre conversa informal entre João, Gonçalo e amigos após o primeiro revelar sua autoria. De forma direta e indireta, através de ações, ameaças e diálogos que espelham o temor da população, são retratados os métodos da PIDE, a policia política de Salazar que matava e torturava inimigos do regime, muitas vezes em apoio ou contrapondo-se à CIA. 

Apesar de interesses comuns no combate ao comunismo, as relações entre Washington e a ditadura portuguesa não foram sempre harmônicas. A principal discordância se dava em relação às lutas por independência de Guiné, Angola e Moçambique, conflito considerado por salazaristas não como guerra, mas atos terroristas "daqueles pretos" incapazes de se governarem, como afirma Henrique ao filho.

A manutenção dessas colônias, propagava Salazar, era a "garantia da manutenção da civilização cristã e ocidental" no "continente negro". Os Estados Unidos, contudo, duvidavam da capacidade de Portugal em mantê-las. Os custos explodiam, especialmente pelo recrudescimento da guerra, em um contexto de progressivo isolamento internacional de Lisboa. Os demais países europeus já haviam concluído ou estavam em processo de negociação para a autonomia de seus territórios além-mar. Em 1965, a Comissão de Descolonização da ONU começara a falar em "territórios sob a dominação portuguesa" e havia reconhecido a legitimidade das  lutas de libertação nacional.

Uma saída negociada, acreditava Washington, evitaria que a causa caísse definitivamente em mãos dos grupos guerrilheiros comunistas, os quais, cada vez mais populares e bem armados, não cessavam de conquistar territórios. Mas, assim como Açores, cujo acesso era, por sua localização estratégica no Atlântico, crucial para os norte-americanos, o espaço cedido para a RARET dava a Salazar algum poder de barganha, obrigando os Estado Unidos a dosarem a pressão. Esse jogo de xadrez é mostrado nas tensas conversas entre Henrique e James, enquanto o desespero de Fernando (João Arrais), um introspectivo e franzino jovem obrigado a lutar no Guiné, reforça as péssimas memórias de João sobre a guerra.

O semestre final de 1968 revela-se um ponto de inflexão na História portuguesa. Por motivos de saúde, Salazar (que viria a falecer dois anos depois) é afastado do poder, sendo sucedido por Marcelo Caetano, uma espécie de títere que tenta manter a essência de um regime desgastado pelo conflito colonial. Sem êxito, é deposto em 1974 pela Revolução dos Cravos, levante com vasto apoio da população que, reunindo alguns liberais, socialistas, social-democratas e militares de média patente (muitos recém -regressados da África), dá início à democratização do país e a independência das colônias. Antes disso, porém, ascensão de Caetano significará a ascensão política do pai de João, com cruciais consequências para o desenlace da trama. 

A RARET chegou a transmitir programas em 18 línguas, todos destinados aos países sob influência soviética. Em 1985, sofreu um atentado, reivindicado por uma organização "anti-capitalista". Com o fim da Guerra Fria, foi desativada e deixada sob escombros por muitos anos, até suas instalações serem em parte recuperadas para as gravações da série.

Criada e escrita por Pedro Lopes, produzida pela SPi e RTP e dirigida por Tiago Guedes, "Glória" conta ainda com o ator brasileiro Augusto Madeira no papel do doutor Miguel, médico dos funcionários da rádio. Entre sotaques brasileiro e português, diálogos em russo e inglês, a pequena Babel é um atrativo a mais para a produção, que, apesar das peculiaridades bastante lusas, recorda circunstâncias sociopolíticas espalhadas pelo mundo até 1989, com reflexos ainda hoje.

* Murillo Victorazzo é jornalista, com Especialização em Política & Sociedade (Iesp-UERJ) e MBA em Relações Internacionais ( FGV-Rio)

quarta-feira, 20 de abril de 2022

Resistimos. Chegou a nossa vez.

Murillo Victorazzo

O carnaval da resistência. Não, não é "clubismo". "Resistência" é o enredo que o Salgueiro levará para Avenida. Personagens, manifestações culturais e locais simbólicos do Rio de Janeiro serão retratados para celebrar a luta do povo preto desde a chegada dos primeiros africanos na cidade. Mas a resistência vai além. Além do "empretecer o pensamento" da Beija-Flor e dos Exu e Oxóssi da Grande Rio e Mocidade. Além dos erês da Tijuca e de Cartola, Jamelão e Delegado, ícones pretos não apenas da Mangueira, mas da cultura popular brasileira. Além do gigante Martinho, mais do que nunca de Vila Isabel.
 
A resistência vem de todas as comunidades que formam a maior manifestação cultural desse país, gostem ou não. Deram o exemplo nesses dois anos. Enquanto setores da sociedade negavam, esperneavam ou burlavam políticas de saúde, elas não titubearam. Cancelaram, sem gritaria, os desfiles de 2021, mesmo sabendo dos impactos sociais e econômicos, tamanha é a cadeia produtiva envolvida. Junto com os desfiles, cessaram shows e ensaios, indissociáveis ao calendário turístico e cultural da cidade. Os barracões fecharam. As quadras, abertas apenas para mutirões, como os para confecções de máscaras. No melhor simbolismo, tornaram-se postos de vacinação.
 
Uma escola de samba não se resume a 70 minutos de desfile. Nem mesmo à sua produção. É espaço de congraçamento, pertencimento, trabalho comunitário - de educação passando por esporte e saúde - durante 365 dias no ano. É célula identitária. É entidade social, econômica e cultural durante qualquer mês do ano. É corpo vivo perene, não sazonal. Griôs são, na linguagem afro, aqueles que detém a tradição oral de repassar e preservar a história, lendas e canções de um povo. As escolas são, muito além de um espetáculo televiso, reuniões frequentes de griôs. Na verdade, são imortais griôs despersonalizados. "Escolas de samba não existem porque desfilam. Escolas de samba desfilam porque existem", resume brilhantemente o genial Luis Antonio Simas. A pandemia inibiu essa existência contínua, que ultrapassa a Marquês de Sapucaí.

Além da tragédia sanitária, elas resistiram também às consequências do empoderamento de forças reacionárias, de cunho elitista ou religioso, que meses atrás utilizaram-se da pandemia como pretexto para atacar o que lhes incomodam, enquanto eventos fechados se proliferavam. Porque escola de samba é onde convenções e preconceitos são deixados do lado de fora. Ali somos o que somos, unidos apenas pra festejar a vida e o orgulho de nossa cultura; o mais legítimo fenômeno social, espontâneo, de baixo para cima. Essa brasilidade linda, inigualável e diversa que difere tanto do patriotismo hipócrita da "moral e cívica" oficialesca, com seus coturnos, apropriações de símbolos nacionais e instrumentalizações da fé alheia.
 
As escolas foram chamadas novamente a dar exemplo diante da terceira onda da pandemia - e deram. Taí, apesar de tudo, um carnaval no outono. Mas a resistência não impediu a pandemia de levar alguns dos griôs mais icônicos. Outros se foram por outros motivos. Tantos em tão pouco tempo. Numa infeliz coincidência, algumas das principais escolas entrarão na Sapucaí, dois anos depois, sem nomes que as personificavam: o Salgueiro de Sabiá, a Mocidade de Elza, a Mangueira de Nelson Sargento, a Portela de Monarco, a Imperatriz de Maria Helena. Outros, como Laíla e Dominguinhos, deixaram sua marca por onde passaram.
 
Não será um desfile qualquer. Será o carnaval da resistência, da saudade; mais do que nunca da catarse pela vida. São muitos sentimentos represados. Chegou a nossa hora. A hora do mundo vê-las, mesmo aqueles que se lembram delas apenas no carnaval e os que as detratam, sempre fazendo força para, além de gostos, não entenderem o seu significado cultural e econômico. As escolas são nossas caras, e essa galera odeia se ver no espelho, sempre curvada para seus umbigos idealizados a partir de imagens além Atlântico ou livros religiosos. Agora estão prontos para tentarem um camarotezinho e "cagarem regras" sobre elas nas redes sociais.
 
É dia 20 de abril. Quis o calendário que o início de tudo fosse nesta quarta-feira, dia de jogo do time mais popular da cidade, em um Maracanã lotado. Futebol e samba novamente se misturam, desta vez não apenas no imaginário cultural identitário. Vem aí um previsível gigantesco trânsito. Aquele caos pulsante que transborda alegria, beleza e irreverência. É a cara dessa cidade. Evoé! O meu Rio voltou.

segunda-feira, 18 de abril de 2022

"Estamos num momento em que precisamos ter parceiros confiáveis", diz embaixador da União Europeia sobre o Brasil

No Brasil desde julho de 2019,  o espanhol Ignácio Ybañez responde pela União Europeia no Brasil em um momento de desgaste das relações entre o governo federal e o bloco. Os choques entre o presidente Jair Bolsonaro e líderes europeus principalmente acerca da política ambiental brasileira congelaram o processo de ratificação do acordo de livre-comércio dos europeus com o Mercosul. O estranhamento se reforçou com a postura hesitante do Brasil sobre a guerra da Ucrânia. Apesar de ter votado a favor da resolução que condenou a invasão russa, o país preferiu não se somar aos que aplicaram sanções contra Moscou.

Em entrevista ao GLOBO no último dia 6, o embaixador da União Europeia afirmou que o único empecilho ao acordo comercial "diz respeito ao desmatamento e aos direitos dos povos indígenas". "Quando o Brasil começar a realmente converter os seus compromissos em realidade, o acordo vai ter muitíssimas possibilidades de ir adiante", garantiu. No entanto, embora prefira colocar as sanções como "parte de um diálogo entre parceiros", Ybañez faz questão de falar em confiança: 

"Queremos levar ao Brasil a esse convencimento. Um acordo comercial é uma aposta de dois parceiros, que dizem: acredito em você como meu parceiro comercial e quero desenvolver uma relação baseada na confiança e no respeito mútuo. E o acordo entre Mercosul e União Europeia é precisamente isso. Estamos num momento em que precisamos ter parceiros confiáveis"

Ibañez reconhece que o posição do Itamaraty segue a linha tradicional da política externa brasileira, independente do governo de plantão. É consenso na diplomacia nacional que sanções só devem ser impostas de forma multilateral, ou seja a partir de resoluções do Conselho de Segurança da ONU, o que é impossível neste caso, dado o direito a veto dos russos como membros permanentes. Afirma compreender a preocupação com os reflexos na agricultura do país, como os que se referem aos fertilizantes. Ressalta, porém, que os efeitos colaterais também atingem a Europa, dando o exemplo da dependência do gás russo e os esforços para reduzí-la.

"As sanções são nossa resposta, porque não queremos chegar a um conflito militar.  Não é fácil para nós mesmos, pois significa sacrifícios para a nossa economia, mas quanto mais mostrarmos unidade na comunidade internacional, mais rapidamente elas vão funcionar.  Se o Brasil pensa nos efeitos que possam surgir, vamos ajudar. Queremos que a opinião pública brasileira compreenda que essa não é só uma guerra europeia e que o desafio que a Rússia está trazendo para o conjunto da comunidade internacional é para cada um de nós".

Na entrevista, o embaixador assegura que a relação é primordial e se utilizada das proximidades culturais como estratégia para atrair o Brasil e seus vizinhos. "Buscávamos no passado de forma intensa com a Rússia, continuamos a buscar com a China. Mas, se você quer buscar parceiros que compartilhem os valores, compartilhem a história, compartilhem um modelo econômico que querem para os seus cidadãos, esses são a América Latina e a Europa, sem dúvida", diz, reforçando os laços com menção à candidatura do Brasil à OCDE, em implícita pressão por contrapartida: "O Brasil quer ter o mesmo modelo que a OCDE tem, baseado na democracia, na economia de mercado, e no princípio de sustentabilidade". 
Ainda que ressalte respeitar a soberania parlamentar brasileira, o embaixador não esconde  o que o bloco europeu pensa a respeito dos projetos em andamento no Congresso Nacional que flexibilizam a fiscalização ambiental e permitem a exploração mineral em terras indígenas: "Há alguns projetos que acompanhamos com preocupação, que vão contra o que a União Europeia considera que é a direção da direção da sustentabilidade".

Outro efeito colateral da guerra na Ucrânia, desta vez sem envolver o Brasil, é o fortalecimento das políticas em comum de segurança europeia, setor historicamente mais resistente à integração. Ybañez considera que as ameaças e ações de Putin foram o estopim para os europeus reforçarem a convicção na necessidade de um plano de defesa europeu, uma das primeiras ideias do bloco, mas nunca concretizadas. O contexto aparenta ser ainda mais favorável por estar, neste momento, a Presidência do Conselho Europeu nas mãos da França, cujo presidente sempre foi uma dos principais entusiastas do projeto.

"A União Europeia se construiu sempre depois de uma crise. Por exemplo, a pandemia da Covid foi um salto importante, com a compra coletiva de vacinas, o que nunca havíamos feito. E no âmbito militar isso vai acontecer, tanto na indústria de armamentos como em projetos de construção conjunta. Não significa ir contra ninguém, e sim de termos a capacidade de reagir do ponto de vista militar para nossa segurança e do mundo todo".

sexta-feira, 1 de abril de 2022

31 de março de 64: o senador que tirou João Goulart no grito e oficializou golpe militar

Por Willian Helal Filho

Os negacionistas da História dizem, hoje, que a deposição do presidente João Goulart não foi um golpe porque teria sido sacramentada pelo Congresso Nacional, depois da mobilização militar de 31 de março de 1964. Mas esse argumento não fica de pé quando se entende como Jango foi derrubado por, literalmente, um grito do então presidente do Senado, Auro de Moura Andrade. Arquirrival de Goulart, o paulista de Barretos insistiu na falsa informação de que o mandatário deixara o país após o avanço das tropas e declarou a vacância do cargo de chefe do Executivo, sem sequer pôr o tema em votação no parlamento.

Mas como isso aconteceu? Depois que os soldados da IV Região Militar, em Juiz de Fora, avançaram sobre o Rio, desencadeando a movimentação de outras unidades do Exército pelo país, o Congresso Nacional mergulhou no caos. João Goulart, que estava no Rio, voou para Brasília no dia 1º de abril. Porém, com a capital federal também sitiada por forças golpistas, o gaúcho de São Borja tomou um avião para Porto Alegre na mesma noite, com o objetivo de reunir tropas legalistas no Sul e deixando para seus aliados a tarefa de defender seu mandato na Câmara e no Senado.

Segundo a Constituição de 1946, em vigência na época, havia três formas de o presidente ser afastado: renúncia, impeachment ou se o chefe do Executivo deixasse o país sem autorização do Congresso. Como Jango estava decidido a não renunciar, e como a oposição sabia que não teria votos para um impeachment, os líderes do golpe em Brasília optaram por mentir ao afirmar que o presidente saíra do Brasil.

Na madrugada de 2 de abril de 1964, o Congresso estava em ebulição. Senadores e deputados federais haviam sido chamados às pressas para uma sessão no plenário da Câmara. Mas, dos 460 parlamentares, apenas 178 apareceram: 158 deputados e 26 senadores. Durante os trabalhos, foi lida, pelo secretário do Congresso, uma carta do então chefe da Casa Civil, Darcy Ribeiro, comunicando que Goulart, "em virtude dos acontecimentos das últimas horas, decidiu viajar para o Rio Grande do Sul". Presidindo a sessão, Moura Andrade insistiu nas "fake news".

"O senhor presidente da República deixou a sede do governo, abandonou o governo! Assim sendo, declaro vaga a Presidência da República", rosnou o senador do PSD ao microfone, rasgando, ao mesmo tempo, a Constituição e o seu diploma da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), sob protestos dos governistas.

Andrade era um dos principais opositores de Goulart, chamado de comunista por defender "reformas de base" para combater a desigualdade social. No dia 15 de março de 1964, o senador declarara que as relações entre Executivo e Legislativo estavam rompidas. No dia 19, discursara na Marcha da Família com Deus pela Liberdade em São Paulo, organizada por grupos contrários ao governo. No dia 30, após o famoso discurso de Jango no Automóvel Clube, em uma reunião de sargentos que haviam se envolvido numa revolta na Marinha, Andrade divulgou um manifesto apelando às forças armadas para que restabelecessem a "ordem constitucional".

Segundo a tese dos conspiradores, Jango estava armando um "autogolpe" para implantar o socialismo no país. Os militares, que já vinham planejando tomar o poder, haviam marcado a ofensiva sobre a República para 2 de abril. Entretanto, o general Olímpio Mourão Filho, da IV Região militar, decidiu colocar o bloco na rua antes da hora e tomou a estrada para o Rio às 5h do dia 31 de março de 1964.

Depois que o presidente do Senado reagiu no Congresso como o Exército queria, foi dado seguimento à farsa. Moura Andrade encerrou a sessão e desligou as luzes do plenário, fugindo dos governistas, escoltado por seus aliados, até o gabinete do presidente da Câmara, o deputado Ranieri Mazzilli (PSD), que, segundo a linha sucessória, deveria ser nomeado presidente. Às 3h45 da madrugada de 2 de abril de 1964, numa rápida sessão com a presença de Andrade e do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Ribeiro da Costa, Mazzilli foi empossado.

No mesmo dia, em Porto Alegre, Jango começou a esboçar resistência e cogitou criar uma nova sede do governo federal na capital gaúcha. Mas havia poucas tropas legalistas ainda disponíveis e, para agravar sua situação, os Estados Unidos, que apoiaram o golpe, reconheceram rapidamente Mazzilli como presidente do Brasil. Sem querer contribuir para um banho de sangue, Goulart desistiu da resistência armada e foi para a sua São Borja natal. No dia 4 de abril, quando viu que havia de fato perdido o governo, optou pelo exílio no Uruguai.

A "presidência" de Mazzili não durou muito tempo. O poder de fato estava com uma junta militar autointitulada Comando Supremo da Revolução, composta pelo general Artur da Costa e Silva, o almirante Augusto Rademaker e o brigadeiro Francisco de Assis. O Ato Institucional de 9 de abril de 1964, assinado por essa junta para dar um verniz de legalidade ao golpe, dizia que "a revolução vitoriosa se legitima a si mesma", decretava a suspensão dos direitos políticos de todos os opositores ao novo regime e determinava a eleição indireta do próximo presidente.

O primeiro Ato Institucional levou à cassação de 40 deputados da oposição. Assim, com o caminho livre, no dia 9 de abril, o marechal Humberto Castelo Branco foi eleito presidente pelo Congresso Nacional, com 72 abstenções e 37 ausências. Começava, então, o primeiro governo da ditadura militar. No início, os homens de farda diziam que o período de exceção seria curto e que o poder seria devolvido aos civis em 1966. Mentira. O regime autoritário se manteve por 21 anos, com perseguição, tortura e execução de opositores, supressão das liberdades individuais, censura à imprensa e à produção cultural e aprofundamento da desigualdade social. Tudo isso deixou sequelas com as quais convivemos até hoje.

segunda-feira, 28 de março de 2022

Não é uma guerra qualquer

Por Murillo Victorazzo*

"Não somos seus órfãos. Vocês eram os estupradores e levarão um chute no saco se tentarem novamente". Pelo linguajar, poderia ser apenas mais uma troca de xingamentos comum nas redes sociais. Tratava-se, porém, de um acadêmico polonês com cargo na burocracia da União Europeia respondendo a um comentário do chanceler russo. "A OTAN busca tomar os territórios que ficaram órfãos com o fim da União Soviética", tuitara Sergey Lavrov. Em tons semelhantes, comentários de terceiros ajudaram a dar mostras de como andam os ânimos entre poloneses e russos.

A Guerra na Ucrânia reavivou ressentimentos que pareciam pelo menos represados. Não é por acaso que países do leste europeu são os mais enfáticos na resposta a Putin. Emblemática foi a viagem de trem dos chefes de governo polonês, tcheco e esloveno a uma Kiev sob bombardeio russo semana passada, a fim de demonstrar "apoio inequívoco da União Europeia à liberdade e independência da Ucrânia". Tampouco é sem razão a Polônia portar-se como o país da OTAN a defender ajuda militar mais robusta a Kiev. Varsóvia insiste em doar caças ao vizinho e criar uma perigosa zona de exclusão aérea, linha tênue para o embate direto entre a aliança transatlântica e Moscou.

Se não foi uma república soviética, grande parte do território polonês foi subjugado pelo Império russo durante quase um século e, na era comunista, o país resumiu-se a um dos tantos Estados fantoches atrás da totalitária Cortina de Ferro. Faz quase 80 anos que Moscou, nos momentos finais da Segunda Guerra, aproveitou a marcha vitoriosa rumo a Alemanha para empurrar geograficamente o país para o oeste. Através deportações, assassinatos e prisões, redesenhou as fronteiras polonesas, com o intuito de expandir o gigantesco Estado soviético. A mesma Polônia que, seis anos antes, fora o alvo principal do Pacto Molotov-Ribbentrop, a partir do qual Hitler e Stalin decidiram dividi-la como lhes convinha e iniciaram a dupla ocupação militar.

As vítimas da guerra de hoje são civis ucranianos e militares de ambos os lados, mas as seríssimas repercussões vão muito além daquelas fronteiras. Talvez nem fosse preciso repetir o potencial destruidor de um conflito que abarque diretamente Rússia e a aliança transatlântica. Envolveria diretamente quatro das cinco potências nucleares (quatro dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU) e duas das três forças armadas mais poderosas do mundo. Na última quinta-feira, o porta-voz do Kremlin reafirmou o direito de usar armas nucleares se for provocado pela OTAN e considerar ameaçada sua "existência". Embora a retórica venha tons acima da prática, uma sinal do singular perfil desestabilizador do atual cenário internacional.

Falar do petróleo é lugar comum. São notórios o peso da Rússia, terceiro maior produtor, e as consequências da guerra no mercado internacional da estratégica commodity. No entanto, outros insumos essenciais também sofreram relevantes impactos. Sendo, por exemplo, o segundo maior produtor de potássio do mundo, as restrições impostas ao país já alteraram a oferta de fertilizantes. De forma semelhante, estando a Ucrânia entre os oito principais produtores de trigo, a devastação militar de seu território afetou o preço do produto. As repercussões na inflação de alimentos dos países mais pobres e a consequente piora da fome na África e outras regiões mais carente já motivam estudos da FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura).

O que se vê hoje é uma guerra econômica, com sanções de dimensões nunca antes aplicadas, cujos efeitos colaterais podem alcançar não apenas quem as aplicou como países alheios ao embate, da interdependência dos sistemas econômico e financeiro internacionais. Após Putin, em represália, anunciar a exigência de pagamento em rublos para manter os contratos de fornecimento de gás, a Alemanha, prevenindo-se de eventuais cortes, anunciou, nesta quarta-feira, dia 30, um plano de emergência contra racionamento. Metade dos domicílios alemães dependem do gás russo. Segundo a Acnur (a agência da ONU para refugiados), mais de três milhões pessoas emigraram da Ucrânia em um mês e perto de 6,5 milhões tiveram que se deslocar internamente. É a maior crise humanitária na Europa desde a Segunda Guerra.

Realinhamentos estratégicos se iniciaram. Os Estados Unidos piscaram o olho para Venezuela por petróleo, no que pode ser o inicio de diálogo com o regime de Maduro, aliado de Putin. Embora condenando a invasão, a Arabia Saudita, além de negar o pedido da tradicional aliada Casa Branca para aumentar a produção do combustível, vetou a expulsão da Rússia da Opep+, clube que reúne a Opep e outros grandes produtores. O tíbio apoio saudita aos Estados Unidos evidencia as transformações no Oriente Médio, iniciadas após a decisão norte-americana, ainda no governo Obama, de priorizar Rússia e China como agenda de política externa. O vácuo levou os sauditas e outros países árabes a reforçarem parcerias com Pequim e Moscou.

A diminuição do apoio norte-americano à guerra no Iêmen e as críticas de Joe Biden, durante a campanha eleitoral de 2020, ao príncipe herdeiro Mohammed bin Salman, acusado da morte de um jornalista, ajudaram a esfriar ainda mais a confiança da monarquia wahabista na Casa Branca. Riad, semana passada, reafirmou as negociações com Pequim para o lançamento de contratos de petróleo remunerados em yuan. Mais de 25% do petróleo saudita é exportado para a China, o que leva alguns especialistas tomarem a possível iniciativa como um ataque ao status do dólar como moeda de reserva mundial. Fundos de pensão russo investem na petrolífera estatal saudita.

A Rússia é hoje grande exportadora de armas e equipamentos bélicos para Egito, Turquia e Síria. Usinas nucleares foram construídas (ou estão sendo) nos dois primeiros países em parcerias com Moscou. A ditadura de Bashar al-Assad saiu do corner graças a vigorosa intervenção militar do Kremlin a seu favor na sangrenta guerra civil síria. Israel, com profundos laços culturais com os russos ao mesmo tempo que depende da visceral relação com os Estados Unidos, mostra-se hesitante, receoso das consequência de um forçoso rompimento com Putin na balança de poder regional.

Tel Aviv precisa do presidente russo nas suas relações com Damasco e nas discussões sobre o reestabelecimento do acordo nuclear iraniano de 2015, rasgado por Trump em 2019. A Rússia é integrante, ao lado de França, Reino Unido, China, Alemanha, do grupo que tenta trazer Washington e Teerã de volta à mesa de negociações. São por essas razões que o país é considerado atualmente a única potência com trânsito livre em todo o Oriente Médio.

A China, embora parceira do Kremlin, prefere a discrição das abstenções, certa de que é quem mais tem a ganhar com a guerra. Jogando parada, não concorda com as sanções, mas vê uma economicamente enfraquecida Rússia caindo em seu colo. Em caminho oposto, o apoio japonês a todas as decisões ocidentais levou Moscou a paralisar as negociações para um acordo de paz definitivo entre os dois países relativo ainda à Segunda Guerra Mundial. Até hoje não há um tratado formal. Em jogo, o controle de quatro ilhas ao norte do território japonês, ocupadas pelos russos desde 1945. Se não havia seguido Washington nas sanções aplicadas após a anexação da Crimeia, em 2014, Tóquio, que tem disputa territorial também com a China, viu-se obrigado a enfatizar seu apoio ao principal aliado, com quem tem vital tratado de segurança.

A de certa forma vitoriosa persuasão nuclear russa, dada a prudência ocidental no apoio à Ucrânia, evitando ao máximo o embate direto, tem potencial para desestabilizar o regime de não-proliferação nuclear. Kim Jong Un certamente se sentirá estimulado a reforçar o programa norte-coreano. A teocracia iraniana pode seguir o caminho, aproveitando-se, quem sabe, de melhor posição para barganha nas negociações do acordo nuclear, diante de europeus e norte-americanos carentes de petróleo. A Alemanha voltou a praticar uma politica de defesa ativa, com envio de armas para o exterior e decisão de dobrar o orçamento militar, deixando para trás o pacifismo decorrente das marcas do nazismo. Nem mesmo um Ministério das Relações Exteriores sob comando dos Verdes foi capaz de evitar a quebra de simbólico paradigma.

A OTAN, passou de "morte cerebral", como resumiu o presidente francês, Emmanuel Macron dois anos atrás, a uma aliança mais coesa, melhor financiada e atraente para novos membros. Suécia e Finlândia logo tornaram-se alvos de ameaças de represálias explícitas por parte de Kremlin assim que indicaram, semanas atrás, voltar a debater em seus Parlamentos a adesão à aliança. Matéria do Financial Times do dia 29 mostrou como o governo finlandês se prepara para entrar em um possível "modo de crise": "kits de sobrevivência" espalhados por diversas localizações do país, reservas de seis meses de grãos e combustíveis, farmacêuticas obrigadas a estocar medicamentos importados, em um país onde um terço da população é reservista, prédios precisam por lei ter abrigos antibombas e cuja capital Helsinque é repleta de túneis subterrâneos. São quase 1,5 mil quilômetros de fronteiras com a Rússia.

Alexander Dugin é um cientista político ideólogo do "eurasianismo", uma concepção de ordem multipolar crítica à hegemonia norte-americana e que "preconiza a integração, na base da civilização comum", do território do antigo império russo ou da União Soviética". Influente nos meios militares russos onde deu aulas na década de 90, é hoje, se não seu "guru", como equivocadamente é rotulado por muitos, um declarado entusiasta de Putin por ver nele seus ideais.

De certa forma, Lavrov, em seu tuíte, foi ao encontro do que Dugin afirmou à Folha de São Paulo logo após a anexação da Crimeia. Para o intelectual russo, os Estados que se separaram após a desintegração soviética, em 1991, "nunca existiram como Estados e representam apenas distritos administrativos sem nenhum significado histórico ou político dentro do Império russo ou da União Soviética”. Putin já declarou considerar o colapso soviético, independente da crítica ao comunismo, "a maior catástrofe geopolítica do século 20". “Foi a desintegração da Rússia histórica sob o nome de União Soviética", afirmou.

Dugin é admirador de Halford Mackinder, geógrafo britânico que se notabilizou nos estudos da geopolítica no início do século passado por desenvolver a Teoria do Heartland. Para Mackinder, ao contrário do que o consenso da época dizia, não era mais o controle dos mares que conduzia países a hegemonias. Em decorrência de avanços tecnológicos na indústria bélica e de base, a supremacia do poder naval terminara. Ferrovias e o motor à combustão permitiam a integração, deslocamento e ocupação física de grande massas continentais.

Sob essa ótica, Mackinder acreditava que a Rússia, por seu gigantesco território contínuo, rico em recursos minerais e terras aráveis, seria o "pivô geográfico" do planeta, dada sua destacada posição na "Ilha-Mundo", os territórios localizados na Europa, Ásia e Africa, onde se concentram cerca de três quartos das terras emersas (Estados povoados). A porção central da Eurásia, portanto, seria o "coração da Terra - o Heartland, inacessível pelo mar e vulnerável apenas por ataques terrestres vindo do leste europeu. "Quem domina o leste da Europa, domina o Heartland. Quem domina o Heartland, reina na 'Ilha-Mundo'. Quem domina a 'Ilha-Mundo' governa o mundo inteiro", concluiu.

Mackinder, por isso, temia uma aliança da Rússia com a Alemanha, à época bem mais industrializada. As características complementares das duas economias permitiriam a constituição de uma poderosa indústria bélica e invencíveis forças armadas, tornando o Heartland inexpugnável ao poderio naval britânico. A aliança nunca aconteceu, mas foi com o geógrafo britânico em mente que Karl Haushofer deu aulas de geopolítica para Hitler na prisão, após a tentativa de golpe de 1923. O Pacto Molotov-Ribbentrop e o seu posterior rompimento pelos alemães, dando início à invasão da União Soviética, encontravam base teórica em Mackinder. Vinha daí a inspiração para o Generalplan Ost do ditador nazista, que previa transformar a parte ocidental do território soviético em colônia agrícola e energética, com assentamento de alemães espalhados por ele.

Sob mesma influência, os Estados Unidos, com o advento da Guerra Fria, reformularam sua estratégia diplomática e militar. George Kennan, o diplomata norte-americano ideólogo da Containment no final da década de 40, embora não fosse entusiasta de determinismos geográficos, via espelhada sua política na Teoria do Rimland, de John Spykman. Rimland são as regiões costeiras e bordas eurasiáticas. Em complemento, mas com conclusão diferente da de Mackinder, Spykman defendia que seria quem dominasse tais áreas os hegemônicos no planeta, por serem elas vitais na contensão dos que possuem o Heartland.

Na avaliação de Spykman, os Estados Unidos detinham poderio econômico inigualável e privilegiada posição geográfica, sem vizinhos hostis e cercado por dois gigantescos oceanos, o que inibia ataques diretos a seu território. No entanto, fazia-se necessária uma política externa intervencionista no Rimland, para assim bloquear o expansionismo soviético sobre a Eurásia. Através do desenvolvimento do poder aeronaval e de bases ao redor do leste europeu, na Alemanha, Itália, Turquia, Coreia do Sul e Japão, Washington, a partir de uma concepção geopolítica, cercou o inimigo ideológico.

Em seu livro "Fundamentos da Geopolítica”, lançado em 1997, Dugin deixa claro por que, para ele, a ideia de uma civilização da “Grande Rússia”, que abrange ucranianos e bielorrussos e cujo berço foi Kiev, encontra eco na teoria de Mackinder: "Em geopolítica, há dois polos absolutos de poder. O poder naval, que pertence ao Ocidente, e o poder terrestre, que é a Rússia. Há uma briga para controlar o Heartland". Em 2011, Putin propôs a formação da União Econômica da Eurásia, logo assinada por Rússia, Bielorrússia e Casaquistão. A deposição do aliado Victor Yanukóvich na Ucrânia e a guerra civil que se sucedeu no leste do país, em meio a discussões sobre a entrada na União Europeia, embarreiraram a ampliação do bloco. O que veio depois já muito se sabe.

A polêmica expansão para o leste da OTAN foi mais do que debatida nos últimos meses. Também os riscos de "afeganistização" de uma Ucrânia com territórios perdidos, armas poderosas nas mãos de civis e a previsão de queda de 35 % do PIB. Putin deve conseguir garantias de que o vizinho não entrará para a aliança ocidental, mas a instabilidade regional pode até piorar a médio-prazo. A mobilização da OTAN no leste europeu não cessou. Ao contrário, aumentou. Pesam também incertezas sobre como o aparente recrudescimento de seu regime se refletirá nas relações com a vizinhança e na atuação em organismos internacionais. Não se descarta, por outro lado, seu enfraquecimento, à medida que a situação econômica do país piore. A instabilidade política em um país como a Rússia sempre traz preocupações e consequências além de suas fronteiras.

A guerra na Ucrânia marca o retorno da insegurança à Europa, sensação que parecia ter ficado nas páginas de História desde a ampliação do bloco europeu, cuja concepção fora justamente a integração como fórmula para a paz. Disputas territoriais sempre dão calafrios em Estados, pois podem abrir precedentes. Países com problemas semelhantes costumam ser bastante cuidadosos em suas reações políticas, pois elas podem se voltar contra eles no futuro. É uma das razões do posicionamento sutil da China em relação a quem, dias antes da invasão, declarou ter um "parceria sem limites". Os delicados imbróglios acerca de Taiwan e Tibet exigem, ao mesmo tempo, a tradicional defesa da integridade territorial e a cautela para aferir a reação da comunidade internacional, tendo em vista uma hipotética incursão militar sua à "ilha rebelde".

A geopolítica é apenas uma lente de se ver as relações internacionais. Céticas quanto ao determinismo geográfico, outras correntes de estudos, sejam de cunho institucional, econômico ou político, complementam-na ou se chocam com ela. A Napoleão, por exemplo, são atribuídas duas frases que retratam as nuances: "A política de um país está em sua geografia" e "Eu, eu mesmo faço as circunstâncias". Questões geopolíticas podem instrumentalizar ou ser instrumentalizadas por visões ideológicas, como a Containment de Kennan, e étnico-culturais, no caso do Eurasianismo de Dugin e Putin.

Não se pode negar, porém, os indícios de contemporaneidade de Mackinder, ainda mais se levarmos em conta que na "Ilha-Mundo" situa-se a China, com a parte noroeste de seu território incluída por neomackinderianos no Heartland. Vizinha da Rússia ao nordeste, uma potência em ascensão ainda mais poderosa economicamente que, em uma década, elevou em quase 80% seu investimento em defesa. Diferente da hoje parceira, uma potência “anfíbia”, nas palavras de estudiosos militares, por ser dona de crescente poderio terrestre e aeronaval.

É justamente no Mar da China Meridional que se encontram os mais perigosos pontos de atritos geopolíticos e militares com o Washington e seus aliados asiáticos. Ano passado, os norte-americanos deram largada para sua nova, e por hora suavizada, versão da Containment. Desta vez, nas franjas marítimas chinesas. O Aukus, pacto militar entre Austrália (Au), Reino Unido (Uk) e Estados Unidos (Us) permitirá aos australianos a construção de submarinos nucleares com tecnologia norte-americana, além de acordos em áreas como inteligência artificial, tecnologia quântica e cibersegurança. Nas palavras oficiais, uma medida para "promover a segurança e a prosperidade na região do Indo-Pacífico".

Poucos anos antes, saiu do esquecimento o Quad (Diálogo de Segurança Quadrilateral), fórum que reúne Estados Unidos, Japão, Índia e Austrália. Seus membros afirmam não ser uma organização de segurança regional e sim uma "reunião informal das principais democracias do Indo-Pacífico". No entanto, além de reuniões entre os quatro chefes de governo, exercícios militares conjunto já foram realizados, o último, em 2020, na Baía de Bengala, nordeste do Oceano Índico. Na declaração do último encontro, os líderes alertaram contra “qualquer tentativa de mudar o status quo [nas águas] do Mar do Sul da China e do Mar do Leste da China”, uma resposta ao sinais de projeção militar chinesa em ilhas reivindicadas por Pequim e construções de outras artificiais.

Os olhos de Mackinder estariam certamente arregalados com a "Nova Rota da Seda", ambicioso megaprojeto de infraestrutura chinês que prevê financiamentos para a construção de ferrovias, usinas, gasodutos, entre outras obras, em países asiáticos, europeus e africanos, permitindo a criação de uma grande malha integrada sob a influência de Pequim. As relações entre China e Rússia são as melhores desde um breve período com Stalin e Mao, mas há, como sempre houve, uma potencial rivalidade. Seja cooptando um isolado Kremlin ou por eventuais choques futuros entre eles, a disputa pelo liderança da Eurásia continuará sendo balizadora das relações internacionais.

O que está em jogo não é "apenas" mais uma guerra, é a disputa pela legitimidade de alterar a ordem internacional. Ao contrário do que gritam certos militantes, sempre presos a seus chavões ideológicos, as atenções da mídia não estão voltadas para Ucrânia porque as “vítimas são brancas" - o que é diferente de constatar o racismo enfrentado por refugiados e comparar ao modo com que parcelas da população europeia receberam recentemente africanos e muçulmanos. Todas as mortes são lamentáveis; todas as guerras são condenáveis. Sim, há conflitos na Palestina e Iémen, há guerras civis na África. Mas as implicações da guerra ucraniana alcançam perigosamente outra dimensão a curto, médio e longo-prazo. Um acordo de paz pode até ser assinado amanhã, mas ela não terá terminado. Esta é a razão.

Através da imprensa ocidental, o mundo tomou conhecimento de crianças vietnamitas queimadas por bombas napalm jogadas por norte-americanos. Milhões reuniram-se em passeatas no Ocidente pedindo o fim de uma traumática guerra que tensionou socialmente os Estados Unidos. A pressão funcionou. A ilegal Guerra do Iraque, perpetrada unilateralmente por Washington a partir de mentiras, foi condenada pela opinião pública internacional graças a uma extensa cobertura televisiva. Quantos milhões de cartazes contra George W. Bush vimos, pelas TV e jornais, em ruas europeias e norte-americanas. Causou comoção as fotos de prisioneiros iraquianos torturados e humilhados por militares norte-americanos. Se Bush conseguiu ser reeleito, grande parcela do eleitorado do país se mobilizou contra aquela invasão. A encruzilhada em que ela se transformou fragilizou seu segundo mandato, ajudando-lhe a sair pelas portas dos fundos da Casa Branca no inicio de 2009.

Se não era obviamente seu objetivo, convém a Putin o quadro atual de “guerra de fricção”, na qual nenhum lado tem força para avançar, mas tampouco consegue fazer o inimigo recuar. Assim como no Afeganistão e Iraque, a estagnação retira o conflito de manchetes e cobertura 24 horas das TVs a cabo, como já se pode notar. Visibilidade nunca interessa a autocratas invasores. Atrapalha narrativas oficiais e será sempre obstáculo para crimes de guerra.

segunda-feira, 14 de março de 2022

O dilema israelense

Por Murillo Victorazzo

Em surpreendente viagem secreta, o primeiro-ministro israelense, Naftali Bennett, esteve em Moscou no último dia 5 a fim de se reunir com Wladimir Putin. Horas depois, antes de partir para Alemanha, telefonou para Volodymyr Zelensky. Era o início de seus esforços para mediar o conflito entre Rússia e Ucrânia, juntando-se na missão ao presidente turco, Recep Tayyip Erdogan. 
Palco dos primeiros encontros entre os chanceleres dos dois países em guerra, a Turquia, embora membro da OTAN ( guarda ogivas nucleares norte-americanas), é sócia de Moscou em diversos negócios e necessita da boa vontade russa para a defesa de seus interesses estratégicos na região do Mar Negro e Oriente Médio. Em dilema semelhante, ainda que por razões diferentes, encontra-se Israel, com seus profundos laços históricos, políticos e econômicos com Estado Unidos, Rússia e Ucrânia.

A relação com Washington é simbiótica. Embora nunca tenha passado de 3% da população norte-americana, a comunidade judaica é forte politicamente no país, com proporções bem maiores nas elites políticas. Veio ironicamente da Rússia uma das principais levas migratórias. Em 1881, para fugir do pogrom que sucedeu o assassinato do czar Alexandre II, autor de reformas modernizantes na estrutura socioeconômica russa, dois milhões de judeus buscaram segurança nos Estados Unidos.

Enquanto é aliado chave dos interesses norte-americanos no Oriente Médio, Israel, segundo relatório do Capitólio, recebeu desde 1948, ano de sua criação, cerca de US$ 150 bilhões em assistência, financiamento e fundos, entre os quais os voltados para equipar suas forças armadas. É o "maior destinatário da assistência externa cumulativa dos EUA desde a Segunda Guerra Mundial", revela o documento. Em memorando assinado pelos dois governos em 2016, está previsto ajuda militar de quase 40 bilhões de dólares entre 2019 e 2028. Além do visceral apoio político de Washington às suas demandas na arena internacional, estimativas indicam que cerca de um quarto do orçamento militar israelense vem dos contribuintes norte-americanos.

Por outro lado, Moscou é fundamental para Israel em seu política de defesa regional. Principal aliado do ditador Bashar al-Assad, Putin tem sido o fiador das incursões militares dos israelenses dentro do território sírio, onde buscam combater milicias xiitas apoiadas por Irã que ali operam. O espaço aéreo da Síria está na prática controlado pelos russos. Ruídos com o Kremlin podem resultar na inviabilização dessas ações e a consequente aproximação desses grupos para perto de suas fronteiras, assim como risco de maiores tensões com o regime de Damasco.

A Rússia também é, junto com Reino Unido, China, França, Alemanha, importante ator nas negociações para restaurar o acordo nuclear com o Irã, inviabilizado com a saída dos Estados Unidos sob a gestão Trump e entendido por Israel como ameaça à sua segurança. Biden pretende reavivá-lo, mas o antagonismo com Moscou criou indefinições ainda maiores para o processo. A abrupta retirada trumpista justificou o abandono iraniano de qualquer compromisso previsto. Segundo a Agência Internacional de Energia Atômica, Teerã possui hoje estoque de urânio enriquecido correspondente a mais de 15 vezes o limite estabelecido em 2015. A busca por alternativas ao petróleo russo pode fortalecer sua posição, dono que é da quarta maior reserva do mundo, hoje alvo de pesadas sanções. Resta saber como reagiria o regime do aiatolás, aliado do Kremlin na região, a uma tentativa de aproximação norte-americana.

Os interesses estratégicos se misturam aos fortes laços culturais. Segundo o The New York Times, os judeus soviéticos e seus descendentes somam, em Israel, aproximadamente 1,5 milhão de pessoas - pouco mais de 15% da população. Desse total, um terço têm origem russa e quase a mesma quantidade é proveniente da Ucrânia. Era no leste europeu, tanto nas repúblicas da União Soviética como em seus Estados satélites e os que assim se tornaram depois da Segunda Guerra, que a grande maioria dos judeus do mundo se encontrava até 1939. Foi em proporção ainda maior que ali ocorreram os horrores do Holocausto: quase 90% dos cerca de seis milhões de assassinados eram nativos da região.

Na Polônia, por exemplo, pouco mais de 10% da população era judaica. Em nenhum outro país havia percentual maior. Dos pouco mais de três milhões de judeus poloneses, sobreviveram às atrocidades nazistas apenas cerca de duzentos mil. Cerca de dois milhões e meio de judeus soviéticos morreram sob os fuzis e as câmaras de gás do III Reich. Na Ucrânia, contabiliza-se quase 500 mil vítimas, cerca de 20% dos judeus do país - o restante conseguiu fugir ou fora anteriormente deportado. Foi o Exército Vermelho quem libertou as áreas em que se localizavam todos os campos de extermínio, a grande parte dos campos de concentração e o emblemático Gueto de Varsóvia, cidade considerada à época o centro da cultura hebraica internacional. No local, perto de meio milhão de judeus foram confinados em apenas 400 hectares delimitados por cercas e muros, vigiados por sentinelas.

Sob esse trauma, centenas de milhares de judeus soviéticos optaram pela segurança do recém-criado Estado de Israel, logo que ele foi proclamado. Um êxodo inicialmente bem visto por Stálin, interessado em ter o Reino Unidos fora do Oriente Médio e que contava com esses vínculos e a gratidão ao Exército Vermelho para transformar o novo Estado judeu em um Estado socialista. O bloco comunista europeu não só apoiou em peso as articulações na ONU para a formação do novo Estado como o ajudou militarmente na guerra contra os países árabes que o invadiram horas após a assinatura de independência. Soldados judeus foram treinados na Polônia, enquanto armas foram doadas pela Tchecoslováquia e enviadas através da Iugoslávia e outros países balcânicos. 

O sionismo de esquerda tinha papel de destaque entre os fundadores da pátria hebraica, a começar por David Ben-Gurion, seu primeiro chefe de governo, nascido na Polônia, e Golda Meir, primeira embaixadora na União Soviética, bastante admirada pela elite moscovita. Nascida em Kiev e criada nos Estados Unidos, ela se tornaria, duas décadas depois, uma das primeiras-ministras israelenses mais marcantes.

Não tardou, porém, para Stálin mudar suas percepções. De influenciável, Israel passou a ser visto como influenciador dos judeus ainda residentes atrás da Cortina de Ferro. Com o alvorecer da Guerra Fria e o crescente poderio econômico dos Estados Unidos, o líder soviético iniciou uma política de isolamento cultural, com intuito de afastar a "pureza russa" das concepções de vida ocidentais, perigosas para o prestígio interno de seu regime. A narrativa oficial precisava ser a de que os russos haviam sido ao mesmo tempo os principais carrascos e as maiores vítimas de Hitler. Era preciso, portanto, minimizar o Holocausto como apenas mais um aspecto da ocupação alemã.

Dar a dimensão verdadeira daquele extermínio racial obrigava, além do mais, o regime soviético a expor a colaboração de alguns de seus cidadãos com o Reich. Não foram raros os civis, além dos prisioneiros de guerra, que auxiliaram os alemães na perseguição e administração dos territórios ocupados durante os quase quatro anos de subjugação - inclusive dos corredores da morte dos campos de extermínio de Treblinka, Sobibor e Belzec. A lembrança destruía o mito da população soviética unida corajosamente em torno da honra do Estado comunista. 

A própria hoje invadida Ucrânia contou com uma milícia paramilitar nacionalista, o Exército Insurreto Ucraniano (UPA), que, pretendendo posteriormente derrotar os comunistas e alcançar a independência, chegou a colaborar no início com a Wehrmacht (as forças armadas alemãs), fato frequentemente recordado por Putin para reforçar a acusação de ser o vizinho celeiro de neonazistas. Ignora obviamente os cerca de três milhões de ucranianos, muitos membros do Exército Vermelho, mortos pelos alemães. Em uma triste coincidência, um dos primeiro bombardeios russos sobre Kiev, no início do mês, atingiu uma torre de TV próxima a Baby Yar, o emblemático barranco em que, na véspera do Yom Kippur de 1941, cerca de 35 mil dos 200 mil judeus da cidade foram fuzilados em dois dias. Era primeira operação com vistas a exterminar toda comunidade judaica de uma grande cidade. Hoje há no local um Memorial do Holocausto.

Ao mesmo tempo que a Segunda Guerra não deveria ser entendida como uma guerra de libertação de judeus, estes não eram mais confiáveis. Passavam a ser percebidos, conta o historiador Timothy Snyder em seu livro "Terras de Sangue", como "cosmopolitas desarraigados", por, forasteiros mesmo nascidos no país, não terem apego sincero à cultura russa, e portanto, suscetíveis à influência do capitalismo norte-americano, ou "sionistas", o que denotava preferir os valores de outro Estado nacional (Israel), o qual, para piorar, já nascera sob a dependência do apoio de Washington. Com a eclosão da Guerra da Coreia, em 1952, tropas norte-americanas encontravam-se perto das fronteiras orientais soviéticas. Pela retórica stalinista, apesar da aparente contradição, a correlação entre cosmopolitismo e nacionalismo ganhava sentido.

Para uma mente obcecada com a segurança do regime, o cenário era terreno fértil para teorias conspiracionistas. Judeus, apontados por Hitler como a gênese do comunismo ( “judeo-bolchevismo”), passaram a ser acusados de integrar, como espiões, um grande complô dos Estados Unidos que incluiria assassinatos de membros dos aparatos estatais de Moscou e seus satélites. Através de farsas judiciais e confissões sob tortura, iniciaram-se perseguições, assassinatos e expurgos nos governos e partidos comunistas soviético e do leste europeu, interrompidos com a morte de Stalin, em 1953. "Stalin matou menos de algumas dezenas de judeus em seus últimos anos de vida. Se queria de fato uma derradeira operação de terror nacional, o que não é nada certo, ele foi incapaz de levá-la a conclusão", pondera Snyder.

Nikita Kruschev denunciou, em discurso no Congresso do PCUS, as políticas de extermínio e deportação das décadas de 30 e 40 comandadas por seu antecessor. Contudo, embora o antissemitismo stalinista do pós-guerra nunca tenha alcançado tal ordem de grandeza, o silenciamento do Holocausto e o discurso da ameaça sionista permaneceram após os anos 50 no país e em alguns outros países de seu bloco, como Polônia e Tchecoslováquia, reverberados inclusive por judeus comunistas, emparedados pelo riscos dos julgamentos falseados. Supostas conexões judaicas serviam para desacreditar e afastar da vida pública rivais nas disputas internas daqueles regimes. Com a Alemanha Ocidental integrada à OTAN, em 1954, o revisionismo histórico em que os eslavos haviam sido os alvos prioritários dos nazistas fortalecia a imagem oficial do leste europeu novamente ameaçado pelos alemães - desta vez aliados a Washington. 

Para os soviéticos e satélites, a Guerra Fria dava prosseguimento à Segunda Guerra, e Israel sendo, ao lado dos alemães ocidentais, marionete dos Estados Unidos, era apenas mais uma instância do imperialismo capitalista, cuja deformação resultara no nazismo. O Estado judeu, portanto, nada tinha de vítima. Ao contrário, fazia parte de uma ordem que perpetrara crimes contra a humanidade. Charges polonesas chegaram a retratar as forças armadas israelenses como a Wehrmacht. A acusação de sionismo não mais se restringiu a judeus e descendentes. Frequentemente assim foram tachados intelectuais e críticos do regime. O antissemitismo afastou o Estado judeu da União Soviética. Eleitoralmente majoritária nas décadas de 50 e 60, a esquerda israelense se solidificou no tom socialdemocrata. 

Em sentido oposto, como causa ou consequência, os Estados Unidos, de início cauteloso por temer prejudicar as relações com países árabes, reforçaram seus vínculos com Israel no decorrer da Guerra Fria. Enquanto na Crise do Suez, em 1956, pressionam pela retirada das tropas israelenses do Sinai, na Guerra dos Seis Dias, em 1967, mostram-se seu principal sustentáculo. No conflito, em luta contra a Liga Árabe, agora apoiada pelos soviéticos, Israel ocupa novamente a península egípcia, além da Faixa de Gaza, a Cisjordânia, Colinas de Golã. Era o início da visceral parceria entre Washington e Tel Aviv.

A ascensão de Putin realinhou em parte as relações de Moscou com Israel, necessariamente ambíguas pela simultânea proximidade com países árabes, como a Síria, e a teocracia iraniana. Muitos se surpreenderam com sua presença na comemoração, em Israel, dos 75 anos da libertação do campo de Auschwitz. “Putin tem se mostrado um grande amigo dos judeus, do judaísmo e do Estado de Israel", afirmou à época Osias Wurman, cônsul honorário de Israel no Rio de Janeiro, à Sputnik Brasil, sucursal da agência internacional de notícias do governo russo.

O chefe do Kremlin frequentemente participa de cerimônias judaicas e é amigo do rabino -chefe de Moscou. Uma proximidade explicada, segundo biógrafos, pelos laços afetivos criados em sua infância, quando o menino Wladimir, de família muito pobre, foi muitas vezes alimentado por uma família judia vizinha. Também judeu foi seu professor de boxe, figura paternal para ele. Recentemente, um jornal ligado ao Hezbollah aproveitou-se dessas relações para "denunciar" que Putin, na verdade, seria judeu, e não cristão ortodoxo.

Israel votou a favor da resolução da Assembleia Geral da ONU que condenou a invasão russa. Em reunião com o secretário de Estado norte-americano, Antony Blinken no dia 7, o ministro das Relações Exteriores, Yair Lapid, reafirmou a condenação. Disse, segundo o portal de notícias Ynet News, um dos maiores de Israel, que, embora converse com todos os lados e considere que "a ordem mundial está mudando", "não há alternativa à liderança dos Estados Unidos no mundo, que esteja determinada a impedir guerras e massacres”.

O país, no entanto, evitou seguir seu principal aliado e a União Europeia nas sanções à economia russa Tampouco fechou seu espaço aéreo à Moscou e manteve os voos das companhias áreas locais para a Rússia. Segundo a rádio israelense Kan, a razão para o governo Bennet se recusar a vender seu sistema de defesa aérea Iron Dome a Ucrânia teria sido "medo de irritar Putin". Não por acaso, na mesma semana da votação em Nova York, o vice- embaixador russo na ONU, Dmitry Polyanskiy, reafirmou o não reconhecimento da soberania israelense sobre as Colinas de Golã. "Fazem parte da Síria. Estamos preocupados com os planos anunciados de Tel Aviv para expandir a atividade de assentamento nas Colinas de Golã ocupadas, o que contradiz as disposições da Convenção de Genebra de 1949", escreveu em seu perfil no Twitter.

Massivos protestos ocuparam as ruas de Tel Aviv exigindo um posicionamento mais enfático contra Putin por parte de Bennet, filho de imigrantes norte-americanos, com alguns anos da infância e da vida profissional vividos nos Estados Unidos. Por outro lado, Putin conta com a simpatia dos mais entusiasmados eleitores do ainda forte politicamente ex-premiê Benjamim Netanyahu. Os dois nutrem excelentes relações pessoais e ideológicas, o que indica um quadro ainda mais complexo caso Netanyahu estivesse ainda na chefia do governo. 

Em suas últimas campanhas eleitorais, o Likud, seu partido, fez questão de ressaltar o vínculo, expondo faixas com foto dos dois juntos ( assim como com Trump) em sua sede. A estratégia gerou críticas de seus opositores, contrários ao enaltecimento de um autocrata por parte do então líder de uma democracia liberal. Seus simpatizantes, contudo, entenderam como sinal de livre acesso aos principais governantes do mundo. É no Canal 14, emissora associada ao ex-primeiro-ministro, onde se vê uma das poucas coberturas menos críticas às ações do Kremlin na Ucrânia.

Ministro das Relações Exteriores e da Defesa no gabinete de Netanyahu e líder do Yisrael Beytenu , o atual ministro da Economia, Avigdor Liberman, é moldavo com ascendência russa. Foi para ser a voz dessa parcela russófona da população, sua base tradicional, que ele fundou, em 1999, o secularista e nacionalista partido, vital para a manutenção da frágil e heterogênea coalisão governista, que inclui da centro-esquerda e partido árabe à direita religiosa. Bennet conta com apenas 61 dos 120 assentos no Knesset, o parlamento israelense.

A guerra pode também repercutir no cenário social interno. Ao fim da primeira semana do conflito, quatro mil judeus ucranianos já haviam fugido para Israel. Além dos perto de 10 mil israelenses, há ainda na Ucrânia aproximadamente outras 200 mil pessoas aptas à Lei do Retorno, norma que garante cidadania israelense a qualquer judeu no mundo, seus cônjuges e descendentes não judeus até a terceira geração, o que pode implicar em uma nova onda da Aliá, o nome hebraico para a imigração para o Estado judeu. Setores da opinião pública mostram-se, ademais, reticentes em acolher refugiados que não preencham os requisitos da lei.

Disposto a ser o porta-voz das demandas dos dois lados, Bennet continua com as chamadas telefônicas para Moscou e Kiev. De concreto, por hora, a disposição do governo israelense em construir um hospital de campo no oeste da Ucrânia a fim de fornecer assistência humanitária. Apesar da decepção com alguns posicionamentos de Tel Aviv, o conselheiro de segurança nacional da Ucrânia, Andriy Yermak, elogiou os esforços: "Israel empreendeu a difícil, mas nobre missão de mediar a busca pela paz e acabar com a agressão da Rússia", tuitou. Zelensky, filho de judeus e cujo avô lutou no Exército Vermelho durante a Segunda Guerra, foi convidado a discursar no plenário do Knesset no próximo domingo. De imediato, o embaixador russo pediu uma reunião de emergência com o presidente da Casa, Mickey Levy.

Nesse delicado equilíbrio, Israel torce para que a guerra não se amplie a ponto de atingir diretamente algum membro da OTAN. Terá assim que optar pelas aliança estratégica com Washington, vendo-se obrigado a arcar com os custos das prováveis retaliações de Moscou.

 Enquanto cerca de 15 mil pessoas foram detidas em protestos contra a guerra na Rússia, Putin, nesta quarta-feira, dia 16, afirmou, em cadeia nacional de TV, que a sociedade russa precisa passar por uma "autopurificação", que "fortaleça" o país e permita distinguir os "patriotas" dos "bastardos "e "traidores", aqueles que estão "mentalmente" no Ocidente, não "com o nosso povo". Palavras que remetem à retórica de Stálin sobre cosmopolitismo e "pureza russa" em sua justificativa para a política de perseguições daquela época.

Novamente, deploráveis decisões de um nada democrático inquilino do Kremlin, em luta contra o não mais "reacionário", mas "globalista" ou "liberal" Ocidente, podem afastar Tel Aviv de um país com quem tem laços tão profundos. Se desta vez os judeus como um todo não são os perseguidos, é coincidentemente um potencial cidadão israelense quem preside o país alvejado. 

sábado, 26 de fevereiro de 2022

Putin e a volta da hegemonia realista

Por Murillo Victorazzo

Segundo a teoria da transição de poder de Abramo Organsky, dominante nos estudos das relações internacionais, potências ascendentes procuram sempre redesenhar a ordem mundial, seja através de reformas pontuais ou de rupturas. A probabilidade do choque com o status quo resultar em guerra é proporcional à diferença de recursos de poder entre desafiador e desafiante e à insatisfação do último. "Uma distribuição uniforme dos recursos políticos, econômicos e militares entre grupos rivais de Estados aumenta a probabilidade de guerra, mas a paz é melhor preservada quando há um desequilíbrio de capacidades nacionais entre as nações favorecidas e desfavorecidas", argumenta o autor. 
Decorre daí a dedução de estudiosos (sem juízo de valor ideológico sobre países) acerca da maior propensão à paz de sistemas interestatais unipolares, aqueles onde apenas uma potência é capaz de moldar as regras à sua feição, o chamado hegemon. Paz aqui entendida, é preciso frisar, como a ausência de grandes guerras entre poderosos atores estatais, conflitos com elevados potenciais de disseminação geográfica e militar e equivalente capacidade de destruição. Não os conflitos localizados e guerras assimétricas (aquelas que envolvem entidades paraestatais, como rebeliões, grupos terroristas, narcoguerrilhas). Ninguém, obviamente esquece o sangue derramado em Kosovo, Bósnia, Iraque, Afeganistão, entre outros países africanos e do Oriente Médio, nas últimas três décadas de Pax Americana.

Mas variáveis internas influenciam na postura da potência revisionista. Dentre elas, o perfil ideológico do governo, a personalidade do governante e o desenho institucional do país, esta capaz de contrabalançar as duas anteriores. Base conceitual da corrente solidarista liberal,  Immanuel Kant defendeu, em A Paz Perpétua, a integração como meio de mitigar o estado de natureza de um sistema anárquico (guerras). "Repúblicas" (democracias) não entram em guerra contra repúblicas por serem intrínsecos a elas freios e contrapesos internos, acrescenta. O Estado de direito se reflete no respeito ao direito internacional. Sob a influência do ideal kantiano, nasceu como antídoto ao passado sangrento entre seus membros a União Europeia. 

Teorias, claro, não são verdades absolutas e apresentam nuances, mas é inegável as semelhanças do cenário internacional atual com o escrito décadas e séculos atrás. Por todo seu histórico, pode soar estranho considerar a Rússia potência ascendente. Contudo, a decadência política e principalmente econômica resultante dos escombros soviéticos na década de 90 destinou ao país papel secundário nas principais decisões mundiais, redigidas sob a ordem unipolar norte-americana. Putin foi eleito prometendo recuperar um protagonismo considerado como predestinado ao gigantesco país, que, embora apenas a decima economia do mundo, é a segunda maior força armada e dona do maior arsenal nuclear. 

Além de um autocrata que controla imprensa, Legislativo e Judiciário, Putin é moldado no nacionalismo expansionista pan-russo, de inspiração czarista, e na tradição realista de relações internacionais, segundo qual o sistema internacional é um jogo de soma zero e os Estados, atores unitários nesse palco.  Ao contrário do solidarista liberal, que crê na prosperidade mundial como fruto do livre comercio e de instituições e normas que restringem atitudes unilaterais e estimulam a cooperação, o realista vê esse sistema como uma incessante busca por recursos de poder ( power politics) , necessários para preservação da segurança do Estado ( o "interesse nacional"). É a lei do mais forte.

O atual governo russo é assim a tempestade perfeita para a contestação da ordem mundial. A temerosa expansão ao leste da OTAN e a crise decorrente da quebra de promessa ocidental há 30 anos são o retrato de tudo que foi descrito acima. Quando o Kremlin resolve (re) tomar para si o papel que entende ser historicamente de seu direito, interpretando o mundo como multipolar (acrescente-se a China), junto vem a inevitável ideia de que cada potência tem sua área de influência e as outras precisam respeitá-la. O Ocidente apostou alto com sua política de "portas abertas" para aliança transatlântica. Avisos não faltaram à época. Talvez tenha subestimado o tamanho e o tempo da recuperação russa. Moscou agora redobra a aposta.

Porém, o que parece ficar marginalizada em muitas análises é, além do direito de autonomia, a motivação dos pequenos e médios países na definição de suas políticas externas. E nela, a História sempre pesa. Não por coincidência, assim que os russos atravessaram as fronteiras da Ucrânia, os países bálticos (Estônia, Letônia, Lituânia) e a Polônia, por muitas décadas subjugadas por tropas soviéticas e czaristas, logo correram para acionar o artigo 4º do tratado da OTAN: “As partes se consultarão sempre que, na opinião de qualquer uma delas, a integridade territorial, a independência política ou a segurança de qualquer uma das partes estiver ameaçada”.

Também não por acaso, o primeiro efeito da guerra nos Parlamentos e na opinião pública de Suécia e Finlândia foi a volta do debate sobre a adesão à aliança. Imediatamente o Kremlin os ameaçou com "graves retaliações políticas e militares". Dois Estados democráticos, que, ao contrário da Ucrânia, não têm grupo neonazista em seus Exércitos (argumento utilizado para desqualificar o governo de Kiev), tampouco relações etnicamente umbilicais com a Rússia e presença relevante de russófonos em seus territórios. 

A adesão à OTAN ( e à União Europeia), prevista na Constituição ucraniana após ampla aprovação no Parlamento eleito pela população, foi assunto prioritário em todas eleições presidenciais do país há quase duas décadas, razão de crises politicas e rebeliões, sob acusações de influência externa tanto por pró-russos como pró-ocidentais. Zelensky, com todos seus defeitos, venceu, em 2019, uma eleição referendada por órgãos internacionais, com 70% dos votos.

Putin recorre à "indivisibilidade da segurança", termo referente ao Protocolo de Istambul, assinado, em 1999, pelos países da Organização para a Segurança e Cooperação da Europa (OSCE), entre os quais Rússia e os membros da OTAN. Segundo ele, embora o documento defenda que cada país seja "livre para escolher seus arranjos de segurança, incluindo tratados de aliança”,  há a ressalva de que “os Estados não fortalecerão sua segurança à custa da segurança de outros Estados”. É o "dilema de segurança" (o "medo hobbesiano") falando alto: o reforço da segurança de um país implica no aumento da insegurança de outro, gerando uma escalada na corrida armamentista. O que um entende como defesa, o outro compreende como ameaça.

Não se prevê, contudo, o rompimento do direito internacional para suposta defesa preventiva. Ainda mais por se saber que a Ucrânia não seria integrada a OTAN a médio-prazo, conforme Washington reafirmara a Zelensky recentemente, ao contrário do desejado por Kiev. Não eram consensos entre seu membros a adesão e o tempo necessário para sua concretização. Nem cronograma oficial havia. O próprio conflito armado interno no leste do país e a presença militar estrangeira na Crimeia, desde 2014, eram um dos empecilhos. Putin, entre outros tratados e normas, rasgou a Carta da ONU e o Tratado de Budapeste, de 1994, que previa a garantia de preservação da soberania e integridade da Ucrânia por Moscou. Londres e Washington em troca da desmobilização do arsenal nuclear soviético localizado em seu território.
 
Off-shore balances é como se chama a estratégia de uma potência que se alia a países mais fracos vizinhos a outra potência, a fim de equilibrar o poder naquela região. A expansão da OTAN ao leste europeu é a institucionalização desse movimento, que, em tom mais suave, é visto na sustentação política e econômica do regime socialista de Maduro pelo "conservador" Putin e os não raros exercícios militares conjuntos no Caribe. 

Foi sob a mesma ótica que os soviéticos colocaram mísseis nucleares em Cuba na década de 60, momento em que o mundo se viu perto da Terceira Guerra Mundial. Para Havana, era garantia de que a ilha não seria invadida. Os que hoje relativizam a invasão russa certamente criticariam, à época, uma resposta militar concreta de Washington em sua área de influência. A diplomacia venceu. A tentativa de invasão da Baía dos Porcos um ano antes, quando Kennedy buscou derrubar o regime de Fidel Castro, aliado de Moscou, mereceu, com razão, o repúdio de quem defendia a autonomia cubana, ainda que fizesse sentido do ponto de vista do realismo norte-americano.

Impérios, sejam os territoriais como os não territoriais, veem seus vizinhos menores como satélites, cujos interesses e escolhas são secundários. Poderiam, por isso, reagir da forma que lhes convir caso se vejam ameaçados. Quem se diz anti-imperialista, contudo, jamais deveria contemporizar com a interpretação realista de que é compreensível a invasão por potência nuclear de quem insinua sair de sua área de influência. O militante de setores da esquerda brasileira, por exemplo, talvez nem perceba os riscos de sua contradição. Acaba por legitimar reações passadas e futuras de quem prefere hoje culpabilizar, os Estados Unidos, em sua principal área de influência, a América Latina - o que não significa ignorar as hipocrisias e erros da política externa norte-americana.

Em 1916, Lênin disse a respeito da I Guerra Mundial: "Nem a Rússia, nem a Alemanha, nem qualquer outra grande potência tem o direito de alegar que está travando uma "guerra de defesa"; todas as grandes potências estão travando uma guerra imperialista, capitalista, uma guerra predatória, uma guerra pela opressão de nações pequenas e estrangeiras". Alguém ainda consegue ver na Rússia algum traço da "pátria" propulsora da revolução socialista internacional? O governo de Putin é o oposto: um regime de natureza plutocrática e limitado sistema de bem-estar social, permeado de reacionarismo político e cultural. O antiamericanismo patológico cega.

Ao invadir a Ucrânia, Putin gritou: "Tio Sam,  o mundo não é mais unipolar. A Mãe Rússia voltou". Quando vai além das regiões separatistas ucranianas e lança uma guerra total, reaviva as piores lembranças dos vizinhos. A exigência de desarmamento total de um país independente como condição para encerrar as hostilidades desnuda suas pretensões para além da contenção da OTAN. A ordem internacional liberal, em processo de deterioração com o retorno dos nacionalismos e o enfraquecimento da cooperação multilateral e da integração regional nos últimos anos, sofreu mais um baque. Desta vez, o tiro acertou seu peito. O que se colocará no lugar vai depender do que acontecer na Ucrânia.
 
A vantagem do agressor é a surpresa; a do agredido, o tempo, ensina qualquer teórico de guerra. Quanto mais demorar o conflito, maiores os custos para o Kremlin, mesmo que se atinja vitória militar. Não se sabe as consequências do armamento da população civil ucraniana após eventual conquista de Kiev ou queda de Zelensky. Exemplos não faltam sobre os riscos para a estabilidade futura do país e da região. Tampouco o impacto das fortíssimas e incomparáveis sanções impostas pelo Ocidente sobre uma economia que apresenta fragilidades estruturais, excessivamente depende do oscilante setor de energia. A interdependência econômica inibe guerras, afirma o solidarismo liberal. E graças a ela, o realista Putin pode ver a estabilidade política interna, conseguida com mãos de ferro nos últimos 20 anos, ruir. Ou será que, em um perigoso círculo vicioso, a reação ocidental recrudescerá o ressentimento de parcelas da sociedade russa? 

A moribunda OTAN parecia não ter razão de ser. Putin não só lhe deu uma como a tornou mais coesa e possivelmente mais ampla. Mesmo não integrantes, Suécia e Finlândia concordaram em participar da ajuda militar à Ucrânia. Sondagens de adesão se somam a mudanças de paradigmas históricos da Alemanha, tradicionalmente avessa à enviar armas para conflitos e, devido ao fortes laços com a economia russa, resistente a maiores sanções a Moscou. Mais do que concordar em suspender Moscou do sistema SWIFT e destinar mais de mil lança foguete e mísseis ao país invadido, anunciou aumento nos gastos com defesa nos próximos anos. 

O rompimento alemão com a política de restrição bélica de mais de meio século, decorrente dos traumas nazistas, ganha ainda maior simbolismo por estar o ministério das Relações Exteriores sob o comando dos Verdes, partido de forte DNA pacifista. "O ataque russo marca uma mudança de era", justificou o primeiro-ministro alemão. Tão sintomático quanto é a declaração conjunta dos presidentes de Bulgária, República Tcheca, Estônia, Letônia, Lituânia, Polônia, Eslováquia e Eslovênia pedindo a aceitação imediata, em processo excepcional, da Ucrânia na União Europeia. Países do leste europeu, notem novamente.

Putin faz questão de ignorar a necessidade de legitimidade para alterar ordem, como a própria teoria da transição de poder menciona. Sob qualquer ângulo, falta-lhe o atributo quando lança mão de uma guerra total e unilateral, iniciada à revelia do dispositivo de defesa coletiva da ONU. Periga ver-se isolado. Até a Pequim, que afirmara semanas atrás não haver limites para cooperação com Moscou, preferiu se abster na resolução que condenaria a invasão não fosse o veto da própria agressora. Crimes de guerra já estão sendo denunciados. 

Muitos têm interesses e responsabilidades, incluindo Zelensky, com suas posturas erráticas. Não há mocinhos e bandidos, é verdade, e há muitas dúvidas sobre as consequências da guerra. Há, entretanto, duas certezas. Uma é que apenas um ator é o agressor militar. Invadiu o país soberano que afirmara, dias atrás, nunca ter sido um "Estado verdadeiro". Diante de resistência inesperada, sinaliza aumentar o emprego da força e já lançou a cartada da dissuasão nuclear. A outra é que Morgenthau, Waltz e Mearsheimer, os "pais" do realismo, vibram, seja onde for. Não esqueçam, não há imperialismo do bem.