quarta-feira, 20 de abril de 2022

Resistimos. Chegou a nossa vez.

Murillo Victorazzo

O carnaval da resistência. Não, não é "clubismo". "Resistência" é o enredo que o Salgueiro levará para Avenida. Personagens, manifestações culturais e locais simbólicos do Rio de Janeiro serão retratados para celebrar a luta do povo preto desde a chegada dos primeiros africanos na cidade. Mas a resistência vai além. Além do "empretecer o pensamento" da Beija-Flor e dos Exu e Oxóssi da Grande Rio e Mocidade. Além dos erês da Tijuca e de Cartola, Jamelão e Delegado, ícones pretos não apenas da Mangueira, mas da cultura popular brasileira. Além do gigante Martinho, mais do que nunca de Vila Isabel.
 
A resistência vem de todas as comunidades que formam a maior manifestação cultural desse país, gostem ou não. Deram o exemplo nesses dois anos. Enquanto setores da sociedade negavam, esperneavam ou burlavam políticas de saúde, elas não titubearam. Cancelaram, sem gritaria, os desfiles de 2021, mesmo sabendo dos impactos sociais e econômicos, tamanha é a cadeia produtiva envolvida. Junto com os desfiles, cessaram shows e ensaios, indissociáveis ao calendário turístico e cultural da cidade. Os barracões fecharam. As quadras, abertas apenas para mutirões, como os para confecções de máscaras. No melhor simbolismo, tornaram-se postos de vacinação.
 
Uma escola de samba não se resume a 70 minutos de desfile. Nem mesmo à sua produção. É espaço de congraçamento, pertencimento, trabalho comunitário - de educação passando por esporte e saúde - durante 365 dias no ano. É célula identitária. É entidade social, econômica e cultural durante qualquer mês do ano. É corpo vivo perene, não sazonal. Griôs são, na linguagem afro, aqueles que detém a tradição oral de repassar e preservar a história, lendas e canções de um povo. As escolas são, muito além de um espetáculo televiso, reuniões frequentes de griôs. Na verdade, são imortais griôs despersonalizados. "Escolas de samba não existem porque desfilam. Escolas de samba desfilam porque existem", resume brilhantemente o genial Luis Antonio Simas. A pandemia inibiu essa existência contínua, que ultrapassa a Marquês de Sapucaí.

Além da tragédia sanitária, elas resistiram também às consequências do empoderamento de forças reacionárias, de cunho elitista ou religioso, que meses atrás utilizaram-se da pandemia como pretexto para atacar o que lhes incomodam, enquanto eventos fechados se proliferavam. Porque escola de samba é onde convenções e preconceitos são deixados do lado de fora. Ali somos o que somos, unidos apenas pra festejar a vida e o orgulho de nossa cultura; o mais legítimo fenômeno social, espontâneo, de baixo para cima. Essa brasilidade linda, inigualável e diversa que difere tanto do patriotismo hipócrita da "moral e cívica" oficialesca, com seus coturnos, apropriações de símbolos nacionais e instrumentalizações da fé alheia.
 
As escolas foram chamadas novamente a dar exemplo diante da terceira onda da pandemia - e deram. Taí, apesar de tudo, um carnaval no outono. Mas a resistência não impediu a pandemia de levar alguns dos griôs mais icônicos. Outros se foram por outros motivos. Tantos em tão pouco tempo. Numa infeliz coincidência, algumas das principais escolas entrarão na Sapucaí, dois anos depois, sem nomes que as personificavam: o Salgueiro de Sabiá, a Mocidade de Elza, a Mangueira de Nelson Sargento, a Portela de Monarco, a Imperatriz de Maria Helena. Outros, como Laíla e Dominguinhos, deixaram sua marca por onde passaram.
 
Não será um desfile qualquer. Será o carnaval da resistência, da saudade; mais do que nunca da catarse pela vida. São muitos sentimentos represados. Chegou a nossa hora. A hora do mundo vê-las, mesmo aqueles que se lembram delas apenas no carnaval e os que as detratam, sempre fazendo força para, além de gostos, não entenderem o seu significado cultural e econômico. As escolas são nossas caras, e essa galera odeia se ver no espelho, sempre curvada para seus umbigos idealizados a partir de imagens além Atlântico ou livros religiosos. Agora estão prontos para tentarem um camarotezinho e "cagarem regras" sobre elas nas redes sociais.
 
É dia 20 de abril. Quis o calendário que o início de tudo fosse nesta quarta-feira, dia de jogo do time mais popular da cidade, em um Maracanã lotado. Futebol e samba novamente se misturam, desta vez não apenas no imaginário cultural identitário. Vem aí um previsível gigantesco trânsito. Aquele caos pulsante que transborda alegria, beleza e irreverência. É a cara dessa cidade. Evoé! O meu Rio voltou.

segunda-feira, 18 de abril de 2022

"Estamos num momento em que precisamos ter parceiros confiáveis", diz embaixador da União Europeia sobre o Brasil

No Brasil desde julho de 2019,  o espanhol Ignácio Ybañez responde pela União Europeia no Brasil em um momento de desgaste das relações entre o governo federal e o bloco. Os choques entre o presidente Jair Bolsonaro e líderes europeus principalmente acerca da política ambiental brasileira congelaram o processo de ratificação do acordo de livre-comércio dos europeus com o Mercosul. O estranhamento se reforçou com a postura hesitante do Brasil sobre a guerra da Ucrânia. Apesar de ter votado a favor da resolução que condenou a invasão russa, o país preferiu não se somar aos que aplicaram sanções contra Moscou.

Em entrevista ao GLOBO no último dia 6, o embaixador da União Europeia afirmou que o único empecilho ao acordo comercial "diz respeito ao desmatamento e aos direitos dos povos indígenas". "Quando o Brasil começar a realmente converter os seus compromissos em realidade, o acordo vai ter muitíssimas possibilidades de ir adiante", garantiu. No entanto, embora prefira colocar as sanções como "parte de um diálogo entre parceiros", Ybañez faz questão de falar em confiança: 

"Queremos levar ao Brasil a esse convencimento. Um acordo comercial é uma aposta de dois parceiros, que dizem: acredito em você como meu parceiro comercial e quero desenvolver uma relação baseada na confiança e no respeito mútuo. E o acordo entre Mercosul e União Europeia é precisamente isso. Estamos num momento em que precisamos ter parceiros confiáveis"

Ibañez reconhece que o posição do Itamaraty segue a linha tradicional da política externa brasileira, independente do governo de plantão. É consenso na diplomacia nacional que sanções só devem ser impostas de forma multilateral, ou seja a partir de resoluções do Conselho de Segurança da ONU, o que é impossível neste caso, dado o direito a veto dos russos como membros permanentes. Afirma compreender a preocupação com os reflexos na agricultura do país, como os que se referem aos fertilizantes. Ressalta, porém, que os efeitos colaterais também atingem a Europa, dando o exemplo da dependência do gás russo e os esforços para reduzí-la.

"As sanções são nossa resposta, porque não queremos chegar a um conflito militar.  Não é fácil para nós mesmos, pois significa sacrifícios para a nossa economia, mas quanto mais mostrarmos unidade na comunidade internacional, mais rapidamente elas vão funcionar.  Se o Brasil pensa nos efeitos que possam surgir, vamos ajudar. Queremos que a opinião pública brasileira compreenda que essa não é só uma guerra europeia e que o desafio que a Rússia está trazendo para o conjunto da comunidade internacional é para cada um de nós".

Na entrevista, o embaixador assegura que a relação é primordial e se utilizada das proximidades culturais como estratégia para atrair o Brasil e seus vizinhos. "Buscávamos no passado de forma intensa com a Rússia, continuamos a buscar com a China. Mas, se você quer buscar parceiros que compartilhem os valores, compartilhem a história, compartilhem um modelo econômico que querem para os seus cidadãos, esses são a América Latina e a Europa, sem dúvida", diz, reforçando os laços com menção à candidatura do Brasil à OCDE, em implícita pressão por contrapartida: "O Brasil quer ter o mesmo modelo que a OCDE tem, baseado na democracia, na economia de mercado, e no princípio de sustentabilidade". 
Ainda que ressalte respeitar a soberania parlamentar brasileira, o embaixador não esconde  o que o bloco europeu pensa a respeito dos projetos em andamento no Congresso Nacional que flexibilizam a fiscalização ambiental e permitem a exploração mineral em terras indígenas: "Há alguns projetos que acompanhamos com preocupação, que vão contra o que a União Europeia considera que é a direção da direção da sustentabilidade".

Outro efeito colateral da guerra na Ucrânia, desta vez sem envolver o Brasil, é o fortalecimento das políticas em comum de segurança europeia, setor historicamente mais resistente à integração. Ybañez considera que as ameaças e ações de Putin foram o estopim para os europeus reforçarem a convicção na necessidade de um plano de defesa europeu, uma das primeiras ideias do bloco, mas nunca concretizadas. O contexto aparenta ser ainda mais favorável por estar, neste momento, a Presidência do Conselho Europeu nas mãos da França, cujo presidente sempre foi uma dos principais entusiastas do projeto.

"A União Europeia se construiu sempre depois de uma crise. Por exemplo, a pandemia da Covid foi um salto importante, com a compra coletiva de vacinas, o que nunca havíamos feito. E no âmbito militar isso vai acontecer, tanto na indústria de armamentos como em projetos de construção conjunta. Não significa ir contra ninguém, e sim de termos a capacidade de reagir do ponto de vista militar para nossa segurança e do mundo todo".

sexta-feira, 1 de abril de 2022

31 de março de 64: o senador que tirou João Goulart no grito e oficializou golpe militar

Por Willian Helal Filho

Os negacionistas da História dizem, hoje, que a deposição do presidente João Goulart não foi um golpe porque teria sido sacramentada pelo Congresso Nacional, depois da mobilização militar de 31 de março de 1964. Mas esse argumento não fica de pé quando se entende como Jango foi derrubado por, literalmente, um grito do então presidente do Senado, Auro de Moura Andrade. Arquirrival de Goulart, o paulista de Barretos insistiu na falsa informação de que o mandatário deixara o país após o avanço das tropas e declarou a vacância do cargo de chefe do Executivo, sem sequer pôr o tema em votação no parlamento.

Mas como isso aconteceu? Depois que os soldados da IV Região Militar, em Juiz de Fora, avançaram sobre o Rio, desencadeando a movimentação de outras unidades do Exército pelo país, o Congresso Nacional mergulhou no caos. João Goulart, que estava no Rio, voou para Brasília no dia 1º de abril. Porém, com a capital federal também sitiada por forças golpistas, o gaúcho de São Borja tomou um avião para Porto Alegre na mesma noite, com o objetivo de reunir tropas legalistas no Sul e deixando para seus aliados a tarefa de defender seu mandato na Câmara e no Senado.

Segundo a Constituição de 1946, em vigência na época, havia três formas de o presidente ser afastado: renúncia, impeachment ou se o chefe do Executivo deixasse o país sem autorização do Congresso. Como Jango estava decidido a não renunciar, e como a oposição sabia que não teria votos para um impeachment, os líderes do golpe em Brasília optaram por mentir ao afirmar que o presidente saíra do Brasil.

Na madrugada de 2 de abril de 1964, o Congresso estava em ebulição. Senadores e deputados federais haviam sido chamados às pressas para uma sessão no plenário da Câmara. Mas, dos 460 parlamentares, apenas 178 apareceram: 158 deputados e 26 senadores. Durante os trabalhos, foi lida, pelo secretário do Congresso, uma carta do então chefe da Casa Civil, Darcy Ribeiro, comunicando que Goulart, "em virtude dos acontecimentos das últimas horas, decidiu viajar para o Rio Grande do Sul". Presidindo a sessão, Moura Andrade insistiu nas "fake news".

"O senhor presidente da República deixou a sede do governo, abandonou o governo! Assim sendo, declaro vaga a Presidência da República", rosnou o senador do PSD ao microfone, rasgando, ao mesmo tempo, a Constituição e o seu diploma da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), sob protestos dos governistas.

Andrade era um dos principais opositores de Goulart, chamado de comunista por defender "reformas de base" para combater a desigualdade social. No dia 15 de março de 1964, o senador declarara que as relações entre Executivo e Legislativo estavam rompidas. No dia 19, discursara na Marcha da Família com Deus pela Liberdade em São Paulo, organizada por grupos contrários ao governo. No dia 30, após o famoso discurso de Jango no Automóvel Clube, em uma reunião de sargentos que haviam se envolvido numa revolta na Marinha, Andrade divulgou um manifesto apelando às forças armadas para que restabelecessem a "ordem constitucional".

Segundo a tese dos conspiradores, Jango estava armando um "autogolpe" para implantar o socialismo no país. Os militares, que já vinham planejando tomar o poder, haviam marcado a ofensiva sobre a República para 2 de abril. Entretanto, o general Olímpio Mourão Filho, da IV Região militar, decidiu colocar o bloco na rua antes da hora e tomou a estrada para o Rio às 5h do dia 31 de março de 1964.

Depois que o presidente do Senado reagiu no Congresso como o Exército queria, foi dado seguimento à farsa. Moura Andrade encerrou a sessão e desligou as luzes do plenário, fugindo dos governistas, escoltado por seus aliados, até o gabinete do presidente da Câmara, o deputado Ranieri Mazzilli (PSD), que, segundo a linha sucessória, deveria ser nomeado presidente. Às 3h45 da madrugada de 2 de abril de 1964, numa rápida sessão com a presença de Andrade e do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Ribeiro da Costa, Mazzilli foi empossado.

No mesmo dia, em Porto Alegre, Jango começou a esboçar resistência e cogitou criar uma nova sede do governo federal na capital gaúcha. Mas havia poucas tropas legalistas ainda disponíveis e, para agravar sua situação, os Estados Unidos, que apoiaram o golpe, reconheceram rapidamente Mazzilli como presidente do Brasil. Sem querer contribuir para um banho de sangue, Goulart desistiu da resistência armada e foi para a sua São Borja natal. No dia 4 de abril, quando viu que havia de fato perdido o governo, optou pelo exílio no Uruguai.

A "presidência" de Mazzili não durou muito tempo. O poder de fato estava com uma junta militar autointitulada Comando Supremo da Revolução, composta pelo general Artur da Costa e Silva, o almirante Augusto Rademaker e o brigadeiro Francisco de Assis. O Ato Institucional de 9 de abril de 1964, assinado por essa junta para dar um verniz de legalidade ao golpe, dizia que "a revolução vitoriosa se legitima a si mesma", decretava a suspensão dos direitos políticos de todos os opositores ao novo regime e determinava a eleição indireta do próximo presidente.

O primeiro Ato Institucional levou à cassação de 40 deputados da oposição. Assim, com o caminho livre, no dia 9 de abril, o marechal Humberto Castelo Branco foi eleito presidente pelo Congresso Nacional, com 72 abstenções e 37 ausências. Começava, então, o primeiro governo da ditadura militar. No início, os homens de farda diziam que o período de exceção seria curto e que o poder seria devolvido aos civis em 1966. Mentira. O regime autoritário se manteve por 21 anos, com perseguição, tortura e execução de opositores, supressão das liberdades individuais, censura à imprensa e à produção cultural e aprofundamento da desigualdade social. Tudo isso deixou sequelas com as quais convivemos até hoje.