quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Sobre a imparcialidade do jornalista

Por Ricardo Noblat (Blog do Noblat, Globo Online, 30/12/2010)

Este é um dos mitos cultivados há mais de século: jornalista é imparcial. Ou tem obrigação de ser. Ninguém é imparcial. Porque você é obrigado a fazer escolhas a todo instante. E ao fazer toma partido. Quando destaco mais uma notícia do que outra, faço uma escolha. Tomo partido. Quando opino a respeito de qualquer coisa, tomo partido.

Cobre-se do jornalista honestidade. Não posso inventar nada. Não posso mentir. Não posso manipular fatos. Mas posso errar - como qualquer um pode. E quando erro devo admitir o erro e me desculpar por ele. Cobre-se do jornalista independência. Não posso omitir informações ou subvertê-las para servir aos meus interesses ou a interesses alheios.

Se me limito a dar uma notícia, devo ser objetivo. Cabe aos leitores tirarem suas próprias conclusões. Se comento uma notícia ou analiso um fato, ofereço minhas próprias conclusões. Cabe aos leitores refletir a respeito, concordar, divergir ou se manter indiferente. Jornalista é um incômodo. E é assim que deve ser. Se não for não é jornalista.

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

O legado de Lula

Por Ricardo Noblat (O Globo, 27/12/10)

Na próxima sexta-feira sairá de cena o governo de um único protagonista! Entrará o governo dos coadjuvantes do governo passado. O período de oito anos de Lula foi construído sob medida para que ele, Lula, brilhasse sozinho. Deu certo. Nada indica que a história se repetirá no período de quatro ou de oito anos da presidente Dilma Rousseff.

Talvez seja melhor assim. O presidencialismo entre nós concentra poderes excessivos nas mãos de uma só pessoa. E isso não é bom para uma democracia que atravessa pela primeira vez, dentro da normalidade, três sucessões consecutivas. Fernando Henrique recebeu a faixa presidencial de Itamar e a repassou a Lula, que a repassará a Dilma.

O primeiro momento de Lula como presidente da República foi de natural perplexidade. Seria possível a um ex-pau-de-arara e ex-favelado, que passara fome e sequer completara os estudos, acabar eleito para governar seu país? Depois de ter sido derrotado três vezes, Lula custou a acreditar.

O segundo momento foi de pavor. Coincidiu com o escândalo do mensalão, que levou Lula, em julho de 2005, deprimido por uns tragos tomados a mais, a falar em renúncia ao mandato. Soubera que o publicitário Marcos Valério, um dos operadores do pagamento de propinas a deputados, ameaçava contar tudo.

O então ministro José Dirceu, chefe da Casa Civil, foi acionado para negociar o silêncio de Valério e assim sossegar Lula. Teve êxito. Mas dali a mais um mês ou dois, obrigado a pedir demissão, reassumiu a vaga de deputado federal para ser cassado. Enfim, era preciso entregar alguma cabeça coroada para que Lula preservasse a sua.

O terceiro momento de Lula na presidência foi de esplendor. E de puro encantamento com ele mesmo. Reeleito em 2006, amparado por uma economia em expansão e idolatrado pela clientela dos programas sociais, passou a se comportar como um enviado de Deus. Ninguém mais do que ele alimentou o culto à própria imagem.

Por pouco não caiu na tentação de gastar parte de sua popularidade para vencer no Congresso a batalha por mais um mandato. Sondou a respeito governadores do PT e de outros partidos, além de auxiliares próximos. E aborreceu-se com alguns que se opuseram à idéia com veemência. Alô, alô, governador Jaques Wagner, da Bahia!

Está de saída porque não tem outro jeito. Mas deixa em seu lugar uma aliada fiel. Que a ele, unicamente a ele, deve sua eleição. E que ele espera lhe seja fiel até o último dos seus dias na presidência. Que dia será esse? Por ora, Dilma não faz idéia. Lula deve fazer, mas não conta a ninguém. Até porque pode mudar de idéia.

Lula abusa da credulidade dos brasileiros quando reescreve a história do país como se ela pudesse ser dividida em duas fases: antes dele e depois dele. Os desafetos de Lula incorrem no mesmo erro quando defendem a tese de que ele se limitou a dar continuidade à política herdada dos seus antecessores – além de ter tido muita sorte.

Nenhum presidente fez tanto pelos brasileiros mais pobres do que Lula – e esse será seu grande legado. Em oito anos de governo, o número de pobres foi reduzido a menos da metade. O programa Bolsa Família é uma invenção do governo anterior, eu sei. Mas foi com Lula que se expandiu e hoje atende a quase 13 milhões de famílias.

Quem elege os governantes numa democracia é o povo. Quem tem mais autoridade para julgá-los é ele. Lula foi tolerante e cúmplice com o desrespeito à moralidade pública? Foi. Mas nem isso o impediu de chegar ao fim do governo com a aprovação de 83% dos seus conterrâneos. Tamanho grau de aprovação é um equívoco? Bobagem!

É fato que o povo, só por deter a autoridade suprema numa democracia, não é necessariamente sábio. Mas aonde um regime de sábios, respeitando os direitos do povo, foi capaz de conduzi-lo a uma situação melhor? Recolha-se a São Bernardo do Campo, Lula! Tome uma por mim. E deixe Dilma acertar ou errar em paz.

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Quem tem boca vai a...

Por Murillo Victorazzo

Quem quer que seja, o governador do Rio de Janeiro terá sempre forte visibilidade nacional. Sendo bem avaliado, o destaque será então naturalmente ainda maior. Reeleito este ano com 66% dos votos válidos ainda no primeiro turno, Sérgio Cabral é um destes casos. Seu nome, porém, não ganhou as páginas dos jornais apenas por acertos de seu governo. O Brasil inteiro, nos últimos anos, conheceu uma outra faceta sua: a de um político que se envolve em polêmicas por, muitas vezes, não conseguir segurar sua língua nervosa.

Cabral tem tido seus passos seguidos de perto pelo PMDB, já de olho nas eleições de 2014. Os caciques da sigla o têm como uma de suas principais cartas na manga para projetos de poder futuro. Merecidamente, seu nome se impôs no tabuleiro da política nacional. Em um estado marcado por décadas de desgoverno, mostrou, pelo menos, que havia alguém no Palácio Guanabara estabelecendo direções.

Ainda que enfrentando denúncias de corrupção na área de saúde, de fisiologismo na relação com a Alerj, além de amizades e alianças suspeitas, Cabral tem marcas para mostrar. As UPAs, a conquista do investment grade para o estado, após sanear as finanças fluminenses, e, principalmente, sua política de segurança, com destaque para a implantação das UPPs, são as vitrines de seu governo responsáveis pela fácil e compreensível reeleição.

Com a garantia de mais quatro anos no poder estadual, Cabral conseguiu, em novembro, reverter um quadro desfavorável - que poderia queimar boa parte de seu prestígio - justamente na área mais elogiada de sua gestão: a segurança pública. As perigosas sequências de arrastões pela capital do estado e, posteriormente, de incêndios a ônibus e carros ordenados por traficantes foram a deixa, a gota d´água, para que ele e seu secretário José Mariano Beltrame, em resposta, precipitassem e alterassem suas estratégias na área.

A ocupação e libertação da Vila Cruzeiro e do Complexo do Alemão, principal bunker do tráfico de drogas no estado, através de uma bem sucedida parceria com as Forças Armadas, resgatou o otimismo dos fluminenses. Acontecimentos que, de início, poderiam fazê-lo perder popularidade - em especial, entre a classe média e alta - acabaram, no final, por  fortalecer a sensação de que o governo está no caminho certo. Basta andar pelas ruas do Rio para sentir o alto prestígio seu e de seu secretário.

Mas, talvez inebriado por essa lua de mel com o eleitorado, Cabral, nos últimos dias, deixou aflorar um lado seu que não combina muito com o perfil de um político experiente: a verborragia. Na ânsia de defender a legalização do aborto e dos jogos de azar, apelou para frases simplórias de efeito que, para muitos, não condizem com seu cargo.

Ao perguntar quem nunca "teve uma namoradinha que teve que abortar" e afirmar ser "demagogia" proibir jogos de azar no país, Cabral levantou contra si setores mais conservadores da sociedade. E até alguns dos que concordam com suas posições discordaram da maneira como elas foram expressadas e do reducionismo explícito de suas falas. Em um momento favorável a seu nome, ficou sob críticas após muitos meses de elogios.

Alguns podem dizer que sua sagacidade foi demonstrada pelo momento em que as declarações foram dadas. Ele não se exporia assim antes de 3 de outubro, diriam estes. Faz sentido. Cabral, provavelmente, não correria mesmo o risco de perder os votos destes setores, que sempre rejeitaram políticos como Fernando Gabeira, seu principal adversário no pleito passado. Mas a lembrança do vídeo no qual ele, político experiente, perde a compostura diante de um inocente garoto de 17 anos, a ponto de xingá-lo de "otário" e 'sacana", nos leva a crer que pensar bem antes de falar não está entre suas virtudes.

À mesma conclusão chegamos ao recordar o episódio no qual, em 2008, chamou de "vagabundos" e "safados" os médicos que faltaram a plantões no Hospital Getúlio Vargas. Ou, recentemente, quando, por precipitação, queimou o nome de seu secretário da Saúde, Sérgio Côrtes, na formação do ministério da presidente eleita, Dilma Rousseff. Ao anunciar o nome de Côrtes como próximo ministro da Saúde antes da confirmação pública de Dilma e sem conversar com seu partido, acabou rifando-o.

Destemperos verbais já causaram graves estragos a políticos promissores. O brigadeiro Eduardo Gomes morreu arrependido de ter dito, na campanha presidencial de 1945, que não precisava dos votos dos "marmiteiros". Em 2002, Ciro Gomes viu sua candidatura a Presidência em 2002 ir pelo ralo em muito por suas frases grosseiras e inoportunas.

Amigo de Cabral, o mesmo Ciro se vê agora em meio ao constrangimento de, caso aceite voltar a ser ministro, ter como chefe, na vice-presidência, Michel Temer. Na pré-campanha eleitoral deste ano, Ciro chamou Temer de "chefe da quadrilha" do PMDB, partido que seria um "ajuntamento de assaltantes".

O histórico do amigo deveria servir de exemplo ao governador, político em ascensão. Afinal, diz o ditado que quem tem boca vai a Roma. E, na política nacional, Roma tende a ser Brasília, mas pode acabar sendo também algum indesejado purgatório eleitoral, seja lá onde este for.

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Pista Social

Por Murillo Victorazzo (ISTOÉ, maio/2003)

Na década de 30, a Estrada da Gávea, na Zona Sul do Rio de Janeiro, era o circuito oficial da cidade e por lá passavam antigos campeões do automobilismo como o argentino Juan Manuel Fangio e o brasileiro Chico Landi. Mais de meio século depois, um campeão voltou ao local. Alan Hellmeister, 16 anos, considerado o piloto brasileiro revelação da Fórmula 3, levou o seu carro a Vila Olímpica da Rocinha para que as crianças e adolescentes da comunidade vissem de perto um pouco dessas máquinas que fascinam milhões de pessoas.

Mais jovem participante da Fórmula 3 e fã de Airton Senna e Michael Schumacher, Alan está em quinto lugar no Campeonato Sul Americano e tem em seu currículo o Campeonato Pan-Americano de 2000 de kart e o bi-campeonato Sul-Americano de 2001 da mesma categoria. Diante de uma garotada empolgada com a presença de um piloto profissional, embora muitos nem soubessem seu nome ou mesmo a nacionalidade, Alan entrou em seu carro e tirou fotos. "Quem sabe eu não vou ser um piloto quando crescer", brincou Jó de Oliveira, 11 anos.

Sob gritos de algumas meninas mais entusiasmadas, ouviu, por exemplo, perguntas sobre se ele não tinha medo de correr ou bater. “É meio estranho se sentir como alvo dessa criançada, mas é muito bom receber o carinho deles”, disse. A iniciativa de expor o carro numa área carente partiu do pai de Hellmeister, Mário, e tinha o objetivo de promover a Fórmula 3 ao lado de um trabalho social.

Para Hellmeister, o mais interessante foi subir uma favela e ver “tantas pessoas legais” e nenhum sinal da violência que é estampada nos jornais diariamente. Mário diz que escolheu o Instituto Rumo Certo após receber indicações de amigos sobre o local e verificar a seriedade do trabalho realizado lá. Criada há três anos, a instituição incentiva a formação social e esportiva de cerca de 1500 jovens de seis a 17 anos da favela da Rocinha e tem turmas de volei, futebol, basquete, natação, atletismo, judô e ginástica olímpica.

Hellmeister levou também 200 crianças do Instituto para acompanhar a 2ª Etapa da Fórmula 3 Sul-Americana, realizada no domingo 25 no Autódromo de Jacarepaguá. Escolhidas entre as mais disciplinadas, elas tiveram o privilégio de ver de perto a corrida e os boxes com direito a lanche e camisetas. Essa, aliás, não foi sua primeira campanha social. Mês passado, o piloto andou com seu carro pelas ruas de Avaré, interior de São Paulo, e distribuiu kits com camisas e bonés de sua equipe, a Amir Nasr Racing. Em troca, a população doou uma tonelada de alimentos para o programa Fome Zero. "É importante mostrar para essa garotada que o esporte pode ser um bom caminho para suas vidas", acredita.

Um universo antes do Big Bang?

Por Murillo Victorazzo (matéria produzida mas não publicada na ISTOÉ,2003)

Quem passou pela Urca, zona sul do Rio de Janeiro, na semana que passou, pôde ver centenas de estrangeiros com crachás no peito andando pelas ruas do bairro. Ao contrário do que vem logo à cabeça, não eram meros turistas querendo conhecer o Pão de Açúcar. Eram cientistas, físicos e astrônomos, de todos os cantos do mundo, que vieram ao Brasil para participar do X Encontro Marcel Grossman de Relatividade Geral.

 Cerca de 400 congressistas de 73 países, incluindo japoneses, norte-americanos e brasileiros, se dividiram em palestras nos auditórios do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF) para um dos mais importantes eventos internacionais sobre cosmologia - ciência que estuda a origem e evolução do universo. Realizado trienalmente, essa foi a primeira vez que o Encontro aconteceu no Brasil.

Jovens ou de cabelos brancos, vestindo de roupas sociais a camisetas e até sandálias, além de inseparáveis óculos na grande maioria, os “professores Pardais” estiveram por seis dias discutindo, em inglês, os novos estudos sobre o Big Bang. A falta de ostentação, que muitas vezes caracteriza os grandes Congressos mundiais, não impediu que novas idéias sobre o início do universo fossem apresentadas.

O físico Mário Novello, responsável pelo Comitê brasileiro do Encontro e diretor do CBPF, conta que a grande novidade seria o questionamento se o Big Bang foi realmente o começo de tudo. “Até a década de 70 e 80, não se discutia o que deu origem ao Big Bang. Ele foi o momento de condensação de tudo que existe no universo, mas não foi o ponto zero”, afirma, explicando que os cosmólogos estão se dedicando a fazer cenários teóricos que descrevam esse momento.

Ao contrário da teoria do Big Bang, que diz que volume do universo no início teria sido zero, o novo modelo apresentado por físicos como Novello mostra, em linhas gerais, que, antes de haver um universo que se expandiu com o passar do tempo, houve algum tipo de colapso. “Por que colapsou? Por que parou de colapsar e começou a expandir? Essas são as grandes questões que temos que estudar”, diz Novello.

O físico ressalta que é difícil descrever para um público leigo os resultados recém descobertos. O motivo seria as estruturas pouco convencionais dos corpos envolvidos. “Na cosmologia, você teve uma revolução tão fantástica que os cientistas fizeram com que suas teorias matemáticas fossem muito além do que a gente pode descrever na nossa linguagem convencional”.

Razões para romper

Por Fernando Rodrigues (Folha de S. Paulo, 12/12/10)

Desde que o mundo é mundo e política é política, aliados às vezes acabam se desentendendo. No micropolítica brasiliense, as apostas já estão abertas para tentar vaticinar quando Dilma Rousseff romperá com seu mentor, Luiz Inácio Lula da Silva.

Na oposição, vigora o raciocínio clássico e sem muita lógica: "É só uma questão de tempo". Entre os governistas e o crescente grupo já conhecido como dilmista, a avaliação é oposta, mas também desprovida de ciência: "O relacionamento deles será sempre amistoso; Dilma tem grande respeito por Lula".

Nem uma coisa nem outra. Tudo dependerá, fundamentalmente, de dois fatores. Primeiro, das pretensões político-eleitorais futuras de Lula e de Dilma. Se houver sobreposição, haverá rompimento. Segundo, do desempenho do país nos próximos quatro anos, sobretudo na economia. Ninguém gosta de ser sócio do malogro alheio.

O Brasil deve crescer 7,5% neste ano. Em 2011, dentro do governo, as previsões indicam algo entre 4% e 5%. Apesar da queda, o patamar será alto. Mas já se sabe que haverá mais inflação, o principal fator a minar o poder de compra das grandes massas -e a drenar na mesma proporção a popularidade do titular do Palácio do Planalto.

Sobre planos políticos futuros, nada indica um desejo orgânico de Lula para retornar à Presidência em 2014. Os sinais são de que pretende ter voos mais internacionais do que nacionais. Não parece haver, portanto, sobreposição entre seus interesses e os de Dilma.

Na economia, mesmo com as incertezas à frente, ninguém se arrisca a prever um completo fracasso para o Brasil em 2011. A prevalecer esse cenário de crescimento - ainda que com alguma inflação -, dificilmente a administração Dilma será reprovada de saída nessa área.

Tudo considerado, faltam indicadores provando um iminente rompimento entre Lula e Dilma. No futuro, quem sabe. Por ora, não.

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Vazamentos causam mais constrangimento que efeitos reais

Por Carlos Eduardo Lins da Silva (Folha de São Paulo, 03/12/2010)


As revelações sobre a relação bilateral Brasil-EUA vindas a público até agora graças ao trabalho do WikiLeaks causam mais constrangimentos a alguns personagens mencionados do que efeitos reais sobre ela. Assim como quando classificou as consequências da crise econômica mundial de 2008 sobre o Brasil como "marolinhas", o presidente Lula pode exagerar, mas não estar longe da verdade, ao chamar os documentos de diplomatas norte-americanos sobre o país que apareceram nesta semana como "insignificâncias".

Ninguém que acompanhe bem o diálogo entre os dois países desconhece que desde 2003 bolsões de retórica antiamericana que sempre existiram no Itamaraty ganharam espaço e que isso causa algum desconforto no Departamento de Estado. Mas também todos sabem que em nenhum momento os pontos essenciais que unem as duas nações estiveram ameaçados de ruptura.

A tradição da diplomacia brasileira tem sido, desde o barão do Rio Branco, de manter em relação aos EUA posição de relativa autonomia e de preservação estratégica de interesses. Raros foram os períodos em que essa linha se alterou dramaticamente no caminho ou do alinhamento automático (governos Dutra e Castello Branco) ou de níveis de tensão mais altos (governos Jânio/Jango e Geisel). Na administração Lula, apesar de arroubos de discurso aqui e acolá, o padrão básico se manteve.

É natural e público que haja divergências internas no governo brasileiro sobre o caráter da relação do país com os EUA. Também é mais do que esperável que as autoridades americanas tratem com mais simpatia as brasileiras que veem seu país por uma ótica mais favorável.

Pode não ser prudente nem aconselhável que integrantes do primeiro escalão da administração do país sejam excessivamente cândidos com representantes de outra nação, mas isso nem sempre se consegue evitar. Igualmente, não há como impedir que diplomatas estrangeiros cumpram o dever de mandar a seus superiores informações, análises e opiniões sobre os acontecimentos no país em que estão trabalhando. É para isso que eles são pagos.

É possível supor que de agora em diante os diplomatas americanos sejam mais cautelosos em seus relatos e talvez mesmo em suas conversas no Brasil. Mas nada indica que algo de grave para a relação bilateral possa advir desses vazamentos. Ao menos por enquanto. Pode ser que quando se divulgue o conteúdo dos despachos da embaixada americana em Brasília sobre os movimentos do Brasil em relação ao programa nuclear iraniano no ano passado, o tom das avaliações seja mais intenso. Mas dificilmente a ponto de causar danos graves à relação.

sábado, 27 de novembro de 2010

A timidez sobe os palcos

Por Murillo Victorazzo (matéria produzida, mas não publicada, na ISTOÉ, 2003)

Eles são famosos, vivem do seu talento e imagem. Dar autógrafos e entrevistas faz parte de seus cotidianos, mas este estilo de vida, que para o público poderia significar o mesmo que ser extrovertido, nem sempre é a realidade. Quando se pensa em tímidos famosos, não há como não lembrar do nome de Paulinho da Viola. Conhecido como o “Príncipe do Samba”, ele é o oposto do artista que lida com a mídia com naturalidade. “Já fui muito mais tímido. Superei a timidez na marra.”, conta.

Paulinho é daquelas pessoas que têm aversão a tumulto. “A última vez que fui à Portela não conseguia falar com ninguém, me senti muito mal.” Sua personalidade se reflete até na preferência de uma samba em ritmo mais lento, o que, aliás, já foi motivo de discussões com sua escola de samba: “Prefiro um samba mais lento. Se o pessoal da Portela diz que assim não dá para para passar o desfile, prefiro nem ir, vou para casa dormir”.

Criado em uma família muito reservada, Paulinho foi educado de forma muito conservadora, o que, segundo ele, incentivou sua timidez. “Fui um menino muito sozinho e era no porão da minha casa onde me sentia mais seguro. Descobri que existe um monte de gente assim, que se esconde em um buraco e fica fantasiando. Gosto de ver uma criança falando sozinha, porque sei que ela está em seu próprio mundo”, revela. O compositor crê que o tímido tem problemas para “romper com tudo que o faz sofrer”: “A timidez muitas vezes afasta as oportunidades. Tive que fazer um esforço enorme para acabar com isso.”

Quem acompanhou as cenas de nudez e a sensualidade da personagem Anita em A Presença de Anita não poderia imaginar que a timidez fosse uma das características da atriz Mel Lisboa. Dona de um temperamento introvertido, Mel costuma dizer que é uma “tímida extrovertida” ou que tem “uma timidez localizada”, porque, segundo ela, só em certas situações fica inibida. “Eu me retraio diante de pessoas desconhecidas. Posso até parecer extrovertida, mas, se comentam sobre mim, morro de vergonha”, confessa.

A convivência com outros artistas e famosos não a impede de “sentir um frio na barriga” quando encontra alguém que admire muito. “Fico sem graça de ir falar com a pessoa e, depois, me arrependo. Continuo assim, mesmo estando nesse meio.” Por incrível que pareça, Mel fica intimidada quando se vê diante de uma máquina fotográfica. “Foto é um ponto fraco meu”, brinca. Apesar deste temperamento, que considera “saudável”, nunca a atrapalhou em sua profissão, jamais pensou em desistir de ser atriz: “Minha timidez nunca foi grave o suficiente para ter me impedido de atuar ou ter me desestimulado no início da carreira”.

A timidez de Mel pode ser medida pela resistência em expor seu corpo. Em contraste com sua Anita, ela costuma usar roupas mais discretas e fechadas. “Acho que usar mini-saia é uma atitude muito ousada”, diz. Esse modo de se vestir pode parecer contraditório para quem ficou nua para milhões de pessoas na televisão. Para Mel, porém, ao entrar em cena, a situação é totalmente diferente. “Quando começo a gravar, a timidez não vem, porque o personagem é uma coisa e a atriz, outra. Além disso, a equipe que fazia a minissérie me ajudava muito ao deixar o ambiente mais agradável. Se fosse no teatro, talvez a situação fosse outra. No palco, as coisas são imprevisíveis”, afirma.

Mel gosta de fazer análise para discutir, entre outros assuntos, a sua timidez. “Mas nada relacionado diretamente a possíveis problemas que meu temperamento pudesse causar no trabalho”, ressalva. Em tempos em que as pessoas fazem de tudo para aparecer na mídia, ela se orgulha do seu modo de ser. “Mesmo que a gente não queira, a vida de atriz é tão exposta que é bom se preservar. Se eu forçar aparecer, posso perder o controle. É necessário o contato com a imprensa, mas não preciso ligar para dizer que meu namoro acabou”, ironiza, teorizando que o tímido já nasce com a vantagem de nunca pecar por excesso. “Em boca fechada, não entra mosquito”, conclui, rindo.

Outro artista que está entre aqueles que vão de encontro à essa época de superexposição na mídia é Rodrigo Santoro, o Diogo da novela Mulheres Apaixonadas. Um dos atores mais visados e considerado o galã do momento, Rodrigo, dentro do que sua carreira permite, não curte o modo Big Brother de ser, embora não tenha certeza se pode ser incluído na galeria dos tímidos famosos.  “Sou uma pessoa calma. Fui criado no interior, me acostumando aos poucos com o oba-oba da profissão. Nunca curti muito ficar me expondo, mas não sei se isso é o que os especialistas dizem ser tímido. Talvez eu seja uma pessoa discreta”.

 Ele justifica sua opinião dizendo que seu modo de ser nunca foi um obstáculo em sua vida e nem precisou de ajuda de algum especialista. “Tanto que virei ator”, brinca. Para Rodrigo, não há vantagem ou desvantagem em ter esse temperamento. “Cada um tem sua personalidade e toca a profissão da maneira que acha melhor.”

O psicanalista Luis Alberto Py não acredita em atores realmente tímidos. “Todo mundo se acha pelo menos um pouco tímido. A grande maioria dos artistas que dizem ser assim não sabe o que é timidez.”, diz, ressaltando que seria insuportável para este artista encarar o público: “Um tímido querer viver em cima do palco seria um contra-senso. Creio mais em uma personalidade discreta, que privilegie sua privacidade.” Py, no entanto, faz questão de separar esses artistas de compositores, como Paulinho da Viola. “Ele dá a impressão de realmente ser tímido, mas esse caso é diferente. Ele não vive no palco. Quando tem que enfrentar o público para lançar um disco, ele vai lá e pronto. Não é uma rotina.”

Para Py, timidez é um sinônimo de falta de familiaridade. “O tímido fica amedrontado, acovardado, diante de coisas que não conhece. Muitas vezes, as pessoas com uma agressividade inata maior acabam sendo tímidas, porque, como sempre olhamos os outros da maneira que nos vemos, a timidez passa a ser um modo de defesa da agressividade alheia”, explica, acrescentando que essa inibição é algo próprio de uma criança que foi educada com tudo sendo considerado perigoso. “Mas há aqueles que já nascem com isso também”, ressalva.

Tubarões a vista

Por Murillo Victorazzo (matéria publicada na ISTOÉ, maio/2003)
 
Tubarões Banhistas se refrescando em um mar calmo, com poucas ondas, numa temperatura de cerca de 30 graus. No Rio de Janeiro, nada disso seria anormal, se não fosse a aparição de um polêmico personagem: o tubarão. Desde o fim de semana passado, quatro tubarões foram vistos na costa da cidade. A população, sob orientação do Grupamento Marítimo do Corpo de Bombeiros (G-Mar), começou a evitar o banho de mar depois da arrebentação. Mas será que há motivo para tamanha preocupação?

O biólogo Ulisses Leite Gomes, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), afirma não haver razão para pânico. Segundo ele, o que aconteceu nos últimos dias é algo natural e a insegurança das pessoas se deve ao desconhecimento do assunto. “Esses tubarões vivem aqui. Este é seu habitat natural.” Ulisses conta que não é a primeira vez nem será a última que esses animais serão vistos nessas áreas. “Os pescadores de Guaratiba (zona Oeste) devem estar rindo dessa situação. Eles pescam tubarões todos os dias”.

Um tubarão de 2 metros e meio e 250 quilos encontrado na praia da Joatinga chegou a ser morto a pauladas e pontapés pelos banhistas — sem qualquer motivo, de acordo com o biólogo. “ Pelas fotos que eu vi, o animal era da espécie mangona, que se alimenta só de peixes.” Os outros tubarões, encontrados nas praias de Grumari e Guaratiba, eram da espécie anequim e também são inofensivos. A razão para estarem sendo vistos tão perto da praia é o costume de se aproximarem em busca de alimentos. “O mangona nessa época sempre migra para o norte, após sua fecundação, para soltar seus filhotes”, explica.

O fato que mais alarmou os cariocas foi a mordida sofrida por um surfista de 16 anos na praia de Copacabana. Ele levou seis pontos em dois dedos da mão direta. O biólogo Otto Bismarck, professor da Unesp, em São Vicente (SP), diz que o adolescente foi realmente alvo de um ataque de tubarão e que o animal não era anequim nem mangona. “Foi um tubarão pequeno, de cerca de 1,2 metro. Não dá pra dizer o tipo, mas não era como os outros encontrados”.

Otto, porém, afirma não haver motivo para pânico. "O que houve foi algo ocasional. O garoto estava sozinho no mar, o tubarão o viu alí e foi provar o que era. Por isso, só a mordida na mão”, diz,  acrescentando que os tubarões só atacam quando a pessoa está sozinha no mar: “Se fosse uma costa com históricos de tubarões, como Recife, deveríamos ter mais preocupação. Mas no Rio de Janeiro, até agora, não há razão para isso. Foi um fato isolado”.

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Obama: o homem certo na hora e no lugar errados?

Por Murillo Victorazzo

Os meses de outubro e novembro foram bastante reveladores sobre a forma de ver o mundo da sociedade norte-americana. Tanto a derrota dos democratas nas eleições legislativas e estaduais como a repercussão do vazamento  de documentos secretos sobre a Guerra do Iraque pelo site WikiLeaks nos deixam a sensação de que o pensamento médio do Tio Sam não se modificou tão significativamente como imaginado - e desejado por muitos - após a eleição de Barack Obama, em 2008.

A vitória de um negro criado na Ásia, com ascendência muçulmana e ideias mais cosmopolitas e liberais, no sentido norte-americano do termo, parecia ser  refletir o enfraquecimento do conservadorismo, fortemente hegemônico nas últimas décadas no país. A tragédia da gestão Bush teria levado a população não só à bancarrota, mas também a um processo de realinhamento ideológico. Ao elegerem um político de roupagem e conteúdo novos, estariam dispostos a ver o mundo e a sua relação com ele de outra maneira.

Quase dois anos depois, porém, a forte oposição interna a Obama deixa à mostra o grau de otimismo inserido naquelas análises. Mais do que isto,  ao contrário do suposto, são concretos os sinais de recrudescimento da direita naquela sociedade. Certas ações do democrata, vistas até como "socialistas" pelos adeptos desta corrente, parecem ter servido, se não para expandi-la, para mobilizá-los.

Não é a derrota nas eleições de novembro em si que confirma esta ebulição. Como em qualquer outro país, foi essencialmente a debilidade da economia que derrotou Obama. Embora a crise tenha sido estourada no governo anterior, a lenta recuperação, após os bilionários aportes financeiros a empresas e bancos, indigna a população. Lá como cá, ela quer resultados rápidos. Não há espaço para culpar antecessores ou pedir paciência, na espera dos esperados efeitos das medidas implementadas.

Obama sabia que a anemia econômica do país tinha tudo para prejudicar a oxigenação pretendida na Casa Branca. Mas, para a parte do eleitorado mais liberal e centrista, sua figura renovadora estimulou esperanças desproporcionalmente maiores do que a realidade. Seus discursos, já como presidente, nos quais admitia uma situação pior do que a imaginada foram como baldes de água gelada para estes setores.

Por outro lado, os eleitores republicanos, que já não simpatizavam com Obama, não se furtaram em logo demonstrar seu regozijo com as dificuldades enfrentadas por ele. E enfureceram-se com a aprovação da reforma do sistema de saúde. Promessa de campanha e provavelmente a maior vitória do democrata nesses dois anos, a reforma foi satanizada pelos conservadores. Seria a ponta do iceberg socialista. Assim foi vista também reformas que reforçaram a regulamentação do sistema financeiro. Na cabeça deles, uma maior ação do Estado é um tiro nos ideais libertários dos Founding Fathers.

A este cenário, juntou-se as negociações para fechar o presídio de Guantánamo, a pressão para Israel congelar os assentamentos na Cisjordânia, o início de reaproximação com a Rússia e os primeiros passos para a retirada do Iraque. Se, por um lado, a guinada na política externa não foi tão aguda como esperada pelos democratas mais à esquerda (em muito devido exatamente ao complicado cenário interno), tais ações são vistas como "ameaça à segurança nacional". Ainda que o tema seja sensível a todo norte-americano, os conservadores conseguem interpretá-lo de modo ainda mais obtuso.

Antipática a Obama desde antes de sua eleição, esta parcela da sociedade norte-americana insinua dizer que, outro presidente, talvez, merecesse complacência diante da horrível conjuntura. Mas ele, o negro "muçulmano" liberal, jamais! Com este, que se diz diferente, a tolerância é zero. Não é difícil de perceber como o conservadorismo impera no imaginário médio do país, excetuando os estados da costa oeste e nordeste, como Califórnia, Nova York e Massachusets. Basta lembrar que o candidato republicano Jonh McCain, mesmo enfrentando o ônus da gestão Bush, obteve 48% dos votos populares.

Este cenário político-econômico acabou por revigorar um ultraconservadorismo que se aglutinou e ganhou espaço na mídia sob o movimento do Tea Party. Com a ex-candidata a vice-presidente Sarah Palin à frente, este grupo obscurantista, que prega até o ensino do creacionismo nas escolas e deixa perplexo até republicanos mais moderados, conseguiu eleger representantes para o Congresso. Obama, para eles, é a antítese de seus dogmas.

Outro sinal de como os Estados Unidos ainda são, em sua essência, um país voltado para dentro, pouco cosmopolita, foi a reação da imprensa ao vazamento de quase 400 mil documentos da Guerra do Iraque pelo WikiLeaks. Os papéis detalham um balanço parcial de cerca de 109 mil mortos, 66 mil dos quais civis. De 832 pessoas mortas em postos de controle dos Estado Unidos, apenas 120 eram supostos insurgentes. Vídeos e fotos de inimigos rendidos e civis indefesos executados se somam a manuais de tortura.

Um arsenal de revelações deste porte deveria levar a, no mínimo, reportagens que aprofundassem, detalhassem, o caso. Sociedade e imprensa não devem se revoltar apenas com casos de corrupção. Injustiças e mortes de civis causadas por mentiras são tão ou mais graves. No entanto, como mostra a revista Carta Capital, em matéria de Antonio Luiz Costa, os principais jornais do país preferiram dar espaço à desconstrução da personalidade do editor-chefe do site, o australiano Julian Assange.

Embora criticável, não chega a surpreender que a emissora FoxNews, caixa de ressonância das retóricas anti-Obama e pró-política externa da Era Bush, tenha dito em editorial que os funcionários do site devem ser considerados "combatentes inimigos" e submetidos a "ações não judiciais". Do mesmo modo, ela dar espaço para deputados republicanos pedirem pena de morte para um analista militar de 22 anos suspeito de participar do vazamento dos documentos.

Mas é um tanto inesperada e sintomática a postura do Washington Post, The New York Times e CNN, veículos tradicionalmente refratários aos oráculos direitistas. Ao publicarem artigos em que se coloca em dúvida a saúde mental de Assange e o acusam de violência contra mulheres, nivelaram-se às retóricas de políticos como Palin. Depois de entrarem na paronóia ufanista pós-11/9 e apoiarem a invasão ao Iraque, em 2003, tinham iniciado um processo de autocrítica, posicionando-se a favor da retirada das tropas defendida por Obama. Agora, parecem ter tido uma recaída.

O Post, diz a Carta Capital, chegou a afirmar que o WikiLeaks "não é organização noticiosa, mas empresa criminosa" e a exigir que Assange fosse preso antes de "causar mais danos à segurança nacional". Em editorial, minimizou o escândalo, afirmando que "os documentos demonstram que a verdade sobre o Iraque já havia sido contada". Para o jornal, o "enfoque" de Assange "produz pouca luz, mas causa grandes danos".  Já o Times, da cosmopolita Big Apple, num exemplo de jornalismo seletivo e enviesado, manchetou: "Detidos se deram pior nas mão de iraquianos, dizem arquivos".

Sem entrar em suposições de possíveis interesses não muito nobres, o posicionamento da mídia norte-americana nos mostra que, em momentos delicados, o vulcão conservador ufanista sempre entra em erupção naquelas terras.  Por mais progressista que alguns setores possam querer parecer, acabam por defender táticas maquiavélicas em nome de um nacionalismo raso.

É em meio a uma sociedade com este DNA que surge um político como Obama. Sua ascensão é um fato histórico repleto de paradoxos. Chegou à Casa Branca sob duas guerras polêmicas e a diminuição do prestígio e do poder relativo perante o mundo. Foi, porém, a maior crise econômica desde a Depressão de 1930, mais do que qualquer outra razão, que o levou a vitória. Sem ela, sua eleição seria impensável. A maioria da sociedade não se permitiria arriscar tanto votando em uma personalidade com ethos tão diferente de si própria em um cenário de relativa calmaria.

Esta mesma crise, que exige tempo e capital político que poderiam ser gastos em inflexões maiores, volta-se agora contra ele, enfraquecendo-lhe e dando maioria aos republicanos na Câmara dos Representantes. Sua vitória, em 2008, que poderia refletir mudanças de paradigmas no norte-americano médio, com a centro-esquerda ganhando espaço, parece ter catalisado efeito inverso.

O novo tabuleiro, certamente, o fará negociar mais com a oposição, obrigando-o a abandonar qualquer projeto de cunho mais reformista, tanto internamente como em sua política externa. Arriscar-se-ia a se dissociar ainda mais do pensamento médio de seus compatriotas, diminuindo ainda mais as chances de obter um segundo mandato, em 2012.

Sem querer santificá-lo ou eximi-lo de eventuais erros ou contradições no exercício do cargo, é inegável que Obama tem todas as credenciais para revigorar a Casa Branca. Algumas de suas decisões corroboram a afirmação. Elas, porém, não foram reconhecidas por boa parte da população, o que deixa no ar a sensação de que ele é o homem certo na hora errada. E, talvez, até no lugar (país) errado.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

O presente dos desastres

Por Janio de Freitas (Folha de S. Paulo, 16/11/2010)

O Governo Lula é uma sucessão de fatos inesperados, mas dois deles têm a dimensão extraordinária das mágicas do acaso. É à inversão imprevista de duas derrotas brutais, com tudo para arrasarem sua imagem e o governo, que Lula vai se despedindo da Presidência com o registro de êxitos sem precedente entre seus antecessores todos. E mesmo como um caso especial no mundo.

O mensalão foi um canhonaço que destroçou muito mais do que a aparelhagem executiva da Presidência e, com ela, o braço de operações montado sobre a leviandade da direção petista. O mensalão pôs em ruína, também, toda estratégia e o plano de configuração do poder que deveria executá-la.

Nesse poder, o papel de regente do Executivo dividiu-se, quase definidamente por setores, entre José Dirceu, Antonio Palocci e Henrique Meirelles. Mas o maestro político era José Dirceu, só ele. Ao Lula que então se viu coube reter-se no seu já comprovado talento: mobilizar parcelas sucessivas da opinião pública, o jogo de cena, as viagens e a presença em eventos que ocupassem o tempo presidencial.

Era um Lula distante da ação política e do trânsito de políticos, comum para presidentes. Com muitas evidências de insegurança e de alheamento às coisas de governo, incapaz de enfrentar uma entrevista coletiva e mesmo algo menor que não estivesse arranjado.

A saída de José Dirceu de suas funções no plano e no Gabinete Civil era tão impensável, antes de forçada pelo mensalão, que não houve ideia alguma para preencher o vácuo no seu aspecto essencial, que era a ação política do governo.

Aumentados os seus temores de que novos tropeços, mesmo que menores, atingissem sua continuidade como presidente, restou a Lula improvisar ele próprio o comando e a execução das ações políticas do governo.

Tateante, cedendo muito mais do que o necessário, fazendo dívidas precipitadas sem escolher os políticos credores, Lula perdeu muito, mas com o tempo ganhou tarimba e segurança, suficientes para o necessário sem brilho. Até que sobreveio a segunda explosão, onde menos seria esperável.

O escândalo de Antonio Palocci não desarmou Lula apenas na vigilância de uma política econômica conservadora com temperos neoliberais. Essa função fizera de Palocci uma espécie de guarda-costas de Lula em setores real ou potencialmente hostis e ameaçadores, como o financeiro, o dos meios de comunicação, o do empresariado influente e, não menos, o do sistema internacional de defesa do conservadorismo.

Guido Mantega não caiu do céu. Veio das profundezas ferventes onde foi posto pela corrente Palocci, desde antes da formação inicial do governo; e, depois, pelas mal contidas restrições ao conservadorismo econômico do governo.

Mas, quando um caseiro desacreditou dos ares beatíficos de Palocci, Guido Mantega, ministro do Planejamento, foi visto como o único a estar informado dos aspectos todos da economia, para cobrir o vácuo ainda que só pelo tempo para a solução definitiva.

De lá para cá, Lula fez uma dívida enorme com Mantega. A retomada do crescimento e seus múltiplos efeitos de força política e eleitoral devem-se à persistência de Mantega na ideia, que o alijara, de buscar a conciliação de crescimento e inflação baixa. A tranquilidade e a boa dose de otimismo que se instalaram no Brasil, e contribuíram muito para o processo sucessório sem turbulências, são frutos dessa bem sucedida conciliação não conservadora.

Em outro plano, com o crescimento sem inflação, Lula se viu projetado, da simpatia folclórica dedicada pelo Ocidente ao metalúrgico-presidente, à possibilidade de uma admiração e, depois, de uma influência internacional que soube cultivar muito bem.

O mensalão e a queda perturbadora de José Dirceu levaram Lula ao comando político que lhe deu uma liderança sem precedente. O escândalo e queda ameaçadora de Antonio Palocci resultaram para Lula em uma presença internacional sem nem sequer algo próximo em outros presidentes brasileiros.

sábado, 13 de novembro de 2010

A noiva socialista e o noivo mineiro

Por Murillo Victorazzo

Em sua edição especial sobre a eleição de Dilma Rousseff, a revista Carta Capital traz uma entrevista com o governador reeleito de Pernambuco, Eduardo Campos, que nos indica um cenário para 2014 com boas chances de se realizar. Campos deixa clara suas boas relações com o ex-governador mineiro Aécio Neves e não se furtar de criticar a ala paulista do PSDB. Presidente do PSB, parece sugerir que passa por Aécio a estratégia do partido para 2014.

"Muitas vezes, São Paulo exporta diferenças que não são a realidade política nacional", afirma o governador ao ser perguntado sobre se haveria afinidades com os tucanos não paulistas. Mais do que uma constatação que nos remete às afirmações de políticos e cientistas políticos de que a luta PT x PSDB seria menos por grandes diferenças ideológicas do que por uma rivalidade paulista vendida para o país, a frase é uma sutil defesa da liderança de Aécio dentro no PSDB.

Quanto mais Aécio se cacifar no PSDB, mais poder de barganha o PSB terá no governo Dilma. Afinal, com seis governadores, a sigla continuará a ser, agora ainda mais, um aliado necessário e desejado pelo PT. Caso Aécio venha a ser indicado como candidato a presidente pelo PSDB nas próximas eleições, não será surpresa se os socialistas romperem com Dilma ao final do governo para se coligarem com os tucanos.

A vice-presidência em uma chapa com o PSDB cairia bem para Campos ou Ciro Gomes - outro político do partido que não nega a afinidade com Aécio. Ainda mais se levarmos em conta que os dois socialistas são do Nordeste, uma região problemática para os tucanos. Governando Perambuco, Ceará, Paraíba e Piauí, o PSB seria a noiva perfeita para eles.

Ao dizer que "o PSB tem as portas abertas para pessoas como Aécio",  Campos levanta outra hipótese, essa menos provável: o ex-governador de Minas deixaria o ninho tucano para se juntar- por mais ideologicamente estranho que possa parecer  - às hostes socialistas. A saída do mineiro do PSDB foi bancada pela Carta Capital em matéria de capa refutada veementemente por ele. A revista, porém, dizia que Aécio pretendia formar um novo partido.

A tese da candidatura própria já foi levantada no PSB este ano por Ciro e causou desgaste entre integrantes da legenda e o PT. Com o reforço muscular ganho em votos pelo partido nestas eleições e com tal carta na manga, seria inevitável o fim do casamento entre petistas e socialistas. Uma união que percorreu todas as eleições presidenciais de 1989 para cá, exceto o primeiro turno de 2002. Naquele ano, os socialistas lançaram Anthony Garotinho e apoiaram Lula apenas no segundo turno.

É um tanto precipitado prever cenários para daqui a quatro anos. De todo modo, nesses próximos quatro anos, casamentos políticos estarão à prova. E parecem claros quais serão alguns dos noivos e noivas protagonistas. Neste triângulo "amoroso", é certo que um deles vem de Minas, e uma delas tem grinalda vermelha e amarela.

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Dois pesos e duas medidas?

Por Murillo Victorazzo

Chama a atenção como a edição impressa de O Globo desta quarta-feira, 10/11, ignorou completamente o discurso do chanceler britânico, Wlliam Hague, na Canning House, em Londres. Segundo informou o site da BBC Brasil na véspera, Hague afirmou que "continuará a pedir por uma reforma na ONU, incluindo a expansão do Conselho de Segurança com o Brasil como membro permanente".

A notícia foi reproduzida no Globo Online, mas, pela lógica jornalística, deveria ganhar espaço na versão impressa do jornal, principalmente por ter sido um dia após o presidente norte-americano, Barack Obama, em discurso na Índia, defender a inclusão daquele país no Conselho. A nova postura dos Estados Unidos, essa sim, mereceu amplo destaque, até com chamada de capa.

Ainda que conheçamos a diferença de peso político-econômico entre os dois países anglo-saxões e os interesses comerciais em jogo, os britânicos também têm poder de veto. E parecem, agora, dispostos a se juntar à França na defesa da candidatura brasileira. Expõr a visão do novo governo do Reino Unido seria uma ótima oportunidade para ressaltar contrapontos em uma questão tão complexa e importante para as relações internacionais atuais.

A fala de Obama foi logo interpretada pelo Globo, em editorial e na coluna de Merval Pereira, como grande revés para o Brasil, sinal do "fracasso" da "diplomacia companheira". Seria justo e esclarecedor, para o bem de suas qualidade, credibilidade e isenção, que o Globo também informasse e comentasse o discurso do chanceler britânico. Segundo Hague, a presença do Brasil como membro permanente do Conselho seria uma questão de "legitimidade e equilíbrio" mundial de poder.

Se a posição de Obama foi rotulada como sinal de fracasso da política externa do governo Lula, a afirmação de Hague, por este raciocínio prosaico, não deveria ser interpretada como o outro lado da moeda: o de uma "vitória" do Itamaraty? Ou o jornal estaria usando dois pesos e duas medidas? É uma pena que as análises internacionais de boa parte dos jornais brasileiros estejam impregnadas pelas disputas políticas internas...

ATUALIZAÇÃO: O jornal, enfim, em sua edição impressa de quinta-feira, 11/11, publicou uma matéria de pé de página sobre o discurso do chanceler britânico. Tomara que o atraso de 48 horas tenha sido por problemas técnicos...Aguarda-se os comentários...

sábado, 6 de novembro de 2010

O Mundo Segundo Dilma

Por Maurício Santoro (http://todososfogos.blogspot.com/2010/11/o-mundo-segundo-dilma.html )

A política externa não foi um tema de discussão relevante na eleição presidencial brasileira, mas será importante para o governo Dilma. A economia internacional é cada vez mais relevante para o Brasil, pelo peso crescente do comércio exterior no PIB, pelas discussões sobre a guerra cambial e a reorganização do sistema financeiro internacional (G-20, Basiléia 3 etc). Além disso, o país articula iniciativas com as outras potências emergentes e precisa permanecer atento para as crises e conflitos na América do Sul, algumas das quais envolvem nações das quais depende sua segurança energética (Bolívia e Paraguai). O que se pode esperar da diplomacia brasileira sob Dilma?

Durante a campanha, a revista “Política Externa” enviou aos principais candidatos perguntas sobre sua plataforma diplomática. José Serra não respondeu – omissão curiosa, pois é uma publicação com muitos intelectuais do PSDB entre seus principais colaboradores. Marina Silva destacou pontos ligados a Meio Ambiente e Direitos Humanos. E Dilma apresentou opiniões que basicamente mantêm as diretrizes atuais. Perfis da presidente eleita com freqüência destacam sua pouca experiência internacional e concluem que dará menos ênfase à diplomacia presidencial e se afastará de negociações controversas, como os esforços de mediação da crise iraniana.

Contudo, as próprias transformações do Brasil apontam para mudanças. As indicações são de uma política externa mais complexa, menos centrada na Presidência e no Itamaraty e mais ramificada por outros órgãos do governo: ministérios econômicos, Defesa, área social, BNDES, empresas controladas pelo Estado, como a Petrobras, ou aquelas nas quais ele possui golden share, como Vale e Embraer. É a conseqüência inevitável da combinação de crescimento econômico, estabilidade política e maior engajamento nas redes globais de comércio e investimento.

Quem melhor capturou este novo quadro foi o jornalista David Rothkopft, da revista Foreign Policy. Em ótimo texto, ele chama a atenção para a necessidade dos Estados Unidos pararem de tratar o Brasil dentro do contexto de uma política geral para a América Latina, e abordarem o país numa esfera mais ampla, como um interlocutor para os principais temas internacionais, sobretudo em assuntos ligados à economia. Dito de outro modo: política externa é cada vez mais relevante para o Brasil, independentemente do interesse pessoal mais ou menos intenso do chefe de Estado.

Além disso, há outro ponto que tem sido deixado de lado pela maioria das análises: o modo como a diplomacia de perfil globalista de Lula reforçou a identidade de esquerda do governo, por sua ênfase em cooperação sul-sul e parcerias com potências emergentes. Haverá expectativas e cobranças do PT e de outros partidos progressistas da coligação para que essa linha diplomática continue ou se aprofunde, sobretudo diante dos impasses da liderança dos EUA e da União Européia, devido às suas crises atuais.

Também estou curioso para ver como duas mulheres e presidentes latino-americanas enfrentarão um desafio parecido: provar que têm capacidade de liderança própria. A relação Argentina-Brasil sob Cristina-Dilma promete, inclusive pela força da história de vida da mandatária brasileira para o vizinho que tanto sofreu com ditaduras militares.

terça-feira, 2 de novembro de 2010

2014 é logo ali

Por Murillo Victorazzo
Há uma máxima entre políticos e especialistas da área de que uma eleição começa quando a anterior termina. Descontados os exageros, a frase guarda uma boa dose de verdade. A presidente eleita Dilma Roussef nem diplomada pelo TSE foi e os partidos da base iniciaram as cotoveladas para definirem seus espaços no novo ministério. Do mesmo modo, na oposição, 48 horas depois da derrota, foi dada a largada para a lavagem de roupa suja em público. O motivo é um só: o realinhamento do mapa político-eleitoral do país visando 2014.
Quatro anos é, em tese, muito tempo. E a história mostra como o quadro imaginado não se confirma. Mas a próxima eleição presidencial, ao contrário das anteriores, quando havia antecipadamente um candidato natural (o presidente em busca de reeleição, no mínimo), é uma incógnita ainda maior. A falta de estatura política da presidente eleita Dilma Roussef e a sombra do presidente Lula potencializam as dúvidas não só sobre o novo governo como se ela disputará mais um mandato.
Além do imponderável que, às vezes, transforma o processo eleitoral insperadamente, várias incertezas explicam o mistério. Lula, de fato, desejará voltar ao governo daqui a quatro anos? Caso Dilma tenha se saído bem avaliada, poderá ela, dona da caneta, bater de frente com ele para ser a candidata do PT? Ou, o contrário: será que ele não irá preferir manter a imagem de quase um mito, deixando como sua marca na história estes oito anos dos quais saiu com 80% de aprovação? Para que, afinal, correr o risco de ver esse capital político gigantesco se diluir em um outro mandato?
Por outro lado, na hipótese de o governo Dilma fracassar retumbantemente, terá Lula disposição para passar toda a campanha eleitoral com o ônus de ter que assumir a responsabilidade da escolha feita em 2010? Sem dúvida, neste cenário, a possibilidade de derrota aumentaria muito, já que os eleitores poderiam culpá-lo pelo eventual desastre. O discurso da volta para consertar um erro não é de fácil assimilação.
Além destas incertezas, há outras dentro da própria base governista. Pela primeira vez como sócio e não apenas como aliado, o PMDB do vice-presidente eleito, Michel Temer, fincará o pé em busca de mais espaço no próximo governo. A ciumeira já começou. O partido fez questão de deixar claro o incômodo por não ter visto um nome seu na equipe de transição, o que levou a presidente eleita emitir nota incluindo Michel Temer no grupo que já contava com os petistas Antonio Palocci, José Eduardo Dutra e José Eduardo Cardoso.
O casamento PT x PMDB será, durante o novo mandato, uma constante relação de amor e ódio. Será que a animosidade não prevalecerá e, com mais poder acumulado, os peemedebistas, enfim, tomarão coragem de lançar candidato próprio? Alguns nomes do partido saíram especialmente mais fortes destas eleições. O governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, é um deles.
Além de reeleito no primeiro turno com 66% dos votos, Cabral se jogou de cabeça na campanha da petista. O discurso de parceria foi fundamental para a ampla vitória dos dois no estado. Tem agora cacife para exigir mais recursos e espaço. Além disso, não nos esqueçamos que a capital fluminense terá que ganhar atenção especial por ser palco das Olimpíadas de 2016 e da abertura da Copa de 2014.
Outro partido aliado que saiu mais forte foi o PSB. Com seis governadores eleitos, os socialistas deverão também lutar por mais espaço. Se, este ano, já houve alas da sigla que tentaram lançar Ciro Gomes candidato a presidente, pode-se imaginar que a ideia da candidatura própria ganhará mais força a partir de agora. No mínimo, para barganhar a vice-presidência em 2014.
O governador reeleito de Pernambuco, Eduardo Campos, campeão de voto no país (obteve 82% dos votos), surge como a principal carta do partido para as negociações que virão. Seu nome tem simbolicamente o peso de ser do Nordeste, região que se tornou uma fortaleza para o lulismo, embora, pardoxalmente, isto possa lhe enfraquecer. O costume é compor chapa com políticos de regiões onde são mais fracos eleitoralmente.
Do outro lado do tabuleiro, mal as urnas foram fechadas, o PSDB externou seus dilemas existenciais e suas divisões internas que perduram há anos. Aquele partido fundado há 22 anos como a esquerda do PMDB, uma sigla social democrata, com valores liberais - no sentido moral da palavra e não econômico - não existe mais. Se há uma certeza que surge deste pleito é a de que os tucanos ganharam uma feição mais forte de partido conservador. Discursos e temas levantados pelo candidato José Serra e seu círculo embasam a afirmação.
Se, por um lado, não se pode dizer que tenham se tornado uma sigla essencialmente de direita, por outro, é fato que se tornou o preferido deste espectro da sociedade. Ocupou o espaço deixado pela falta de um partido forte confessamente de direita. O DEM, que seria o representante natural e legítimo destes setores, por sua debilidade eleitoral, preferiu manter-se como satélite tucano. Alguns líderes do partido ameaçam partir para voo solo, mas a falta de nome é mais um empecilho para concretizar a separação.
Mesmo em relação aos feitos quando governo, o PSDB parece ter dificuldade em superar a sua esquizofrenia. Não por acaso o ex-presidente Fernando Henrique já veio a público dizer que não irá mais endossar "um PSDB que não defende sua história". Também lá de São Paulo, outro disparo foi feito, desta vez acirrando as divergências internas. O coordenador do programa de governo de Serra, Francisco Graziano, em seu twitter, ironizou a derrota de seu candidato em Minas Gerais, responsabilizando, indiretamente, seu colega de partido Aécio Neves.
Muitos garantiam que esta seria a última tentativa de Serra para chegar ao Planalto. O político que garante ter se preparado a vida inteira para se tornar presidente, porém, ao reconhecer a sua segunda derrota em nível nacional, não pareceu ter jogado a toalha. E mais: acenou para uma oposição mais belicosa da que fez até então. Ainda que tenha anunciado não pretender a presidência do PSDB, Serra, a priori, não pode ser uma página virada, embora a tendência seja que Aécio torne-se o líder da oposição.
O ex-governador mineiro terá a visibilidade que um mandato de senador - e não um senador qualquer - lhe garante e pode ser o sangue novo necessário para despertar novas ideias e paixões. O terreno, de todo modo, é fértil para a colheita de fortes embates neste ninho, especialmente se indagarmos o que o paulista Geraldo Alckimim, como governador do estado mais rico e populoso da federação, pensa a respeito de seu futuro político.
No entanto, mais do que nomes, o PSDB precisa urgentemente criar novas bandeiras e decidir o que quer ser: uma UDN com modelito século XXI ou um partido realmente social democrata. Não é uma escolha fácil. Ao caminhar para a centro-esquerda, abandonando a esquerda socialista, o PT, com Lula e agora Dilma, parece ter se legitimado como o representante da social democracia. E com uma vantagem que os tucanos não tem: bases sociais mobilizadas. As posturas erráticas dos tucanos facilitaram este processo. Ao contrário do som, o poder se propaga no vácuo - deixado pelo adversário.
Há tempos muitos dizem que tucanos e petista estariam fadados a serem aliados. O realinhamento petista poderia ter facilitado esse movimento esperado, se os dois partidos não tivessem se tornado os dois únicos pólos de poder no país, com o PSDB dando um passo para a centro-direita. Hoje, nem os mais otimistas acreditam na aproximação.
Até por questão de sobrevivência, na expectativa de voltar ao poder central, os tucanos terão que fazer uma oposição mais intensa para se diferenciarem. Como os pilares das política econômica são consenso entre os dois lados, o mais provável é que eles acabem cada vez mais parecidos com o DEM, incorporando os setores (e valores) mais conservadores.
Aprovar ou não esta contínua guinada é decisão do eleitor. Mas é impositivo que, para dar certo, ela seja nítida, programática e sem idas e vindas. Como se vê, este balaio de variáveis, seja nos governistas como na oposição, explica por que apenas 48 horas separaram a eleição de Dilma do pleito de 2014...

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

A morte de Kirchner: mais um tango para história política argentina

Por Murillo Victorazzo
Muitos dizem que o samba e o tango refletem bem como brasileiros e argentinos lidam com as dificuldades. Se nós, com a nossa ginga, levantamos e sacudimos a poeira, sem nunca perder o sorriso, nossos "hermanos" responderiam de forma mais intensa e depressiva às adversidades. Não seria outro o motivo das belas melodias do ritmo-símbolo argentino quase sempre exalarem melancolia. Se verdade isso for, desde ontem, a Argentina vivência mais um cenário digno de letra de tango.

Aos 60 anos, morreu, vítima de infarto, o principal líder político de nossos vizinhos na última década. Se Néstor Kirchner fosse meramente um ex-presidente que, nos bastidores, ainda desse as cartas nas hostes peronistas, seu falecimento já seria motivo de impactar um país que, assim como o Brasil, tem um histórico de mortes e outras tragédias assombrando seu palácio presidencial. Ele, porém, era mais do que isso. Era, aliás, mais do que o marido da atual presidente, Cristina Kirchner.

Presidente do PJ (Partido Justicialista, o nome oficial do aglomerado de grupos heterogêneos que se intitulam peronistas), Néstor era o braço direito, esquerdo e o cérebro do governo de sua esposa. É quase unanimidade na Argentina que a chefia de Estado e de governo era um corpo com duas cabeças. Também é consenso que ele era o mentor de sua companheira. Ela, por sinal, nunca fizera questão de rebater o contrário.
Mas o cenário de drama ganha intensidade ao levarmos em conta o momento pelo qual passava o casal K. Após ter sido, de certa forma, bem sucedido em tirar a Argentina da profunda crise econômica ao assumir, em 2003, a Casa Rosada, Néstor, quatro anos depois, entregou à esposa, além da faixa presidencial, embriões de crises que vieram a explodir no colo dela.
Denúncias de corrupção, maquiagens de índices oficiais, fortes conflitos com o setor agropecuário e com a mídia fizeram despencar a popularidade de Cristina e, em certas situações, paralizar o país. O próprio Néstor, que pavimentava sua volta (oficial) à Presidência, havia sido eleito deputado pela província de Buenos Aires, ano passado, apenas como segundo colocado. Não era raro ouvir quem colocasse em dúvida até a força da presidente para terminar seu mandato. Paradoxalmente, contudo, seu marido ainda era apontado como o favorito para sucedê-la em 2011 - em boa parte também pela pouca clareza de ideias e estratégias da oposição.
Com o falecimento de Néstor, o quadro político argentino torna-se ainda mais incerto. Além de o ex-presidente ser o parâmetro a partir do qual governistas e oposição delimitavam suas ações, uma incógnita ocupa a cabeça dos argentinos: como reagirá Cristina? De que maneira ela absorverá a perda do companheiro de 36 anos que tornou-se também seu cúmplice (no bom e, para boa parcela do eleitorado do país, e no mal sentido) político?
Certo é que tais tragédias humanizam os políticos, fazendo com que a população e até a oposição se solidarizem com os atingidos. Os defeitos dos falecidos se diluem e seu feitos são maximizados. A comoção vista no velório de Néstor, com uma multidão se aglomerando em frente a Plaza de Mayo, parece confirmar essa tendência, embora não se saiba até quando.
Por isto, se Cristina tiver força - física, espiritual e política - para se reerguer e agir com habilidade e velocidade, poderá usar esta pausa piedosa para reorganizar seu governo. Por essas ironias do destino, um mandato fadado a terminar por baixo, poderá, assim, recuperar o fôlego e ela, alcançar a reeleição. Caso contrário, a perda inesperada do marido/líder tem grandes servir como catalizador para que ela perca o timão de vez.
Néstor, um político que saiu da distante província de Santa Fé para chegar à Casa Rosada em um momento em que o país estava a beira do colapso institucional, agregou tanto poder - e dinheiro - que parecia estar construindo uma espécie de dinastia quem nos remetia a Perón e suas esposas Evita e Isabelita. Outras semelhanças, ainda que a dimensão de Néstor não alcance a de "el general", já os unia: se deixaram suas marcas na vida sócio-econômica argentina, caracterizaram-se por ter o populismo e o autoritarismo (ainda que em nuances diferentes) como modus operandi.
No entanto, a partir de agora, Néstor se junta a Perón em outra (triste) coincidência. Os dois viram suas próprias mortes, esposas e a Casa Rosada se cruzarem de forma não planejada. Perón foi golpeado com a morte de sua Evita, que logo se tornaria mito. Conduziu, depois, com seu falecimento, Isabelita, que era sua vice-presidente, à Presidência. Néstor, por outro lado, conseguiu levar sua Cristina ao poder ainda vivo. Mas seu infarto fatal pode tê-la golpeado inesperada e involuntariamente. O drama dos Peróns rendeu filmes e tangos. Quer melhor roteiro para outros mais do que a história do casal K?

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Recordar é viver. E "Vale Tudo", refletir

Por Murillo Victorazzo
Uma das mais agradáveis novidades na televisão brasileira este ano foi o lançamento do Canal Viva, na Net. Quem aprecia a televisão brasileira e tem TV paga, certamente, já parou seu controle remoto por lá, nem que tenha sido apenas por alguns minutos. Seja drama, humor, culinária, aventura entre outros, o canal nos faz recordar por que nossa TV, em especial as organizações Globo, marcou seu nome entre as melhores no mundo.
Não precisa ser saudosista para se deliciar com programas que marcaram nossas infâncias, adolescências ou algum outro momento de nossas vidas. E é até natural do ser humano deixar o coração falar mais alto e ser condescendente com eventuais defeitos e defasagens vistos pelo olhar do século XXI.
No entanto, não é dominado por estes sentimentos que o canal Viva nos deixa à mostra algo muito claro: se, por um lado, a evolução das tecnologias de imagens, luz, áudio foi tão grande que, algumas vezes, parece que a distância entre as produções das décadas de 80 e 90 e o presente é maior do que a real, os seus conteúdos, vistos com distanciamento histórico, eram quase sempre melhores.
Fênomeno de audiência na época em que foi exibida, a novela "Vale Tudo" é a melhor prova do ocorrido. Voltou no Viva há duas semanas, 22 anos depois, com força total, a ponto de se tornar um dos assuntos mais comentados no twitter e alçar a emissora à liderança no Ibope entre as TVs fechadas. O sucesso merecido tem razão de ser.
A obra de Gilberto Braga, ainda que o Brasil tenha evoluído sócio-economicamente a largos passos, continua atual. Com personagens brilhantemente construídos e interpretados por grandes nomes da dramaturgia nacional, a novela incomoda - no bom sentido - por nos mostrar de forma direta, sem eufemismos, os velho dilemas da humanidade. Conflitos que parecem estar mais nítidos em nosso país: vale a pena ser honesto? O fim justifica os meios quando o objetivo é ganhar dinheiro?
Corrupção, caixa dois, traições, homicídios, preconceitos, alpinismo social, luta pelo poder...Tudo é visto, sem sutilezas, na obra. Quer algo mais condizente com nosso cotidiano - principalmente em época de campanha eleitoral - do que a trilha de abertura, de Cazuza, cantada por Gal Costa: "Brasil, mostra sua cara, quero ver quem paga pra a gente ficar assim"?
O despudor maquiavélico de Maria de Fátima, a crueldade e a prepotência de Odete Roitman - personagem que nos remete àquela parcela da elite brasileira que, por incrível que parece, ainda considera seu próprio país uma república de bananas habitada por aborígenes - e o mau caratismo presunçoso de Marco Aurélio resultam em um corolário de maldades, que, descontados os necessários excessos de uma ficção, mostram-se verossímeis em um país em que uma "ética flexível"- para usar um eufemismo - ainda ocupa grande espaço. Por outro lado, o casal Raquel e Ivan sintetiza a grande maioria da população brasileira: os que, honestamente, dão duro, aqueles para os quais os valores e o trabalho estão acima da riqueza a qualquer custo.
Quase todas novelas têm como pano de fundo essa dualidade. Muitas conseguem retratar com certo grau de realismo, outras tantas fracassam ao tranformar as vilãs em bruxas de histórias em quadrinhos e as protagonistas em Cinderelas. "Vale Tudo", não! Graças ao ferino texto de Braga e às atuações de Glória Pires, Beatriz Segall, Reginaldo Farias, Regina Duarte, Antonio Fagundes, entre outros, a novela tornou-se única na arte de exprimir as canalhices e as perseveranças nacionais.
Enredo tão atual e factível que deixam as imagens mais escuras e menos nítidas que as das produções atuais relegadas a segundo plano. A novela fustiga ainda mais quando lembramos que, no final, alguns destes vilões não terminam tão mal assim...A reprise de "Vale Tudo" serve para nos lembrar como somos (ou éramos?) bons em fazer novelas, discutir por que a qualidade de nossa dramaturgia caiu e, principalmente, pensar as razões de a nossa sociedade persistir em certos vícios.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Para analista, acordo nuclear com Irã não prejudica imagem do Brasil

Por Maria Carolina Abe (Folha de S.Paulo, 24/05/2010)
O Irã concordou em enviar parte de seu urânio enriquecido para a Turquia, em um acordo de troca de combustível nuclear alcançado com mediação de Brasil e Turquia, divulgado na segunda-feira (17). O Ocidente acusa o Irã de desenvolver um programa nuclear com fins militares, mas Teerã alega que a finalidade é pacífica. Para Matias Spektor, coordenador do Centro de Estudos sobre Relações Internacionais da Fundação Getulio Vargas (FGV), o acordo firmado entre os três países teve uma reação negativa imediata em Washington, porque foi visto como algo que não resolve o problema principal, e ainda atrasa a votação de novas sanções da ONU.
O efeito colateral "não esperado e não intencionado" do acordo foi uma reunião de emergência do Conselho de Segurança da ONU na terça-feira (18) e uma nova proposta de sanções ao Irã, alcançada após meses de negociação entre os cinco membros permanentes do CS --Estados Unidos, Rússia, China, França e Reino Unido-- mais a Alemanha. No entanto, Spektor diz não acreditar que o imbróglio diplomático piore a imagem do Brasil, que já é visto pelos EUA como "um negociador duro" que não se alinha facilmente, como foi visto nas negociações da Alca [Área de Livre Comércio das Américas, defendida pelos EUA] e da Rodada Doha da OMC (Organização Mundial do Comércio).
Folha de S.Paulo - Qual sua percepção sobre a reação que o acordo Brasil-Turquia-Irã causou nos EUA?
Matias Spektor - A reação imediata em Washington foi negativa, porque interpretou-se como um acordo que não conseguiu resolver o problema principal em questão - a insistência iraniana em enriquecer urânio a 20% - e por contribuir para atrasar e protelar a votação de uma nova rodada de sanções contra o Irã. Agora, a aceleração dos tempos em direção a um texto [de sanções] consensuado foi um resultado inesperado tanto no Brasil como aqui nos EUA, foi um efeito colateral não esperado e não intencionado.
Folha - Isso pode comprometer a imagem do Brasil no exterior?
Spektor - Eu não acredito que comprometa a imagem do Brasil mais seriamente. O Brasil tem uma imagem de um negociador duro, como a gente pôde acompanhar na negociação da Alca ou da rodade de Doha. Sabe-se e espera-se que o Brasil não diga sim facilmente aos EUA, e aceita-se como legítima a discordância com o Brasil. Ninguém nos EUA espera que o Brasil faça alinhamento automático com os EUA.
Folha- Mas a insistência em negociar com o Irã pode prejudicar a imagem brasileira?
Spektor - Como eu falei, a reação aqui nos EUA foi negativa. Agora, a expectativa geral dos EUA em relação ao Brasil é de que as negociações com o Brasil sempre precisam de muito engajamento para se chegar a algum acordo, porque o Brasil é um negociador duro. A reação foi negativa, mas isso não quer dizer que a imagem tenha piorado muito para o Brasil, porque o Brasil já tem uma imagem de duro negociador.
Folha - O fato de o Conselho de Segurança da ONU continuar com a votação de sanções contra o Irã, apesar do acordo, pode ser visto como uma derrota?
Spektor - Alguns países do mundo em desenvolvimento acreditam que o Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP) tornou-se uma ferramenta para os fortes imporem as regras do jogo para os mais fracos de acordo com seus próprios interesses. Israel e a Índia nucleares não serão punidos por sentarem de fora do regime, e podem até ser recompensados, dizem esses países, mas o Irã terá seu direito negado. Acho que o que veremos nos próximos dias é o recrudescimento das divisões em volta do regime de não proliferação nuclear, que está sendo revisado em Nova York ao mesmo tempo em que as sanções estão sendo postas na mesa. Ou seja, esses eventos revelam que há um poço muito profundo no mundo hoje a respeito de como avançar com o regime de não proliferação nuclear, que já tem 40 anos e precisa ser readaptado ao mundo atual. Não há consenso nas relações internacionais hoje sobre como proceder, e isso é o que ajuda a explicar os problemas que estamos vivendo nestas semanas.
Folha - O sr. acha que a maior inserção do Brasil no cenário internacional nos últimos anos está, de certa forma, ligada à figura do presidente Luiz Inácio Lula da Silva ou tem mais a ver com o panorama global atual?
Spektor - A questão do Irã, especificamente, está diretamente ligada a duas figuras: o presidente Lula e o ministro Celso Amorim. Amorim foi embaixador do Brasil nas Nações Unidas durante oito anos --seja em Nova York ou em Genebra--, foi presidente dos paineis responsáveis pelas sanções e foi presidente dos paineis sobre Iraque do Conselho de Segurança das Nações Unidas no final da década de 1990. Essas duas figuras fazem toda a diferença para explicar o que o Brasil está fazendo no caso do Irã. Nas outras inserções, não tem tanto a ver com a personalidade do presidente e do ministro, mas sim com o fato de que o sistema internacional está sofrendo transformações hoje em dia, cuja natureza dá destaque a países como o Brasil. Nos temas centrais da agenda internacional - energia, não proliferação, comércio internacional, reforma do sistema financeiro internacional -, o Brasil é definitivamente um jogador cada vez mais importante. Em alguns desses quesitos, é impensável hoje qualquer acordo ser fechado sem o Brasil. Então, independentemente de quem governe, a inserção internacional do Brasil hoje é muito maior do que era há apenas dez anos, porque mudanças da estrutura do sistema produziram isso. Independentemente de quem vá ganhar a corrida eleitoral este ano, a gente provavelmente vai ver um Brasil crescentemente exposto e desafiado a lidar com temas difíceis da gerência internacional, e a crises internacionais [diplomáticas] que o Brasil antes podia ignorar e agora não pode mais.
Folha - É possível fazer alguma comparação entre a negociação nuclear com o Irã mediada pelo Brasil e a Turquia, e a visita do presidente Lula a Israel e aos territórios palestinos poucas semanas antes, quando houve críticas de que Lula estava "se metendo onde não foi chamado"?
Spektor - O governo atual tem a interpretação de que o Brasil precisa desenvolver uma política para o Oriente Médio. Essa percepção tem a ver com dois fatores. O primeiro é que não há uma saída óbvia para a crise no Oriente Médio, as grandes potências não têm conseguido encontrar um encaminhamento, e o governo atual acredita que trazer mais vozes para o debate possa trazer novas aberturas e desenvolvimentos. O outro fator é a crença do governo brasileiro atual de que ter opinião sobre o que acontece no Oriente Médio é legítimo, já que o Brasil alberga uma enorme comunidade de ascendência daquela região, seja judaica ou seja árabe. Tem a ver também com crescentes interesses econômicos e políticos do Brasil na região. À medida que o Brasil começa a jogar em ligas das quais não participava antes, precisa ter apoio em lugares que antes podia se dar ao luxo de ignorar. Na leitura do atual governo, o Oriente Médio é um caso, assim como a África.

terça-feira, 25 de maio de 2010

Uma "nova ordem mundial" é necessária

Por Mark Weisbrot (especial para a Folha de S.Paulo, 25/05/2010)

Os esforços do Brasil e da Turquia para encontrarem uma solução negociada do impasse em torno do programa nuclear do Irã precisam ser vistos dentro do contexto de um desafio crescente à ordem política internacional. Desde o final da 2ª Guerra Mundial, essa ordem política vem sendo dominada pelos Estados Unidos, com a Europa como parceira subordinada.

A substituição do G7 (ou G8) pelo G20 é uma mudança importante, mas simbólica. As alavancas do poder -como o FMI (Fundo Monetário Internacional) e o Banco Mundial- ainda são controladas mais ou menos como eram quando foram criadas em 1944: pelo Departamento do Tesouro dos EUA, com alguma participação de potências europeias. Do mesmo modo, os membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU, que têm poder de veto sobre as decisões mais importantes das Nações Unidas, ainda são os aliados vitoriosos da 2ª Guerra, mais a China.

Após breve período de diálogo, a gestão Obama reverteu à política externa da administração Bush com relação ao Irã -e já o fez com relação à América Latina. Trata-se de uma política de ameaças e sanções aumentadas contra o Irã, o que intensifica o risco de confronto. Contrastando com isso, Brasil e Turquia continuaram pelo caminho anterior e breve de diplomacia propugnado por Washington e fecharam um acordo semelhante ao que foi defendido/proposto pelos EUA em outubro.

Pelo acordo, o Irã enviaria 1.200 kg de urânio pouco enriquecido à Turquia. Após um ano, o Irã receberia 120 kg de urânio para seu reator de pesquisas médicas. Segundo a Federação de Cientistas Americanos, as diferenças entre o acordo mediado por Brasil e Turquia e o proposto em outubro são pequenas. Apesar disso, a administração Obama está seguindo adiante com seu plano de aumentar as sanções contra o Irã.

Contrastando com isso, na sexta-feira o secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, disse esperar que o acordo "possa abrir a porta para uma solução negociada". Brasil e Turquia já conquistaram uma vitória importante pelo fato de terem assumido a liderança nesta questão. Mostraram ao mundo que é possível obter avanços por meio da negociação. É claro que, como dizemos em Washington, nenhuma boa ação passa impune.

A mídia ocidental, incluindo a maioria dos grandes veículos de mídia da América Latina, tende a fazer a cobertura das relações internacionais desde a perspectiva dos EUA. Como Washington vem satanizando o Irã, a mídia ocidental apresenta uma visão exagerada e unilateral do país, mostrando-o como ameaça ao mundo. Aqueles que apoiam um mundo mais multipolar são acusados de serem "antiamericanos".

Mas, como mostra a diplomacia Brasil-Turquia, um mundo multipolar ajudará a reduzir o risco de guerra. É como passar de uma ditadura para uma democracia. E, na arena internacional, ela está abrindo a porta a um papel maior do Estado de direito, da diplomacia e a um maior progresso social.

Mark Weisbrot é co-diretor do Centro de Pesquisas Econômicas e Políticas, em Washington (http://www.cepr.net/) e também presidente da Just Foreign Policy (http://www.justforeignpolicy.org/).

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Leituras brasileiras no Irã

Por Matias Spektor (10/03/10) (https://www.ipen.br/sitio/?idc=6796)
As grandes potências nucleares têm pouca autoridade moral para invocar o Tratado de Não-Proliferação Nuclear - TNP, porque não o cumprem.
É impossível ouvir referência ao Brasil em Washington que não venha acompanhada de uma frase sobre o Irã. Em seminários acadêmicos, no governo e entre jornalistas há duas perguntas recorrentes: ao rejeitar possíveis sanções do Conselho de Segurança da ONU contra o Irã, o Brasil não estaria fazendo o jogo de Teerã? Esse comportamento não enfraquece o regime de não proliferação nuclear?
As respostas mais comuns são previsíveis. Um grupo responde afirmativamente, denunciando o antiamericanismo do governo Lula. Outro grupo reage negativamente, acusando a hipocrisia americana em relação ao Irã. A falsa dicotomia empobrece o debate e atrapalha a leitura atenta das motivações brasileiras.
Hoje há três fatores que ajudam a explicar a postura brasileira em relação ao programa nuclear iraniano. Primeiro, na interpretação brasileira, as sanções podem ser um prelúdio para uma intervenção militar no Irã. A lembrança é recente: a última vez que o Conselho de Segurança votou com base em evidência não conclusiva, o mundo teve de lidar com uma intervenção ilegítima no Iraque que minou o princípio básico da segurança coletiva.
Segundo, o Brasil rejeita a noção de quais sanções da ONU possam criar um ambiente favorável para negociações de ´´boa fé´´. Ao contrário, pressões externas e isolamento podem convencer o Irã a buscar de fato a nuclearização. O Brasil tem experiência histórica ampla com esse tipo de lógica: quando a ditadura brasileira tentou desenvolver um programa nuclear civil fora do âmbito do Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP) encontrou enormes pressões internacionais. Para esquivar-se delas, criou um programa nuclear secreto. Os resultados foram limitados e custaram caro, mas o país desenvolveu a tecnologia para enriquecer urânio. Como disse um diplomata recentemente, ´´quando o Brasil olha para o Irã, não vê apenas o Irã, também vê a si próprio´´.
Terceiro, na leitura brasileira, as potências nucleares têm utilizado o TNP de forma seletiva. Afinal de contas, argumenta-se em Brasília, não há pressão sobre Israel para que reconheça as armas nucleares que possui mas não declara. Tampouco houve punição contra a Índia, que se nuclearizou, desafiou o TNP abertamente e, de quebra, recebeu um vantajoso acordo de cooperação nuclear por parte de Washington. Finalmente, diz o argumento, as grandes potências nucleares têm pouca autoridade moral para invocar o TNP porque ainda não conseguiram honrar sua parte do acordo, qual seja o progressivo desmantelamento de seus arsenais nucleares.
Seria um erro descartar esses três fatores como mero antiamericanismo. Nas três instâncias trata-se de mitigar aquilo que Brasília vê como o lado mais duro e injusto da postura americana em questões de não-proliferação. Isso não impede o Brasil de ter grandes faixas de coincidência com os Estados Unidos no tema. Como um dos maiores beneficiários do sistema de segurança coletiva existente desde 1945, o Brasil não irá desafiar a concepção de ordem internacional vigente. Como um país emergente com uma longa história de fragilidade e dependência, busca impedir que as normas internacionais sejam instrumento a serviço dos mais fortes.
Também seria um erro atribuir a argumentação ao governo atual. Os três raciocínios encontram eco nos principais partidos do país, da esquerda à direita. Basta fazer um exercício hipotético: se o Palácio do Planalto estivesse hoje sob comando da oposição, é plausível supor que os três fatores continuariam a ser centrais na definição da atitude brasileira? A resposta é possivelmente ´´sim´´.
É claro que há divisões partidárias importantes quando o tema é Irã. É difícil imaginar outro governo lidando da mesma forma com Teerã. Mas para explicar por que o Brasil se comporta como o faz diante do crescente desafio iraniano, olhar para o embate político-partidário brasileiro é seguir uma pista secundária. A pista principal tem a ver com a experiência histórica do Brasil no sistema internacional.
O Brasil não é um membro permanente do Conselho de Segurança da ONU e por isso não pode vetar resoluções daquele foro. Mas como detentor de uma cadeira rotativa no biênio 2010-2011, sua atitude pode facilitar ou complicar a criação de um consenso internacional em relação ao programa nuclear iraniano. O Brasil já disse que não gosta de sanções. Agora precisa dizer o que a comunidade internacional deve pôr no lugar delas. Entender os porquês da postura brasileira é mais que nunca um exercício urgente.
Matias Spektor é coordenador do Centro de Relações Internacionais no CPDOC da Fundação Getulio Vargas e autor de Kissinger e o Brasil (Zahar 2009). Em 2010, é pesquisador visitante junto ao Council on Foreign Relations (EUA).

terça-feira, 30 de março de 2010

Lula, os mais ricos e sua popularidade

Por Murillo Victorazzo
A última pesquisa DataFolha, publicada no domingo 28, mostra que a popularidade do governo Lula bateu novo recorde: 76% o consideram bom/ótimo, 20%, regular e apenas 4% de ruim/péssimo. No entanto, um detalhe da pesquisa, ainda mais impressionante mas que não foi tão divulgado, é a estratificação desses número: entre os que ganham mais de 10 salários mínimos, a aprovação ao governo chega a 70%, e, entre os que têm nível superior, a 68%.
Esse números mostram que é uma falácia o argumento preconceituoso de que governo Lula só teria aprovação entre os beneficiados do Bolsa Família e os "analfabetos" - enfim , a "gentinha" que uma parcela das classes A e B dita instruída (se fosse mesmo, saberiam analisar racionalmente e moderadamente o assunto) parece achar menos inteligente e menos cidadã do que ela.
Qualquer administração que consegue alcançar esses percentuais merecerá uma análise histórica de grande destaque. Ter mais de dois terços das classes mais ricas e instruídas foi, é e será sempre para poucos. Estes extratos sócio-econômicos constumam ser os mais críticos e exigentes, levando em consideração aspectos muito mais amplos em sua avaliação.
Mas acima de tudo tais dados fortalecem a máxima do marketeiro do ex-presidente norte-americano Bill Clinton, James Carville: é a economia, estúpido! Um governo é aprovado essencialmente quando a população sente seu bolso mais cheio. Inflação controlada, crescimento econômico, aliado a fortalecimento do mercado interno e projetos de transferência de renda, levam, ao mesmo tempo, à queda na concentração de renda e melhoria na vida de todas as classes.

Aprovar não siginifica achar que tudo foi perfeito, longe disso. Erros em política externa e, principalmente, casos de corrupção são criticados e notados. Colocando na balança, porém, para 70% de pessoas que têm todo tido de acesso à informação e independem de "esmolas" estatal, o saldo é positivo.
A falta de uma rejeição mais enfática ao governo petista no tocante a questões éticas também pode ser explicada. Exceto entre os que têm interesses ou rejeições prévias, ideológicas e pessoais, a população, de modo geral, sente que o PT, desgraçadamente para nós, assim como não tinha o monopólio da ética, como queriam vender até 2002, também não tem o monopólio da ladroeira. Lembremos, por exemplo, que também o PSDB surgiu, em 1988, com o discurso da ética, justificando sua dissidência do PMDB como forma de se diferenciar de Orestes Quércia e demais banda podres do partido. Seria um partido social-democrata moderno. Mas, no poder, também meteu a mão na lama.

Não se trata de minimizar os crimes cometidos, mas tentar entender por que a população (de todas as classes), após sofrer com casos de corrupção por mais 500 anos, muitos vindo de setores da atual oposição, analisa um governo pragmaticamente: estou com dinheiro no bolso, o governo é bom.
Ademais, a preponderância da economia nessas avaliações acontece em qualquer país e época. Barack Obama não venceu pelos erros de George W. Bush no Iraque, mas principalmente por causa da gigantesca crise econômica que os Estados Unidos começavam a sentir em 2008. E por esta mesma razão, ele vê, com um ano de governo, sua popularidade cair fortemente. Do mesmo modo, Bush , embora tenha vencido a Guerra do Golfo não conseguiu se reeleger um ano após o conflito. Apesar de nada comparada à atual, a recessão da época impulsionou a vitória de Clinton.

Achar ainda que a classe pobre aprova Lula apenas por ser ele "um deles" tampouco encontra base nos fatos. É lógico que sua origem o ajuda a receber um apoio mais enfático, mas qual seria então a razão de suas derrotas para FHC em 94 e 98? O operário "gente nossa" perdeu no primeiro turno em ambas ocasiões. O motivo? O Plano Real, a economia, é claro. Do mesmo modo, entre 2004 e 2005, em meio à uma economia ainda travada, o metalúrgico presidente tinha índices que não chegavam nem perto a estes.

Enfim, pode-se aprovar, reprovar, mas desde que sem rótulos e paixões eloquentes semelhantes a de um Fla x Flu. Apenas com dados e racionalidade, sabendo que niguém é anjo ou demônio, sem maniqueísmos, conhecendo as nuances que a política exige é que se consegue - e se deve - tentar entender o cenário.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Atuação dos Estados Unidos no Haiti é uma questão de liderança

Por Corine Lesnes (Le Monde, 20/01/2010)
Com seu presidente aparecendo com tanta frequência nas telas, os americanos poderiam acreditar que a catástrofe havia acontecido em seu solo. Nos três dias que se seguiram ao terremoto no Haiti, o presidente Barack Obama fez diversas declarações na Casa Branca, enviou 10 mil soldados, um porta-aviões munido de 19 helicópteros, e desbloqueou US$ 100 milhões. A Marinha foi convocada a fazer milagres. O navio-hospital Comfort, um mastodonte equipado com doze salas de operações, nunca havia sido preparado tão rapidamente. Em menos de 48 horas, levantou âncora para Porto Príncipe, onde deveria chegar na quarta-feira (20).
Barack Obama logo assumiu o controle de tudo - quase que instintivamente, poderiam dizer. Ainda que ele tenha designado como coordenador o novo diretor da Agência Americana para o Desenvolvimento USAID, Rajiv Shah, um jovem médico de origem indiana, foi ele que declarou a situação "prioritária", a ponto de merecer manter em Washington os secretários da Defesa e das Relações Exteriores, esperados na Austrália para uma cúpula dedicada ao Afeganistão e à luta antiterrorista.
Obama também enviou a Porto Príncipe um de seus colaboradores mais próximos, Dennis McDonough, para coordenar a comunicação. É verdade que os apresentadores dos telejornais da noite também desembarcaram no Haiti (em que avião?, perguntariam alguns).
A administração Obama se antecipou ao chamado? Teria ela se precipitado indevidamente? Certamente essa é a opinião daqueles - franceses, italianos, brasileiros - cujos aviões de socorro se viram desviados para os outros aeroportos da região por americanos que acreditavam estar fazendo a coisa certa, mas que nenhuma autoridade superior havia ordenado.
Na edição de segunda-feira (19) do jornal "USA Today" , os especialistas da Força Aérea dos EUA contaram como haviam procedido ao desembarcarem no aeroporto 24 horas após o terremoto. Foi um caos. A torre de controle estava quebrada. "Fomos falar com os pilotos e dissemos: ei, somos controladores de combate da aeronáutica. Estamos assumindo o controle do aeroporto", contou o sargento Chris Grove.
Dito e feito. Os americanos sabem que foram criticados por terem evacuado seus compatriotas como prioridade, e por terem privilegiado os voos militares em detrimento dos socorros: em outras palavras, a segurança em vez da ajuda humanitária. Mas tudo entrou nos eixos, eles afirmam. Os voos do Exército americano agora estão programados para a noite.
Quanto aos outros aviões, as prioridades são estabelecidas "pelo governo haitiano". E a secretária de Estado, Hillary Clinton, durante sua visita assinou um acordo com o presidente René Préval regularizando a tomada de controle do aeroporto. A conversa aconteceu no hangar "tomado" pelo sargento Chris Grove e depois transformado em QG americano
Para os americanos, o Haiti é tanto uma exigência humanitária quanto uma exigência de segurança nacional. Cada vez que acontece um tumulto relacionado ao Caribe, especialmente com Cuba, eles temem um êxodo que mandaria centenas de milhares de refugiados para a Flórida, situada a somente 1.200 quilômetros. Para justificar seu comprometimento em favor do Haiti, Barack Obama também acrescentou uma exigência moral em nome da "humanidade comum" compartilhada por todos os povos da Terra. Para a imagem que os americanos fazem de si mesmos, e para aquela que seus vizinhos têm deles, é necessário ajudar o salvamento do Haiti, disse ele. É uma questão de liderança.
Mesmo que as duas situações não tenham nada a ver, o paralelo com o furacão Katrina foi abordado, em sua vantagem - e para a grande satisfação da Casa Branca. A reação instantânea do presidente - meia hora depois de saber do terremoto, ele já publicava um comunicado - foi bem vista nos Estados Unidos, com algumas exceções.
A crítica mais ácida foi a de Rush Limbaugh, apresentador ultradireitista de rádio, que o acusou de adular a comunidade afro-americana, em um momento em que ela se sente abandonada por seu presidente "pós-racial".
O Haiti mantém uma longa história - e muitas vezes turbulenta - com os Estados Unidos desde a primeira campanha de julho de 1915, decidida por Woodrow Wilson, precursor das intervenções armadas conduzidas em nome da promoção da democracia (a ocupação durou 19 anos).
Os Estados Unidos "voltaram" em 1994, quando Bill Clinton resolveu restabelecer no poder o padre Jean-Bertrand Aristide, vítima de um golpe de Estado. E depois em 2004, para expulsar o mesmo Aristide, que se tornara um ditador sanguinário. Todas as vezes o exército americano serviu de elemento avançado de uma força multinacional da ONU.
Tomada por uma ambição de fazer o "bem", a administração Obama desta vez promete um compromisso a longo prazo para acabar com um mal crônico. Em um momento em que duas guerras estão esgotando seus recursos, é difícil acusar os americanos de estarem comandando uma nova "ocupação" qualquer.
Se a ONU tivesse enviado controladores aéreos a Porto Príncipe no dia seguinte ao terremoto, o sargento Chris Grove não estaria tumultuando os céus do Haiti.