domingo, 9 de dezembro de 2018

A negação do progresso

Por Míriam Leitão (O Globo, 09/12/2018)

O mundo passou os últimos dias discutindo o futuro do clima na Polônia, enquanto aqui, o que o novo governo fez foi recusar ser a sede da próxima COP e emitir algumas opiniões discutíveis sobre o tema. Será irracional desprezar a agenda ambiental e climática. O país só tem a ganhar se seguir as metas do Acordo de Paris e fortalecer os objetivos de desenvolvimento sustentável. E isso olhando objetivamente, e sem qualquer paixão, os nossos próprios interesses.

 O Brasil é uma potência ambiental e nessa área sua voz tem sido ouvida porque é o primeiro país na lista dos 18 megadiversos que controlam 70% da biodiversidade do planeta. A preocupação climática tem mudado a nossa matriz energética e pode reduzir a poluição do ar que hoje mata milhares de pessoas nas grandes cidades.

Os primeiros sinais do governo Bolsonaro nesta área são de negação da ciência climática e da ordem do progresso no século 21. Hoje se cresce de outra forma. A lista de medidas que o Brasil precisa seguir pelo Acordo de Paris só fará bem. A primeira é combater o desmatamento. O que o Brasil ganhou no ano passado quando destruiu uma área maior do que o Distrito Federal de Floresta Amazônica?

Foram postos abaixo 7.900 km² de floresta. A destruição do patrimônio coletivo é predatória porque é conduzida em grande parte por grileiros que ocupam terra pública sem nada pagar. Uma “privatização” sem lei e sem benefício para os brasileiros. A grilagem costuma estar vinculada a crimes como trabalho escravo e lavagem de dinheiro.

A segunda medida é combater a poluição do ar nos transportes e na produção de energia. Estimulado por esse objetivo, o Brasil avançou muito na geração eólica e solar. Atraiu investimentos, principalmente para o Nordeste. Eu visitei no ano passado, para a série História do Futuro da GloboNews, parques eólicos no Rio Grande do Norte, estado com o maior potencial da energia dos ventos.

Do ponto de vista microeconômico, o arrendamento das terras dos pequenos produtores locais, para a instalação de torres, deu a eles renda extra, e não prejudicou a produção. Do ponto de vista macro, a região Nordeste só não teve apagão nos últimos anos, com a crise no setor e a seca prolongada, porque a energia eólica chegou a fornecer mais da metade do consumo.

A energia solar tem crescido de forma incessante. A empresa norueguesa Equinor instalou em Quixeré, no Ceará, a sua primeira usina fotovoltaica no mundo. A gigante britânica BP acaba de anunciou a sua entrada em projetos de energia solar no Brasil, por meio de sua subsidiária Lightsource. Esse caminho, além de produzir energia de baixa emissão aumenta a segurança energética do país. Visitei usinas solares até em Santa Catarina, lugar de sol mais fraco e projetos promissores na UFSC. Virar as costas para o nosso potencial nessas duas fontes seria uma insensatez.

Mesmo quem é cético em relação ao aquecimento global terá de concordar que diminuir a poluição nas grandes cidades só fará bem à saúde de brasileiros. Morrem milhares de pessoas por ano pela poluição do ar. Quem duvida pode ouvir o professor Paulo Saldiva, da USP, o maior estudioso brasileiro neste assunto. Ficará estarrecido com os números. Reduzir o uso de energia fóssil nos veículos levará à diminuição dos gastos de saúde.

As metas firmadas pelo Brasil no Acordo de Paris foram escolhidas pelo próprio país e não foram imposição externa para impedir nosso progresso. Os relatórios da ONU sobre Mudanças Climáticas são feitos por milhares de cientistas do mundo inteiro, inclusive alguns dos melhores do Brasil, que se reúnem anualmente desde 1988. Mesmo quem negue a mudança climática haverá de concordar que evitar a exploração predatória dos ativos florestais, aumentar a produção de outras fontes de energia, diminuir a poluição do ar nas grandes cidades trará efeitos benéficos.

A agenda climática nos leva também, nesse círculo virtuoso, a proteger os rios e reduzir o desperdício no uso da água. É lógico que esse problema precisa ser enfrentado. O Brasil vive em várias cidades, inclusive na maior delas, crises de desabastecimento.

Quem mora em Brasília convive nos últimos anos com racionamento de água. Essa mesma agenda terá de nos levar também às obras no saneamento que elevarão o grau de progresso do Brasil. No fundo, é disso que está se falando: do desenvolvimento do país.

Qual conservadorismo? Da América de Trump ao Brasil de Bolsonaro

Por Carlos Gustavo Poggio* (Estadão, 08/12/2018)

O boné usado pelo filho de Jair Bolsonaro em recente viagem aos Estados Unidos não é a única coisa com o nome Trump que está na cabeça da família do futuro presidente e seus assessores. A julgar por uma série de declarações, tanto antes como após as eleições, as ideias do presidente americano também têm adornado as cabeças dos bolsonaristas.

Claro que não se trata aqui das ideias do indivíduo Trump, que não é exatamente um intelectual, mas daquilo que ele representa. Parte da narrativa de integrantes do futuro governo, em especial dos responsáveis pela política externa, é que o governo deve refletir os valores da maioria da sociedade brasileira, e esses valores seriam em grande medida conservadores.

 O problema é que inexiste um conservadorismo moderno intelectualmente organizado no Brasil, fato reconhecido até mesmo por Olavo de Carvalho, o intelectual que mais tem tido aderência na equipe do presidente-eleito. Ou seja, uma coisa é um sentimento conservador difuso na sociedade, outra é o conservadorismo organizado que traduza intelectualmente esse sentimento e lhe dê uma direção.

 A solução bolsonarista para a ausência de um movimento conservador organizado no Brasil tem sido, aparentemente, importá-lo dos Estados Unidos. Portanto, torna-se fundamental compreender a evolução do movimento conservador naquele país – bem como que tipo de conservadorismo é representado por Trump – se quisermos entender o que se passa atualmente em terras tupiniquins.

Antes de mais nada, a primeira questão a ser enfrentada é a seguinte: para além da declarada admiração da família Bolsonaro ao presidente americano, quais as razões para a nova direita brasileira buscar inspiração nos Estados Unidos e não na Europa, berço das ideologias modernas?

Creio que a resposta passa pelo fato de que, ao contrário da direita americana, a europeia tende a ser menos confortável com a influência religiosa. Marine Le Pen, que se distanciou de Bolsonaro durante a campanha, provavelmente concordaria apenas com metade do slogan de campanha do então candidato – “Brasil acima de tudo” – dado que compartilha com o nacionalismo representado por essa frase. No entanto, ela certamente estranhou a segunda parte – “Deus acima de todos” – dado o aspecto secular da direita francesa. 

Por outro lado, menções a Deus são frequentes na direita americana. Ao contrário da Europa, os Estados Unidos contam com uma direita religiosa bastante ativa politicamente. Da mesma forma, no Brasil vemos a ascensão dos evangélicos enquanto força política relevante, contando inclusive com uma bancada no Congresso. Pesquisa recente do instituto Pew Research Centeraponta que para 72% dos brasileiros e 55% dos americanos a religião é considerada muito importante, contra apenas 11% dos franceses e 10% dos britânicos.

 Faz sentido, portanto, que as ideologias políticas reflitam essa realidade. Em suas viagens internacionais durante a campanha, Bolsonaro visitou Estados Unidos, Japão, Coreia do Sul, Taiwan e Israel, mas nenhum país Europeu. O futuro chanceler brasileiro, Ernesto Araújo, em artigo publicado no ano passado, intitulado “Trump e o Ocidente”, mostrou-se bastante crítico em relação a secular sociedade europeia classificando o continente como um “espaço culturalmente vazio” dominado por “esnobes intelectuais”.

Nesse artigo, Araújo enxerga em Trump uma espécie de salvador de um Ocidente que, até a chegada do empresário e apresentador americano, se afastava cada vez mais de suas raízes cristãs. Trump representaria uma “reconexão com o patrimônio mítico do passado ocidental”.

Araújo extrai essas conclusões a partir da análise de dois discursos proferidos pelo presidente americano ao longo de seu primeiro ano de governo, ambos escritos pelo jovem assessor Stephen Miller, a quem o futuro chanceler não faz menção. Araújo tece inúmeros elogios ao fato de Trump mencionar a importância de Deus em um discurso proferido em Varsóvia.

 É a reconexão com Deus que, de acordo com o autor, irá salvar o Ocidente da trajetória de decadência que vivia com os esnobes europeus e com os próprios americanos até a chegada de Donald Trump à Casa Branca. Os ocidentais, nos diz Araújo, deveriam ansiar pelo – e aqui uso novamente suas próprias palavras – “Deus de Trump”.

Nesse artigo, que foi a razão principal da sua indicação ao cargo, encontramos diversas pistas para entender qual o tipo de conservadorismo o Brasil pretende importar. Antes de explorarmos essa questão, no entanto, é preciso recuperar brevemente a história do movimento conservador nos Estados Unidos.

Aquilo a que nos referimos hoje nos Estados Unidos como “conservadorismo” é na verdade uma coalizão de diferentes perspectivas ideológicas que de início não faziam parte de um mesmo conjunto articulado de ideias. Essa coalização, como demonstra George Nash no seminal The Conservative Intelectual Movement in America, foi construída apenas a partir dos anos 1950 e consolidada ao longo da década seguinte.

Não que não houvesse conservadores antes disso, mas os que existiam eram vozes isoladas e não um movimento organizado de intelectuais. Isso só se tornou possível com a criação da revista National Review, fundada por William Buckley Jr. em 1955. Dentre as principais motivações de Buckley para a fundação da revista estava o diagnóstico de muitos conservadores de que tanto a academia quanto a mídia eram então largamente dominadas pela esquerda.

Não por acaso, o livro que catapultou a fama de Buckley foi God and Man at Yale, de 1951, onde o autor, então com 25 anos de idade, relatava sua experiência como estudante na famosa universidade da elite americana. Como indica o título, Buckley criticava a instituição por supostamente forçar nos estudantes crenças secularistas e hostilidade a crenças religiosas, além de princípios coletivistas. Na dedicatória, o jovem e provocativo autor escreveu: “Para Deus, para a nação, e para Yale, nessa ordem”.

Até a fundação da National Review não havia nos Estados Unidos nenhum periódico relevante dedicado à discussão do que seria o pensamento conservador americano. A revista permitiu que esses intelectuais tomassem contato mais sistemático com as ideias uns dos outros. Grande parte do esforço de Buckley à frente do periódico foi compatibilizar duas perspectivas que de início não pareciam ter muito em comum: os libertários e os tradicionalistas.

 Os primeiros, eram representados por intelectuais austríacos que, durante a ascensão do nazismo entre os anos 30 e 40, emigraram para Inglaterra, como Hayek, ou para os Estados Unidos, como Mises. Esses intelectuais da chamada “Escola Austríaca” e seus aderentes reagiam contra aquilo que viam como um excesso de intervenção estatal na economia. A publicação de O Caminho da Servidão de Hayek, em 1944, foi um enorme sucesso nos Estados Unidos, que naquele momento experimentavam as políticas intervencionistas representadas pelo New Deal de Roosevelt. 

Nesse livro, Hayek faz uma incisiva crítica ao planejamento estatal da economia, que tenderia a levar ao totalitarismo. Ao desenvolver a noção de “ordem espontânea”, Mises, Hayek e outros integrantes da escola austríaca deram uma forte contribuição intelectual para a defesa do livre mercado e para a crítica ao intervencionismo estatal. A partir de então, muitas das críticas ao New Deal seriam feitas tendo como pano de fundo o edifício intelectual construído pela Escola Austríaca.

Paralelamente ao desenvolvimento da Escola Austríaca, emergia nos Estados Unidos um grupo de intelectuais que seriam posteriormente classificados como “tradicionalistas”, cujo marco central foi a publicação do clássico de Russell Kirk, The Conservative Mind, em 1953. Esse livro é largamente considerado o texto fundador do moderno conservadorismo americano.

Kirk, e outros intelectuais de peso, como Richard Weaver e Robert Nisbet, tinham como preocupação central não necessariamente o aspecto econômico, mas os efeitos sociais e políticos tanto do totalitarismo como da democracia moderna de massas. Eram classificados como tradicionalistas, pois defendiam a tradição e os costumes da civilização cristã ocidental que era percebida como ameaçada pelas forças da modernidade industrial.

 Numa sociedade majoritariamente protestante, esses intelectuais eram predominantemente católicos. Entre tradicionalistas e libertários as diferenças eram gigantescas. Enquanto os últimos defendiam a “ordem espontânea” gerada por indivíduos autointeressados, os primeiros criticavam a postura individualista e defendiam os chamados “extratos intermediários”, como a família e associações comunitárias e religiosas.

Enquanto libertários se focavam em aspectos econômicos, tradicionalistas pouco falavam de economia, preferindo tratar de sociologia, filosofia ou literatura. Enquanto libertários sublinhavam a questão da liberdade, tradicionalistas se preocupavam com a virtude.  Enquanto que as teorias libertárias prosperavam entre intelectuais seculares no norte industrial dos Estados Unidos, os tradicionalistas se sentiam mais confortáveis no sul agrário. Com enorme frequência, os tradicionalistas criticavam o capitalismo moderno, encarado como uma ameaça aos valores tradicionais.

Kirk em particular era um forte crítico das posições libertárias. Ele chegou a confrontar diretamente Mises ao argumentar que o mero auto-interesse individual não seria adequado para a preservação da ordem, levando a um “atomismo social”, termo também usado por Nisbet e outros conservadores. 

Kirk detestava que associassem o seu conservadorismo com os valores de “businessmen” americanos. Por outro lado, quando morava nos Estados Unidos no início dos anos 1960, Hayek achou por bem esclarecer a sua posição em meio a esse debate em um famoso artigo com um inequívoco título: “Por que não sou um conservador”.

Juntar essas duas vertentes não foi tarefa simples. Exigiu anos de debate nas páginas da National Review, cuidadosamente orquestrado por Buckley. Uma função importante de Buckley durante esses debates foi marginalizar expressões do conservadorismo consideradas indesejáveis, tais como aquelas que esposavam ideias abertamente racistas, teorias da conspiração ou ateísmo militante. Os defensores dessas ideias eram frequentemente criticados ou impedidos de escrever para a revista. 

Em 1962, por exemplo, Buckley publicou um artigo em que criticava fortemente Robert Welch, líder da chamada John Birch Society que, entre outras coisas, acusava o governo dos Estados Unidos de serem controlados por comunistas, e o próprio presidente Einsehower de ser um agente a serviço da URSS. Se Buckley e outros enxergavam a maior parte da mídia nos Estados Unidos como influenciadas por ideias de esquerda, Welch defendia a tese de que a mídia era diretamente controlada por comunistas.

Buckley escreve que repelir Welch era necessário, dado que a “extravagância das suas afirmações” seria prejudicial às chances de sucesso do movimento conservador, ameaçando leva-lo à “irrelevância e ineficácia”. Para Buckey, as ideias de Welch seriam um obstáculo àquilo que ele considerava como prioridade dos conservadores: “vencer eleições e reeducar a classe governante”.

 Em parte graças aos esforços da National Review, a John Birch Society, que na década de 1960 ganhava influência, acabou sendo completamente marginalizada do movimento conservador nos Estados Unidos. Birch é apenas um exemplo da longa lista de indivíduos conservadores que foram sendo gradualmente expurgados do movimento intelectual que então tomava forma.

Marginalizando algumas expressões e ajustando outras, chegou-se por fim a um compromisso, que ficou conhecido como “fusionismo” – a fusão de ideias libertárias e tradicionalistas com o fim de criar um conservadorismo de características marcadamente norte-americanas. Essa delicada operação ficou associada ao editor da National Review, Frank Meyer, que em 1962 publicou essa síntese filosófica em seu livro In Defense of Freedom: A Conservative Credo

Para Meyer, a liberdade individual poderia ser perfeitamente compatibilizada com uma ordem moral transcendental. Moralidade tradicional e livre mercado passariam então a andar lado a lado nessa complexa síntese entre libertarianismo e tradicionalismo que acabou por definir o conservadorismo moderno nos Estados Unidos.

No entanto essa fusão não pode ser atribuída apenas às habilidades intelectuais de Buckley e Meyer. Um elemento crucial era a existência de um inimigo em comum a ambas as vertentes: o comunismo. O sistema representado pela União Soviética, ateísta e estatista, era simultaneamente uma ameaça tanto à tradição cristã quanto à liberdade econômica. Em outras palavras, o anticomunismo da Guerra Fria foi o cimento dessa união que criou e sustentou o conservadorismo norte-americano durante a segunda metade do século XX. 

É também em virtude da disputa política e ideológica com a URSS que o movimento conservador nos Estados Unidos adquire um caráter internacionalista em política externa. Colocava-se assim, em clara oposição ao isolacionismo daquilo que ficou então conhecido como a “velha direita”, representada, por exemplo, por Robert Taft, candidato derrotado por Eisenhower nas primárias do Partido Republicano em 1952.

Tendo sido, portanto, o cimento que consolidou a síntese libertarianismo-tradicionalismo que caracterizou o período formativo do moderno conservadorismo americano não é de se surpreender que a dissolução da União Soviética e o fim da Guerra Fria tenham expostos fissuras que até então estavam relativamente camufladas. Um dos primeiros indícios de fragmentação se deu ainda em meados dos anos 1980, em um debate que acabou por ser um dos mais contundentes do movimento conservador americano, e que até hoje mostrou-se irreconciliável. 

Refiro-me à disputa entre neoconservadores e paleoconservadores. Os neoconservadores foram plenamente incorporados ao movimento conservador americano a partir da década de 1970, quando um grupo de intelectuais ex-Trotskystas e que até então tinham simpatia pelo Partido Democrata, decidem apoiar a candidatura do Republicano Richard Nixon contra George McGovern, visto como um indesejável representante dos valores da nova esquerda pós-1968. 

Esses intelectuais recém-convertidos ao conservadorismo, a maior parte baseados em Nova York e de origem judaica, como Irving Kristol e Norman Podhoretz, defendiam uma postura ativa dos Estados Unidos em política externa no combate ao comunismo, e a promoção ativa da democracia ao redor do globo via intervenção militar, se necessário.

Não demorou muito para os urbanos neoconservadores entrarem em confronto direto com um grupo de conservadores majoritariamente sulistas e católicos, que eram mais próximos dos tradicionalistas, mas que lembravam mais a direita americana pré-1950, dado o seu caráter fortemente isolacionista e populista. Ao contrário do secularismo dos neoconservadores, para esse grupo, de matiz mais religiosa, conservadorismo e cristianismo eram inseparáveis. Como que para marcar a sua oposição aos neoconservadores, ficaram conhecidos pela alcunha de paleoconservadores.

Ao longo dos anos 1980, a guerra civil entre ambos dentro do movimento conservador americano foi largamente vencida pelos neoconservadores, que obtiveram enorme influência no governo Reagan. Os paleoconservadores, por outro lado, permaneceram em grande medida irrelevantes e marginalizados. Apesar da importância de intelectuais como Mel Bradford e Paul Gottfried, o nome de maior destaque dentro do paleoconservadorismo americano é o de Pat Buchanan, que ganhou os holofotes ao disputar as primárias do Partido Republicano em 1992, desafiando o então presidente Bush. 

Ao contrário dos neoconservadores, que criticavam Bush por não ter “finalizado o trabalho” na Guerra do Golfo e mantido Saddam Hussein no poder, Buchanan era um crítico da própria guerra. A plataforma política com a qual Buchanan disputou as primárias em 1992 reunia os temas centrais do paleoconservadorismo: nacionalismo, isolacionismo, protecionismo econômico, combate ao multiculturalismo, defesa de valores tradicionais e, principalmente, uma postura fortemente anti-imigração. 

Buchanan manteve uma excepcional consistência nesses temas ao longo das outras disputas políticas que participou: novamente nas primárias em 1996, e nas eleições gerais pelo Partido Reformista em 2000, quando obteve menos de 0,5% dos votos. O slogan utilizado por Buchanan na sua campanha em 2000 foi “America First”, lembrando o “America First Committee” formado em 1940 para se opor à entrada dos EUA na Segunda Guerra Mundial. 

Enquanto isso, os neoconservadores iam ganhando espaço e influência, criando institutos como o Project for the New American Century (1997) e revistas como a Weekly Standard (1995), até atingirem o momento que representaria ao mesmo tempo o seu auge e o seu ocaso dentro do movimento conservador: a invasão do Iraque em 2003, da qual Pat Buchanan e os paleoconservadores foram críticos tão ferozes quanto ignorados. 

As diversas consequências e a impopularidade da Guerra do Iraque marcaram a administração Bush e multiplicaram as críticas aos neoconservadores. A Guerra do Iraque, a crise financeira de 2008, e a reação à administração Obama acabariam por implodir o delicado equilíbrio de forças que caracterizou o movimento conservador desde os anos 1950.

Tendo concluído esse breve apanhado do movimento conservador nos Estados Unidos, estamos agora em condição de retomar a questão inicial desse texto. Qual o tipo de conservadorismo representado por Trump, que tanto agrada aos novos conservadores brasileiros? Conforme indicado acima, o texto de Araújo nos fornece algumas pistas. 

A primeira delas é que se trata de uma perspectiva que enxerga no cristianismo, mais especificamente no catolicismo, a base filosófica para a salvação de um Ocidente em declínio ameaçado por multiculturalistas que rezam a cartilha do marxismo cultural. Um dos problemas apontados por Araújo em texto mais recente é a “destruição da identidade dos povos por meio da imigração ilimitada”. 

Pat Buchanan desenvolve argumento semelhante, focando em especial na questão da imigração, em um livro de 2001 intitulado, não por acaso, The Death of theWest. Dentre os temas tratados por Buchanan, está a crítica ao marxismo cultural como um dos elementos centrais da decadência da civilização ocidental. Araújo retoma assim o argumento de Buchanan e dos paleoconservadores ao apontar Trump como o responsável por salvar o Ocidente da “morte” que parecia certa. Ele define, de maneira elogiosa, a postura de Trump como um “anticosmopolitismo radical” ou “pan-nacionalismo”, que seria a tradução do princípio de “America First”. 

Portanto, os aspectos que Araújo elogia em Trump, quais sejam, uma hipotética centralidade da filosofia cristã e uma ênfase em aspectos nacionalistas, o aproxima claramente de uma perspectiva paleoconservadora. Para não deixar dúvidas de seu pedigree paleoconservador, o autor menciona que o nacionalismo de Trump não tem como objetivo a imposição da democracia a outros países e, portanto, “afasta-se de qualquer ideia neocon”, usando a abreviação pela qual os neoconservadores são conhecidos. Ausentes nas análises de Araújo estão quaisquer menções ao livre mercado ou ao capitalismo. 

Sendo um intelectual perspicaz, Araújo compreende que o conservadorismo representado por Trump tem pouco a ver com o movimento conservador americano que se consolidou a partir dos anos 1950, mas sim que está mais próximo de correntes intelectuais conservadoras pré-Guerra Fria e que permaneceram marginalizadas até a implosão da síntese Buckleyliana e a chegada de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos. Creio que é por essa razão que ele evita engajar autores como Kirk e Hayek, preferindo ancorar-se em Homero e Parmênides.

Dado que um elemento central da eleição de Bolsonaro foi sua conversão ao liberalismo econômico, representada pela escolha de Paulo Guedes como assessor de primeira hora, temos um óbvio dilema para a consolidação do nascente movimento conservador brasileiro. De forma similar à síntese operada pela National Review ao longo dos anos 1950 e 1960, os novos conservadores brasileiros têm pela frente a tarefa de harmonizar o liberalismo guedista com o paleoconservadorismo araujista. 

Já é possível detectar alguns indícios desse esforço na insistência dos defensores do presidente eleito em marcar as diferenças entre o conceito de globalização e o que seria o “globalismo”. Assim, Paulo Guedes e a ala liberal bolsonarista são a favor da globalização. Araujo e os paleocons não se oporiam necessariamente à globalização, que seria um fenômeno meramente econômico, mas apenas ao “globalismo”, que seria um fenômeno político.

Portanto, insistem os bolsonaristas, são duas coisas diferentes que não necessariamente se anulam.  Falta ao fusionismo tupiniquim, no entanto, o cimento da Guerra Fria que foi tão central para a versão original americana. Não está claro ainda se o antipetismo, que foi um fator importante para a aproximação dessas duas correntes, poderá ser esse cimento no longo prazo. Com o PT fora do poder é possível que o antipetismo perca gradualmente esse papel, podendo levar a uma desagregação desses blocos.

Se examinarmos a trajetória do movimento conservador americano brevemente relatada acima e compararmos com a situação brasileira, podemos concluir que o nascente movimento conservador brasileiro se encontra em um estágio de desenvolvimento similar ao que os americanos se encontravam no início dos anos 1950.A diferença crucial é que Bolsonaro ganhou as eleições.

Nos Estados Unidos, após anos de elaboração intelectual, principalmente nas páginas da National Review, os conservadores foram bem-sucedidos em alçar Barry Goldwater como candidato à presidência pelo Partido Republicano em 1964. No meio da comoção pelo assassinato de Kennedy, entretanto, Goldwater sofreu umas das piores derrotas eleitorais da história para Lyndon Johnson. 

Um dos principais discursos em defesa da candidatura Goldwater foi feito por um ex-ator recém-saído do Partido Democrata, e que se tornaria governador da Califórnia em 1966: Ronald Reagan. Quando Reagan venceu as eleições presidenciais de 1980, já havia, portanto, um movimento conservador bem estruturado tanto intelectual quanto institucionalmente. 

Think tanks como The Heritage Foundation (1973) e o Cato Institute (1977), organizações como a National Rifle Association (fundada no século XIX, mas com atuação política apenas após 1975), instituições de ensino como a Liberty University (1971), além de uma série de revistas que surgiram após a National Review, como a The Public Interest (1965-2005), formavam uma extensa rede de suporte ao conservadorismo americano.

Entre o final dos anos 1980 e meados dos anos 1990, programas de rádio como The Rush Limbaugh Show (1988) e canais de TV a cabo como a Fox News (1996) forneceram uma plataforma para as ideias conservadoras jamais imaginada pelos intelectuais que debatiam a relevância de Edmund Burke nas páginas da National Interest. 

Potencializado pela ascensão da internet, o conservadorismo americano se fragmentou e perdeu consistência ideológica, ao mesmo tempo em que suas manifestações menos sofisticadas se popularizavam. A cacofonia trazida pelas redes sociais tornou inviável a existência de um William Buckley como guardião do que seria um conservadorismo respeitável, abrindo espaço para grupos que antes estavam marginalizados, juntamente com a ascensão de outros. Donald Trump, cuja candidatura foi abertamente combatida pela National Review, é produto dessa cacofonia. 

Assim, quando os conservadores brasileiros olham para Trump como inspiração, devem ter claro que estão diante de algo bastante distinto do conservadorismo que historicamente predominou no país. Se, na ausência de base intelectual própria, vamos importar o conservadorismo dos Estados Unidos, devemos ao menos saber o que estamos importando.

Ainda assim, uma vez eleito, Trump pôde contar com o suporte de várias dessas organizações como a Heritage Foundation e a National Rifle Association, além de estar ancorado em um partido tradicional e ter o apoio explícito de grande parte da mídia conservadora que se desenvolveu nos últimos 30 anos, representados por Rush Limbaugh e pela Fox News. Por outro lado, o conservadorismo brasileiro chega ao poder ainda pouco desenvolvido não só intelectual como institucionalmente. 

Não há no Brasil um grupo robusto de intelectuais conservadores respeitados, o que explica o destaque dado a um único indivíduo. Quem não tem Kirk, caça com Carvalho. O problema é que apenas um indivíduo pode até caracterizar uma seita, mas não um movimento intelectual. Sem esse corpus intelectual estruturado, o conservadorismo brasileiro tem sido elaborado online via posts em redes sociais e memes. Se isso se provou eficaz do ponto de vista eleitoral, restam dúvidas sobre como construir um movimento intelectual com tweets de 280 caracteres. 

Da mesma forma, ao contrário dos Estados Unidos, não existem instituições conservadoras relevantes no Brasil. É verdade que temos o Instituto Liberal, fundado em 1983 e responsável, por exemplo, pela tradução para o português de O Caminho da Servidão de Hayek, além de alguns grupos liberais organizados que apareceram recentemente. Esses grupos, porém, são mais representantes do liberalismo guedista, que por sinal se afasta da posição protecionista de Trump, que do conservadorismo araujista, que se pretende mais próximo do trumpismo. 

Finalmente, sequer existe no Brasil um partido político que se identifique como abertamente conservador. O próprio Bolsonaro, antes de ir para o então nanico PSL era filiado a um partido autodenominado “progressista.” Como deve estar óbvio a essa altura, trata-se de uma situação bastante diferente da que Reagan encontrou quando foi eleito. Testemunharemos nos próximos anos um governo que deverá tentar desenvolver a sua filosofia política ao mesmo tempo em que governa.

Não surpreende, portanto, que muito do que Ernesto Araújo vem escrevendo em artigos de jornais e no seu blog após sua indicação como chanceler praticamente não toque em aspectos práticos da política externa que o governo pretende perseguir a partir do ano que vem.

O futuro ministro está preocupado mais com aquilo que T.S. Eliot chamou de “pré-política”, do que propriamente com a política em si.  Eliot, criticando o intelectual monarquista francês Charles Maurras por ter entrado na política ao integrar a Action Française, afirmou que se Maurras tivesse se restringido à literatura de teoria política, suas ideias poderiam ter tido mais influência. 

Na ausência de um conservadorismo intelectualmente organizado, Araújo se lança a preencher esse vácuo e usa suas manifestações escritas para organizar uma filosofia política, mais do que refletir sobre a aplicabilidade imediata de suas ideias. Tivesse o Brasil desenvolvido um movimento conservador bem estruturado nos últimos anos, Araújo talvez pudesse fazer a transição da pré-politica para a política com mais facilidade. 

Por enquanto, ele pode ainda fazer elucubrações filosóficas sobre o pertencimento ou não do Brasil ao Ocidente, ou sobre o “Deus de Trump”. A partir de 1 de janeiro, ele não terá mais opção – a política vai se impor com ou sem o desenvolvimento de uma base intelectual definida. Sugiro ao futuro chanceler, que já declarou acreditar que Trump tenha lido Homero, que deixe a Ilíada de lado por ora, e comece a estudar The Art of the Deal.



*Carlos Gustavo Poggio Teixeira é pesquisador visitante na Universidade de Georgetown, onde realiza pesquisa sobre a ascensão de Donald Trump. É professor dos cursos de graduação em relações internacionais na FAAP e na PUC-SP, do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas, e coordenador do NEPEU – Núcleo de Estudos sobre a Política Externa dos Estados Unidos.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2018

Frentes parlamentares são pouco para sustentar presidente

Por Silvio Cascione e Suely Araújo* (Folha de SP, 02/12/2018)

As frentes parlamentares temáticas proliferam. Ganharam fama com o trio “boi, bala e Bíblia”, mas vão muito além: a legislatura 2015-2018 termina com 342 registradas na Câmara, sobre os temas mais diversos. Em um momento em que os partidos têm baixíssima credibilidade junto ao eleitorado, não surpreende que Jair Bolsonaro olhe para elas como alternativa para a construção de sua base.

Há grande curiosidade sobre esse experimento. Muitos cientistas políticos estão céticos porque as frentes não têm as mesmas ferramentas dos partidos para negociar com um presidente: especialmente, não podem punir dissidentes. Concordamos. Mas temos outra razão para desconfiar dessa empreitada, segundo pesquisa da Universidade de Brasília (UnB).

As frentes parlamentares não são tão grandes quanto dizem ser, nem organizadas o bastante. Mesmo com toda a atenção que ganharam, não há controle consistente sobre a composição desses grupos.  O único dado é a lista de assinatura para registro formal, que não significa quase nada: deputados as assinam apenas como favor a seus pares, sem jamais ir a uma reunião.

É ilógico esperar que todas as 342 frentes tenham de fato, cada uma, pelo menos 171 deputados mobilizados, mínimo exigido pela Câmara. Então, fomos a campo em 2017 perguntar diretamente aos parlamentares quais as bancadas temáticas em que eles atuavam. Ao todo, 367 responderam. Pudemos estimar, com pequena margem de erro, a verdadeira composição das frentes.

Como esperávamos, a maioria existe apenas no papel ou é composta por um ou poucos membros. Mas o mais interessante foi notar que as grandes bancadas temáticas são significativamente menores do que dizem ser.

A maior de todas, grande exceção do Congresso, é a da agropecuária. A partir da pesquisa, foi estimado que ela tinha 118 integrantes efetivos em 2017. Mas as quatro seguintes —educação, evangélica, segurança e saúde— não reúnem mais do que 40 parlamentares atuantes cada.

Somadas, as cinco maiores são menores que os cinco maiores partidos, e bem mais concentradas na Câmara do que no Senado. Há que levar em conta ainda que há sobreposição, com parlamentares que pertencem a mais de uma frente.

Esses dados importam porque um dos argumentos em defesa das frentes como pilares de uma coalizão é de que elas teriam uma capacidade de aglutinar congressistas maior do que a de muitos partidos. Esse argumento perde muita força quando comparado aos dados. Juntando isso com a impossibilidade de punir dissidentes, fica difícil apostar que as frentes possam ser o pilar de uma coalizão política estável.

As bancadas temáticas decerto têm muita influência em suas áreas. Agregam deputados e, posicionando-se em pontos estratégicos do Congresso, conseguem influenciar pautas de seus interesses. Elas podem ser muito importantes para facilitar a comunicação entre o Congresso e a sociedade. Mas, como um deputado nos confidenciou, as frentes são boas para obstruir, mas não servem para construir.

Se nem as próprias frentes sabem quem são efetivamente seus integrantes, não conseguem assumir compromissos críveis para votar propostas fora de suas área de domínio —como a reforma da Previdência, por exemplo, um tema caro ao novo governo.

E nosso ponto é que, além disso, nem são grandes o bastante para tanto. As frentes complementam os partidos, mas não os substituem. Bolsonaro terá que negociar com os verdadeiros donos do Congresso Nacional; quanto menos o fizer, mais dependerá da popularidade para avançar sua agenda.


*Silvio Cascione é mestre em ciência política pela UnB, jornalista e analista da Eurasia Group; Suely Araújo é consultora legislativa, doutora em ciência política e presidente do Ibama desde junho de 2016

O medo da Ursal

Por Demetrio Magnoli (O Globo, 03/12/2018)

O Brasil já temeu a mula sem cabeça, o boitatá, a cuca, o corpo-seco, a iara e o curupira. Hoje, teme a Ursal. Os medos antigos assombravam o universo rural de caipiras e caboclos. O medo atual assombra o novo governo que, para dormir em paz, entregou dois ministérios estratégicos a apóstolos do Bruxo da Virgínia, um astrólogo repaginado como filósofo místico. Daqui em diante, a superstição norteará nossas políticas externa e educacional. Não adianta dizer que a Ursal não existe, pois ela existe na mente dos que nos governarão.

A Ursal, União das Repúblicas Socialistas da América Latina, ganhou popularidade pela voz do Cabo Daciolo. A evocação da sigla exprime a crença de que uma conspiração comunista internacional ameaça a pátria brasileira. O Bruxo da Virgínia e seus evangelistas compartilham o credo de Daciolo, mas o vestem em peças de estilistas.

Na linguagem arcana que preferem, a conspiração é conduzida por uma liga constituída por “liberais globalistas” e “marxistas”. Armados com as teses de Antonio Gramsci, os maléficos conspiradores apropriam-se silenciosamente tanto das chaves do poder quanto das mentes dos indivíduos por meio de uma prolongada guerra cultural. É Ursal, em versão de butique.

De acordo com as superstições do Bruxo da Virgínia, a China lidera o tentáculo marxista da conspiração mundial. Ernesto Araújo, futuro ministro das Relações Exteriores, dá indícios de que submeterá as relações com a China ao “Deus de Trump”, engajando o Brasil na guerra comercial deflagrada pelos EUA. O medo da Ursal ameaça degradar uma de nossas principais parcerias econômicas, fonte de quase um terço do superávit brasileiro no comércio exterior e de vultosos investimentos externos diretos.

Segundo as crendices do Bruxo da Virgínia, a escola funciona como palco de uma doutrinação dos jovens destinada a destruir a família e a religião. Ricardo Vélez, futuro ministro da Educação, declara que enfrentará o perigo por meio do projeto de lei Escola Sem Partido — ou seja, pelo uso do poder público como polícia pedagógica destinada a perseguir professores “desviantes”.

O medo da Ursal ameaça bloquear os caminhos para a reforma e qualificação da educação no Brasil. No lugar dessa tarefa inadiável, o Estado anuncia uma estratégia de “contrainsurgência cultural” nas escolas.

As teocracias medievais e os regimes totalitários do século passado imaginavam-se como representações de uma verdade suprema, oriunda de Deus, do Destino Nacional ou da História. A separação entre Estado e Igreja (isto é, a laicidade estatal) e a separação entre Estado e partido (isto é, o princípio do pluralismo político) formam dois pilares estruturais dos sistemas democráticos.

Nas democracias, o Estado administra as coisas, não as mentes. Os dois ministérios ocupados por acólitos do Bruxo da Virgínia ambicionam administrar as mentes, libertando-as das forças alienígenas da Ursal. Há fortes doses de ridículo nisso, mas o assunto é sério: o misticismo está no poder.

Um paralelo apropriado é com a Arábia Saudita. O reino nasceu de uma longa jihad (“guerra santa”) empreendida pela aliança do clã guerreiro dos Saud com a seita islâmica puritana Wahab. Na base da monarquia saudita, encontra-se o pacto original entre esses componentes, que se exprime pela entrega dos ministérios da Educação e das Comunicações à facção religiosa.

A seita liderada pelo Bruxo da Virgínia ocupa, no governo Bolsonaro, um lugar semelhante ao dos wahabitas no reino dos Saud. A diferença é que sua doutrina não repousa sobre a leitura literal de um livro sagrado, mas sobre crendices cozidas no forno de uma espécie de ocultismo pós-moderno.

A “confluência entre História e Mito” alardeada por Ernesto Araújo, o combate sem trincheiras à “revolução cultural gramsciana” pregado por Ricardo Vélez são piadas que saltaram de túneis escuros das redes sociais para o aparelho de Estado. Uma festa estranha, com gente esquisita — nisso transformaram-se o Itamaraty e o Ministério da Educação. A Ursal passeia entre nós. Deus não é brasileiro.

domingo, 2 de dezembro de 2018

O livro que criou o termo ‘meritocracia’ é uma distopia

Por Camilo Rocha (Nexo Jornal, 18/04/2018)

É comum se defrontar com o termo “meritocracia” em discussões políticas e econômicas. Na acepção mais comum, designa um modelo em que se progride social e economicamente com base em qualidades pessoais. De acordo com essa visão, a meritocracia premia o esforço individual, que se sobreporia a fatores externos.

Para seus críticos, o conceito é falho pois ignora o contexto social e cultural das pessoas, que podem se traduzir em vantagens ou desvantagens. Segundo essa visão, ao ignorar o histórico das pessoas, a meritocracia serve apenas para reforçar desigualdades existentes. O termo tem origem no livro “The rise of the meritocracy” (“A ascensão da meritocracia”, em tradução livre), publicado em 1958 pelo sociólogo e político britânico Michael Young. 

Satírica, a obra descreve uma sociedade distópica do futuro em que se consolida uma elite baseada em resultados de testes de QI padronizados. Como apenas aqueles com acesso a boas escolas conseguem ir bem nos testes, a “meritocracia” da história apenas perpetua o desequilíbrio social.

A intenção de Young era criticar o sistema educacional britânico de sua época, baseado em um modelo similar de testes de inteligência, que todas as crianças do país deveriam fazer em certas fases da vida escolar. A aprovação ou não nesses testes, em vigor no país até o fim da década de 1980, costumava ser determinante para o futuro profissional dos estudantes.

O termo ganhou sentido positivo nas décadas seguintes ao ser adotado por uma variedade de escritores de autoajuda, pensadores, empresários e políticos. Nos Estados Unidos, o conceito foi incorporado à sólida mitologia do “self-made man”, do personagem de origem humilde que venceu sozinho na vida, associado às histórias do escritor Horatio Alger, do século 19.

No Reino Unido, o termo foi adotado com entusiasmo pelo primeiro-ministro Tony Blair, que ocupou o cargo entre 1997 e 2007. Em um discurso de 2001, Blair fez alusão ao conceito, pregando que “as pessoas deveriam ascender de acordo com o mérito e não nascença”.

Em artigo para o jornal britânico The Guardian no mesmo ano, Young criticou o político pelo uso inadequado da palavra. “É altamente improvável que o primeiro-ministro tenha lido o livro, mas ele abraçou a palavra sem se dar conta dos perigos do que está defendendo”. Figura importante do Partido Trabalhista britânico (o mesmo de Blair), nas décadas de 1940 e 50, o autor foi um dos responsáveis por nortear políticas trabalhistas em áreas como educação, saúde e habitação.

No Brasil, o senador Aécio Neves se valeu do termo em diversas ocasiões, como por exemplo em declarações sobre o funcionalismo público. Em 2015, publicou no Twitter que “sou favorável à meritocracia, a qualificação da ocupação dos cargos públicos em todas as esferas da administração”.

“Sem resolver a desigualdade de oportunidades, ficar falando em meritocracia é piada. Como discutir o mérito de quem chegou em primeiro lugar em uma corrida onde as pessoas saíram em tempos diferentes e a distâncias diferentes?”, declarou Ricardo Paes de Barros, economista-chefe do Instituto Ayrton Senna e professor no Insper, em 2016. 

Em seu artigo de 2001, Young lembrou que a prática pode criar um sistema viciado: “É bom senso indicar pessoas individuais a trabalhos com base no seu mérito. É o oposto quando aqueles que são considerados possuidores de um certo tipo de mérito se engessam em uma nova classe social que não permite lugar para os outros”. Entre seus defensores, há quem ressalve que o conceito vale apenas para situações específicas, não para a sociedade como um todo. Por exemplo, como critério de seleção ou promoção dentro de uma empresa. 

Mesmo nesse tipo de situação, há espaço para desequilíbrio. Uma pesquisa de 2016 do MIT (Massachussets Institute of Technology) identificou que organizações que usam a meritocracia como base para políticas de recompensas têm mais chances de oferecer recompensas de maneira desigual a indivíduos com performance parecida, mas com gênero, etnia ou origem social diferentes. 

Em artigo de 2012 para o Financial Times, Daniel Bell, professor de teoria política na universidade chinesa de Tsinghua, e Eric Li, capitalista de risco em Shanghai, explicaram as vantagens do modelo meritocrático para o preenchimento de cargos no Partido Comunista Chinês. Neste sistema, aspirantes enfrentam alta competição em diversos níveis para ascender dentro da máquina partidária e na administração pública. Testes de personalidade e qualificação ocorrem em várias etapas. Só aqueles com um histórico de desempenho excelente alcançam os níveis mais altos. 

“Em vez de perder tempo e dinheiro tentando angariar votos, líderes podem buscar a melhoria de seu conhecimento e desempenho”, afirmaram os autores do artigo. Mas fazem a ressalva em seguida: “a meritocracia só pode funcionar em um sistema de partido único”. Na democracia, com a alternância de partidos, não há garantia de permanência em um cargo público por muito tempo.