Por Murillo Victorazzo
Superação. A palavra, que, no esporte, nos remete à quebra de
recordes e à desafios vencidos, anda em voga no Flamengo. Mas, para a
infelicidade de sua imensa torcida, nada tem a ver com desempenhos
louváveis do time em campo. Remete-nos, muito pelo contrário, à insuperável capacidade da atual
diretoria de ultrapassar a barreira do ridículo a cada crise enfrentada. O poço do patético parece não ter
fundo por lá.
Especialmente desde o início da pré-temporada, em janeiro passado, a Gávea vem nos dando exemplos de como se superar em
incompetência e desleixo financeiro e profissional.
Vem, por consequência, também nos ensinando com clareza como a bagunça fora das
quatro linhas se reflete dentro delas. A tragicômica eliminação na primeira fase
da Libertadores é o mais puro retrato do pastelão protagonizado pela trupe de dona Patrícia
Amorim.
O auge -até agora- foi o caso Ronaldinho Gaúcho. A presidente e seus asseclas
conseguiram permitir que o indisciplinado e cínico jogador saísse da Gávea
por iniciativa própria. Ao, lenientemente, passar a mão em sua cabeça após as inúmeras
demonstrações de falta de respeito com os companheiros de time e torcida, ao
mesmo tempo em que não lhe pagava parcela do acordado, deu-lhe o álibi perfeito
para justificar suas molecagens e conseguir nos tribunais o fim do seu vínculo com
o clube.
Se o episódio em si já era reprovável, a maneira como a diretoria reagiu a ele foi
ainda pior. Na ânsia de tentar se explicar e dar o troco, Patrícia deu a torcida mais
motivos para execrá-la. Divulgou um vídeo que, se, por um lado, mostrava a
indisciplina do jogador, por outro, comprovava que Vanderley Luxemburgo, então treinador,
tinha razão ao pedir alguma sanção contra o pseudo-atleta.
À época, os mesmos cartolas se apressaram a negar o fato, fragilizando a
autoridade de Luxemburgo, que, logo depois, veio, ele sim, a receber o cartão vermelho. Terminaram por tornar certeza o que se suspeitava há meses: Luxemburgo acabou caindo não por seus inúmeros
erros, mas por um de seus poucos acertos. Não resistiu ao bater de frente com o ex- queridinho e
hoje inimigo figadal da trupe. Este, aliás, nunca precisou ficar sem receber para mostrar sua índole. Seu histórico no Barcelona e Milan nos diz tudo.
Mas, com fôlego de ótima nadadora que foi, Patrícia consegue superação sobre
superação dentro de um mesmo episódio. Pena que no pior sentido possível. Seu
vice-presidente Jurídico, Rafael De Piro, tornou-se figurinha constante nos
jornais para bravatear "tiros de canhão" contra o
ex-intocável. Alardeou, assim, um exame de sangue que provaria o estado alcoolizado de
Ronaldinho antes de um treino. Não bastasse a mesma incoerência de admitir o
que desmentira tempos atrás, a revelação serviu para, uma semana depois, o
nobre advogado galgar mais um andar no pódio dos caras de pau.
Perdido, primeiro revelou que o exame não havia sido encontrado nos arquivos
do clube. Depois, diante da
negativa indignada do doutor José Luis Runco sobre a existência do exame, teve que confessar "ter se enganado". Não satisfeitos em perder o pouco de credibilidade que lhes restavam (se
é que ainda havia alguma), conseguiram desmerecer e entrar em conflito com um dos poucos setores realmente
profissionais da Gávea, o Departamento Médico. Um misto de incompetência e
irresponsabilidade inaceitável para quem deseja ficar mais três anos no clube
mais popular do país. E com o agravante, dessa vez, de se tratar de estratégia de defesa na Justiça, em um caso que pode lesar em R$ 40 milhões os cofres rubro-negros.
O atributo mais importante de um homem é a dignidade. Erros
acontecem, é humano. Pode-se ou não relevar, dependendo da frequência e
gravidade. Mas falta de vergonha na cara é indesculpável, sendo a autocrítica ainda mais importante do que qualquer juízo feito por terceiros. Quando se é um dirigente, seja lá do
ramo que for, o grau de exigência deve ser ainda maior. Pelo menos, deveria, porque atualmente, nos salões da Gávea, não há espaço para o medo do ridículo. A atual diretoria do Flamengo
aperfeiçoa diariamente a arte da total ausência de respeito a si
próprio.
A falta de competência e de consideração
com os associados e torcedores não surpreende mais. Dessa turma, os flamenguistas não esperam mais nada. Após tantos atos e declarações levianos, o que intriga é saber se Patrícia e seus vice-presidentes, em especial De Piro e o de Finanças, Michel Levy,
conseguem encarar o espelho. Aparentam não tê-los em casa; e se os têm,
neles não refletem brio algum. Senão, das duas uma: ou Patrícia teria demitido
ontem imediatamente De Piro ou ele mesmo teria pedido seu afastamento.
Na novela das omissões da presidente, o capítulo Ronaldinho foi apenas mais um. Zico que o diga. Esperar sua renúncia é ilusão, até mesmo porque seu mandato termina daqui a seis meses. Movimentar-se para evitar sua reeleição poderia ser a esperança de um futuro melhor para o Flamengo, com dirigentes, no mínimo, que prezem a honradez e tenham comando. As perspectivas, contudo, são desalentadoras, se a opção oposicionista se resumir a um nome ungido da união de Márcio Braga e Kléber Leite, como visto na reunião no Teatro Leblon, na última segunda-feira.
Caso consiga derrotar Patrícia nas urnas, o que esperar de um presidente eleito sob as bênçãos desses dois nomes? A resposta, apenas o futuro poderá nos dar. Por hora, só temos a certeza de que o tabuleiro político da Gávea continua sendo de uma mediocridade tão vexatória quanto dramática. E que, além de decepção, foi uma triste ironia conhecer o sentido negativo de superação justamente através de alguém que, como atleta, quebrou inúmeros recordes sul-americanos com profissionalismo.