sábado, 26 de fevereiro de 2022

Putin e a volta da hegemonia realista

Por Murillo Victorazzo

Segundo a teoria da transição de poder de Abramo Organsky, dominante nos estudos das relações internacionais, potências ascendentes procuram sempre redesenhar a ordem mundial, seja através de reformas pontuais ou de rupturas. A probabilidade do choque com o status quo resultar em guerra é proporcional à diferença de recursos de poder entre desafiador e desafiante e à insatisfação do último. "Uma distribuição uniforme dos recursos políticos, econômicos e militares entre grupos rivais de Estados aumenta a probabilidade de guerra, mas a paz é melhor preservada quando há um desequilíbrio de capacidades nacionais entre as nações favorecidas e desfavorecidas", argumenta o autor. 
Decorre daí a dedução de estudiosos (sem juízo de valor ideológico sobre países) acerca da maior propensão à paz de sistemas interestatais unipolares, aqueles onde apenas uma potência é capaz de moldar as regras à sua feição, o chamado hegemon. Paz aqui entendida, é preciso frisar, como a ausência de grandes guerras entre poderosos atores estatais, conflitos com elevados potenciais de disseminação geográfica e militar e equivalente capacidade de destruição. Não os conflitos localizados e guerras assimétricas (aquelas que envolvem entidades paraestatais, como rebeliões, grupos terroristas, narcoguerrilhas). Ninguém, obviamente esquece o sangue derramado em Kosovo, Bósnia, Iraque, Afeganistão, entre outros países africanos e do Oriente Médio, nas últimas três décadas de Pax Americana.

Mas variáveis internas influenciam na postura da potência revisionista. Dentre elas, o perfil ideológico do governo, a personalidade do governante e o desenho institucional do país, esta capaz de contrabalançar as duas anteriores. Base conceitual da corrente solidarista liberal,  Immanuel Kant defendeu, em A Paz Perpétua, a integração como meio de mitigar o estado de natureza de um sistema anárquico (guerras). "Repúblicas" (democracias) não entram em guerra contra repúblicas por serem intrínsecos a elas freios e contrapesos internos, acrescenta. O Estado de direito se reflete no respeito ao direito internacional. Sob a influência do ideal kantiano, nasceu como antídoto ao passado sangrento entre seus membros a União Europeia. 

Teorias, claro, não são verdades absolutas e apresentam nuances, mas é inegável as semelhanças do cenário internacional atual com o escrito décadas e séculos atrás. Por todo seu histórico, pode soar estranho considerar a Rússia potência ascendente. Contudo, a decadência política e principalmente econômica resultante dos escombros soviéticos na década de 90 destinou ao país papel secundário nas principais decisões mundiais, redigidas sob a ordem unipolar norte-americana. Putin foi eleito prometendo recuperar um protagonismo considerado como predestinado ao gigantesco país, que, embora apenas a decima economia do mundo, é a segunda maior força armada e dona do maior arsenal nuclear. 

Além de um autocrata que controla imprensa, Legislativo e Judiciário, Putin é moldado no nacionalismo expansionista pan-russo, de inspiração czarista, e na tradição realista de relações internacionais, segundo qual o sistema internacional é um jogo de soma zero e os Estados, atores unitários nesse palco.  Ao contrário do solidarista liberal, que crê na prosperidade mundial como fruto do livre comercio e de instituições e normas que restringem atitudes unilaterais e estimulam a cooperação, o realista vê esse sistema como uma incessante busca por recursos de poder ( power politics) , necessários para preservação da segurança do Estado ( o "interesse nacional"). É a lei do mais forte.

O atual governo russo é assim a tempestade perfeita para a contestação da ordem mundial. A temerosa expansão ao leste da OTAN e a crise decorrente da quebra de promessa ocidental há 30 anos são o retrato de tudo que foi descrito acima. Quando o Kremlin resolve (re) tomar para si o papel que entende ser historicamente de seu direito, interpretando o mundo como multipolar (acrescente-se a China), junto vem a inevitável ideia de que cada potência tem sua área de influência e as outras precisam respeitá-la. O Ocidente apostou alto com sua política de "portas abertas" para aliança transatlântica. Avisos não faltaram à época. Talvez tenha subestimado o tamanho e o tempo da recuperação russa. Moscou agora redobra a aposta.

Porém, o que parece ficar marginalizada em muitas análises é, além do direito de autonomia, a motivação dos pequenos e médios países na definição de suas políticas externas. E nela, a História sempre pesa. Não por coincidência, assim que os russos atravessaram as fronteiras da Ucrânia, os países bálticos (Estônia, Letônia, Lituânia) e a Polônia, por muitas décadas subjugadas por tropas soviéticas e czaristas, logo correram para acionar o artigo 4º do tratado da OTAN: “As partes se consultarão sempre que, na opinião de qualquer uma delas, a integridade territorial, a independência política ou a segurança de qualquer uma das partes estiver ameaçada”.

Também não por acaso, o primeiro efeito da guerra nos Parlamentos e na opinião pública de Suécia e Finlândia foi a volta do debate sobre a adesão à aliança. Imediatamente o Kremlin os ameaçou com "graves retaliações políticas e militares". Dois Estados democráticos, que, ao contrário da Ucrânia, não têm grupo neonazista em seus Exércitos (argumento utilizado para desqualificar o governo de Kiev), tampouco relações etnicamente umbilicais com a Rússia e presença relevante de russófonos em seus territórios. 

A adesão à OTAN ( e à União Europeia), prevista na Constituição ucraniana após ampla aprovação no Parlamento eleito pela população, foi assunto prioritário em todas eleições presidenciais do país há quase duas décadas, razão de crises politicas e rebeliões, sob acusações de influência externa tanto por pró-russos como pró-ocidentais. Zelensky, com todos seus defeitos, venceu, em 2019, uma eleição referendada por órgãos internacionais, com 70% dos votos.

Putin recorre à "indivisibilidade da segurança", termo referente ao Protocolo de Istambul, assinado, em 1999, pelos países da Organização para a Segurança e Cooperação da Europa (OSCE), entre os quais Rússia e os membros da OTAN. Segundo ele, embora o documento defenda que cada país seja "livre para escolher seus arranjos de segurança, incluindo tratados de aliança”,  há a ressalva de que “os Estados não fortalecerão sua segurança à custa da segurança de outros Estados”. É o "dilema de segurança" (o "medo hobbesiano") falando alto: o reforço da segurança de um país implica no aumento da insegurança de outro, gerando uma escalada na corrida armamentista. O que um entende como defesa, o outro compreende como ameaça.

Não se prevê, contudo, o rompimento do direito internacional para suposta defesa preventiva. Ainda mais por se saber que a Ucrânia não seria integrada a OTAN a médio-prazo, conforme Washington reafirmara a Zelensky recentemente, ao contrário do desejado por Kiev. Não eram consensos entre seu membros a adesão e o tempo necessário para sua concretização. Nem cronograma oficial havia. O próprio conflito armado interno no leste do país e a presença militar estrangeira na Crimeia, desde 2014, eram um dos empecilhos. Putin, entre outros tratados e normas, rasgou a Carta da ONU e o Tratado de Budapeste, de 1994, que previa a garantia de preservação da soberania e integridade da Ucrânia por Moscou. Londres e Washington em troca da desmobilização do arsenal nuclear soviético localizado em seu território.
 
Off-shore balances é como se chama a estratégia de uma potência que se alia a países mais fracos vizinhos a outra potência, a fim de equilibrar o poder naquela região. A expansão da OTAN ao leste europeu é a institucionalização desse movimento, que, em tom mais suave, é visto na sustentação política e econômica do regime socialista de Maduro pelo "conservador" Putin e os não raros exercícios militares conjuntos no Caribe. 

Foi sob a mesma ótica que os soviéticos colocaram mísseis nucleares em Cuba na década de 60, momento em que o mundo se viu perto da Terceira Guerra Mundial. Para Havana, era garantia de que a ilha não seria invadida. Os que hoje relativizam a invasão russa certamente criticariam, à época, uma resposta militar concreta de Washington em sua área de influência. A diplomacia venceu. A tentativa de invasão da Baía dos Porcos um ano antes, quando Kennedy buscou derrubar o regime de Fidel Castro, aliado de Moscou, mereceu, com razão, o repúdio de quem defendia a autonomia cubana, ainda que fizesse sentido do ponto de vista do realismo norte-americano.

Impérios, sejam os territoriais como os não territoriais, veem seus vizinhos menores como satélites, cujos interesses e escolhas são secundários. Poderiam, por isso, reagir da forma que lhes convir caso se vejam ameaçados. Quem se diz anti-imperialista, contudo, jamais deveria contemporizar com a interpretação realista de que é compreensível a invasão por potência nuclear de quem insinua sair de sua área de influência. O militante de setores da esquerda brasileira, por exemplo, talvez nem perceba os riscos de sua contradição. Acaba por legitimar reações passadas e futuras de quem prefere hoje culpabilizar, os Estados Unidos, em sua principal área de influência, a América Latina - o que não significa ignorar as hipocrisias e erros da política externa norte-americana.

Em 1916, Lênin disse a respeito da I Guerra Mundial: "Nem a Rússia, nem a Alemanha, nem qualquer outra grande potência tem o direito de alegar que está travando uma "guerra de defesa"; todas as grandes potências estão travando uma guerra imperialista, capitalista, uma guerra predatória, uma guerra pela opressão de nações pequenas e estrangeiras". Alguém ainda consegue ver na Rússia algum traço da "pátria" propulsora da revolução socialista internacional? O governo de Putin é o oposto: um regime de natureza plutocrática e limitado sistema de bem-estar social, permeado de reacionarismo político e cultural. O antiamericanismo patológico cega.

Ao invadir a Ucrânia, Putin gritou: "Tio Sam,  o mundo não é mais unipolar. A Mãe Rússia voltou". Quando vai além das regiões separatistas ucranianas e lança uma guerra total, reaviva as piores lembranças dos vizinhos. A exigência de desarmamento total de um país independente como condição para encerrar as hostilidades desnuda suas pretensões para além da contenção da OTAN. A ordem internacional liberal, em processo de deterioração com o retorno dos nacionalismos e o enfraquecimento da cooperação multilateral e da integração regional nos últimos anos, sofreu mais um baque. Desta vez, o tiro acertou seu peito. O que se colocará no lugar vai depender do que acontecer na Ucrânia.
 
A vantagem do agressor é a surpresa; a do agredido, o tempo, ensina qualquer teórico de guerra. Quanto mais demorar o conflito, maiores os custos para o Kremlin, mesmo que se atinja vitória militar. Não se sabe as consequências do armamento da população civil ucraniana após eventual conquista de Kiev ou queda de Zelensky. Exemplos não faltam sobre os riscos para a estabilidade futura do país e da região. Tampouco o impacto das fortíssimas e incomparáveis sanções impostas pelo Ocidente sobre uma economia que apresenta fragilidades estruturais, excessivamente depende do oscilante setor de energia. A interdependência econômica inibe guerras, afirma o solidarismo liberal. E graças a ela, o realista Putin pode ver a estabilidade política interna, conseguida com mãos de ferro nos últimos 20 anos, ruir. Ou será que, em um perigoso círculo vicioso, a reação ocidental recrudescerá o ressentimento de parcelas da sociedade russa? 

A moribunda OTAN parecia não ter razão de ser. Putin não só lhe deu uma como a tornou mais coesa e possivelmente mais ampla. Mesmo não integrantes, Suécia e Finlândia concordaram em participar da ajuda militar à Ucrânia. Sondagens de adesão se somam a mudanças de paradigmas históricos da Alemanha, tradicionalmente avessa à enviar armas para conflitos e, devido ao fortes laços com a economia russa, resistente a maiores sanções a Moscou. Mais do que concordar em suspender Moscou do sistema SWIFT e destinar mais de mil lança foguete e mísseis ao país invadido, anunciou aumento nos gastos com defesa nos próximos anos. 

O rompimento alemão com a política de restrição bélica de mais de meio século, decorrente dos traumas nazistas, ganha ainda maior simbolismo por estar o ministério das Relações Exteriores sob o comando dos Verdes, partido de forte DNA pacifista. "O ataque russo marca uma mudança de era", justificou o primeiro-ministro alemão. Tão sintomático quanto é a declaração conjunta dos presidentes de Bulgária, República Tcheca, Estônia, Letônia, Lituânia, Polônia, Eslováquia e Eslovênia pedindo a aceitação imediata, em processo excepcional, da Ucrânia na União Europeia. Países do leste europeu, notem novamente.

Putin faz questão de ignorar a necessidade de legitimidade para alterar ordem, como a própria teoria da transição de poder menciona. Sob qualquer ângulo, falta-lhe o atributo quando lança mão de uma guerra total e unilateral, iniciada à revelia do dispositivo de defesa coletiva da ONU. Periga ver-se isolado. Até a Pequim, que afirmara semanas atrás não haver limites para cooperação com Moscou, preferiu se abster na resolução que condenaria a invasão não fosse o veto da própria agressora. Crimes de guerra já estão sendo denunciados. 

Muitos têm interesses e responsabilidades, incluindo Zelensky, com suas posturas erráticas. Não há mocinhos e bandidos, é verdade, e há muitas dúvidas sobre as consequências da guerra. Há, entretanto, duas certezas. Uma é que apenas um ator é o agressor militar. Invadiu o país soberano que afirmara, dias atrás, nunca ter sido um "Estado verdadeiro". Diante de resistência inesperada, sinaliza aumentar o emprego da força e já lançou a cartada da dissuasão nuclear. A outra é que Morgenthau, Waltz e Mearsheimer, os "pais" do realismo, vibram, seja onde for. Não esqueçam, não há imperialismo do bem. 

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

O custo da ideologia em política externa

Por Murillo Victorazzo

Uma das (pouquíssimas) conquistas mais celebradas em política externa pelo bolsonarismo foi a condição de aliado-extra OTAN dada pela Casa Branca de Trump. O status, em tese, permite ao Brasil vantagens na comercialização de material bélico e cooperação em desenvolvimento de tecnologia de defesa com os EUA.

Agora, quando a aliança está no centro da mais séria guerra na Europa em muitas décadas, o Itamaraty evita condenar claramente a agressão russa. Pode-se argumentar que o Brasil está se apegando à tradicional equidistância.

Bom, sem falar das diferenças entre neutralidade e respeito ao direito internacional (previsto na Constituição), o problema é a contradição e suas consequências: vai ser difícil concretizar as benesses propagandeadas e ver aceitas as recentes propostas brasileiras de cooperação em inteligência e participação no centro de ciberdefesa.

Mais um sinal da disfuncionalidade do alinhamento automático a governantes, em vez de fazer política entre Estados. Menos personalismos e ideologias, mais estratégia.

terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

Jogada de alto risco para Putin

Por Murillo Victorazzo

Ao reconhecer a independência das províncias separatistas ucranianas de Donetsk e Luhansk, Putin fez, na segunda-feira, 21, um dos mais estarrecedores discursos de chefes de Estado nas últimas décadas. Foi além de contestar o governo estabelecido do país vizinho ou defender-se da expansão da OTAN em direção a suas fronteiras. De forma não tão sutil negou o direito de existência de um país soberano, em inquestionável rompimento com o direito internacional, a partir de interpretações históricas. 

"A Ucrânia nunca foi um Estado verdadeiro", disse em cadeia nacional de televisão. Uma frase com uma dedução implícita: se um país é artificial, não há motivo para respeitar sua soberania. Simpatia ideológica alguma deveria ser tentar negar a gravidade da afirmação. Remeteu-nos a líderes de séculos passados que evocavam para si o direito de (re)desenhar fronteiras sob argumentos que lhes convinham. Ou, guardadas as proporções, ao terrorismo do Hamas, para quem Israel não tem legitimidade como Estado, não importa dentro de quais fronteiras. A quebra de promessa feita três décadas atrás pela aliança transatlântica parece apenas ter aflorado sua concepção pan-russa de nacionalismo, inspirada no Império Russo.

A base teórica, contudo, vem de antes dos czares. Vem da Kiev Rus, a medieval federação eslava cujos territórios abrangiam o que hoje é Ucrânia, Bielorrússia e parte do oeste russo. Sua capital era a atual capital ucraniana, o que leva muito russos a considerarem Kiev o berço de seu país. Um nacionalismo calcado assim na união da Grande Rússia (Rússia), Pequena Rússia (Ucrânia) e Rússia Branca (Bielorrússia), com tradições culturais, linguísticas e o cristianismo ortodoxo em comum.

No revelador discurso, Putin voltou cem anos no tempo e aproveitou para reforçar sua política de desconstrução do legado histórico comunista. Disse, em tom crítico, que a "Ucrânia moderna" era resultado da "política bolchevique": "A Ucrânia de Vladimir Ilyich Lenin. Ele é seu autor e arquiteto".

As enfáticas palavras se referiam à autonomia, com delimitações de fronteiras, dada à Ucrânia soviética nos anos pós- Guerra Civil (1917-1922). No entendimento de Lênin, a maneira mais eficaz de atrair elites e camponeses ucranianos para o projeto de industrialização soviético. Alguns privilégios e a manutenção de terras privadas fizeram parte do pacote. O progresso social decorrente reforçaria o Estado multiétnico comunista em detrimento de sentimentos nacionalistas. Afinal, o marxismo prometia um mundo livre de nações. 

No entanto, a fim de defender o "socialismo em um país só", Stálin rompeu com o acordo e esmagou, política e militarmente, inclusive com extermínios em massa, minorias étnicas internas vistas como ameaças ao regime, à época uma gigantesca ilha cercada por imperialistas e capitalistas. Temia ele a cooptação delas por Japão, Alemanha ou Polônia. A consciência nacional de camponeses ucranianos era, para o ditador, ainda mais perigosa por haver na região expressiva minoria polonesa. Apenas com o fim da União Soviética, no início da década de 90, a Ucrânia se viu independente. Hoje o "imperialismo" norte-americano, na forma da OTAN, é a justificativa de Putin.

O líder russo elevou a pressão sobre Joe Biden e aliados. Calculou que os custos das sanções estabelecidas são, por hora pelo menos, menores que os benefícios. Sabe as restrições de um presidente sob freios e contrapesos institucionais, popularidade em queda e forte oposição interna, cenário oposto ao dele. Os Estados Unidos não entrarão em guerra direta em uma região que não é prioritária para sua segurança. Mais de dois terços dos norte-americanos são contra engajamento de porte semelhante. 

Mas Putin, embora visto como grande estrategista (o que de fato é) pode ter apostado alto demais. Até pouco tempo atrás, a OTAN parecia ser uma entidade moribunda, em meio a divisões e dúvidas quanto sua razão de ser. Trump fazia questão de mostrar seu desapreço por ela. Em constante briga com os aliados tradicionais dos Estado Unidos, reclamava que eles não cumpriam metas de investimento em defesa enquanto aumentavam acordos econômicos com a Rússia, como no caso do setor de energia alemão.

Afora as teorias mal esclarecidas e bastante contaminadas pela disputa eleitoral interna sobre sua relações com Trump, a debilidade da OTAN em muito explica por que o líder russo optou por não mostrar suas garras durante aquela gestão. O Kremlin não se via ameaçado. Tampouco é coincidência uma nova ofensiva em meio à curva ascendente do preço do petróleo, assim como em 2008 e 2014, nas invasões da Georgia e Crimeia. Quanto maior a receita acumulada, maior o colchão para amortecer o impacto de sanções.

Biden foi eleito prometendo reforçar os laços ocidentais desgastados pelo unilateralismo do antecessor. A atitude de Putin ajudou-lhe a concretizar o intento. O anúncio do congelamento do licenciamento do enorme gasoduto Nord Stream 2, motivo de dissenso interno no governo alemão até poucos dias atrás, é forte sinal de unidade da aliança. Metade do gás utilizado pela Alemanha vem da Rússia. O empreendimento reforçaria esses laços com a Europa toda. Países neutros como Suécia e Finlândia, esta vizinha à Rússia, viram reavivar em suas opiniões públicas o debate sobre adesão à organização norte-atlântica.

Putin reconheceu o território inteiro das duas repúblicas do Donbass (hoje os separatistas controlam apenas um terço) e fez três exigências a Kiev: renunciar à OTAN, reconhecer anexação Península da Crimeia e a desmilitarização de armas pesadas. Sim, a mesma Rússia que, em 1994, em troca da entrega do arsenal nuclear soviético na Ucrânia (o terceiro maior do mundo à época), prometeu, em acordo com Reino Unido e Estados Unidos, manter a integridade e soberania do país vizinho. As exigências não serão acatadas, pois seriam uma capitulação indireta. Crescem as chances de confronto militar entre os dois países e não limitado àquelas regiões.

Para o Kremlin, o ideal teria sido concretizar o Protocolo de Minsk, enterrado definitivamente após o reconhecimento de independência, ato justificado pela descrença em qualquer consenso diante das hesitações de Kiev. O vácuo legal estava, segundo Putin, permitindo o "genocídio" de cidadãos russos no leste. Foram cruciais para o esfarelamento do acordo a indefinição sobre o tipo de autonomia a ser dada a Donetsk e Luhansk. Uma Ucrânia federalizada, com essas regiões com poder de veto em assunto de defesa, jamais prosseguiria na adesão à OTAN. Contudo, agora, restringir a anexação a essas províncias, sob o eufemismo de "forças de paz", não apenas não interromperá como reforçará a contínua cooperação econômica e militar da Ucrânia com o Ocidente, mesmo que fora da organização.

"Conforme o tempo passar, Moscou terá um vizinho mais forte", adverte Felipe Loureiro, professor de Relações Internacionais da USP. E, acrescente-se, embora retalhado, sem mais separatistas e tropas estrangeiras em seu território, empecilhos a processos de adesão à OTAN. Os incentivos são, portanto, prosseguir até Kiev, ainda que se limite a derrubar o governo pró - Ocidente de Zelensky.  De qualquer maneira, seja ocupação ou deposição, a agressão tenderá a acarretar algum tipo de resistência civil no oeste, norte e capital, tragando possivelmente o pais para uma guerra civil. A Ucrânia pode tornar-se o Afeganistão de Putin.

Ao insinuar estar disposto a redesenhar fronteiras "artificiais", o autocrata russo arrisca-se a ver países que pertenceram ao Império Russo e outros vizinhos correrem para o colo de uma potência mais forte, no caso uma OTAN mais coesa. Tanto através de maior mobilização de tropas e equipamentos nos já integrantes como pedidos de adesão de outros.

Ao contrário do que, às vezes, aparenta-se ignorar, a candidatura não é fruto de coerção, mas sim uma opção estratégica de cada país, resultante de debates políticos internos, com, claro, influências de ambos os lados. Em 2019, por exemplo, a Ucrânia incluiu em sua Constituição, após ampla aprovação no Parlamento, o compromisso de "obter o pleno pertencimento à OTAN e à União Europeia". Gostemos ou não do perfil extremista de alguns parlamentares, uma decisão legítima, legal e soberana. Uma escolha em que traumas de subjugações passadas pesam muitas vezes.

Putin provavelmente conseguirá de algum modo afastar a Ucrânia do Ocidente. O preço, entretanto, poderá ser alto demais, elevando a tensão no leste europeu de forma permanente e com o inimigo reforçado não muito longe de suas portas, enquanto gere um conflito militar interno de proporções desconhecidas em seu quintal preferido. Considerados grandes estrategistas, Napoleão e Hitler apostaram alto demais coincidentemente também naquelas redondezas, ironicamente, porém, contra os russos. Arrependeram-se eternamente.

sábado, 19 de fevereiro de 2022

Que tal ouvirem os ucranianos?

Por Murillo Victorazzo

Tão ridículo e raso quanto o americanismo deslumbrado de setores da direita liberal brasileira é o antiamericanismo patológico de setores da esquerda. Beira a infantilidade. Não surpreende, portanto, o ocidentalismo visto na cobertura de boa parte da imprensa, comprando acriticamente a versão de Biden sobre a iminência de invasão da Ucrânia e o "papel desestabilizador" de Putin. 

Tampouco os elogios de militantes avermelhados às provocações do líder russo à Casa Branca. No caso atual, certo estaria ele em refutar a expansão do "imperialismo" em direção a suas fronteiras. Sim, o Putin nacionalista, que institucionalizou a homofobia, é ligado à Igreja Ortodoxa e baniu do calendário as comemorações do centenário da Revolução Russa. 

A irônica novidade é assistir a esses "progressistas" compartilharem tal simpatia com a direita bolsonarista, aquela que grita defender liberdade, até pouco tempo atrás exaltava o alinhamento automático ao "Ocidente" de Trump, mas agora aplaude o autocrata russo por seus "valores conservadores", em detrimento dos “globalistas” Biden, Macron e cia. 

Nesse show de incoerências e banalidades ideológicas, só não buscam entender a política interna da Ucrânia e o que a maioria de sua população deseja.

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

O meme como política externa

Por Murillo Victorazzo

Em 2010, no auge da imagem externa positiva do Brasil, então "potência emergente", Lula, aproveitando-se do bom relacionamento com Ahmadinejad, obteve, em conjunto com o líder turco, um esboço de acordo nuclear com o Irã. Segundo o Itamaraty, os EUA haviam estimulado a mediação brasileira. 

No Brasil, o acordo foi recebido com um misto de menosprezo, ceticismo e reprovação por oposição - entre eles os hoje governistas - e maioria da "grande imprensa" - todos críticos às boas relações de Lula com o autocrata persa e à política externa "megalomaníaca" (capa da Veja) de Celso Amorim. No exterior, Obama e seus aliados ocidentais ignoraram a proposta e impuseram sanções ao Irã. Falaram mais alto obviamente os recursos de poder norte-americano e europeus. 

Mas o bolsonarismo, que critica Maduro e se via como “defensor do Ocidente”, agora acha o máximo seu mito ser recebido pelo autocrata russo (aliado de Venezuela e Irã) e tenta difundir que o Brasil - independente de quem esteja no Planalto- tem condições de ter, sozinho, papel decisivo em algum conflito envolvendo potências, no caso a crise ucraniana e o SUPOSTO recuo de Putin. 

Para insinuar ideia tão estapafúrdia, usa seu tradicional modus operandi: a linguagem ambígua por natureza do "meme". Joga na rede, se colar entre os adestrados e desinformados, beleza. Caso contrário, o cínico diz que era apenas "zoação".

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

Não culpem a vítima

 Por Murillo Victorazzo

Uma das bases teórica do antissemitismo nazista talvez seja umas das primeiras “fake news” da História: os Protocolos dos Sábios de Sião, falso texto produzido no final do sec XIX por grupos ligados ao czar russo. No livro - distorções de um congresso religioso - haveria as provas do plano judeu de dominar o mundo.

Na Alemanha, foi publicado no final da I Guerra Mundial, momento em crescia o sentimento de humilhação entre os alemães. Entre seu leitores, Hitler, para quem o judaísmo, assim, seria o responsável pelos males do país:  tanto o capitalismo liberal ( “banqueiros”, “mídia”) como o socialismo/comunismo (além de Marx, Trotsky e outros dirigentes tinham ascendência judaica). 

Afirmar que a repercussão do caso Monark deveu-se porque “judeus têm muito poder” é, portanto, reverberar, de certa forma, o antissemitismo. Se chorumes sobre racismo (contra pretos) e homofobia ditos recentemente não tiveram o mesmo resultado, foi porque esse país não se olha no espelho, não quer desnaturalizar seus males estruturais, cujos sintomas imageticamente mais sutis ajudam os sofismas do preconceituoso e suas indignações seletivas. Diz mais sobre o Brasil como nação. 

Os alemães sentem e difundem a vergonha de seu passado. O nazismo, que perseguiu também outras minorias, é a política de desumanização de grupos raciais (vistos como ameaça ou inferioridade) mais escancarada do séc. XX mundial. Não culpem a vítima.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2022

Olavão e o bolsonarismo, o capítulo final

 Por Wilson Gomes* ( Revista Cult, 28/01/2022)

Nesta semana morreu pela última vez Olavo de Carvalho. Já havia sido dado por morto algumas vezes, inclusive politicamente, mas esta foi a derradeira. Morreu “por cima”, embora em evidente decrepitude, pois poucos ideólogos tiveram a fortuna de falecer enquanto seus alunos e seguidores assentavam-se no trono ou se espalhavam pela corte como vencedores.

Há de ser por isso que foi objeto de uma das raras manifestações de pesar emanadas pelo presidente da República, que decretou um dia de luto oficial e declarou que havia morrido um gigante na luta pela liberdade e um farol para os brasileiros. Todos sabem o quanto Bolsonaro e o bolsonarismo lhe devem, mas essa relação era complicada.

De uma maneira paradoxal, Olavo de Carvalho foi efetivamente um sujeito brilhante, a começar pela habilidade de autopromoção. Um homem que, a despeito de ser versado apenas em astrologia e autoindulgência, conseguiu convencer milhões de adultos, dentre os quais uma dúzia de pessoas razoavelmente inteligentes, de que era um pensador profundo e original.

Não era. Era um leitor tendencioso, superficial e de interpretações forçadas do pensamento alheio, e, sobretudo, era um escritor de pensamento confuso, raso e contraditório que citava muito e assimilava nada. Era basicamente um autodidata, portanto, sem formação consistente no sentido estrito do termo, que escolhia as obras que lia segundo suas intenções beligerantes, e as lia apenas para confirmar o seu ponto de vista ou para refutar o que se chocava com suas crenças. Nunca para realmente entendê-las.

Seus livros, que os seus leitores e alunos consideravam uma obra filosófica, consistiam em uma constelação de disparates, erros grosseiros e interpretações distorcidas, capazes de enfurecer qualquer especialista nas obras que ele citava. Olavo estava para a filosofia como um auxiliar de pedreiro para a engenharia civil, as intenções são as mesmas, mas há alguma diferença no acúmulo e manejo do conhecimento.

Por outro lado, escrevia e falava como um pregador que conhecia bem o coração do seu auditório e sabia para onde levá-lo. Sobretudo porque dele se acercavam outros autodidatas, gente sem formação nem discernimento, aquela típica população em que o sujeito nem é muito estúpido nem muito inteligente, até se vira com ideias e leituras, mas é incapaz de uma interpretação profunda e de perceber contradições e falácias. Nem tem instrumentos intelectuais para contestar o mestre. Por isso a anedota corrente, atribuída a Ruy Castro, não sei se é verdade, de que Olavo era considerado um imbecil pelos filósofos e um filósofo pelos imbecis. Assino embaixo da primeira parte.

Por mais de 30 anos, Olavo foi uma espécie de napoleão de hospício: alucinado, preso em seus devaneios e com delírios de poder. Considerava-se imenso e o repetia com despudor. Mas foi um napoleão que conseguiu convencer todo o sanatório, médicos e enfermeiros inclusive, de que era o próprio Bonaparte. Olavo suspeitava que era o Deus Optimus Maximus, seus seguidores têm certeza disso. Sorte a dele, pois como se diz naquele ditado romano, beati monoculi in terra caecorum.

Por isso mesmo, foi tão influente. Olavão teve o mérito de coletar todos os delírios da direita norte-americana, empacotá-los de maneira atraente para os conservadores brasileiros, dar-lhes um verniz pretensamente intelectual, com o famoso truque da chuva de citações, como se decorressem de investigações profundas e de reflexões densas e originais. Com isso, o maluco à cata de uma causa, o conservador complexado que se orientava por sentimentos reacionários, mas não tinha argumentos para sustentá-los, o fanático fundamentalista político que precisava situar o seu ódio em algum projeto existencial, o wannabe intelectual carente de um mestre, toda essa gente passou a ter um eixo, uma agenda, um conjunto de crenças que estruturavam minimamente a nebulosa de sentimentos e intuições que habitavam.

Esse foi um papel exercido de forma magnífica por Olavão, que representou muito bem o personagem do profeta destemido e desbocado, afrontoso e planejadamente desagradável, cujo estilo era baseado no insulto, no insistente autoelogio e na degradação dos adversários. A polêmica na sua forma mais vulgar, a da briga de rua, do vale-tudo, da difamação do adversário, era base do seu estilo. Olavão era o rei do ad hominem, o príncipe do xingamento, o imperador dos impropérios. E ai de quem fosse por ele transferido do catálogo de seguidores e aliados para a caixa dos ingratos, traidores e detratores, tratado doravante por apelidos degradantes e objeto dos ataques e da fúria do mestre que os excomungara.

Por outro lado, Olavo de Carvalho antecipou em mais de uma década a transformação digital da pregação e da discussão política. Quando os intelectuais brasileiros consideravam “a internet” uma coisa elitista, sem alcance e esvaziada de sentido, Olavão já estava fazendo discípulos e aliciando para os seus cursos online no Orkut. Pelo menos uma década antes que a expressão “influenciador digital” aparecesse no jornalismo popular, Olavão já doutrinava no YouTube. Olavo plataformizou a formação de seguidores quando isso tudo ainda era mato.

Por fim, devo dizer que se engana, contudo, quem acha que o olavismo é igual ao bolsonarismo ou que exista uma continuidade entre uma coisa e outra. É certo que o olavismo precedeu em mais de duas décadas o bolsonarismo, é exato considerar que Olavo foi uma espécie de João Batista para Jair, mas entre os dois há continuidades, sim, mas muito mais descontinuidades.

Primeiro, o bolsonarismo é um movimento social e uma forma de militância, o olavismo é uma ideologia ou, para não lhe conceder mais do que merece, um conjunto de premissas ideológicas que vertebrou o bolsonarismo. Se é demais dizer que moldou o pensamento bolsonarista (o bolsonarismo dificilmente pode ser acusado de pensar), pelo menos lhe deu os slogans, as palavras-chaves, as figuras do imaginário e uns scripts fundamentais para usar nas suas histórias e nos complôs que imagina. Sem falar na inspiração para a afronta, para uma atitude beligerante perpétua, para transformar todos os críticos em comunistas, para ganhar discussões sem ter razão, à base de ofensas, palavrões e acusações.

Segundo, mesmo quando o olavismo conseguiu se institucionalizar, com olavistas ocupando, por exemplo, postos-chaves nos Ministérios da Educação ou das Relações Exteriores, isso durou pouco, pois não resistiu ao conflito com outras forças políticas que competem no interior do bolsonarismo, como os militares e os partidos fisiológicos de direita. Logo, logo, o “núcleo ideológico” do governo, o olavismo institucional, foi abandonado.

Por isso mesmo é que Olavão morreu brigado com Bolsonaro. Ele não só já não era mais necessário ao governo, como havia se transformado em um estorvo para os Bolsonaros, com seu ego imenso para o qual eles tudo lhe deviam e não pagavam como era de se esperar, com a sua enorme capacidade de fogo cerrado contra quem há pouco era amigo, com a sua habilidade para procurar brigas e fazer inimigos.

Terceiro, Olavo era de certo modo muito mais radical que Jair. Por seu desejo expresso, isso aqui já era para ser uma ditadura militar faz tempo, com esquerda fuzilada, prisão e tortura de opositor. Ele achava os militares uns frouxos e Bolsonaro um incapaz, além de pouco inteligente, ambos por não terem radicalizado a conquista do poder pela direita conservadora. É que Olavo, diferentemente de Bolsonaro e dos militares, vivia perenemente no mundo da vontade e da representação. Tinha, portanto, a liberdade de vociferar o que quer que lhe passasse pela cabeça. Cabeça esta que morreu sem jamais ter sido visitada por qualquer ideia democrática, republicana ou liberal.

Por fim, Olavo desprezava a inteligência de Bolsonaro e dos bolsonaristas. Achava-os incapazes e estúpidos e repetia isso toda a vez que não se sentia reconhecido ou recompensado. Quanto a isso… bem, sobre isso não há dúvida, tenho que concordar, enfim, com os seus discípulos: Olavo tem razão.


* Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas.