quarta-feira, 27 de outubro de 2021

O Itamaraty te agradece, Gilberto Braga.

 Por Murillo Victorazzo

Soft power é um termo usado nas relações internacionais para definir os recursos de poder de um país utilizados através do exemplo, da persuasão, da admiração. Distingue-se dos hard powers, mobilizados a partir da coerção, seja bélica ou econômica. Sem força militar e econômica, o Brasil historicamente se difundiu internacionalmente através de sua cultura ( do carnaval à música), esporte ( especialmente o futebol), belezas naturais e biodiversidade. 

Ainda que internamente alguns vira-latas sempre as tenham olhado de forma preconceituosa como subprodutos, entre nossos soft powers de maior relevo seguramente estão nossa telenovelas. E entre elas, poucas foram mais responsáveis por nos projetar no mundo do que as de Gilberto Braga.
 
Com "Vale-Tudo", conquistou a América Latina, tornando, por ex, Paladar - o nome do restaurante de Rachel (Regina Duarte) - sinônimo de pequenos restaurantes caseiros em Cuba. Mas antes de tudo, foi com "Escrava Isaura" que nossa história, romanceada a partir dos dramas da personagem-título de Lucélia Santos, seduziu de países do nosso continente até outros do lado oposto do mundo, como China e Rússia, onde acabou também por introduzir novas expressões ao vocabulário local.
 
Gilberto fez incomparavelmente muito mais do que o chanceler templário que nos envergonhou até recentemente vendo comunismo/ "globalismo" em cada esquina. Obrigado, Gilberto! Descanse em paz.

sábado, 23 de outubro de 2021

Bolsonaro: a antítese de Midas

 Por Murillo Victorazzo

"Você era contra o teto de gastos e a favor do Bolsa Família e agora critica? Só porque é o Bolsonaro?" Certamente muitos adestrados presidenciais devem lançar essa carta para fazer seus malabarismos retóricos e justificar as últimas decisões do presidente. Pois, não, não há incoerência. Embates entre doutrinas econômicas fazem parte do debate político e, portanto, da economia política. O teto de despesas não é - ou não deveria ser - inquestionável como política pública permanente. O que não é legítimo é a contradição, o arremedo, o timing e o modus operandi.

Já se tornou repetitivo recordar o que Bolsonaro e seus simpatizantes diziam sobre o Bolsa Família: "voto de cabresto", "Bolsa Esmola", "estímulo à vagabundagem", "compra de voto", incentivo a alta da  natalidade entre os pobres.  “O Bolsa Família nada mais é do que um projeto para tirar dinheiro de quem produz e dá-lo a quem se acomoda, para que use seu título de eleitor e mantenha quem está no poder”, discursava, em fevereiro de 2011, no plenário da Câmara, em seus tempos de deputado do baixo-clero.

Reverberava desinformações, sua marca até hoje, sem nem se dar ao trabalho de ler pesquisas acadêmicas que desmontavam sua desinteria verbal, como, por exemplo, o estudo do IPEA que mostra que cada real investido no programa gera R$ 1,8 no PIB. e principalmente o impacto social das contrapartidas, como a queda de quase 60% na mortalidade infantil, o aumento na frequência escolar e, ao mitigar a desnutrição em crianças, o aumento em suas alturas. Na campanha vitoriosa, diante da necessidade de votos nas classes mais pobres, já dava início a sua mudança oportunista: prometeu um décimo-terceiro, concretizado apenas no primeiro ano do mandato.

Sem reajuste desde 2017, o Bolsa Família foi extinto poucos meses atrás, por Medida Provisória ainda não votada. De olho em sua reeleição, Bolsonaro lançava sua versão do programa, o "Auxílio Brasil". Nascia, contudo, sem critérios nítidos para alterações nas categorias de beneficiários, atualização da linha de pobreza e fontes orçamentárias definidas, incapaz que era o governo de articular sua frágil base parlamentar. Frágil porque sustentada não por programas previamente acordados, mas por trocas ocasionais do mais velho fisiologismo, agravado pela inaptidão presidencial em articular e liderar, exceto quando é para gritar palavras de ordem radicaloides e sua populista retórica anti-instituições. A prioridade era tirar o DNA petista.

Em meio à inépcia, a pandemia se avolumava. Enquanto governos de diversos países sabiam da necessidade de um forte colchão social para enfrentar a queda da atividade econômica, o governo propôs R$ 250 como auxílio emergencial. A justificativa? Restrição orçamentária. Diante da iniciativa do Legislativo, proposta pela oposição, de R$ 500, afim de não perder a assinatura da proposta, aceitou elevar para R600.

A recessão se instaurava, o desemprego e a pobreza aumentavam em proporção a letargia do combate à pandemia. Após quatro meses sem parcela nenhuma, a segunda onda atingia o país, acarretando o momento mais sério da crise sanitária. Foi quando Guedes se negou a repetir o valor do auxílio anterior, destinando apenas cerca da metade. Novamente o argumento fiscal. O teto, amém.

Mas, no momento em que as curvas de casos e mortes se invertem acentuadamente, as restrições sanitárias progressivamente se flexibilizam e os dados econômicos dão algum sinal de vida, um Bolsonaro assustado com sua rejeição, bate o pé: o "Auxílio Brasil" não pode ser os R$ 300 reais defendido pelo seu "Posto Ipiranga". Estimulado pelo Centrão, decide por um piso  provisório de R$400, até o final do ano que vem, quando buscará a reeleição. E depois? Sabe-se lá. Com ele, o "auxílio diesel" com mesmo valor para 750 mil caminhoneiros, uma de suas bases sociais. Às favas o até então sagrado teto de gastos, a partir da alteração repentina do seu critério de correção.

Não precisa ser muito perspicaz para notar a contradição e a fragilidade do argumento que somente agora tiram da manga sobre "vivermos situação atípica". Entra em choque com a própria suposta recuperação em "V" propagada nas típicas bravatas hiperbólicas de vendedor de terreno no lua de Paulo Guedes. Contradição que traz consigo o "presidencialismo de cooptação", o paroxismo do tão demonizado na campanha eleitoral "presidencialismo de coalizão",  sem o bônus da articulação de uma base governista mais coesa e orgânica. Só o  ônus  - para a sociedade - ao reforçar o caixa para as tão famosas quanto obscuras "emendas do relator", nas mãos absolutas do aliado mais poderoso Arthur Lyra.

A gambiarra se torna mais indefensável quando vem inserida na PEC que oficializa a postergação do pagamento ordenado pela Justiça de precatórios, dívidas - nada mais do que bens - da União com terceiros, entre eles Estados, professores e aposentados, além de empresas.  Sim, tem liberal a favor do rompendo de obrigações financeiras e despreocupados com "insegurança jurídica". Uma grande pedalada que abre a torneira de cerca de R$ 90 bilhões, quando o custo do acréscimo de R$ 100 no programa social é cerca da metade. Cerca de R$ 15 bilhões nas mãos de Lyra para seu manejo discricionário. 

A falta de visão de longo-prazo se reflete na própria nova metodologia de atrelar ao teto o IPCA de dezembro a dezembro, e não mais entre os meses de junho, alteração vista com maus olhos por muitos economistas. Previsto na proposta original da PEC do teto gastos cinco anos atrás,  a ideia não prosperou porque resultaria em um orçamento elaborado com base em mera estimativa de inflação.

Concorde-se ou não com o teto de gastos como âncora fiscal, merece, portanto, mais respeito quem há tempos pede seu fim ou flexibilização, a partir de uma concepção doutrinária de longo-prazo acerca do papel social do Estado, do que quem, em oposição ao que defendia semanas antes, muda abruptamente a regra em meio ao jogo, apenas para encaixar uma quantia predefinida. "É estelionato contra a população. É dar um calote duplo e deixar a conta pro próximo governo pagar”, afirma o deputado Vinicius Poit, do insuspeito NOVO.

Ao reforçar o balcão de negócios do "orçamento secreto", em vez de enfrentar subsídios e privilégios de castas ou fazer com que tais emendas sejam direcionadas à programa social, o governo evidencia seus objetivos e prioridades. Em abril, recordemos, uma portaria do Ministério da Economia permitiu que militares inativos ocupantes de cargos comissionados ou eletivos ultrapassem o teto salarial do funcionalismo da administração federal. Igualmente, sancionou anistias a dívidas bilionárias de ruralistas e entidades religiosas, além de aumentos em penduricalhos de corporações preferidas. 

Na proposta orçamentária para o ano que vem, o Ministério da Defesa abocanhou o dobro do aumento destinado à Educação, enquanto a Saúde sofreu decréscimo. Na desse ano, os militares garantiram expansão duas vezes maior que as outras duas pastas. Não se nega a importância dos projetos militares, apenas soa estranho prioridades assim em meio a uma crise sanitária e socioeconômica. Mais do que  números, sinalizações. A própria reforma administrativa proposta, gostem ou não dela, não tem merecido atenção do governo, segundo o próprio Lyra disse ao Estadão. 

Estão em jogo transparência, credibilidade e rumo. A histeria do mercado comprova. Mercado, que de queridinho passou para "nervosinho". A gente sabe: previsões, em economia, ancoram realidade. O burburinho fiscal logo apareceu na ata do Banco Central: aumento de 1,5 pts percentuais. Mais juros e dólar alto significam menos crescimento e mais inflação. Corrosão do poder de compra dos mais pobres principalmente. Imagina o que gritariam Guedes e seus discípulos na Faria Lima se Fernando Henrique ou Lula assim tachasse o mercado?

Ao custo de menos de 0,5% do PIB, o Bolsa Família é (era) o maior e mais exitoso programa de transferência de renda do mundo. Seus méritos, porém, foram sempre negados ou distorcidos por parcela da sociedade, em especial na classe média e alta, com seus característicos elitismo e preconceito ignorante das pseudoinformações de whatsapp. Bolsonaro surfou nessa rejeição e agora se agarra à sua versão improvisada como um náufrago desesperado se agarra a uma boia, mesmo após furá-la , ou tentar furá-la, aos poucos. 

O sucesso do Bolsa Família se consolidou articulado a políticas macroeconômicas e instrumentos de inclusão da sociedade civil, como o Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea). Chute inicial do marco legal no combate à fome, o órgão consultivo criado ainda em 1993 ajudava a elaborar politicas publicas no tema. Bolsonaro o extinguiu logo em seus primeiros meses de governo, assim como o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan). 

Segurança alimentar, que, aliás, foi alvejada pela fragilização pelo atual governo de outra política pública: os estoques alimentícios. Dados da Conab mostram a redução a quase zero do armazenamento de produtos fundamentais para a cesta básica, como feijão, arroz, milho, soja, café, trigo. Em momento de alta dos alimentos, os estoques deveriam amortizar oscilações bruscas, como as cambiais ou de ofertas no mercado internacional. Além da premissa dogmática de não interferência na lei da oferta e da procura, seu custo de manutenção é um dos argumentos do ultraliberalismo de Guedes, não importando o impacto para as classes mais pobres. Olha a rigidez fiscalista aqui novamente...

Ser a favor ou não do teto de gastos é o menos importante nesse momento. O Bolsa Família era um programa barato, justo, eficiente e necessário demais - e que precisa sim ter seus valores atualizados. Mas, graças ao oportunismo e improviso do atual governo tornou-o pretexto para a farra eleitoral do Centrão outrora demonizado e voltou a ser encarado como o que nunca foi: algoz da responsabilidade fiscal. 

Anda pior,  Bolsonaro colocou-o no limbo da insegurança operacional, devido aos novos critérios, e legal: a MP do Auxílio Brasil perde a validade se não for votada até dia 7 de dezembro, e a PEC que constitucionaliza o calote ainda continua no limbo, ainda que sua aprovação em primeiro turno já tenha entrado para o hall das nada gloriosa sessões históricas que entraram na madrugada em meio ao mercadão de emendas antes de votações - o que difere bastante do legítimo empenho de emendas impositivas como instrumento de atuação parlamentar em suas bases eleitorais a partir de determinado cronograma. As mesmas emendas de relator como moeda de troca, em uma retroalimentação danosa que explicita as verdadeiras motivações da PEC. 

A descontinuidade de políticas públicas é um tradicional mal brasileiro, assim como a discricionariedade dada ao político na definição de valor e momento quando as "bondades" são provisórias e pontuais, marca do clientelismo. O caráter permanente e descentralizado do Bolsa Família rompia com esse nosso vício político, o qual só será afastado de vez com sua inclusão como um direito constitucional. 

Por via tortas, assim como "aparelhamento" e  o "viés ideológico" na política externa, Bolsonaro conseguiu tornar um programa de transferência de renda no que ele próprio acusava ser: mero instrumento eleitoral. É o oposto de Midas: se tudo em que o mitológico rei tocava virava ouro, tudo em que o atual presidente da República toca vira m...