quinta-feira, 25 de novembro de 2021

Mónica Hirst: “ O sistema interamericano é uma degradação do que foi; está mais ideologizado do que durante a Guerra Fria”

 Por Mariano Turzi ( Clárin, 20/11/2021)

Monica Hirst reflete em sua própria pessoa sua área profissional. Americana de nascimento, brasileira de coração e argentina por adoção, sua experiência e treinamento vão da América do Sul aos Estados Unidos. Historiadora e doutora em Estudos Estratégicos pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, é um dos principais nomes a serem ouvidos quando o assunto são as relações entre os países do continente americano.

Foi professora em faculdades do Rio de Janeiro, São Paulo e nas universidades de Standford e Harvad, além de consultora independente para o PNUD, Fundação Ford, Corporação Andina de Fomento (CAF) e os ministérios das Relações Exteriores de Argentina, Colômbia e Brasil. Atualmente integra o grupo “Paz y Dialogo" que opera no "Nueva Sociedad, projeto da Fundação Friedrich Ebert (FES), instituição ligada ao partido social-democrata alemão (SPD), com escritórios em diversos países latino-americano. Hirst compartilhou com Clarín sua visão sobre o estado atual do regionalismo latino-americano.

Clárin - O que resta do "regionalismo anárquico" latino-americano, um conceito que você cunhou anos atrás para caracterizar a política da região?

Mônica Hirst - Pensei nesse rótulo na época para criar uma imagem: já estávamos vendo tendências dispersivas e fragmentantes, problemas intrarregionais, fortes diferenças políticas. As questões básicas foram a baixa institucionalidade e o vácuo de liderança após as expectativas não correspondidas do Brasil, após o primeiro governo do PT. Venezuela formando um grupo ideologicamente fechado em torno de ALBA, Chile sem uma identidade regional clara, Colômbia com um processo de paz virtuoso, mas incapaz de ser traduzido em um projeto regional.

Clárin - E o que mudou?

Hirst - O regionalismo ainda estava na ordem do dia. A Unasul ainda existia. Com problemas e tendências fragmentantes, mas não era tão disfuncional como hoje. Hoje está em ruínas. Nosso regionalismo está em um parêntese, um momento onde as forças menos construtivas e mais malignas emergem. E há uma malignidade relacionada a este momento do nosso regionalismo.

Clárin - O que é essa malignidade?

Hirst - Há um conjunto de explicações convergentes que articulam um processo. Em primeiro lugar, há a projeção para a região da polarização político-ideológica das esferas internas em cada um dos países. Isso tinha a Venezuela como epicentro, mas não só. Assim, a capacidade de diálogo político regional foi paralisada e contaminada. Gestos contundentes como a retirada de adesões da Unasul inviabilizaram a própria a instituição. A evolução do Brasil é outra causa. Quando um país de peso, tamanho e projeção do Brasil na América Latina nega a importância da relação com seus vizinhos, isso inevitavelmente tem um impacto e ocorre um vácuo.

Clárin - O que acontece no Brasil?

Hirst - Historicamente, o Brasil sempre foi um ator relutante do ponto de vista do seu regionalismo latino-americano ou sul-americano. Mudou para uma maior presença, responsabilidades e até mesmo liderança semicompartilhada, com a criação do CELAC, Unasul, a articulação militar entre as Forças Armadas, por exemplo, nas operações de paz no Haiti. Esse movimento interno no Brasil que permitia a construção regional proativa foi desmantelado.

Clárin - A crise do regionalismo é vista em outros casos?

Hirst - Na Venezuela, fica claro que há uma crise do processo democrático dentro da institucionalidade. E a presença de atores de alta política internacional como a Rússia, os Estados Unidos e a China torna necessário um tipo de negociação política para a qual a região não está coordenada ou preparada.

Clárin - Como Washington vê a região?

Hirst - Os Estados Unidos não gostam do regionalismo latino-americano. Da negligência do período Obama fomos aos maus tratos do período Trump. Seja ele democrata ou republicano, o regionalismo latino-americano sempre incomodou politicamente o país. Biden simplesmente ignora nossa existência como ator internacional ou espaço relevante para seus interesses.

Clárin - Por quê?

Hirst - Porque, em sua própria projeção global, o regionalismo não tem lugar. Nunca foi visto como um pilar da hegemonia americana. Sempre a percepção era de que era dispensável, não há sequer funcionalidade ou senso instrumental. Há uma leitura permanente desde a Guerra Fria: o regionalismo gera maiores riscos de perda de controle por ser autonomista. É uma lógica de soma zero: mais regionalismo latino-americano, menos possibilidade de ação em nossa região.

Clárin - Isto explica explica as diferenças dentro da OEA?

Hirst - O sistema interamericano era uma ideia com que Washington sempre jogou. Com a revolução cubana, ele teve seu momento de glória. A presença política, econômica (do BID) e militar (o TIAR), com a OEA como espaço para disciplina político-diplomática. Mas o sistema interamericano de hoje é uma degradação do que era.

Hoje é um palhaçada, um desrespeito institucionalizado, uma humilhação. É mais ideologizado do que durante a Guerra Fria. Somado à nossa própria polarização, enfraquece nossa vida democrática. Não como na época dos golpes militares nos anos 60 e 70. Não é nem uma fonte positiva para a recuperação do diálogo ou liderança americano.

Clárin - Como entra, neste contexto, o ocorrido na Nicarágua esta semana e sua guinada autoritária?

Hirst - A experiência da Nicarágua foi transformada em um projeto de poder que se apropriou de uma narrativa, mas reproduz um processo autoritário que prolonga a permanência no poder sem qualquer legitimidade e invalida as normas de direitos humanos. Ao mesmo tempo, é o primeiro caso em que os EUA e a UE trabalham juntos na região em defesa dos ideais liberais, de alguma forma repensando a Doutrina Monroe.

Clárin - E como a presença da China afeta o cenário regional?

Hirst - É mais funcional para a China do que para a América Latina. A China aparece e se expande em um momento de parênteses do regionalismo. É por isso que pode avançar bilateralmente com total liberdade, com especificidade de seus interesses e com compromissos menores (reciprocidades, construção de diálogo coordenado). A China é pragmática, não está projetando seu modelo político em todo o mundo, então compará-la com a URSS parece errado para mim.

quarta-feira, 24 de novembro de 2021

Bolsonaro e o meio-ambiente: como torrar um "soft power" em poucos meses

Por Murillo  Victorazzo

Nos estudos das relações internacionais, os recursos de poder que um país dispõe costumam ser divididos entre hard powers e soft powers. Os primeiros são instrumentalizados por meio da coerção, seja bélica ou econômica; os segundos, através do exemplo e da admiração, tais como a cultura, o esporte, belezas naturais e construção de imagens sobre seu população. Nos últimos dois meses, Jair Bolsonaro acumulou situações em que prosseguiu com sua sanha de destroçar um dos principais soft powers da nação que governa.

A grotesca maratona iniciou-se no final de setembro, na abertura da Assembleia Geral da ONU, onde transformou novamente um discurso que deveria ser voltado à cooperação mundial nas agendas prioritárias contemporâneas em mais uma de suas lives preparadas para inebriar seu fã-clube interno radicalizado. Terminou semana passada em Roma, quando, após não conseguir, na Cúpula do G-20, sequer uma reunião bilateral com outros chefes de Estado ou governo, preferiu ser recepcionado pelo líder da extremista Liga Norte, Matteo Salvini, famoso por parafrasear Mussolini, a estar presente na Conferência do Clima da ONU (COP-26), na Escócia.

Deixava para seu ministro do Meio-Ambiente tentar, em Glasgow, conter danos com anúncios distantes do passado remoto e recente de seu chefe. Nos Estados Unidos e na Europa, em troca, recebeu ironias e desprezo constrangedores da grande maioria das delegações ali presentes, à direita e à esquerda. Sem Trump para levá-lo pelos braços, tornou-se uma figura irrelevante. A insignificância é pior do que a rejeição notada em seus primeiros anos de governo.

Poucos dias após discursar em Nova York, os Verdes (Die Grünen ), além de obterem sua maior votação desde sua criação, saíam das urnas da Alemanha como a terceira força do Bundestag. Ao dobrarem sua bancada (de 51 para 118 cadeiras), tornavam-se os fiadores de qualquer governo que viesse a ser formado. Primeiro lugar entre os mais jovens, ao lado do liberal FDP, o desempenho refletia o que pesquisas e 500 mil pessoas nas ruas de diversas cidades uma semana antes já haviam sinalizado: as mudanças climáticas hoje encontram-se no topo da lista de preocupações dos alemães.

A enorme manifestação a favor de politicas públicas ambientais mais incisivas ganhou tração com as devastadoras enchentes de julho. Com saldo de 150 mortes, a tragédia também ajuda a explicar o pior desempenho da história do democrata-cristão CDU: Armim Lachet, o cabeça de chapa do partido, era, até poucos dias atrás, o governador da Renânia do Norte-Vestfália, estado mais atingido. Nem mesmo a alta popularidade de Angela Merkel foi capaz de evitar o fracasso.

Após dois meses de negociações, nesta quarta-feira, dia 24, o acordo para o novo governo foi firmado. Liderado pelo social-democrata SPD, contará com o Die Grünen e o FDP - a já apelidada "Coligação Semáforo": além do verde, o vermelho do SPD e o amarelo dos liberais. Além da vice-chancelaria, a
legenda ambientalista será responsável, entre outros, pelos ministérios das Relações Exteriores, Economia - que será rebatizado de Economia e Proteção Climática - e Economia Agrária.

Entre os pontos do programa de governo anunciados, os Verdes conseguiram garantir a antecipação para 2030 do prazo para o fechamento de todas as usinas de carvão e a permissão para compra de veículos a combustão até 2035, além do controle de cada projeto quanto a seu impacto climático, meta de ocupar 2% do território com turbinas eólicas e obrigatoriedade painéis solares em prédios novos e instalação em massa nos existentes. Em mente, a neutralização das emissões de carbono até 2045.

Olaf Scholz, o futuro primeiro-ministro, reafirmou que a agenda ambiental será "obrigação central" de seu governo. Junta-se assim à tendência da atual política norte-europeia, onde Noruega, Suécia, Dinamarca Finlândia e Islândia, depois de mais de duas décadas, voltaram a ter conjuntamente governos de centro-esquerda, relembrando o histórico bastião social-democrata na região - e todos com ascendentes partidos ambientalistas participando com destaque das coligações majoritárias. A onda verde atinge inclusive a Noruega, cujas exportações dependem fortemente da exploração de combustíveis fósseis (42% das receitas). Ao mesmo tempo, é hoje o país que proporcionalmente mais vende carros elétricos no mundo (55% do mercado interno).

A pauta ambiental, no entanto, ao contrário do que o reacionarismo bolsolavotrumpista dissemina, não se limita ao campo da esquerda. Em seus 16 anos de governo, Merkel, por sua atenção ao assunto desde os tempos de graduanda de Física, ganhou a alcunha de "chanceler do clima". Propostas nesse sentido estão presentes nas siglas de centro-direita europeias, como o agora governista FDP, e movimentos liberais lá e aqui no Brasil (Renova, Livres, Acredito), variando apenas o quão ambiciosas são, em muito por preocupações a respeito do gasto público necessário.

Não encontra espaço, claro, entre os adeptos do modismo libertário e "anarcocapitalista" de Mises, segundo o qual qualquer regulação à produção desenfreada capitalista é considerada "caminho para o socialismo", reducionismo que alicerça as típicas teorias da conspiração da "nova direita" conservadora (reacionária): ambientalismo é orquestração "globalista", ou "marxismo cultural" - a obcecada metáfora da melancia (verde por fora, vermelha por dentro). Um verniz ultraliberal para dar brilho ao que há de mais atrasado.

Nesse contexto, se não é o clichê raso de “pulmão do mundo”, é incontestável o papel fundamental do ecossistema amazônico na troca de gases do efeito estufa, tanto devido à capacidade de absorver grande quantidade de carbono como por emiti-los em queimadas e determinadas atividades econômicas, especialmente o metano na pecuária. Ademais, sem seus “rios voadores”, os demais biomas sul-americanos se tornam inviáveis. "A floresta amazônica está conseguindo compensar apenas 1/3 de todas as emissões humanas", revela Patrícia Gatti, pesquisadora do Inpe e uma das autoras de estudo, publicado na revista Nature, que mostra que a floresta tem emitido mais gás carbônico do que é capaz de absorver.

Há cerca de 30 anos, iniciando pelo liberal Collor, passando pelo tucano social-liberal Fernando Henrique, os petistas Lula e Dilma e indo até Temer, o Brasil percebeu a oportunidade de tornar nossa especialíssima biodiversidade - que vai além da Amazônia, ressalte-se - fonte de forte soft power. Em vez do isolacionismo reativo e negacionista da ditadura militar, reconhecer e enfrentar os passivos ambientais dava ao país legitimidade para tomar à frente nas discussões sobre assunto em que inevitavelmente precisa ser ouvido. Pelo exemplo, enfraquecia qualquer tipo de pressão externa.

Tal legitimidade se traduzia em ganhos econômicos e políticos. Os produtores brasileiros ganhavam selo ambiental com lastro de credibilidade e se escudavam de interesses protecionistas de setores agrícolas norte-americanos e europeus, que se aproveitam de preocupações genuínas. Na ausência de hard powers, uma postura proativa nos abria espaço na arena do sistema interestatal e dava estofo ao manejo do projeto de liderança regional. O Brasil se tornava global player em agenda que ganhava proeminência em um mundo globalizado marcado pela ideia kantiana de integração.

Fazer o dever de casa significava sair da busca da "autonomia pela distância" para a "autonomia pela participação" - em outras palavras, aderir a regimes internacionais. A um país com poucos recursos de poder interessa a consolidação de regras e instituições multilaterais, por, através delas, ser possível moldar uma ordem internacional previsível e inibidora da "lei mais forte". Mesmo imperfeitas, dentro delas, com coalizões e regulações, mitiga-se o desequilibro da balança de poder. A tradição multilateralista da política externa brasileira ganhava novos contornos. A partir de então, passamos a não só participar como liderar a construção de normas internacionais ambientais.

Meio-ambiente deixava de ser visto como ameaça à soberania para ser vetor de desenvolvimento nacional. Assim o Brasil sediou a Eco-92, assinou o Protocolo de Kyoto, ratificou a Convenção Sobre Diversidade Biológica e teve atuação destacada nas negociações do Tratado de Paris, em 2015, quando centenas de países firmaram metas de corte de emissão de gases do efeito estufa.

Em 2002, na Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável, em Joanesburgo, o país conduziu a elaboração de dois conceitos: o de "desenvolvimento sustentável", fundamentado no direito ao desenvolvimento dos países mais pobres e a soberania sobre seus recursos naturais - embora sem negar seus deveres - e o de "responsabilidades comuns, porém diferenciadas", segundo o qual os que historicamente mais poluíram deveriam arcar com maiores ônus na mitigação desses gases. E rechaçou a ideia de "patrimônio comum da humanidade”, temeroso de suas implicações sobre a Amazônia. "Uma engenharia diplomática" que mereceu aplausos de setores nacionalistas do pensamento brasileiro, como o historiador Amado Cervo, um dos mais renomados especialistas em Política Externa brasileira.

Internamente, em 2004, o governo lançou o Plano de Controle e Prevenção do Desmatamento. Em 2012, o Congresso aprovou o novo Código Florestal após demorados embates entre ambientalistas e ruralistas, mediados pelo Executivo. Criou-se, em 2007, o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). IBAMA e FUNAI ganharam musculatura.

De quarto lugar no início da década de 90, passamos a décimo maior emissor de gases do efeito estufa. Ao mesmo tempo em que nos tornávamos potência agrícola, base para os anos de crescimento do PIB na primeira década do século, as taxas de desmatamento caíam. Entre 2004 e 2013, o índice na Amazônia despencou cerca de 80%. Evidenciava-se que regulação ambiental nunca foi incompatível com crescimento econômico. O que traz produtividade é tecnologia, conhecimento e uso sustentável do solo, não a expansão descoordenada de terra devastada.

É óbvio que nem tudo eram flores, com o perdão do trocadilho. Os antagonismos internos entre as pastas da Agricultura, comandados por nomes ligados ao ruralismo, e do Meio-Ambiente causavam constantes tensões política. Como ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff desequilibrou a balança a favor dos primeiros, levando ao pedido de demissão de Marina Silva, um divisor de águas no movimento ambientalista brasileiro e nos governos petistas.

Ambientalistas entraram em choque com o governo Dilma na busca por um Código mais rígido - e principalmente pela polêmica construção, em meio a desgastante processo judicial, da Usina de Belo Monte, fruto da tradicional concepção de modelo de crescimento econômico que vê a Amazônia como colônia energética. Entre 1997 e 2020, destruíram-se oito por cento da floresta amazônica em terras públicas, área pouco maior que o Uruguai.

A partir dos últimos anos da administração da petista, diante de severa crise econômica e política, as taxas de desmatamento voltaram a subir. Pouco, porém, se comparado ao descontrole do governo Bolsonaro. Em seus mil dias de governo, completados em setembro, a taxa de desmatamento cresceu 74%. Segundo o Inpe, a curva ascendente nesses três anos da atual gestão chegou ao pior índice desde 2005. Com crescimento de 22% em relação ao ano passado, os 13 mil km² de área desmatada significa mais do que o triplo do mínimo alcançado em 2012, números fundamentais no cálculo de emissão dos gases do efeito estufa, sendo o país dono de matriz energética limpa.

Não por acaso, de 2019 para cá, voltamos a subir para a quinta posição entre os países emissores. Segundo o Observatório do clima, enquanto, em 2020, em meio à recessão mundial decorrente da pandemia, tais emissões caíram 7% no mundo, no Brasil aumentou 9,5%, em virtude também das queimadas no Cerrado e Pantanal. Na Amazônia, queimou-se mais em 2019 do que nos sete anos anteriores.

Mas mais do que percentuais bem mais elevados, a política ambiental de Bolsonaro tem enviado sinais contrários a todo o arcabouço construído nas décadas anteriores. Previsível diante do histórico do presidente, que, como deputado e candidato, notabilizou-se por acusar fiscais ambientais de "xiitas" ou "ideológicos" - julgando, como sempre, os outros por si próprio - e gritar teorias conspiratórias sobre a Amazônia, ecoando a visão geopolítica dominante da caserna, avessa a qualquer agenda que coloque no palco das relações internacionais outro ator que não seja o Estado-nação e seja entendida como ameaça a ele.

Uniu assim o trumpismo e sua retórica antimultilateral - algo completamente sem sentido para um país emergente como o Brasil, seja lá qual for o tema em debate - à típica exacerbada concepção militar de pluralismo nas relações internacionais, na qual política externa é sempre um jogo de soma zero. Bases conceituais que soam como música para uma de suas bases eleitorais: grileiros, garimpeiros ilegais e a parte do setor agropecuário rudimentar que, se não querem se convencer das implicações das mudanças climáticas a longo-prazo para o próprio ramo, ainda não entenderam que a Amazônia tem, hoje e amanhã, mais valor em pé do que no chão.

Recém-eleito, Bolsonaro anunciou a retirada da candidatura do Brasil para sede da Conferência do Clima da ONU (COP-25) em 2019 e chegou a prometer a retirada do país do Tratado de Paris, absurdo estancado pela pressão da ala internacionalizada do agronegócio. Anunciou a extinção do Ministério do Meio-Ambiente, realocando algumas de suas funções na Agricultura. Demovido da ideia, colocou a raposa Ricardo Salles para tomar conta do galinheiro.

Salles não decepcionou seu chefe: fragilizou o aparato do IBAMA e do ICMBio, e, sob o argumento de acabar com o "aparelhamento esquerdista", aparelhou-os, trocando funcionários de carreira por policiais militares em suas chefias. Não só extinguiu comitês dentro da estrutura do governo que davam voz à sociedade civil como faz campanha incessante de demonização de ONGs, instrumento basal para descentralizar e, portanto, maximizar a fiscalização e que alguém que se diz liberal deveria estimular. Acusações generalizantes ou sem provas de crimes e pechas, como serem instrumentos de interesses estrangeiros, sempre foram frequentes em declarações de ambos.

O governo tirou a autonomia de fiscais para multar e preferiu, além de criar um unilateral Conselho da Amazônia, também sem participação da sociedade civil, enviar militares sem expertise para combater queimadas e desmatamento. Atingiu-se, em 2020, o menor número de multas ambientais em 20 anos, perto da metade da média da primeira década do século. De janeiro a setembro de 2021, foram aplicadas 44% a menos do que no mesmo período de 2018.

Bolsonaro não cansa de repetir que a "Amazônia não pega fogo por ser úmida", mais uma de suas típicas misturas de cinismo com ignorância. Não pega fogo sozinha, e aí que mora o problema - na verdade, os crimes. Ou abusa do negacionismo, responsabilizando a cultura de subsistência das comunidades tradicionais e ribeirinhas, quando dados dos próprios órgãos estatais comprovam que apenas 6% do desmatamento em terras públicas se dão em reserva indígenas, em muito em função da presença ilegal de garimpeiros e grileiros.

Logo em seus primeiros meses, paralisou um projeto de cooperação internacional para manutenção da floresta ( Fundo Amazônia) por tentar mudar suas regras à revelia dos países financiadores - justamente Alemanha e Noruega. Coagiu a diretoria do INPE e desqualificou o órgão estatal a cada péssimo dado que saía. Propôs e apoia projetos no Legislativo e recursos no Judiciário que enfraquecem todo o arcabouço construído nas décadas anteriores - e agora, contraditoriamente com o que dizia no passado e pratica no presente, louvado por ele na ONU como "forte legislação ambiental, que deveria ser exemplo para o mundo".

Foram retiradas da gaveta do Congresso ou enviadas para lá projetos que extinguem unidades de conservação, legalizam com anistia terras invadidas por grileiros, alteram o processo de demarcação constitucionalmente previsto de terras indígenas (o "marco temporal" em debate também no STF) e flexibilizam o licenciamento ambiental. O senador filho do presidente chegou a propor lei que acaba com a reserva legal nas propriedades rurais, ideia criticada até por entidades do agronegócio.

Tamanho retrocesso permitiu, em proporção igual, o recrudescimento das pressões externas - tanto as legítimas como as protecionistas, que nele viram brecha favorável.Veio com elas a retórica vitimista de que, ao contrário dos governos anteriores, Bolsonaro defenderia a “soberania nacional”, quando é o derretimento desse soft power que a fragiliza. Nesse sentido, ressalte-se, as declarações de Macron, em 2019, com insinuações sobre "internacionalização" da Amazônia, e do então candidato Joe Biden, em 2020, semelhantes a certo "imperialismo verde", caíram como luva para o presidente brasileiro, em um típico caso de algozes que se retroalimentam.

Evocar soberania, por sinal, já deveria soar ridículo para um governo que se pautou por bandwagoning como estratégia de inserção internacional. Na verdade, uma espécie de alinhamento automático à superpotência ainda mais disfuncional, por, até janeiro passado, ir a reboque não dos Estados Unidos como nação, mas do projeto de poder do inquilino da Casa Branca, não só se furtando ao diálogo com toda a diversificada sociedade do país como chegando a antagonizar explicitamente com as demais forças políticas internas.

Nos meses que antecederam a eleição na maior economia da Europa e quarta do mundo, Bolsonaro não buscou pontes, como usualmente governos fazem, com nenhuma das quatro principais chapas concorrentes. O variado cardápio ia da centro-esquerda (SPD e Verdes) à centro-direita liberal e conservadora (FDP e CDU). Preferiu receber, em julho, no Palácio do Planalto, a deputada Beatrix von Storch, vice-presidente da Alternativa para a Alemanha (AfD), legenda extremista considerada pária entre os altos degraus políticos e econômicos do país e da União Europeia. Postou sorridente para fotos com ela, assim como fez a deputada Bia Kicis, sua aliada fiel.

Único partido a não abordar as mudanças climáticas em seu programa de governo, a AfD não só defende a saída do Tratado de Paris como o investimento nas altamente poluidoras usinas de carvão. Defende ainda a saída da União Europeia, a abolição de todas as medidas obrigatórias de combate ao coronavírus, a volta da definição tradicional de cidadania alemã, com base na ascendência, e o fim do direito constitucional ao asilo.

Após se aproveitar dos temores de parcela da população com a crise dos refugiados e a política de "portas abertas" de Merkel, a sigla perdeu 11 cadeiras em relação às eleições de 2017, caindo para a quinta posição. Diante de números que mostram a inserção econômica bem sucedida dos imigrantes, o tema, ao contrário do ambientalismo, ficou à margem na campanha. A segunda colocação em partes da antiga Alemanha Oriental leva seus líderes a garantirem que, em algum momento, deixarão de ser escanteados nas formações de coligações parlamentares em níveis federal e estadual. Por hora, porém, conservadores, verdes, social-democratas e liberais descartam qualquer tipo de diálogo.

Razões não faltam. Muitos de seus membros têm ligações com movimentos neonazistas. Alguns já questionaram a necessidade de um memorial ao Holocausto em Berlim. Seu gene xenófobo é inegável, a ponto de disseminarem a teoria conspiratória da "grande troca populacional", segundo a qual governos europeus, com a cooperação das "elites", conspiram para trocar a população branca por imigrantes árabes, muçulmanos ou africanos.

Em março deste ano, após a chacina a tiros de nove jovens imigrantes por um extremista, a agência de inteligência doméstica alemã (BfV) colocou sob vigilância a Der Flugel, a ala mais extremista do partido. Na primeira reunião da sigla após as eleições, entre outras pautas, a situação do parlamentar recém-eleito Matthias Helferich, que havia se descrito em um chat como "o rosto bonito do nazismo". Nenhuma moção contra ele foi aprovada.

Também sob a vigilância da BfV por "hostilidade à democracia" e riscos à segurança está o movimento Querdenken, criado contra as medidas de combate à pandemia do governo alemão, mas suspeito de ligações com grupos extremistas. Segundo a agência, sua agenda vai além da suposta "defesa das liberdades individuais". Na semana da Assembleia da ONU, o movimento veiculou em suas redes sociais uma entrevista com o presidente brasileiro.

Na ocasião, Bolsonaro repetiu seus mantras: defendeu o "tratamento precoce", colocou em dúvida a eficácia de vacinas e acusou, sem provas, hospitais de supernotificações de mortes. Mas desceu mais um pouco seu nível de empatia: "O covid apenas encurtou a vida das pessoas. Muitas tinham alguma comorbidade, então a covid apenas encurtou a vida delas por alguns dias ou algumas semanas". Já Kicis, também em entrevista ao movimento, afirmou que “o uso de máscaras faz você perder sua identidade".

Alarmado, o Conselho Central dos Judeus da Alemanha aplaudiu a iniciativa do órgão alemão a respeito do Querdenken. No Brasil, outras organizações judaicas, como a Confederação Israelita do Brasil (Conib) e Judeus Pela Democracia, Instituto Brasil Israel (IBI), repudiaram a visita de Von Storch, frisando o perfil xenófobo e supremacista do AfD, "cujos líderes minimizam as atrocidades nazistas e o Holocausto", e considerando a viagem ao Brasil uma "forma desesperada de legitimação internacional". Além dos bolsonaristas, líderes da legenda foram recebidos apenas por representantes do governo da Rússia e das autocracias de Síria e Belarus, aliados de Putin, interessado em enfraquecer a União Europeia.

Kicis, em carta enviada ao Conib, negou que o AfD seja um partido nazista - ainda que, "como todo grupo político" possa ter "integrantes mais extremados" - e garantiu serem ambas "defensoras dos valores judaicos-cristãos": "Combato nazismo quanto qualquer ideologia que segregue, persiga e mate". Neta de um ministro das Finanças do III Reich, Von Storch já mostrou-se, em suas redes sociais, a favor de que refugiados, mesmo com ciranças, possam ser parado a tiros nas fronteiras do país e protestou contra celebrações de Ano Novo em árabe no perfil do Twitter da Polícia de Colônia: "Eles pretendem apaziguar as hordas de homens bárbaros, muçulmanos e estupradores em massa dessa maneira?"

No diminuto círculo de aliados, além de Salvini, acrescente-se, desta vez no poder, o húngaro Victor Orbán, primeiro-ministro ultraconservador e eurocético, em choque com Bruxelas por politicas contra minorias, imprensa e Judiciário, exemplo mais bem acabado do que Adam Przeworski definiu como "subversão sub-reptícia": o frequente uso para fins antidemocráticos de mecanismos previstos em legislações democráticas. Acumulados, corroem gradualmente as instituições e o poder de atuação da oposição. No eufemismo autodeclarado pelo próprio Orbán, uma "democracia iliberal", conduzidas, nos casos à direita, por líderes populistas hábeis em alimentar o medo e a descrença popular nas instituições, além de se apresentarem como defensores das tradições religiosas.

Na defensiva, o governo brasileiro tenta agora modular seu discurso. Além do repentino apreço pela legislação ambiental, Bolsonaro afirma que reforçará o orçamento dos órgãos de fiscalização e cobra a concretização do Fundo Verde, dispositivo previsto no Acordo de Paris que prevê a destinação de US$ 100 bilhões dos países ricos como ajuda às nações em desenvolvimento no combate às mudanças climáticas. Barganha contraditória e tardia para quem travou o Fundo Amazônia e emitiu tantos sinais de desleixo com o assunto. Só dados concretos darão a legitimidade para se fazer exigências.

A falta de credibilidade se reforça com a pirueta matemática na hora de atualizar, na COP-26, a meta de corte de emissão de gases para 2030. Ao revisar pra cima os números de 2005, base do cálculo, o suposto aumento de 43% para 50%, que em tese nos igualaria a China e outros emergentes, não só apenas empata em valores absolutos com a proposta antiga como piora a percepção de que o Brasil não é um ator que merece ser levado a sério. Vender números falaciosos em tribuna internacional, enquanto posterga para depois da Conferência a divulgação dos péssimos dados sobre desmatamento no último ano, certamente só piora o quadro.

Por enquanto, nada sobre Acordo comercial entre o Mercosul e União Europeia, umas das poucas vitórias da ensandecida política externa de Bolsonaro, foi abordado nas negociações da "Coligação Semáforo". De olho no mercado sul-americano, Merkel sempre evitou exigir compromissos ambientais mais intrusivos dos que os já previstos, como a presença em tratados internacionais, para prosseguir no processo de ratificação do acordo. A assinatura precisa ser referendada pelos Legislativos de todos os países do bloco e o Parlamento europeu. Tudo leva a crer, porém, que Scholz aja de forma mais combativa, anda mais cabendo ao Verdes a condução da diplomacia a partir de agora.

Não é de hoje que o partido se mostra contrário a qualquer negociação com o governo brasileiro. Em comunicado à imprensa em abril, seus dirigentes defenderam que, "para obter benefícios econômicos, o Brasil deve fortalecer seriamente a proteção e a legislação ambiental, promover maciçamente a demarcação constitucionalmente prescrita dos territórios indígenas e fortalecer os direitos dos povos indígenas e das comunidades tradicionais". "Proteção climática precisa de política externa”, disse, no anúncio do acordo de coalizão, Annalena Baerbock, sua colíder no Bundestag e cotada para assumir o ministério.

Mês passado, liderado pelo bloco ecologista do qual o partido faz parte, o Parlamento Europeu bloqueou por 423 votos contra apenas 170 qualquer avanço no processo de ratificação do acordo, enquanto não houver garantias de "proteção da biodiversidade, em especial na Amazônia, e padrões agrícolas". A expressiva votação reflete a dimensão do tema na opinião pública europeia, indo além dos partidos mais próximos a interesses protecionistas, e o profundo ceticismo com a política ambiental de Bolsonaro, o que torna mais viável a aprovação do projeto de lei, proposto pela Comissão Europeia após consulta pública com mais de um milhão de assinaturas, que proíbe a importação de commodities cujas cadeias produtivas contribuam para o desmatamento.

Aprovado ou não o projeto, é consenso, até entre os favoráveis ao acordo comercial que, enquanto Bolsonaro estiver no Planalto e "sem progresso concreto no tema do desmatamento da Amazônia” , conforme as palavras do deputado democrata-cristão Sven Simon à Folha de São Paulo, a ratificação não andará. Percepção igual a de diplomatas brasileiros, já preparados para o esfriamento da relação bilateral com a Alemanha não apenas nesse ponto, um cenário que se soma às dificuldades de acesso ao governo dos Estados Unidos pelas razões mais do que conhecidas.

Em sua primeira viagem à América do Sul, o secretário de Estado norte-americano, Antony Blinken, excluiu o Brasil do roteiro que incluiu Colômbia e Equador, dos - frise-se - direitistas Ivan Duque e Guilherme Lasso. A Casa Branca nega que as razões sejam as conhecidas desavenças entre Biden e Bolsonaro, mas o próprio argumento de que o Brasil - a maior economia da América Latina, quinto maior país do mundo, responsável por 70% do ecossistema amazônico e dono de posição privilegiada no Atlântico Sul - já teria recebido, em agosto, a visita do número dois da secretaria, evidencia a perda do status de liderança regional.

Enquanto Bolsonaro era desprezado em Nova York, Duque jantava na mesma cidade com o magnata Jeff Bezos para receber uma doação de US$ 1 bilhão a ser usada na proteção do meio ambiente. Não por coincidência, seu governo prepara para regular emissões e avança em novos arranjos financeiros de clima e floresta. Em Bogotá, Blinken o elogiou por sua "liderança excepcional" em questões ambientais - e ainda mais sintomático, anunciou lá, e não no país detentor da maior parcela do bioma, o pacto regional para reduzir seu desmatamento a ser lançado por Washington.

Os EUA não veem mais o Brasil como ator confiável, o que era regra até em momentos delicados das relações bilaterais. Seja na época da amizade de Fernando Henrique com Bill Clinton, do surpreendente bom relacionamento entre o esquerdista Lula com o republicano George W. Bush, ou do distanciamento entre Obama e Dilma, após vir a público a espionagem norte-americana sobre a presidente brasileira e seu alto-escalão, a Casa Branca sempre considerou o país como importante fonte de moderação e estabilização da América do Sul.

Biden tem sido comedido no distanciamento. Não se sabe até quando. Deputados democratas, junto a setores da sociedade civil, pressionam o governo por manifestações mais enfáticas a respeito de violações de direitos humanos e destruição ambiental. Ganha força no Capitólio a oposição a qualquer tipo de acordo comercial com o Brasil, inclusive entre democratas pró-livre comércio, e a anulação da designação de aliado preferencial extra-Otan. Lá foi apresentado projeto semelhante ao proposto pela Comissão Europeia. "Produtores que desmatam são pessoas que têm uma vantagem comercial injusta, que trapaceiam, por isso têm que ser punidas", diz um dos deputados autores da proposta. Servindo ou não a possíveis bases eleitorais agrícolas, errado seu argumento não está.

A pressão se reforça com a surpreendente declaração conjunta com seu maior adversário no tabuleiro geopolítico internacional. Na COP-26, China e Estados Unidos se uniram para anunciar que "pretendem se engajar de forma colaborativa no apoio à eliminação do desmatamento ilegal global por meio da aplicação efetiva de suas respectivas leis de proibição de importações ilegais". Deixam claro que meio-ambiente é uma das raras agendas em que conseguem convergir, o que deve causar calafrios em Brasília e em setores ruralistas, confiantes no tradicional pragmatismo de Pequim, visto nas consequências das inúmeras polêmicas decorrentes da verborragia ideológica anti-China do presidente e seu grupo mais íntimo.

Pode-se achar a retórica do movimento ambientalista apocalíptica, quem sabe até ser cético quanto ao papel do ser humano nas mudanças climáticas, acreditando ainda ser possível separar a história natural da história do capital e da cultura. Qualquer um de nós, meros cidadãos, pode discordar do historiador indiano Dipesh Chakrabarty, que afirma não haver mais aquele mundo no qual "os processos da Terra eram tão grandes e poderosos que nada que fizéssemos poderiam mudá-los". Mas se o chefe de Estado ainda refuta ideologicamente o que a vasta maioria dos cientistas defende, o que dele se espera é, no mínimo, saber reconhecer as restrições do país que comanda e a conjuntura política e econômica.

Não se nega que as relações interestatais se movimentem antes por políticas de poder do que pelo idealismo kantiano de cooperação. Tampouco eventuais hipocrisias de países ricos, também com seus calcanhares de Aquiles, dificuldades em atingir metas propostas e hesitações. Ao contrário, trata-se de, pelo exemplo, saber usar os parcos recursos de poder disponíveis a fim de permitir ao país se posicionar no pelotão da frente da regata da sociedade internacional, evitando remar contra a maré e se ver sozinho na ribanceira. Valores a serviço da realpolitik.

Não por acaso, Letícia Pinheiro, uma das principais especialistas em política externa brasileira, cunhou a expressão "institucionalismo pragmático" para definir a atuação brasileira nos anos FHC e que, apenas com enfoques diferenciados, repetiu-se nos períodos petistas e de Temer. O trumpismo, errado ou não, só se fazia viável por se tratar da maior potência do mundo, com inigualáveis hards e softs powers, ainda que Trump enfraquecesse os últimos.

O reacionário se caracteriza por ver o mundo por um retrovisor idealizado, mas que, na realidade, acaba por lhe fornecer imagens distorcidas. É assim incapaz de notar o quão equivocado é, exceto como estratégia eleitoral interna, resumir tudo a interesses protecionistas ou apontar o dedo para o desenvolvimento predatório passado dos mais ricos, quando hoje as oportunidades e restrições contemporâneas são outras. Mês passado, a ANP colheu o maior fracasso na história dos leilões de petróleo pela cautela dos investidores internacionais diante da ausência de garantias ambientais na exploração dos campos oferecidos perto de Fernando de Noronha.

Nos últimos anos, enquanto o desmatamento disparava, o PIB caía ou se estagnou, outra sinal da falácia da suposta correlação positiva entre os dois. O Brasil só tem a ganhar economicamente se voltar a liderar a agenda ambiental, com políticas públicas proativas e incentivo à bioeconomia, em vez da, por exemplo, invasiva e poluidora garimpagem, fetiche do presidente desde seus tempos de oficial do Exército. Imagem é tudo, afirma o inevitável cliché da publicidade brasileira. E Bolsonaro é, com razão, refém da sua, em cuja construção pesa seus histórico e a escolha de aliados.

É quase certo que Bolsonaro se torne o primeiro presidente brasileiro após o ditador Medici a terminar um mandato sem ser recebido, em visita oficial, por chefes de Estado ou de governo de Grã Bretanha, França e Alemanha. Só resta ao "defensor da liberdade e dos valores ocidentais cristãos", repetir visitas a ditaduras monárquicas árabes, famosas por perseguirem os seguidores de Jesus - e anunciar nova rodada de viagens, desta vez  à Hungria de Orbán e Polônia do igualmente "iliberal" Mateusz Morawiecki...

O isolamento pode até ser bastante oportuno para ganhos eleitorais internos, por reforçar entre seus simpatizantes a retórica do homem simples e desajeitado rejeitado pelo establishment, no caso o internacional. Não duvidemos que Bolsonaro e seu círculo tenham vibrado - e as estimulem - com as imagens de um presidente sozinho conversando apenas com o garçom, enquanto rodinhas de líderes trocavam ideias em Roma. Para o pais, entretanto, é péssimo. Nas pautas ambientais, tanto pela atuação da sociedade civil como pela posição natural de destaque do Brasil, que o obriga ser ouvido de alguma maneira, seja lá quem estiver no Planalto, pode até ser amenizado. Nos demais fóruns, contudo, os custos a médio-prazo não serão baixos.

Sim, o Brasil não é o vilão do clima, mas é inevitavelmente destaque, com bons e maus momentos, nessa trama. Já seu presidente sempre fez de tudo para assumir esse papel. "O Brasil sempre foi um ator principal nas discussões climáticas, mas hoje é um pária: ou ele é ignorado, ou então visto como alguém que não trará algo positivo", constata Marcelo Britto, fundador do Coalizão Brasil, grupo de mais de 300 empresas e entidades e presidente da Associação Brasileira do Agronegócio (Abag). Pária como a Afd e o Querdenken.

quarta-feira, 10 de novembro de 2021

Ao miserável, nem mesmo a Justiça justa

Por Conrado Hübner* ( Folha de SP, 10/11/2021)

A Constituição de 1988 pode exibir ao constitucionalismo universal duas instituições arrojadas e originais: Defensoria Pública e Ministério Público. Não se confundem com as versões antigas do serviço de assistência jurídica aos pobres ou com as promotorias de acusação penal. Formam engrenagens potentes para dar tração institucional às promessas de inclusão e redução de desigualdades.

O Ministério Público deve promover "defesa da sociedade" (na ação penal, mas também em tantas outras áreas como meio ambiente, consumidor, pessoas com deficiência, crianças e adolescentes etc.). À Defensoria Pública incumbe assistência jurídica gratuita aos vulneráveis. Portanto, a defesa da sociedade também. Natural que, entre as duas, haja um grau de sobreposição de funções. Sem coordenação, surgem conflitos.

A relação nunca foi harmoniosa e equilibrada. A Defensoria, construída do zero a partir da redemocratização, estado por estado da federação, carece de peso político comparável ao Ministério Público, que já gozava de história institucional e carreira enraizada nos canais da magistocracia. 
A Defensoria seguiu como prima pobre, subfinanciada e com déficits maiores de pessoal e infraestrutura se comparadas as carreiras. Mas, em poucas décadas, revolucionou o acesso à Justiça. Para Bryant Garth, dos maiores estudiosos do assunto, a Defensoria brasileira é "das instituições mais proeminentes no mundo associadas com o acesso à Justiça".

Propiciou aos necessitados serviço gratuito que, em grau de competência, profissionalismo e abrangência, o país nunca teve. O assistencialismo da advocacia privada jamais poderá estar à altura da missão. Por insuficiência de recursos e braços, a Defensoria limita seus assistidos por faixa de renda. Seu atendimento está disponível aos 25% mais pobres da população brasileira. Os 50% acima, também incapazes de pagar por serviço jurídico privado, permanecem no limbo do inacesso à Justiça.

A Defensoria não tem poder apenas para litigar judicialmente, mas competências extrajudiciais para prevenir litígios; não só em casos individuais, mas também em causas coletivas. Para exercer a complexa tarefa com eficiência, pode exigir de entes públicos e privados, sem intermediação judicial, documentos, informações, diligências etc. O chamado "poder de requisição", que o Ministério Público também tem. 

Assim, a Defensoria resolve algumas demandas urgentes da miséria brasileira sem bater na porta do juiz, sem consumir recurso e tempo judiciais. E consegue construir ações judiciais coletivas com lastro documental que a população pobre simplesmente não tem (diferentemente de mim e você).

Augusto Aras, ecoando tradição do canibalismo magistocrático, questionou o poder de requisição. Não do Ministério Público, mas da Defensoria. Propôs 22 ações no STF que alegam inconstitucionalidade desse poder das defensorias no país. Numa das ações, Gilmar Mendes, relator, concordou com Aras. Fachin suspendeu o julgamento. O caso volta à pauta do STF nos próximos dias.

Aras argumenta que esse poder quebra o "equilíbrio da relação processual" e fere a "paridade de armas" entre defensores públicos e advogados. Vigente há mais de 20 anos, nunca questionado pela advocacia, sem nenhuma prova de que tenha sido abusado pela Defensoria, o poder de requisição agora é questionado pelo chefe do Ministério Público em defesa da advocacia. E Gilmar, no tempo recorde de três meses, soltou seu voto.

A decisão é juridicamente cega, institucionalmente trágica e socialmente perniciosa. Também "rastaquera", como Gilmar gosta de dizer dos outros. Cega porque a lei já admite diferenciações entre direitos das partes de um processo. E nem mesmo com esse poder a Defensoria "reequilibra" as forças, apenas atenua a desvantagem de assistidos.

E nem vale lembrar das portas VIPs que advogados influentes têm nos tribunais, porque miseráveis não litigam contra eles. Suas urgências são mais existenciais: a fome, a saúde, a proteção contra violência estatal. Trágico porque levará ao aumento da judicialização e à redução da já limitada população de assistidos que a Defensoria conseguirá atender. Pernicioso porque só fará aumentar a desigualdade do serviço jurídico e da prestação jurisdicional.

Na fantasia macabra de Aras e Gilmar, se advogado da Samarco, em escritório na Faria Lima, não tem poder requisitório, por que defensor público que pede acesso a água para crianças e idosos em Mariana deveria ter?

 Em artigo clássico, Galanter mostra que a riqueza é determinante no resultado judicial ("Why the Haves Come Out Ahead"). Para reduzir o abismo, o serviço jurídico a vulneráveis precisa de capacidades especiais. O "poder de requisição" dá modesto passo nessa direção. Aras discorda. Ao miserável, nem mesmo a Justiça justa. No máximo, a justiça mínima, desdentada, exaurida.

* Conrado Hübner é professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e membro do Observatório Pesquisa, Ciência e Liberdade - SBPC

terça-feira, 9 de novembro de 2021

Emendas: o fim das “moedas de troca” do presidencialismo

Por Fernando Dantas* ( Estadão, 09/11/2021)

Iniciou-se hoje a votação pelo Supremo da legalidade das “emendas de relator”, o chamado “orçamento secreto”. Por seis a zero (até agora), o STF manteve a liminar concedida pela ministra Rosa Weber na última sexta-feira (5/11), suspendendo a execução das verbas do orçamento relacionadas a emendas do relator e determinando a publicidade dos ofícios pelos quais as verbas foram direcionadas.

Com o empenho de aproximadamente R$ 900 milhões em emendas de relator uma semana antes da recente aprovação em primeiro turno pela Câmara da PEC dos Precatórios, muitos observadores experimentaram um “déjà vu” de algo que vem dos primórdios da redemocratização: o governo liberando emendas às vésperas de votações importantes no Congresso, e a opinião pública e a maioria dos comentaristas espinafrando o que seria um espetáculo de fisiologia da política brasileira.

O cientista político Carlos Pereira (Ebape-FGV), porém, não concorda com esse diagnóstico. Para ele, a liberação seletiva de emendas pelo Executivo desempenhou no período democrático atual um papel importante de “moeda de troca” do jogo político do presidencialismo multipartidário de coalizão.

Com a fragmentação partidária do Congresso e o fraco teor ideológico de muitos partidos, a forma de o Executivo obter aprovação legislativa para seus projetos reúne um conjunto de ferramentas. Estão nele a divisão proporcional de Ministérios e cargos de alto escalão entre os partidos da base; um programa crível e coerente; a competência política na gestão da agenda legislativa; e, sim, algum nível de atendimento preferencial de demandas legítimas, porém mais paroquiais, de parlamentares e partidos fiéis ao projeto de governo.

Pereira, entretanto, vê a atual situação das emendas de relator como uma distorção nociva, em parte criada justamente pela supressão da “moeda de troca” convencional das emendas parlamentares. Esse processo pelo qual a liberação de emendas pelo Executivo mudou de discricionária para obrigatória iniciou-se no governo Dilma e se concluiu com Bolsonaro, atingindo, nesta ordem cronológica, as emendas individuais, as coletivas de partido e as coletivas de bancada.

Na visão do cientista político, a mudança reflete um Poder Executivo que viveu boa parte do tempo acuado e fragilizado desde a grande crise econômica que inaugurou o segundo mandato da presidente Dilma Rousseff. Bolsonaro, com a consagração das urnas no início do seu governo, optou autodestrutivamente pelo confronto com a lógica inevitável do presidencialismo de coalizão. De crise em crise, teve finalmente que pedir socorro ao Centrão, já em situação de quase rendição.

E é aí que entram as emendas de relator, que voltaram recentemente ao cenário com os marcadores genéticos do status quo que prevalecia até o escândalo dos “anões do orçamento”, no início dos anos 90. Foi na esteira desse episódio que surgiu a distribuição equalitária de emendas individuais entre os parlamentares, exatamente para evitar as distorções e até corrupção decorrentes do poder excessivo de uma corriola de deputados sobre a destinação das emendas.

Na visão de Pereira, o processo político recente privou o Executivo de moedas de troca legítimas do presidencialismo de coalizão, ao tornar obrigatória e automática a liberação das emendas individuais e coletivas. No vácuo desse dispositivo essencial de coordenação entre governo e Congresso, o Legislativo – mais especificamente, o Centrão – ofereceu ao Executivo uma “tábua de salvação” na forma das emendas de relator.

Se o governo pretende aprovar qualquer matéria no Congresso – como o retrocesso da PEC dos Precatórios – terá de dançar conforme a música das emendas de relator regida pelo Centrão. As emendas de relator são alocadas pelo conluio de pouquíssimos parlamentares em cargos chave, de forma totalmente opaca – impedindo a fiscalização dos órgãos de controle e levando a escândalos como a distribuição de tratores superfaturados.

Por outro lado, a liberação final ainda depende do Executivo. Como diz Pereira, “o presidente da Câmara decide quem vai entrar no ônibus, mas o presidente da República ainda tem o poder de fazer o ônibus andar ou não”. Na verdade, é o resgate a velha moeda de troca, mas de uma forma muito mais deteriorada pelo fisiologismo e desprovida de qualquer transparência, configurando um governo mais do que nunca à mercê dos caprichos do baixo clero da política.

Antes da maioria formada hoje pelo STF em apoio à liminar de Rosa Weber, Pereira considerava possível que o Supremo chegasse a uma decisão salomônica entre as posições de Arthur Lira, presidente da Câmara, e Rosa Weber: as emendas de relator são legítimas, mas têm que vir à luz do dia e se tornar transparentes.

No caso, seria algum avanço, na sua visão, em relação ao atual status quo de falta de moedas de troca legítimas para a fundamental negociação entre Executivo e Legislativo, que dá funcionalidade à democracia. A decisão parcial, porém, foi de paralisar o “orçamento secreto”, na linha recente de eliminar essas moedas de troca.

*Fernando Dantas é colunista do Broadcast

segunda-feira, 8 de novembro de 2021

O Centrão enfim tem candidatura presidencial própria

Por Murillo Victorazzo

Na campanha eleitoral, auxiliares fardados do candidato “antissistema” cantavam "Se gritar, pega Centrão". Meses após ser empossado, ele anunciava sua saída do PSL. O motivo? O presidente do partido, Leonardo Bivar, estava "queimado" pelas investigações da PF acerca do "laranjal" da legenda, caso que estaria, segundo suas próprias palavras, "queimando seu filme". O mito não tinha relação alguma com o caso. A ausência de "compliance" o impelia a mudar de ares. Claro, a briga interna não era por disputa do cofre da legenda, detentora da maior fatia dos fundos eleitoral e partidário. 
Passava-se a discutir a criação de um novo partido legitimamente "conservador" ( reacionário, na verdade). Não seria difícil reunir as assinaturas necessárias; o povo estava com ele. "O povo” não existe e, portanto, nenhum está com ninguém especificamente. Mas é inegável que, se não majoritariamente, setores relevantes o apoiam entusiasticamente. Não deu para 2020, mas conseguiriam para 2022. 

Dois anos se passaram e nada. Bolsonaro não conseguiu nem um terço das assinaturas necessárias: 0,5% dos votos válidos (cerca de 500 mil) da última eleição geral, distribuídos em no mínimo um terço dos estados, com um mínimo de 0,1% do eleitorado em cada um deles. Até Gilberto Kassab, para a criação de seu  amorfo PSD, cumpriu em seis meses os requisitos exigidos 

O discurso vitimista ganhava novos contornos entre seus simpatizantes: o TSE, aquele que, dias atrás, arquivou o pedido de cassação da chapa presidencial mesmo reconhecendo ilegalidades nela, impedia dolosamente a concretização do projeto. Não se tratava de falta de empenho; era apenas coincidência o Aliança pelo Brasil ir sendo relegado ao dispensável à medida que o governo se aproximava do Centrão. 

Nada a ver com a ínfima parcela do fundo eleitoral que novas siglas têm direito (a repartição igualitária de 2% dele entre todas as existentes). Não, o mito não almejava o farto tempo de TV e rádio e a bilionária quantia de dinheiro público a qual os partidos do grupo tem direito. Oras, ele sempre foi contra o uso desses fundos...

No mesmo dia em que o STJ dá uma mãozinha a seu alaranjado filho senador, anunciou-se a filiação de Bolsonaro ao PL, comandado há muitos anos com mãos de ferro pelo ex-presidiário Waldemar da Costa Neto - protagonista, entre outros casos de corrupção, do mensalão e símbolo do que há de mais podre no tal sistema. Ruídos apenas atrasaram a oficialização do casamento para o dia 30 de novembro. "Estou me sentindo em casa", disse na cerimônia.

Após destinar a Secretária de Governo e a poderosa Casa Civil, além do ministérios das Comunicações e da Cidadania  e tantos outros cargos de segundo e terceiro escalões, a esse arremedo de políticos tradicionais que se sustentam apenas no fisiologismo em proporção inversa à organicidade programática, o presidente o eleva não mais apenas ao coração do governo. O Centrão é agora também sua cabeça, tronco e membros, algo jamais priorizado por tais parlamentares, historicamente satisfeitos em abocanhar pelas beiradas, como apêndices de gestões de diferentes perfis.  

Em busca de mais quatros anos de "missão", como já definiu sua presidência, o presidente "antissistema" será não meramente apoiado, mas integrante oficial do notório grupo, que enfim terá candidato próprio ao Planalto. Talvez chapa própria, caso se confirme o acordo para dar a vice-presidência ao PP, outra sigla de destaque em todos os recentes escândalos, a mesma dos impolutos aliados chefe da Casa Civil e presidente da Câmara.

O Brasil sempre se supera nas ironias e duplos twists carpados retóricos. Mas ainda mais inusitado será ver que, mesmo diante de tamanho giro de 180 graus, muitos de seus seguidores ainda o verão como "diferente", alguém boicotado pelo establishment malvadão. 

Um governo sem corrupção. Uma mera filiação obrigatória a algum partido. "Todos têm seus problemas. Tinha que escolher um. Queriam que eu escolhesse o PSOL?", sofisma o mito. Porque, obviamente, essa ilibada turma, dona de homogeneidade ética insuperável, cedeu-lhe a sigla sem nada pedir (e se pediu, ele, coitado, viu-se obrigado a acatar). 

O país não se deparou, nas últimas semanas, com a ponta do iceberg dos efeitos práticos desse matrimônio no Congresso Nacional, onde temos assistido ao paroxismo do fisiologismo. “Ah, isso sempre existiu”, começam a relativizar os há até pouco tempo defensores da “nova política”. O verdadeiro “câncer” do Brasil é o STF… Não, não há nenhum estelionato político-eleitoral aqui. É tudo "narrativa" da imprensa esquerdista...