quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

A sanha em aparelhar

Por Murillo Victorazzo

Orçamento, não é de hoje, é produto de choques de prioridades e interesses. Bolsonaro certamente não é o primeiro a priorizar bases eleitorais. Distingue-se, porém, pelo contexto. Pressionar o Congresso a abrir espaço para aumento salarial de uma categoria, em meio a perdas econômicas disseminadas em toda a população, é por si só dar brecha para a bola de neve que já se inicia, com outros setores do serviço público, alguns há mais tempo defasados, ameaçando greve e demissões. 

É impressionante sua capacidade de criar crises. Mas é ainda pior quando os beneficiados são as polícias federal e rodoviária. Além de buscar cooptá-las, estimula policiais militares e civis a pressionarem governadores. Sinaliza que sua sanha em instrumentalizar forças de segurança só aumentará em ano eleitoral. Não é necessário repetir os riscos e objetivos desse retrocesso.

 O privilégio dado é nefasto moralmente, economicamente e institucionalmente.

Bolsominions e seu mito não entendem o que é liderar

Por Murillo Victorazzo

Sim, os "bolsominons", como é conhecida a militância fiel do presidente da República, estão achando normal um chefe de Estado ficar se exibindo risonho, de férias, nas praias catarinenses, enquanto, no Nordeste, um estado do país supostamente comandado por ele afunda na tragédia de dezenas de mortos e milhares de desabrigados. Apenas porque liberou nada mais que uns protocolares milhões de reais e sobrevoou por umas horas a região semanas atrás, antes de a situação degringolar para o triste quadro atual.

Esperar que montasse na Bahia um gabinete de crise com sua presença, eu sei, seria esperar demais de Bolsonaro. Mas choca a falta de compreensão dele e de seus simpatizantes do papel de liderança - e da empatia inerente a ela- em momentos em que são mais exigidas. Ignoram o sentido imagético de governar. São incapazes de notar a necessidade de enviar uma mensagem tão propagada na caserna que ele tanto diz representar: se não na linha de frente da batalha, voltar já ao quartel (Planalto), porque o comandante sou eu.

Adestramento ideológico infantiliza, e Bolsonaro é apenas um deslumbrado com as benesses do poder, sem ainda não ter entendido o seu significado. Isso que dá eleger alguém que só sabe vociferar contra a miragem do comunismo, estimular descrença nas instituições e vomitar falsos moralismos.

quinta-feira, 25 de novembro de 2021

Mónica Hirst: “ O sistema interamericano é uma degradação do que foi; está mais ideologizado do que durante a Guerra Fria”

 Por Mariano Turzi ( Clárin, 20/11/2021)

Monica Hirst reflete em sua própria pessoa sua área profissional. Americana de nascimento, brasileira de coração e argentina por adoção, sua experiência e treinamento vão da América do Sul aos Estados Unidos. Historiadora e doutora em Estudos Estratégicos pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, é um dos principais nomes a serem ouvidos quando o assunto são as relações entre os países do continente americano.

Foi professora em faculdades do Rio de Janeiro, São Paulo e nas universidades de Standford e Harvad, além de consultora independente para o PNUD, Fundação Ford, Corporação Andina de Fomento (CAF) e os ministérios das Relações Exteriores de Argentina, Colômbia e Brasil. Atualmente integra o grupo “Paz y Dialogo" que opera no "Nueva Sociedad, projeto da Fundação Friedrich Ebert (FES), instituição ligada ao partido social-democrata alemão (SPD), com escritórios em diversos países latino-americano. Hirst compartilhou com Clarín sua visão sobre o estado atual do regionalismo latino-americano.

Clárin - O que resta do "regionalismo anárquico" latino-americano, um conceito que você cunhou anos atrás para caracterizar a política da região?

Mônica Hirst - Pensei nesse rótulo na época para criar uma imagem: já estávamos vendo tendências dispersivas e fragmentantes, problemas intrarregionais, fortes diferenças políticas. As questões básicas foram a baixa institucionalidade e o vácuo de liderança após as expectativas não correspondidas do Brasil, após o primeiro governo do PT. Venezuela formando um grupo ideologicamente fechado em torno de ALBA, Chile sem uma identidade regional clara, Colômbia com um processo de paz virtuoso, mas incapaz de ser traduzido em um projeto regional.

Clárin - E o que mudou?

Hirst - O regionalismo ainda estava na ordem do dia. A Unasul ainda existia. Com problemas e tendências fragmentantes, mas não era tão disfuncional como hoje. Hoje está em ruínas. Nosso regionalismo está em um parêntese, um momento onde as forças menos construtivas e mais malignas emergem. E há uma malignidade relacionada a este momento do nosso regionalismo.

Clárin - O que é essa malignidade?

Hirst - Há um conjunto de explicações convergentes que articulam um processo. Em primeiro lugar, há a projeção para a região da polarização político-ideológica das esferas internas em cada um dos países. Isso tinha a Venezuela como epicentro, mas não só. Assim, a capacidade de diálogo político regional foi paralisada e contaminada. Gestos contundentes como a retirada de adesões da Unasul inviabilizaram a própria a instituição. A evolução do Brasil é outra causa. Quando um país de peso, tamanho e projeção do Brasil na América Latina nega a importância da relação com seus vizinhos, isso inevitavelmente tem um impacto e ocorre um vácuo.

Clárin - O que acontece no Brasil?

Hirst - Historicamente, o Brasil sempre foi um ator relutante do ponto de vista do seu regionalismo latino-americano ou sul-americano. Mudou para uma maior presença, responsabilidades e até mesmo liderança semicompartilhada, com a criação do CELAC, Unasul, a articulação militar entre as Forças Armadas, por exemplo, nas operações de paz no Haiti. Esse movimento interno no Brasil que permitia a construção regional proativa foi desmantelado.

Clárin - A crise do regionalismo é vista em outros casos?

Hirst - Na Venezuela, fica claro que há uma crise do processo democrático dentro da institucionalidade. E a presença de atores de alta política internacional como a Rússia, os Estados Unidos e a China torna necessário um tipo de negociação política para a qual a região não está coordenada ou preparada.

Clárin - Como Washington vê a região?

Hirst - Os Estados Unidos não gostam do regionalismo latino-americano. Da negligência do período Obama fomos aos maus tratos do período Trump. Seja ele democrata ou republicano, o regionalismo latino-americano sempre incomodou politicamente o país. Biden simplesmente ignora nossa existência como ator internacional ou espaço relevante para seus interesses.

Clárin - Por quê?

Hirst - Porque, em sua própria projeção global, o regionalismo não tem lugar. Nunca foi visto como um pilar da hegemonia americana. Sempre a percepção era de que era dispensável, não há sequer funcionalidade ou senso instrumental. Há uma leitura permanente desde a Guerra Fria: o regionalismo gera maiores riscos de perda de controle por ser autonomista. É uma lógica de soma zero: mais regionalismo latino-americano, menos possibilidade de ação em nossa região.

Clárin - Isto explica explica as diferenças dentro da OEA?

Hirst - O sistema interamericano era uma ideia com que Washington sempre jogou. Com a revolução cubana, ele teve seu momento de glória. A presença política, econômica (do BID) e militar (o TIAR), com a OEA como espaço para disciplina político-diplomática. Mas o sistema interamericano de hoje é uma degradação do que era.

Hoje é um palhaçada, um desrespeito institucionalizado, uma humilhação. É mais ideologizado do que durante a Guerra Fria. Somado à nossa própria polarização, enfraquece nossa vida democrática. Não como na época dos golpes militares nos anos 60 e 70. Não é nem uma fonte positiva para a recuperação do diálogo ou liderança americano.

Clárin - Como entra, neste contexto, o ocorrido na Nicarágua esta semana e sua guinada autoritária?

Hirst - A experiência da Nicarágua foi transformada em um projeto de poder que se apropriou de uma narrativa, mas reproduz um processo autoritário que prolonga a permanência no poder sem qualquer legitimidade e invalida as normas de direitos humanos. Ao mesmo tempo, é o primeiro caso em que os EUA e a UE trabalham juntos na região em defesa dos ideais liberais, de alguma forma repensando a Doutrina Monroe.

Clárin - E como a presença da China afeta o cenário regional?

Hirst - É mais funcional para a China do que para a América Latina. A China aparece e se expande em um momento de parênteses do regionalismo. É por isso que pode avançar bilateralmente com total liberdade, com especificidade de seus interesses e com compromissos menores (reciprocidades, construção de diálogo coordenado). A China é pragmática, não está projetando seu modelo político em todo o mundo, então compará-la com a URSS parece errado para mim.

quarta-feira, 24 de novembro de 2021

Bolsonaro e o meio-ambiente: como torrar um "soft power" em poucos meses

Por Murillo  Victorazzo

Nos estudos das relações internacionais, os recursos de poder que um país dispõe costumam ser divididos entre hard powers e soft powers. Os primeiros são instrumentalizados por meio da coerção, seja bélica ou econômica; os segundos, através do exemplo e da admiração, tais como a cultura, o esporte, belezas naturais e construção de imagens sobre seu população. Nos últimos dois meses, Jair Bolsonaro acumulou situações em que prosseguiu com sua sanha de destroçar um dos principais soft powers da nação que governa.

A grotesca maratona iniciou-se no final de setembro, na abertura da Assembleia Geral da ONU, onde transformou novamente um discurso que deveria ser voltado à cooperação mundial nas agendas prioritárias contemporâneas em mais uma de suas lives preparadas para inebriar seu fã-clube interno radicalizado. Terminou semana passada em Roma, quando, após não conseguir, na Cúpula do G-20, sequer uma reunião bilateral com outros chefes de Estado ou governo, preferiu ser recepcionado pelo líder da extremista Liga Norte, Matteo Salvini, famoso por parafrasear Mussolini, a estar presente na Conferência do Clima da ONU (COP-26), na Escócia.

Deixava para seu ministro do Meio-Ambiente tentar, em Glasgow, conter danos com anúncios distantes do passado remoto e recente de seu chefe. Nos Estados Unidos e na Europa, em troca, recebeu ironias e desprezo constrangedores da grande maioria das delegações ali presentes, à direita e à esquerda. Sem Trump para levá-lo pelos braços, tornou-se uma figura irrelevante. A insignificância é pior do que a rejeição notada em seus primeiros anos de governo.

Poucos dias após discursar em Nova York, os Verdes (Die Grünen ), além de obterem sua maior votação desde sua criação, saíam das urnas da Alemanha como a terceira força do Bundestag. Ao dobrarem sua bancada (de 51 para 118 cadeiras), tornavam-se os fiadores de qualquer governo que viesse a ser formado. Primeiro lugar entre os mais jovens, ao lado do liberal FDP, o desempenho refletia o que pesquisas e 500 mil pessoas nas ruas de diversas cidades uma semana antes já haviam sinalizado: as mudanças climáticas hoje encontram-se no topo da lista de preocupações dos alemães.

A enorme manifestação a favor de politicas públicas ambientais mais incisivas ganhou tração com as devastadoras enchentes de julho. Com saldo de 150 mortes, a tragédia também ajuda a explicar o pior desempenho da história do democrata-cristão CDU: Armim Lachet, o cabeça de chapa do partido, era, até poucos dias atrás, o governador da Renânia do Norte-Vestfália, estado mais atingido. Nem mesmo a alta popularidade de Angela Merkel foi capaz de evitar o fracasso.

Após dois meses de negociações, nesta quarta-feira, dia 24, o acordo para o novo governo foi firmado. Liderado pelo social-democrata SPD, contará com o Die Grünen e o FDP - a já apelidada "Coligação Semáforo": além do verde, o vermelho do SPD e o amarelo dos liberais. Além da vice-chancelaria, a
legenda ambientalista será responsável, entre outros, pelos ministérios das Relações Exteriores, Economia - que será rebatizado de Economia e Proteção Climática - e Economia Agrária.

Entre os pontos do programa de governo anunciados, os Verdes conseguiram garantir a antecipação para 2030 do prazo para o fechamento de todas as usinas de carvão e a permissão para compra de veículos a combustão até 2035, além do controle de cada projeto quanto a seu impacto climático, meta de ocupar 2% do território com turbinas eólicas e obrigatoriedade painéis solares em prédios novos e instalação em massa nos existentes. Em mente, a neutralização das emissões de carbono até 2045.

Olaf Scholz, o futuro primeiro-ministro, reafirmou que a agenda ambiental será "obrigação central" de seu governo. Junta-se assim à tendência da atual política norte-europeia, onde Noruega, Suécia, Dinamarca Finlândia e Islândia, depois de mais de duas décadas, voltaram a ter conjuntamente governos de centro-esquerda, relembrando o histórico bastião social-democrata na região - e todos com ascendentes partidos ambientalistas participando com destaque das coligações majoritárias. A onda verde atinge inclusive a Noruega, cujas exportações dependem fortemente da exploração de combustíveis fósseis (42% das receitas). Ao mesmo tempo, é hoje o país que proporcionalmente mais vende carros elétricos no mundo (55% do mercado interno).

A pauta ambiental, no entanto, ao contrário do que o reacionarismo bolsolavotrumpista dissemina, não se limita ao campo da esquerda. Em seus 16 anos de governo, Merkel, por sua atenção ao assunto desde os tempos de graduanda de Física, ganhou a alcunha de "chanceler do clima". Propostas nesse sentido estão presentes nas siglas de centro-direita europeias, como o agora governista FDP, e movimentos liberais lá e aqui no Brasil (Renova, Livres, Acredito), variando apenas o quão ambiciosas são, em muito por preocupações a respeito do gasto público necessário.

Não encontra espaço, claro, entre os adeptos do modismo libertário e "anarcocapitalista" de Mises, segundo o qual qualquer regulação à produção desenfreada capitalista é considerada "caminho para o socialismo", reducionismo que alicerça as típicas teorias da conspiração da "nova direita" conservadora (reacionária): ambientalismo é orquestração "globalista", ou "marxismo cultural" - a obcecada metáfora da melancia (verde por fora, vermelha por dentro). Um verniz ultraliberal para dar brilho ao que há de mais atrasado.

Nesse contexto, se não é o clichê raso de “pulmão do mundo”, é incontestável o papel fundamental do ecossistema amazônico na troca de gases do efeito estufa, tanto devido à capacidade de absorver grande quantidade de carbono como por emiti-los em queimadas e determinadas atividades econômicas, especialmente o metano na pecuária. Ademais, sem seus “rios voadores”, os demais biomas sul-americanos se tornam inviáveis. "A floresta amazônica está conseguindo compensar apenas 1/3 de todas as emissões humanas", revela Patrícia Gatti, pesquisadora do Inpe e uma das autoras de estudo, publicado na revista Nature, que mostra que a floresta tem emitido mais gás carbônico do que é capaz de absorver.

Há cerca de 30 anos, iniciando pelo liberal Collor, passando pelo tucano social-liberal Fernando Henrique, os petistas Lula e Dilma e indo até Temer, o Brasil percebeu a oportunidade de tornar nossa especialíssima biodiversidade - que vai além da Amazônia, ressalte-se - fonte de forte soft power. Em vez do isolacionismo reativo e negacionista da ditadura militar, reconhecer e enfrentar os passivos ambientais dava ao país legitimidade para tomar à frente nas discussões sobre assunto em que inevitavelmente precisa ser ouvido. Pelo exemplo, enfraquecia qualquer tipo de pressão externa.

Tal legitimidade se traduzia em ganhos econômicos e políticos. Os produtores brasileiros ganhavam selo ambiental com lastro de credibilidade e se escudavam de interesses protecionistas de setores agrícolas norte-americanos e europeus, que se aproveitam de preocupações genuínas. Na ausência de hard powers, uma postura proativa nos abria espaço na arena do sistema interestatal e dava estofo ao manejo do projeto de liderança regional. O Brasil se tornava global player em agenda que ganhava proeminência em um mundo globalizado marcado pela ideia kantiana de integração.

Fazer o dever de casa significava sair da busca da "autonomia pela distância" para a "autonomia pela participação" - em outras palavras, aderir a regimes internacionais. A um país com poucos recursos de poder interessa a consolidação de regras e instituições multilaterais, por, através delas, ser possível moldar uma ordem internacional previsível e inibidora da "lei mais forte". Mesmo imperfeitas, dentro delas, com coalizões e regulações, mitiga-se o desequilibro da balança de poder. A tradição multilateralista da política externa brasileira ganhava novos contornos. A partir de então, passamos a não só participar como liderar a construção de normas internacionais ambientais.

Meio-ambiente deixava de ser visto como ameaça à soberania para ser vetor de desenvolvimento nacional. Assim o Brasil sediou a Eco-92, assinou o Protocolo de Kyoto, ratificou a Convenção Sobre Diversidade Biológica e teve atuação destacada nas negociações do Tratado de Paris, em 2015, quando centenas de países firmaram metas de corte de emissão de gases do efeito estufa.

Em 2002, na Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável, em Joanesburgo, o país conduziu a elaboração de dois conceitos: o de "desenvolvimento sustentável", fundamentado no direito ao desenvolvimento dos países mais pobres e a soberania sobre seus recursos naturais - embora sem negar seus deveres - e o de "responsabilidades comuns, porém diferenciadas", segundo o qual os que historicamente mais poluíram deveriam arcar com maiores ônus na mitigação desses gases. E rechaçou a ideia de "patrimônio comum da humanidade”, temeroso de suas implicações sobre a Amazônia. "Uma engenharia diplomática" que mereceu aplausos de setores nacionalistas do pensamento brasileiro, como o historiador Amado Cervo, um dos mais renomados especialistas em Política Externa brasileira.

Internamente, em 2004, o governo lançou o Plano de Controle e Prevenção do Desmatamento. Em 2012, o Congresso aprovou o novo Código Florestal após demorados embates entre ambientalistas e ruralistas, mediados pelo Executivo. Criou-se, em 2007, o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). IBAMA e FUNAI ganharam musculatura.

De quarto lugar no início da década de 90, passamos a décimo maior emissor de gases do efeito estufa. Ao mesmo tempo em que nos tornávamos potência agrícola, base para os anos de crescimento do PIB na primeira década do século, as taxas de desmatamento caíam. Entre 2004 e 2013, o índice na Amazônia despencou cerca de 80%. Evidenciava-se que regulação ambiental nunca foi incompatível com crescimento econômico. O que traz produtividade é tecnologia, conhecimento e uso sustentável do solo, não a expansão descoordenada de terra devastada.

É óbvio que nem tudo eram flores, com o perdão do trocadilho. Os antagonismos internos entre as pastas da Agricultura, comandados por nomes ligados ao ruralismo, e do Meio-Ambiente causavam constantes tensões política. Como ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff desequilibrou a balança a favor dos primeiros, levando ao pedido de demissão de Marina Silva, um divisor de águas no movimento ambientalista brasileiro e nos governos petistas.

Ambientalistas entraram em choque com o governo Dilma na busca por um Código mais rígido - e principalmente pela polêmica construção, em meio a desgastante processo judicial, da Usina de Belo Monte, fruto da tradicional concepção de modelo de crescimento econômico que vê a Amazônia como colônia energética. Entre 1997 e 2020, destruíram-se oito por cento da floresta amazônica em terras públicas, área pouco maior que o Uruguai.

A partir dos últimos anos da administração da petista, diante de severa crise econômica e política, as taxas de desmatamento voltaram a subir. Pouco, porém, se comparado ao descontrole do governo Bolsonaro. Em seus mil dias de governo, completados em setembro, a taxa de desmatamento cresceu 74%. Segundo o Inpe, a curva ascendente nesses três anos da atual gestão chegou ao pior índice desde 2005. Com crescimento de 22% em relação ao ano passado, os 13 mil km² de área desmatada significa mais do que o triplo do mínimo alcançado em 2012, números fundamentais no cálculo de emissão dos gases do efeito estufa, sendo o país dono de matriz energética limpa.

Não por acaso, de 2019 para cá, voltamos a subir para a quinta posição entre os países emissores. Segundo o Observatório do clima, enquanto, em 2020, em meio à recessão mundial decorrente da pandemia, tais emissões caíram 7% no mundo, no Brasil aumentou 9,5%, em virtude também das queimadas no Cerrado e Pantanal. Na Amazônia, queimou-se mais em 2019 do que nos sete anos anteriores.

Mas mais do que percentuais bem mais elevados, a política ambiental de Bolsonaro tem enviado sinais contrários a todo o arcabouço construído nas décadas anteriores. Previsível diante do histórico do presidente, que, como deputado e candidato, notabilizou-se por acusar fiscais ambientais de "xiitas" ou "ideológicos" - julgando, como sempre, os outros por si próprio - e gritar teorias conspiratórias sobre a Amazônia, ecoando a visão geopolítica dominante da caserna, avessa a qualquer agenda que coloque no palco das relações internacionais outro ator que não seja o Estado-nação e seja entendida como ameaça a ele.

Uniu assim o trumpismo e sua retórica antimultilateral - algo completamente sem sentido para um país emergente como o Brasil, seja lá qual for o tema em debate - à típica exacerbada concepção militar de pluralismo nas relações internacionais, na qual política externa é sempre um jogo de soma zero. Bases conceituais que soam como música para uma de suas bases eleitorais: grileiros, garimpeiros ilegais e a parte do setor agropecuário rudimentar que, se não querem se convencer das implicações das mudanças climáticas a longo-prazo para o próprio ramo, ainda não entenderam que a Amazônia tem, hoje e amanhã, mais valor em pé do que no chão.

Recém-eleito, Bolsonaro anunciou a retirada da candidatura do Brasil para sede da Conferência do Clima da ONU (COP-25) em 2019 e chegou a prometer a retirada do país do Tratado de Paris, absurdo estancado pela pressão da ala internacionalizada do agronegócio. Anunciou a extinção do Ministério do Meio-Ambiente, realocando algumas de suas funções na Agricultura. Demovido da ideia, colocou a raposa Ricardo Salles para tomar conta do galinheiro.

Salles não decepcionou seu chefe: fragilizou o aparato do IBAMA e do ICMBio, e, sob o argumento de acabar com o "aparelhamento esquerdista", aparelhou-os, trocando funcionários de carreira por policiais militares em suas chefias. Não só extinguiu comitês dentro da estrutura do governo que davam voz à sociedade civil como faz campanha incessante de demonização de ONGs, instrumento basal para descentralizar e, portanto, maximizar a fiscalização e que alguém que se diz liberal deveria estimular. Acusações generalizantes ou sem provas de crimes e pechas, como serem instrumentos de interesses estrangeiros, sempre foram frequentes em declarações de ambos.

O governo tirou a autonomia de fiscais para multar e preferiu, além de criar um unilateral Conselho da Amazônia, também sem participação da sociedade civil, enviar militares sem expertise para combater queimadas e desmatamento. Atingiu-se, em 2020, o menor número de multas ambientais em 20 anos, perto da metade da média da primeira década do século. De janeiro a setembro de 2021, foram aplicadas 44% a menos do que no mesmo período de 2018.

Bolsonaro não cansa de repetir que a "Amazônia não pega fogo por ser úmida", mais uma de suas típicas misturas de cinismo com ignorância. Não pega fogo sozinha, e aí que mora o problema - na verdade, os crimes. Ou abusa do negacionismo, responsabilizando a cultura de subsistência das comunidades tradicionais e ribeirinhas, quando dados dos próprios órgãos estatais comprovam que apenas 6% do desmatamento em terras públicas se dão em reserva indígenas, em muito em função da presença ilegal de garimpeiros e grileiros.

Logo em seus primeiros meses, paralisou um projeto de cooperação internacional para manutenção da floresta ( Fundo Amazônia) por tentar mudar suas regras à revelia dos países financiadores - justamente Alemanha e Noruega. Coagiu a diretoria do INPE e desqualificou o órgão estatal a cada péssimo dado que saía. Propôs e apoia projetos no Legislativo e recursos no Judiciário que enfraquecem todo o arcabouço construído nas décadas anteriores - e agora, contraditoriamente com o que dizia no passado e pratica no presente, louvado por ele na ONU como "forte legislação ambiental, que deveria ser exemplo para o mundo".

Foram retiradas da gaveta do Congresso ou enviadas para lá projetos que extinguem unidades de conservação, legalizam com anistia terras invadidas por grileiros, alteram o processo de demarcação constitucionalmente previsto de terras indígenas (o "marco temporal" em debate também no STF) e flexibilizam o licenciamento ambiental. O senador filho do presidente chegou a propor lei que acaba com a reserva legal nas propriedades rurais, ideia criticada até por entidades do agronegócio.

Tamanho retrocesso permitiu, em proporção igual, o recrudescimento das pressões externas - tanto as legítimas como as protecionistas, que nele viram brecha favorável.Veio com elas a retórica vitimista de que, ao contrário dos governos anteriores, Bolsonaro defenderia a “soberania nacional”, quando é o derretimento desse soft power que a fragiliza. Nesse sentido, ressalte-se, as declarações de Macron, em 2019, com insinuações sobre "internacionalização" da Amazônia, e do então candidato Joe Biden, em 2020, semelhantes a certo "imperialismo verde", caíram como luva para o presidente brasileiro, em um típico caso de algozes que se retroalimentam.

Evocar soberania, por sinal, já deveria soar ridículo para um governo que se pautou por bandwagoning como estratégia de inserção internacional. Na verdade, uma espécie de alinhamento automático à superpotência ainda mais disfuncional, por, até janeiro passado, ir a reboque não dos Estados Unidos como nação, mas do projeto de poder do inquilino da Casa Branca, não só se furtando ao diálogo com toda a diversificada sociedade do país como chegando a antagonizar explicitamente com as demais forças políticas internas.

Nos meses que antecederam a eleição na maior economia da Europa e quarta do mundo, Bolsonaro não buscou pontes, como usualmente governos fazem, com nenhuma das quatro principais chapas concorrentes. O variado cardápio ia da centro-esquerda (SPD e Verdes) à centro-direita liberal e conservadora (FDP e CDU). Preferiu receber, em julho, no Palácio do Planalto, a deputada Beatrix von Storch, vice-presidente da Alternativa para a Alemanha (AfD), legenda extremista considerada pária entre os altos degraus políticos e econômicos do país e da União Europeia. Postou sorridente para fotos com ela, assim como fez a deputada Bia Kicis, sua aliada fiel.

Único partido a não abordar as mudanças climáticas em seu programa de governo, a AfD não só defende a saída do Tratado de Paris como o investimento nas altamente poluidoras usinas de carvão. Defende ainda a saída da União Europeia, a abolição de todas as medidas obrigatórias de combate ao coronavírus, a volta da definição tradicional de cidadania alemã, com base na ascendência, e o fim do direito constitucional ao asilo.

Após se aproveitar dos temores de parcela da população com a crise dos refugiados e a política de "portas abertas" de Merkel, a sigla perdeu 11 cadeiras em relação às eleições de 2017, caindo para a quinta posição. Diante de números que mostram a inserção econômica bem sucedida dos imigrantes, o tema, ao contrário do ambientalismo, ficou à margem na campanha. A segunda colocação em partes da antiga Alemanha Oriental leva seus líderes a garantirem que, em algum momento, deixarão de ser escanteados nas formações de coligações parlamentares em níveis federal e estadual. Por hora, porém, conservadores, verdes, social-democratas e liberais descartam qualquer tipo de diálogo.

Razões não faltam. Muitos de seus membros têm ligações com movimentos neonazistas. Alguns já questionaram a necessidade de um memorial ao Holocausto em Berlim. Seu gene xenófobo é inegável, a ponto de disseminarem a teoria conspiratória da "grande troca populacional", segundo a qual governos europeus, com a cooperação das "elites", conspiram para trocar a população branca por imigrantes árabes, muçulmanos ou africanos.

Em março deste ano, após a chacina a tiros de nove jovens imigrantes por um extremista, a agência de inteligência doméstica alemã (BfV) colocou sob vigilância a Der Flugel, a ala mais extremista do partido. Na primeira reunião da sigla após as eleições, entre outras pautas, a situação do parlamentar recém-eleito Matthias Helferich, que havia se descrito em um chat como "o rosto bonito do nazismo". Nenhuma moção contra ele foi aprovada.

Também sob a vigilância da BfV por "hostilidade à democracia" e riscos à segurança está o movimento Querdenken, criado contra as medidas de combate à pandemia do governo alemão, mas suspeito de ligações com grupos extremistas. Segundo a agência, sua agenda vai além da suposta "defesa das liberdades individuais". Na semana da Assembleia da ONU, o movimento veiculou em suas redes sociais uma entrevista com o presidente brasileiro.

Na ocasião, Bolsonaro repetiu seus mantras: defendeu o "tratamento precoce", colocou em dúvida a eficácia de vacinas e acusou, sem provas, hospitais de supernotificações de mortes. Mas desceu mais um pouco seu nível de empatia: "O covid apenas encurtou a vida das pessoas. Muitas tinham alguma comorbidade, então a covid apenas encurtou a vida delas por alguns dias ou algumas semanas". Já Kicis, também em entrevista ao movimento, afirmou que “o uso de máscaras faz você perder sua identidade".

Alarmado, o Conselho Central dos Judeus da Alemanha aplaudiu a iniciativa do órgão alemão a respeito do Querdenken. No Brasil, outras organizações judaicas, como a Confederação Israelita do Brasil (Conib) e Judeus Pela Democracia, Instituto Brasil Israel (IBI), repudiaram a visita de Von Storch, frisando o perfil xenófobo e supremacista do AfD, "cujos líderes minimizam as atrocidades nazistas e o Holocausto", e considerando a viagem ao Brasil uma "forma desesperada de legitimação internacional". Além dos bolsonaristas, líderes da legenda foram recebidos apenas por representantes do governo da Rússia e das autocracias de Síria e Belarus, aliados de Putin, interessado em enfraquecer a União Europeia.

Kicis, em carta enviada ao Conib, negou que o AfD seja um partido nazista - ainda que, "como todo grupo político" possa ter "integrantes mais extremados" - e garantiu serem ambas "defensoras dos valores judaicos-cristãos": "Combato nazismo quanto qualquer ideologia que segregue, persiga e mate". Neta de um ministro das Finanças do III Reich, Von Storch já mostrou-se, em suas redes sociais, a favor de que refugiados, mesmo com ciranças, possam ser parado a tiros nas fronteiras do país e protestou contra celebrações de Ano Novo em árabe no perfil do Twitter da Polícia de Colônia: "Eles pretendem apaziguar as hordas de homens bárbaros, muçulmanos e estupradores em massa dessa maneira?"

No diminuto círculo de aliados, além de Salvini, acrescente-se, desta vez no poder, o húngaro Victor Orbán, primeiro-ministro ultraconservador e eurocético, em choque com Bruxelas por politicas contra minorias, imprensa e Judiciário, exemplo mais bem acabado do que Adam Przeworski definiu como "subversão sub-reptícia": o frequente uso para fins antidemocráticos de mecanismos previstos em legislações democráticas. Acumulados, corroem gradualmente as instituições e o poder de atuação da oposição. No eufemismo autodeclarado pelo próprio Orbán, uma "democracia iliberal", conduzidas, nos casos à direita, por líderes populistas hábeis em alimentar o medo e a descrença popular nas instituições, além de se apresentarem como defensores das tradições religiosas.

Na defensiva, o governo brasileiro tenta agora modular seu discurso. Além do repentino apreço pela legislação ambiental, Bolsonaro afirma que reforçará o orçamento dos órgãos de fiscalização e cobra a concretização do Fundo Verde, dispositivo previsto no Acordo de Paris que prevê a destinação de US$ 100 bilhões dos países ricos como ajuda às nações em desenvolvimento no combate às mudanças climáticas. Barganha contraditória e tardia para quem travou o Fundo Amazônia e emitiu tantos sinais de desleixo com o assunto. Só dados concretos darão a legitimidade para se fazer exigências.

A falta de credibilidade se reforça com a pirueta matemática na hora de atualizar, na COP-26, a meta de corte de emissão de gases para 2030. Ao revisar pra cima os números de 2005, base do cálculo, o suposto aumento de 43% para 50%, que em tese nos igualaria a China e outros emergentes, não só apenas empata em valores absolutos com a proposta antiga como piora a percepção de que o Brasil não é um ator que merece ser levado a sério. Vender números falaciosos em tribuna internacional, enquanto posterga para depois da Conferência a divulgação dos péssimos dados sobre desmatamento no último ano, certamente só piora o quadro.

Por enquanto, nada sobre Acordo comercial entre o Mercosul e União Europeia, umas das poucas vitórias da ensandecida política externa de Bolsonaro, foi abordado nas negociações da "Coligação Semáforo". De olho no mercado sul-americano, Merkel sempre evitou exigir compromissos ambientais mais intrusivos dos que os já previstos, como a presença em tratados internacionais, para prosseguir no processo de ratificação do acordo. A assinatura precisa ser referendada pelos Legislativos de todos os países do bloco e o Parlamento europeu. Tudo leva a crer, porém, que Scholz aja de forma mais combativa, anda mais cabendo ao Verdes a condução da diplomacia a partir de agora.

Não é de hoje que o partido se mostra contrário a qualquer negociação com o governo brasileiro. Em comunicado à imprensa em abril, seus dirigentes defenderam que, "para obter benefícios econômicos, o Brasil deve fortalecer seriamente a proteção e a legislação ambiental, promover maciçamente a demarcação constitucionalmente prescrita dos territórios indígenas e fortalecer os direitos dos povos indígenas e das comunidades tradicionais". "Proteção climática precisa de política externa”, disse, no anúncio do acordo de coalizão, Annalena Baerbock, sua colíder no Bundestag e cotada para assumir o ministério.

Mês passado, liderado pelo bloco ecologista do qual o partido faz parte, o Parlamento Europeu bloqueou por 423 votos contra apenas 170 qualquer avanço no processo de ratificação do acordo, enquanto não houver garantias de "proteção da biodiversidade, em especial na Amazônia, e padrões agrícolas". A expressiva votação reflete a dimensão do tema na opinião pública europeia, indo além dos partidos mais próximos a interesses protecionistas, e o profundo ceticismo com a política ambiental de Bolsonaro, o que torna mais viável a aprovação do projeto de lei, proposto pela Comissão Europeia após consulta pública com mais de um milhão de assinaturas, que proíbe a importação de commodities cujas cadeias produtivas contribuam para o desmatamento.

Aprovado ou não o projeto, é consenso, até entre os favoráveis ao acordo comercial que, enquanto Bolsonaro estiver no Planalto e "sem progresso concreto no tema do desmatamento da Amazônia” , conforme as palavras do deputado democrata-cristão Sven Simon à Folha de São Paulo, a ratificação não andará. Percepção igual a de diplomatas brasileiros, já preparados para o esfriamento da relação bilateral com a Alemanha não apenas nesse ponto, um cenário que se soma às dificuldades de acesso ao governo dos Estados Unidos pelas razões mais do que conhecidas.

Em sua primeira viagem à América do Sul, o secretário de Estado norte-americano, Antony Blinken, excluiu o Brasil do roteiro que incluiu Colômbia e Equador, dos - frise-se - direitistas Ivan Duque e Guilherme Lasso. A Casa Branca nega que as razões sejam as conhecidas desavenças entre Biden e Bolsonaro, mas o próprio argumento de que o Brasil - a maior economia da América Latina, quinto maior país do mundo, responsável por 70% do ecossistema amazônico e dono de posição privilegiada no Atlântico Sul - já teria recebido, em agosto, a visita do número dois da secretaria, evidencia a perda do status de liderança regional.

Enquanto Bolsonaro era desprezado em Nova York, Duque jantava na mesma cidade com o magnata Jeff Bezos para receber uma doação de US$ 1 bilhão a ser usada na proteção do meio ambiente. Não por coincidência, seu governo prepara para regular emissões e avança em novos arranjos financeiros de clima e floresta. Em Bogotá, Blinken o elogiou por sua "liderança excepcional" em questões ambientais - e ainda mais sintomático, anunciou lá, e não no país detentor da maior parcela do bioma, o pacto regional para reduzir seu desmatamento a ser lançado por Washington.

Os EUA não veem mais o Brasil como ator confiável, o que era regra até em momentos delicados das relações bilaterais. Seja na época da amizade de Fernando Henrique com Bill Clinton, do surpreendente bom relacionamento entre o esquerdista Lula com o republicano George W. Bush, ou do distanciamento entre Obama e Dilma, após vir a público a espionagem norte-americana sobre a presidente brasileira e seu alto-escalão, a Casa Branca sempre considerou o país como importante fonte de moderação e estabilização da América do Sul.

Biden tem sido comedido no distanciamento. Não se sabe até quando. Deputados democratas, junto a setores da sociedade civil, pressionam o governo por manifestações mais enfáticas a respeito de violações de direitos humanos e destruição ambiental. Ganha força no Capitólio a oposição a qualquer tipo de acordo comercial com o Brasil, inclusive entre democratas pró-livre comércio, e a anulação da designação de aliado preferencial extra-Otan. Lá foi apresentado projeto semelhante ao proposto pela Comissão Europeia. "Produtores que desmatam são pessoas que têm uma vantagem comercial injusta, que trapaceiam, por isso têm que ser punidas", diz um dos deputados autores da proposta. Servindo ou não a possíveis bases eleitorais agrícolas, errado seu argumento não está.

A pressão se reforça com a surpreendente declaração conjunta com seu maior adversário no tabuleiro geopolítico internacional. Na COP-26, China e Estados Unidos se uniram para anunciar que "pretendem se engajar de forma colaborativa no apoio à eliminação do desmatamento ilegal global por meio da aplicação efetiva de suas respectivas leis de proibição de importações ilegais". Deixam claro que meio-ambiente é uma das raras agendas em que conseguem convergir, o que deve causar calafrios em Brasília e em setores ruralistas, confiantes no tradicional pragmatismo de Pequim, visto nas consequências das inúmeras polêmicas decorrentes da verborragia ideológica anti-China do presidente e seu grupo mais íntimo.

Pode-se achar a retórica do movimento ambientalista apocalíptica, quem sabe até ser cético quanto ao papel do ser humano nas mudanças climáticas, acreditando ainda ser possível separar a história natural da história do capital e da cultura. Qualquer um de nós, meros cidadãos, pode discordar do historiador indiano Dipesh Chakrabarty, que afirma não haver mais aquele mundo no qual "os processos da Terra eram tão grandes e poderosos que nada que fizéssemos poderiam mudá-los". Mas se o chefe de Estado ainda refuta ideologicamente o que a vasta maioria dos cientistas defende, o que dele se espera é, no mínimo, saber reconhecer as restrições do país que comanda e a conjuntura política e econômica.

Não se nega que as relações interestatais se movimentem antes por políticas de poder do que pelo idealismo kantiano de cooperação. Tampouco eventuais hipocrisias de países ricos, também com seus calcanhares de Aquiles, dificuldades em atingir metas propostas e hesitações. Ao contrário, trata-se de, pelo exemplo, saber usar os parcos recursos de poder disponíveis a fim de permitir ao país se posicionar no pelotão da frente da regata da sociedade internacional, evitando remar contra a maré e se ver sozinho na ribanceira. Valores a serviço da realpolitik.

Não por acaso, Letícia Pinheiro, uma das principais especialistas em política externa brasileira, cunhou a expressão "institucionalismo pragmático" para definir a atuação brasileira nos anos FHC e que, apenas com enfoques diferenciados, repetiu-se nos períodos petistas e de Temer. O trumpismo, errado ou não, só se fazia viável por se tratar da maior potência do mundo, com inigualáveis hards e softs powers, ainda que Trump enfraquecesse os últimos.

O reacionário se caracteriza por ver o mundo por um retrovisor idealizado, mas que, na realidade, acaba por lhe fornecer imagens distorcidas. É assim incapaz de notar o quão equivocado é, exceto como estratégia eleitoral interna, resumir tudo a interesses protecionistas ou apontar o dedo para o desenvolvimento predatório passado dos mais ricos, quando hoje as oportunidades e restrições contemporâneas são outras. Mês passado, a ANP colheu o maior fracasso na história dos leilões de petróleo pela cautela dos investidores internacionais diante da ausência de garantias ambientais na exploração dos campos oferecidos perto de Fernando de Noronha.

Nos últimos anos, enquanto o desmatamento disparava, o PIB caía ou se estagnou, outra sinal da falácia da suposta correlação positiva entre os dois. O Brasil só tem a ganhar economicamente se voltar a liderar a agenda ambiental, com políticas públicas proativas e incentivo à bioeconomia, em vez da, por exemplo, invasiva e poluidora garimpagem, fetiche do presidente desde seus tempos de oficial do Exército. Imagem é tudo, afirma o inevitável cliché da publicidade brasileira. E Bolsonaro é, com razão, refém da sua, em cuja construção pesa seus histórico e a escolha de aliados.

É quase certo que Bolsonaro se torne o primeiro presidente brasileiro após o ditador Medici a terminar um mandato sem ser recebido, em visita oficial, por chefes de Estado ou de governo de Grã Bretanha, França e Alemanha. Só resta ao "defensor da liberdade e dos valores ocidentais cristãos", repetir visitas a ditaduras monárquicas árabes, famosas por perseguirem os seguidores de Jesus - e anunciar nova rodada de viagens, desta vez  à Hungria de Orbán e Polônia do igualmente "iliberal" Mateusz Morawiecki...

O isolamento pode até ser bastante oportuno para ganhos eleitorais internos, por reforçar entre seus simpatizantes a retórica do homem simples e desajeitado rejeitado pelo establishment, no caso o internacional. Não duvidemos que Bolsonaro e seu círculo tenham vibrado - e as estimulem - com as imagens de um presidente sozinho conversando apenas com o garçom, enquanto rodinhas de líderes trocavam ideias em Roma. Para o pais, entretanto, é péssimo. Nas pautas ambientais, tanto pela atuação da sociedade civil como pela posição natural de destaque do Brasil, que o obriga ser ouvido de alguma maneira, seja lá quem estiver no Planalto, pode até ser amenizado. Nos demais fóruns, contudo, os custos a médio-prazo não serão baixos.

Sim, o Brasil não é o vilão do clima, mas é inevitavelmente destaque, com bons e maus momentos, nessa trama. Já seu presidente sempre fez de tudo para assumir esse papel. "O Brasil sempre foi um ator principal nas discussões climáticas, mas hoje é um pária: ou ele é ignorado, ou então visto como alguém que não trará algo positivo", constata Marcelo Britto, fundador do Coalizão Brasil, grupo de mais de 300 empresas e entidades e presidente da Associação Brasileira do Agronegócio (Abag). Pária como a Afd e o Querdenken.

quarta-feira, 10 de novembro de 2021

Ao miserável, nem mesmo a Justiça justa

Por Conrado Hübner* ( Folha de SP, 10/11/2021)

A Constituição de 1988 pode exibir ao constitucionalismo universal duas instituições arrojadas e originais: Defensoria Pública e Ministério Público. Não se confundem com as versões antigas do serviço de assistência jurídica aos pobres ou com as promotorias de acusação penal. Formam engrenagens potentes para dar tração institucional às promessas de inclusão e redução de desigualdades.

O Ministério Público deve promover "defesa da sociedade" (na ação penal, mas também em tantas outras áreas como meio ambiente, consumidor, pessoas com deficiência, crianças e adolescentes etc.). À Defensoria Pública incumbe assistência jurídica gratuita aos vulneráveis. Portanto, a defesa da sociedade também. Natural que, entre as duas, haja um grau de sobreposição de funções. Sem coordenação, surgem conflitos.

A relação nunca foi harmoniosa e equilibrada. A Defensoria, construída do zero a partir da redemocratização, estado por estado da federação, carece de peso político comparável ao Ministério Público, que já gozava de história institucional e carreira enraizada nos canais da magistocracia. 
A Defensoria seguiu como prima pobre, subfinanciada e com déficits maiores de pessoal e infraestrutura se comparadas as carreiras. Mas, em poucas décadas, revolucionou o acesso à Justiça. Para Bryant Garth, dos maiores estudiosos do assunto, a Defensoria brasileira é "das instituições mais proeminentes no mundo associadas com o acesso à Justiça".

Propiciou aos necessitados serviço gratuito que, em grau de competência, profissionalismo e abrangência, o país nunca teve. O assistencialismo da advocacia privada jamais poderá estar à altura da missão. Por insuficiência de recursos e braços, a Defensoria limita seus assistidos por faixa de renda. Seu atendimento está disponível aos 25% mais pobres da população brasileira. Os 50% acima, também incapazes de pagar por serviço jurídico privado, permanecem no limbo do inacesso à Justiça.

A Defensoria não tem poder apenas para litigar judicialmente, mas competências extrajudiciais para prevenir litígios; não só em casos individuais, mas também em causas coletivas. Para exercer a complexa tarefa com eficiência, pode exigir de entes públicos e privados, sem intermediação judicial, documentos, informações, diligências etc. O chamado "poder de requisição", que o Ministério Público também tem. 

Assim, a Defensoria resolve algumas demandas urgentes da miséria brasileira sem bater na porta do juiz, sem consumir recurso e tempo judiciais. E consegue construir ações judiciais coletivas com lastro documental que a população pobre simplesmente não tem (diferentemente de mim e você).

Augusto Aras, ecoando tradição do canibalismo magistocrático, questionou o poder de requisição. Não do Ministério Público, mas da Defensoria. Propôs 22 ações no STF que alegam inconstitucionalidade desse poder das defensorias no país. Numa das ações, Gilmar Mendes, relator, concordou com Aras. Fachin suspendeu o julgamento. O caso volta à pauta do STF nos próximos dias.

Aras argumenta que esse poder quebra o "equilíbrio da relação processual" e fere a "paridade de armas" entre defensores públicos e advogados. Vigente há mais de 20 anos, nunca questionado pela advocacia, sem nenhuma prova de que tenha sido abusado pela Defensoria, o poder de requisição agora é questionado pelo chefe do Ministério Público em defesa da advocacia. E Gilmar, no tempo recorde de três meses, soltou seu voto.

A decisão é juridicamente cega, institucionalmente trágica e socialmente perniciosa. Também "rastaquera", como Gilmar gosta de dizer dos outros. Cega porque a lei já admite diferenciações entre direitos das partes de um processo. E nem mesmo com esse poder a Defensoria "reequilibra" as forças, apenas atenua a desvantagem de assistidos.

E nem vale lembrar das portas VIPs que advogados influentes têm nos tribunais, porque miseráveis não litigam contra eles. Suas urgências são mais existenciais: a fome, a saúde, a proteção contra violência estatal. Trágico porque levará ao aumento da judicialização e à redução da já limitada população de assistidos que a Defensoria conseguirá atender. Pernicioso porque só fará aumentar a desigualdade do serviço jurídico e da prestação jurisdicional.

Na fantasia macabra de Aras e Gilmar, se advogado da Samarco, em escritório na Faria Lima, não tem poder requisitório, por que defensor público que pede acesso a água para crianças e idosos em Mariana deveria ter?

 Em artigo clássico, Galanter mostra que a riqueza é determinante no resultado judicial ("Why the Haves Come Out Ahead"). Para reduzir o abismo, o serviço jurídico a vulneráveis precisa de capacidades especiais. O "poder de requisição" dá modesto passo nessa direção. Aras discorda. Ao miserável, nem mesmo a Justiça justa. No máximo, a justiça mínima, desdentada, exaurida.

* Conrado Hübner é professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e membro do Observatório Pesquisa, Ciência e Liberdade - SBPC

terça-feira, 9 de novembro de 2021

Emendas: o fim das “moedas de troca” do presidencialismo

Por Fernando Dantas* ( Estadão, 09/11/2021)

Iniciou-se hoje a votação pelo Supremo da legalidade das “emendas de relator”, o chamado “orçamento secreto”. Por seis a zero (até agora), o STF manteve a liminar concedida pela ministra Rosa Weber na última sexta-feira (5/11), suspendendo a execução das verbas do orçamento relacionadas a emendas do relator e determinando a publicidade dos ofícios pelos quais as verbas foram direcionadas.

Com o empenho de aproximadamente R$ 900 milhões em emendas de relator uma semana antes da recente aprovação em primeiro turno pela Câmara da PEC dos Precatórios, muitos observadores experimentaram um “déjà vu” de algo que vem dos primórdios da redemocratização: o governo liberando emendas às vésperas de votações importantes no Congresso, e a opinião pública e a maioria dos comentaristas espinafrando o que seria um espetáculo de fisiologia da política brasileira.

O cientista político Carlos Pereira (Ebape-FGV), porém, não concorda com esse diagnóstico. Para ele, a liberação seletiva de emendas pelo Executivo desempenhou no período democrático atual um papel importante de “moeda de troca” do jogo político do presidencialismo multipartidário de coalizão.

Com a fragmentação partidária do Congresso e o fraco teor ideológico de muitos partidos, a forma de o Executivo obter aprovação legislativa para seus projetos reúne um conjunto de ferramentas. Estão nele a divisão proporcional de Ministérios e cargos de alto escalão entre os partidos da base; um programa crível e coerente; a competência política na gestão da agenda legislativa; e, sim, algum nível de atendimento preferencial de demandas legítimas, porém mais paroquiais, de parlamentares e partidos fiéis ao projeto de governo.

Pereira, entretanto, vê a atual situação das emendas de relator como uma distorção nociva, em parte criada justamente pela supressão da “moeda de troca” convencional das emendas parlamentares. Esse processo pelo qual a liberação de emendas pelo Executivo mudou de discricionária para obrigatória iniciou-se no governo Dilma e se concluiu com Bolsonaro, atingindo, nesta ordem cronológica, as emendas individuais, as coletivas de partido e as coletivas de bancada.

Na visão do cientista político, a mudança reflete um Poder Executivo que viveu boa parte do tempo acuado e fragilizado desde a grande crise econômica que inaugurou o segundo mandato da presidente Dilma Rousseff. Bolsonaro, com a consagração das urnas no início do seu governo, optou autodestrutivamente pelo confronto com a lógica inevitável do presidencialismo de coalizão. De crise em crise, teve finalmente que pedir socorro ao Centrão, já em situação de quase rendição.

E é aí que entram as emendas de relator, que voltaram recentemente ao cenário com os marcadores genéticos do status quo que prevalecia até o escândalo dos “anões do orçamento”, no início dos anos 90. Foi na esteira desse episódio que surgiu a distribuição equalitária de emendas individuais entre os parlamentares, exatamente para evitar as distorções e até corrupção decorrentes do poder excessivo de uma corriola de deputados sobre a destinação das emendas.

Na visão de Pereira, o processo político recente privou o Executivo de moedas de troca legítimas do presidencialismo de coalizão, ao tornar obrigatória e automática a liberação das emendas individuais e coletivas. No vácuo desse dispositivo essencial de coordenação entre governo e Congresso, o Legislativo – mais especificamente, o Centrão – ofereceu ao Executivo uma “tábua de salvação” na forma das emendas de relator.

Se o governo pretende aprovar qualquer matéria no Congresso – como o retrocesso da PEC dos Precatórios – terá de dançar conforme a música das emendas de relator regida pelo Centrão. As emendas de relator são alocadas pelo conluio de pouquíssimos parlamentares em cargos chave, de forma totalmente opaca – impedindo a fiscalização dos órgãos de controle e levando a escândalos como a distribuição de tratores superfaturados.

Por outro lado, a liberação final ainda depende do Executivo. Como diz Pereira, “o presidente da Câmara decide quem vai entrar no ônibus, mas o presidente da República ainda tem o poder de fazer o ônibus andar ou não”. Na verdade, é o resgate a velha moeda de troca, mas de uma forma muito mais deteriorada pelo fisiologismo e desprovida de qualquer transparência, configurando um governo mais do que nunca à mercê dos caprichos do baixo clero da política.

Antes da maioria formada hoje pelo STF em apoio à liminar de Rosa Weber, Pereira considerava possível que o Supremo chegasse a uma decisão salomônica entre as posições de Arthur Lira, presidente da Câmara, e Rosa Weber: as emendas de relator são legítimas, mas têm que vir à luz do dia e se tornar transparentes.

No caso, seria algum avanço, na sua visão, em relação ao atual status quo de falta de moedas de troca legítimas para a fundamental negociação entre Executivo e Legislativo, que dá funcionalidade à democracia. A decisão parcial, porém, foi de paralisar o “orçamento secreto”, na linha recente de eliminar essas moedas de troca.

*Fernando Dantas é colunista do Broadcast

segunda-feira, 8 de novembro de 2021

O Centrão enfim tem candidatura presidencial própria

Por Murillo Victorazzo

Na campanha eleitoral, auxiliares fardados do candidato “antissistema” cantavam "Se gritar, pega Centrão". Meses após ser empossado, ele anunciava sua saída do PSL. O motivo? O presidente do partido, Leonardo Bivar, estava "queimado" pelas investigações da PF acerca do "laranjal" da legenda, caso que estaria, segundo suas próprias palavras, "queimando seu filme". O mito não tinha relação alguma com o caso. A ausência de "compliance" o impelia a mudar de ares. Claro, a briga interna não era por disputa do cofre da legenda, detentora da maior fatia dos fundos eleitoral e partidário. 
Passava-se a discutir a criação de um novo partido legitimamente "conservador" ( reacionário, na verdade). Não seria difícil reunir as assinaturas necessárias; o povo estava com ele. "O povo” não existe e, portanto, nenhum está com ninguém especificamente. Mas é inegável que, se não majoritariamente, setores relevantes o apoiam entusiasticamente. Não deu para 2020, mas conseguiriam para 2022. 

Dois anos se passaram e nada. Bolsonaro não conseguiu nem um terço das assinaturas necessárias: 0,5% dos votos válidos (cerca de 500 mil) da última eleição geral, distribuídos em no mínimo um terço dos estados, com um mínimo de 0,1% do eleitorado em cada um deles. Até Gilberto Kassab, para a criação de seu  amorfo PSD, cumpriu em seis meses os requisitos exigidos 

O discurso vitimista ganhava novos contornos entre seus simpatizantes: o TSE, aquele que, dias atrás, arquivou o pedido de cassação da chapa presidencial mesmo reconhecendo ilegalidades nela, impedia dolosamente a concretização do projeto. Não se tratava de falta de empenho; era apenas coincidência o Aliança pelo Brasil ir sendo relegado ao dispensável à medida que o governo se aproximava do Centrão. 

Nada a ver com a ínfima parcela do fundo eleitoral que novas siglas têm direito (a repartição igualitária de 2% dele entre todas as existentes). Não, o mito não almejava o farto tempo de TV e rádio e a bilionária quantia de dinheiro público a qual os partidos do grupo tem direito. Oras, ele sempre foi contra o uso desses fundos...

No mesmo dia em que o STJ dá uma mãozinha a seu alaranjado filho senador, anunciou-se a filiação de Bolsonaro ao PL, comandado há muitos anos com mãos de ferro pelo ex-presidiário Waldemar da Costa Neto - protagonista, entre outros casos de corrupção, do mensalão e símbolo do que há de mais podre no tal sistema. Ruídos apenas atrasaram a oficialização do casamento para o dia 30 de novembro. "Estou me sentindo em casa", disse na cerimônia.

Após destinar a Secretária de Governo e a poderosa Casa Civil, além do ministérios das Comunicações e da Cidadania  e tantos outros cargos de segundo e terceiro escalões, a esse arremedo de políticos tradicionais que se sustentam apenas no fisiologismo em proporção inversa à organicidade programática, o presidente o eleva não mais apenas ao coração do governo. O Centrão é agora também sua cabeça, tronco e membros, algo jamais priorizado por tais parlamentares, historicamente satisfeitos em abocanhar pelas beiradas, como apêndices de gestões de diferentes perfis.  

Em busca de mais quatros anos de "missão", como já definiu sua presidência, o presidente "antissistema" será não meramente apoiado, mas integrante oficial do notório grupo, que enfim terá candidato próprio ao Planalto. Talvez chapa própria, caso se confirme o acordo para dar a vice-presidência ao PP, outra sigla de destaque em todos os recentes escândalos, a mesma dos impolutos aliados chefe da Casa Civil e presidente da Câmara.

O Brasil sempre se supera nas ironias e duplos twists carpados retóricos. Mas ainda mais inusitado será ver que, mesmo diante de tamanho giro de 180 graus, muitos de seus seguidores ainda o verão como "diferente", alguém boicotado pelo establishment malvadão. 

Um governo sem corrupção. Uma mera filiação obrigatória a algum partido. "Todos têm seus problemas. Tinha que escolher um. Queriam que eu escolhesse o PSOL?", sofisma o mito. Porque, obviamente, essa ilibada turma, dona de homogeneidade ética insuperável, cedeu-lhe a sigla sem nada pedir (e se pediu, ele, coitado, viu-se obrigado a acatar). 

O país não se deparou, nas últimas semanas, com a ponta do iceberg dos efeitos práticos desse matrimônio no Congresso Nacional, onde temos assistido ao paroxismo do fisiologismo. “Ah, isso sempre existiu”, começam a relativizar os há até pouco tempo defensores da “nova política”. O verdadeiro “câncer” do Brasil é o STF… Não, não há nenhum estelionato político-eleitoral aqui. É tudo "narrativa" da imprensa esquerdista...

quarta-feira, 27 de outubro de 2021

O Itamaraty te agradece, Gilberto Braga.

 Por Murillo Victorazzo

Soft power é um termo usado nas relações internacionais para definir os recursos de poder de um país utilizados através do exemplo, da persuasão, da admiração. Distingue-se dos hard powers, mobilizados a partir da coerção, seja bélica ou econômica. Sem força militar e econômica, o Brasil historicamente se difundiu internacionalmente através de sua cultura ( do carnaval à música), esporte ( especialmente o futebol), belezas naturais e biodiversidade. 

Ainda que internamente alguns vira-latas sempre as tenham olhado de forma preconceituosa como subprodutos, entre nossos soft powers de maior relevo seguramente estão nossa telenovelas. E entre elas, poucas foram mais responsáveis por nos projetar no mundo do que as de Gilberto Braga.
 
Com "Vale-Tudo", conquistou a América Latina, tornando, por ex, Paladar - o nome do restaurante de Rachel (Regina Duarte) - sinônimo de pequenos restaurantes caseiros em Cuba. Mas antes de tudo, foi com "Escrava Isaura" que nossa história, romanceada a partir dos dramas da personagem-título de Lucélia Santos, seduziu de países do nosso continente até outros do lado oposto do mundo, como China e Rússia, onde acabou também por introduzir novas expressões ao vocabulário local.
 
Gilberto fez incomparavelmente muito mais do que o chanceler templário que nos envergonhou até recentemente vendo comunismo/ "globalismo" em cada esquina. Obrigado, Gilberto! Descanse em paz.

sábado, 23 de outubro de 2021

Bolsonaro: a antítese de Midas

 Por Murillo Victorazzo

"Você era contra o teto de gastos e a favor do Bolsa Família e agora critica? Só porque é o Bolsonaro?" Certamente muitos adestrados presidenciais devem lançar essa carta para fazer seus malabarismos retóricos e justificar as últimas decisões do presidente. Pois, não, não há incoerência. Embates entre doutrinas econômicas fazem parte do debate político e, portanto, da economia política. O teto de despesas não é - ou não deveria ser - inquestionável como política pública permanente. O que não é legítimo é a contradição, o arremedo, o timing e o modus operandi.

Já se tornou repetitivo recordar o que Bolsonaro e seus simpatizantes diziam sobre o Bolsa Família: "voto de cabresto", "Bolsa Esmola", "estímulo à vagabundagem", "compra de voto", incentivo a alta da  natalidade entre os pobres.  “O Bolsa Família nada mais é do que um projeto para tirar dinheiro de quem produz e dá-lo a quem se acomoda, para que use seu título de eleitor e mantenha quem está no poder”, discursava, em fevereiro de 2011, no plenário da Câmara, em seus tempos de deputado do baixo-clero.

Reverberava desinformações, sua marca até hoje, sem nem se dar ao trabalho de ler pesquisas acadêmicas que desmontavam sua desinteria verbal, como, por exemplo, o estudo do IPEA que mostra que cada real investido no programa gera R$ 1,8 no PIB. e principalmente o impacto social das contrapartidas, como a queda de quase 60% na mortalidade infantil, o aumento na frequência escolar e, ao mitigar a desnutrição em crianças, o aumento em suas alturas. Na campanha vitoriosa, diante da necessidade de votos nas classes mais pobres, já dava início a sua mudança oportunista: prometeu um décimo-terceiro, concretizado apenas no primeiro ano do mandato.

Sem reajuste desde 2017, o Bolsa Família foi extinto poucos meses atrás, por Medida Provisória ainda não votada. De olho em sua reeleição, Bolsonaro lançava sua versão do programa, o "Auxílio Brasil". Nascia, contudo, sem critérios nítidos para alterações nas categorias de beneficiários, atualização da linha de pobreza e fontes orçamentárias definidas, incapaz que era o governo de articular sua frágil base parlamentar. Frágil porque sustentada não por programas previamente acordados, mas por trocas ocasionais do mais velho fisiologismo, agravado pela inaptidão presidencial em articular e liderar, exceto quando é para gritar palavras de ordem radicaloides e sua populista retórica anti-instituições. A prioridade era tirar o DNA petista.

Em meio à inépcia, a pandemia se avolumava. Enquanto governos de diversos países sabiam da necessidade de um forte colchão social para enfrentar a queda da atividade econômica, o governo propôs R$ 250 como auxílio emergencial. A justificativa? Restrição orçamentária. Diante da iniciativa do Legislativo, proposta pela oposição, de R$ 500, afim de não perder a assinatura da proposta, aceitou elevar para R600.

A recessão se instaurava, o desemprego e a pobreza aumentavam em proporção a letargia do combate à pandemia. Após quatro meses sem parcela nenhuma, a segunda onda atingia o país, acarretando o momento mais sério da crise sanitária. Foi quando Guedes se negou a repetir o valor do auxílio anterior, destinando apenas cerca da metade. Novamente o argumento fiscal. O teto, amém.

Mas, no momento em que as curvas de casos e mortes se invertem acentuadamente, as restrições sanitárias progressivamente se flexibilizam e os dados econômicos dão algum sinal de vida, um Bolsonaro assustado com sua rejeição, bate o pé: o "Auxílio Brasil" não pode ser os R$ 300 reais defendido pelo seu "Posto Ipiranga". Estimulado pelo Centrão, decide por um piso  provisório de R$400, até o final do ano que vem, quando buscará a reeleição. E depois? Sabe-se lá. Com ele, o "auxílio diesel" com mesmo valor para 750 mil caminhoneiros, uma de suas bases sociais. Às favas o até então sagrado teto de gastos, a partir da alteração repentina do seu critério de correção.

Não precisa ser muito perspicaz para notar a contradição e a fragilidade do argumento que somente agora tiram da manga sobre "vivermos situação atípica". Entra em choque com a própria suposta recuperação em "V" propagada nas típicas bravatas hiperbólicas de vendedor de terreno no lua de Paulo Guedes. Contradição que traz consigo o "presidencialismo de cooptação", o paroxismo do tão demonizado na campanha eleitoral "presidencialismo de coalizão",  sem o bônus da articulação de uma base governista mais coesa e orgânica. Só o  ônus  - para a sociedade - ao reforçar o caixa para as tão famosas quanto obscuras "emendas do relator", nas mãos absolutas do aliado mais poderoso Arthur Lyra.

A gambiarra se torna mais indefensável quando vem inserida na PEC que oficializa a postergação do pagamento ordenado pela Justiça de precatórios, dívidas - nada mais do que bens - da União com terceiros, entre eles Estados, professores e aposentados, além de empresas.  Sim, tem liberal a favor do rompendo de obrigações financeiras e despreocupados com "insegurança jurídica". Uma grande pedalada que abre a torneira de cerca de R$ 90 bilhões, quando o custo do acréscimo de R$ 100 no programa social é cerca da metade. Cerca de R$ 15 bilhões nas mãos de Lyra para seu manejo discricionário. 

A falta de visão de longo-prazo se reflete na própria nova metodologia de atrelar ao teto o IPCA de dezembro a dezembro, e não mais entre os meses de junho, alteração vista com maus olhos por muitos economistas. Previsto na proposta original da PEC do teto gastos cinco anos atrás,  a ideia não prosperou porque resultaria em um orçamento elaborado com base em mera estimativa de inflação.

Concorde-se ou não com o teto de gastos como âncora fiscal, merece, portanto, mais respeito quem há tempos pede seu fim ou flexibilização, a partir de uma concepção doutrinária de longo-prazo acerca do papel social do Estado, do que quem, em oposição ao que defendia semanas antes, muda abruptamente a regra em meio ao jogo, apenas para encaixar uma quantia predefinida. "É estelionato contra a população. É dar um calote duplo e deixar a conta pro próximo governo pagar”, afirma o deputado Vinicius Poit, do insuspeito NOVO.

Ao reforçar o balcão de negócios do "orçamento secreto", em vez de enfrentar subsídios e privilégios de castas ou fazer com que tais emendas sejam direcionadas à programa social, o governo evidencia seus objetivos e prioridades. Em abril, recordemos, uma portaria do Ministério da Economia permitiu que militares inativos ocupantes de cargos comissionados ou eletivos ultrapassem o teto salarial do funcionalismo da administração federal. Igualmente, sancionou anistias a dívidas bilionárias de ruralistas e entidades religiosas, além de aumentos em penduricalhos de corporações preferidas. 

Na proposta orçamentária para o ano que vem, o Ministério da Defesa abocanhou o dobro do aumento destinado à Educação, enquanto a Saúde sofreu decréscimo. Na desse ano, os militares garantiram expansão duas vezes maior que as outras duas pastas. Não se nega a importância dos projetos militares, apenas soa estranho prioridades assim em meio a uma crise sanitária e socioeconômica. Mais do que  números, sinalizações. A própria reforma administrativa proposta, gostem ou não dela, não tem merecido atenção do governo, segundo o próprio Lyra disse ao Estadão. 

Estão em jogo transparência, credibilidade e rumo. A histeria do mercado comprova. Mercado, que de queridinho passou para "nervosinho". A gente sabe: previsões, em economia, ancoram realidade. O burburinho fiscal logo apareceu na ata do Banco Central: aumento de 1,5 pts percentuais. Mais juros e dólar alto significam menos crescimento e mais inflação. Corrosão do poder de compra dos mais pobres principalmente. Imagina o que gritariam Guedes e seus discípulos na Faria Lima se Fernando Henrique ou Lula assim tachasse o mercado?

Ao custo de menos de 0,5% do PIB, o Bolsa Família é (era) o maior e mais exitoso programa de transferência de renda do mundo. Seus méritos, porém, foram sempre negados ou distorcidos por parcela da sociedade, em especial na classe média e alta, com seus característicos elitismo e preconceito ignorante das pseudoinformações de whatsapp. Bolsonaro surfou nessa rejeição e agora se agarra à sua versão improvisada como um náufrago desesperado se agarra a uma boia, mesmo após furá-la , ou tentar furá-la, aos poucos. 

O sucesso do Bolsa Família se consolidou articulado a políticas macroeconômicas e instrumentos de inclusão da sociedade civil, como o Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea). Chute inicial do marco legal no combate à fome, o órgão consultivo criado ainda em 1993 ajudava a elaborar politicas publicas no tema. Bolsonaro o extinguiu logo em seus primeiros meses de governo, assim como o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan). 

Segurança alimentar, que, aliás, foi alvejada pela fragilização pelo atual governo de outra política pública: os estoques alimentícios. Dados da Conab mostram a redução a quase zero do armazenamento de produtos fundamentais para a cesta básica, como feijão, arroz, milho, soja, café, trigo. Em momento de alta dos alimentos, os estoques deveriam amortizar oscilações bruscas, como as cambiais ou de ofertas no mercado internacional. Além da premissa dogmática de não interferência na lei da oferta e da procura, seu custo de manutenção é um dos argumentos do ultraliberalismo de Guedes, não importando o impacto para as classes mais pobres. Olha a rigidez fiscalista aqui novamente...

Ser a favor ou não do teto de gastos é o menos importante nesse momento. O Bolsa Família era um programa barato, justo, eficiente e necessário demais - e que precisa sim ter seus valores atualizados. Mas, graças ao oportunismo e improviso do atual governo tornou-o pretexto para a farra eleitoral do Centrão outrora demonizado e voltou a ser encarado como o que nunca foi: algoz da responsabilidade fiscal. 

Anda pior,  Bolsonaro colocou-o no limbo da insegurança operacional, devido aos novos critérios, e legal: a MP do Auxílio Brasil perde a validade se não for votada até dia 7 de dezembro, e a PEC que constitucionaliza o calote ainda continua no limbo, ainda que sua aprovação em primeiro turno já tenha entrado para o hall das nada gloriosa sessões históricas que entraram na madrugada em meio ao mercadão de emendas antes de votações - o que difere bastante do legítimo empenho de emendas impositivas como instrumento de atuação parlamentar em suas bases eleitorais a partir de determinado cronograma. As mesmas emendas de relator como moeda de troca, em uma retroalimentação danosa que explicita as verdadeiras motivações da PEC. 

A descontinuidade de políticas públicas é um tradicional mal brasileiro, assim como a discricionariedade dada ao político na definição de valor e momento quando as "bondades" são provisórias e pontuais, marca do clientelismo. O caráter permanente e descentralizado do Bolsa Família rompia com esse nosso vício político, o qual só será afastado de vez com sua inclusão como um direito constitucional. 

Por via tortas, assim como "aparelhamento" e  o "viés ideológico" na política externa, Bolsonaro conseguiu tornar um programa de transferência de renda no que ele próprio acusava ser: mero instrumento eleitoral. É o oposto de Midas: se tudo em que o mitológico rei tocava virava ouro, tudo em que o atual presidente da República toca vira m...

sábado, 25 de setembro de 2021

Sem Merkel, Macron busca liderar o projeto franco-alemão militar e a "paz perpétua" europeia

Por Murillo Victorazzo

É um clichê provocador brincar que, de tão importante, cidadãos do mundo todo deveriam poder votar nas eleições presidenciais dos Estados Unidos. Mas, fosse verdade,  pela mesma razão, a maior parte dos europeus mereceria o mesmo direito nas escolhas para a chefia de governo alemã -especialmente a deste domingo, que indicará o substituto de Angela Merkel.  

Foi, porém, um francês, o político e economista Jean Monnet, o inspirador do projeto de integração europeia. Suas digitais estão na "Declaração Schuman",  ponto de partida para a criação da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA) em 1951, embrião da atual União Europeia (UE). 

Primeiro presidente da comissão executiva do órgão, Monnet defendia a manutenção sob uma única autoridade reguladora de toda a produção franco-alemã desses dois recursos, vitais para o fornecimento de energia e a indústria bélica. Partia da premissa de que, se França e Alemanha, tantas vezes em lados opostos em guerras que varreram o continente, os compartilhassem  e monitorassem conjuntamente, novos conflitos armados seriam evitados. 

A ideia não tardou  em ser bem vista também por Itália, Holanda, Bélgica, Luxemburgo. Com o acordo, os países signatários se comprometiam a zerar as taxas de importação e exportação no mercado intrabloco desses dois produtos estratégicos. 

Antes mesmo de a Segunda Guerra terminar, em 1943, Monnet  já deixava claro o que pensava a respeito do futuro:  "Não haverá paz na Europa se os Estados forem reconstituídos com base na soberania nacional (...). Os países europeus são demasiado pequenos para garantir aos seus povos a prosperidade e o desenvolvimento social necessários. Os Estados europeus devem constituir-se numa federação". 

Sete anos depois, o chanceler francês, Robert Schuman, dava o primeiro passo para o longo e tortuoso processo associativo. Estendia a mão ao antigo inimigo com a declaração que levava seu nome, redigida por Monnet: "A Europa não surgirá de repente nem por meio de uma simples junção. Ela surgirá por meio de medidas concretas que promovam, antes de tudo, a solidariedade. A unificação da Europa exige que se ponha fim à oposição de séculos entre França e Alemanha".

No entanto, séculos de sangue derramado não são apagados facilmente, ainda mais quando entra em cena a autonomia militar. Lançado pelo governo francês quase ao mesmo tempo da CECA, a Comunidade Europeia de Defesa (CED),  vista como um passo além na integração, foi abortada pelo Parlamento do país, em 1954. Proposta pelo presidente René Pevlen, a CED contava com o estímulo dos Estados Unidos e Reino Unido, preocupados com fortalecimento crescente do poderio soviético e temerosos que Moscou se arriscasse sobre suas áreas de influência ocidentais. 

Desde a queda do Reich nazista, então há pouco mais de cinco anos, a Alemanha Ocidental estava proibida de armar-se. De acordo com sua Constituição, cabia às forças de ocupação britânica e norte-americana sua defesa.  Diante da pressão de Londres e Washington,  porém, a reorganização do seu Exército passou a ser discutida, não sem gritos de ceticismo e alerta nos dois lados da fronteira franco-alemã. 

Entre os alemães ocidentais, setores à esquerda da sociedade e a Igreja se posicionaram contra. Argumentavam que tornava ainda mais distante a sonhada reunificação do país. Assim também pensava  a Alemanha Oriental, que via no projeto uma via aberta para a guerra entre "irmãos". Os franceses, ainda se refazendo do trauma da ocupação nazista, igualmente se dividiram. 

A proposta de criação de um exército europeu ocidental,  com participação de Itália, França, Bélgica, Holanda, Luxemburgo e Alemanha Ocidental, foi ratificada pelas casas legislativas de todos os países envolvidos, exceto a Assembleia Nacional francesa, justamente o país proponente. A assustadora memória dos tanques e soldados de Hitler pelas ruas de Paris falou mais alto. 

A morte precoce da CED era apenas o primeiro sinal das dificuldades que se anunciavam para a integração militar europeia, além de tudo, desestimulada pela conveniência de, em um contexto de Guerra Fria, deixar a defesa da região a cargo da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte).

Embora significasse delegar responsabilidade a um país fora do continente, o perfil pouco intrusivo da organização não causava melindres soberanistas. Seus custos financeiros, ademais, recaíam basicamente nas costas dos Estados Unidos, obrigados a absorvê-los. sob o risco de,  caso contrário, verem sua principal área de influência se mover para os soviéticos. Não por acaso, um ano depois, permitiu-se à Alemanha Ocidental não apenas a reorganização de suas forças armadas como sua admissão na aliança militar norte atlântica. 

A Europa, assim, podia concentrar-se em sua reconstrução econômica e financiamento de políticas sociais, prioridades que  lhe tiravam qualquer busca por projeção de poder. A pouco disposição em  envolver-se em conflitos fora da região ou com atores não-estatais permaneceu com o tempo, reforçando a pouca utilidade de se pensar em criar aparatos bélicos comuns.

Como se vê, embora intrínsecamente fincado na relação franco-alemã, o projeto europeu tem DNA francês, o que não o impediu  de ganhar contornos diferentes quando a balança de poder regional se alterou  A pujança da economia alemã, potencializada com a reunificação do país em 1990, alçou Berlim ao centro principal da União Europeia. Hoje, os alemães são donos do quarto maior PIB do mundo, 50% maior do que o francês, o segundo do bloco.

Nesse contexto, o fim dos 16 anos de Merkel como primeira-ministra alemã abre dúvidas sobre a condução da União Europeia daqui para frente. A atuação firme, sóbria e moderada da alemã, especialmente após as crises econômica de 2008 e dos refugiados, em 2015, deu ao poderoso bloco a sua cara, indo além da influência natural de qualquer chefe de governo alemão. Algo que, a curto-prazo, nenhum de seus possíveis sucessores conseguirá ter, seja ele o social-democrata Olaf Scholz, seu ministro das Finanças, Armin Laschet, seu correligionário democrata-cristão.

Embora muitos analistas considerem que, por hora, o manejo só conseguirá ser feito conjuntamente, é nítido o esfregar de mãos de Emmanuel Macron, sem também, em uma Europa pós-Brexit, Boris Johnson para contrabalança-lo. “As eleições alemãs estão sendo vistas na França como uma oportunidade para uma reinicialização, na qual quem entrar terá menos estatura do que Macron”, disse Nicholas Dungan, do Atlantic Council em matéria veiculada no "Estadão".

O presidente francês passou anos delineando sua visão para a Europa e nela, além de reformas na zona do euro e uma política comum de asilo, destaca-se pressionar Bruxelas por um sistema de defesa único. Os traumas nazistas ficaram para trás e, nos últimos anos, foi Berlim quem hesitou em avançar no assunto. "No início da próxima década, a Europa deve ter uma força de intervenção conjunta, um orçamento de defesa comum e uma doutrina única para ação", disse ainda em seu primeiro ano de mandato, em 2017. Em janeiro próximo, ele assumirá a presidência rotativa do Conselho da UE.

O cenário mundial do momento parece jogar a favor de seus desejos de devolver à França o papel de principal ideóloga da integração europeia. Além da ausência de Merkel e de Johnson ( com o qual seria impossível chegar a um acordo sobre Exército comum), o presidente norte-americano, Joe Biden, vem involuntariamente ajudando.

Ao por em prática uma desastrosa e unilateral retirada de tropas do Afeganistão e principalmente bancar um contrato de venda de submarinos de propulsão nucleares para a Austrália, em detrimento do acordo que este país tinha com a França para compra de 12 submarinos convencionais, Biden entregou a Macron o discurso da necessidade de independência estratégica do continente. 

Um discurso com razão de ser. O gosto de traição vai além dos prejuízos financeiros. O acordo, que permitirá a Austrália construir submarinos com tecnologia norte-americana e inclui ainda áreas como inteligência artificial e cibersegurança, formaliza a cooperação em defesa existente há décadas entre Estados Unidos, Reino Unido e Austrália. Essa nova aliança militar (AUKUS), nascida para conter a crescente presença militar da China no Indo-Pacífico, sinaliza que Biden não poupará esforços no embate prioritário com Pequim. Nem que afete aliados tradicionais.

 A convocação do embaixadores franceses em Washington e Canberra deu a dimensão do estrago nas relações entre esses países e de como será instrumentalizado por Macron, que conta também com o argumento fiscal: seria um enorme desperdício de recursos manter 27 forças militares diferentes com 27 arsenais e conjuntos de equipamentos distintos.

É óbvio, no entanto, que a completa integração  militar europeia está longe de se concretizar.  Muitas barreiras se encontram à frente de Macron, a começar por seu próprio país, único membro do bloco a deter armas nucleares. A ideia de colocá-las sob controle de Bruxelas enfrenta previsivelmente forte rejeição interna e já foi várias vezes descartada por ele, que, em abril enfrentará o teste das urnas em busca de sua reeleição. Dificuldades internas sempre fragilizam e tiram o foco. 

É verdade que, sem a Guerra Fria, os Estados Unidos, com outros interesses mais vitais, se vê menos obrigado a ser o guarda-chuva protetor do Velho Continente. Mas tampouco pode abrir mão de sua influência por lá.  Ao mesmo tempo em que a Washington interessa uma União Europeia com maiores responsabilidades, seja em termos materiais, humanos ou financeiro, não lhe interessa ver nascer uma política de defesa única que enfraqueça a OTAN e permita criar um bloco militar antagônico. Pressões sobre membros mais dependentes certamente acontecerão. 

Exemplo foi a Dinamarca tentando colocar panos quentes da furiosa declaração do chanceler francês sobre a AUKUS. Também a Itália quer " uma Europa mais forte, mas dentro da Otan". "Não pensamos como os franceses em relação a isso”, afirmou ao "Estadão" Marta Dassu, ex-vice-ministra de Relações Exteriores da Itália e diretora de assuntos europeus do Aspen Institute

Pensamento igual indicou ter o ministro da Defesa sueco. "Não vejo isso [uma força militar comum] como a linha principal para resolver estes problemas", disse Peter Hulqvist  à Rádio Sueca no início do mês, confrontado sobre a retirada catastrófica de Cabul. Mesmo não pertencendo formalmente à OTAN, o ministro apontou a cooperação com os EUA e o vínculo transatlântico como cruciais para a defesa  europeia.

Por si só, ceder autonomia econômica é bastante diferente de abrir mão de autonomia militar. Questões como compartilhamento de tecnologia, cessão de postos de comando e unificação de doutrinas despertam os brios das corporações fardadas, nas quais conceitos como o de "soberania compartilhada", teorizado por Robert Keohane para caracterizar a UE, suscitam desconfianças. Um tipo de soberania na qual "a autoridade legal em muitas áreas estatais é transferida para a comunidade como um todo, autorizando ações por meio de procedimentos que não envolvem vetos do Estado".

Embora o controle civil sobre militares seja sólido nos países europeus, é sempre mexer em vespeiro lidar com a caserna. Este forte controle, por sinal, exigiu o silêncio militar na constituição de órgãos supranacionais para políticas de outras áreas. Fala mais alto nos quartéis a concepção pluralista de relações internacionais inspirada no filósofo suiço Emer de Vattel,

Segundo Vattel, ainda que, em uma sociedade internacional, países compartilhem valores e obrigações, a intrusividade desta relação precisa ser tênue. O Direito e as instituições internacionais somente são obedecidos se não forem de encontro aos interesses de segurança do Estado, ator absoluto no palco dessa sociedade. Se estes "interesses nacionais" se baseiam na constante busca por recursos de poder (politic power), só se deve admitir integrações que não compliquem tal dinâmica.

Uma concepção dominante mesmo nas Forças Armadas de países onde gerações cresceram em meio a mais de meio século de integração institucional inspirada nas ideias liberais do filósofo alemão Immanuel Kant e sua "federação de repúblicas", cujos fortes compromissos comuns levariam à "paz perpétua". Monnet bebia na fonte kantiana. A União Europeia é um projeto solidarista liberal.

Um projeto de difícil absorção para ética militar, que, como define o filósofo conservador norte-americano Samuel Huntington, “considera o conflito como o padrão universal", sendo "a violência permanentemente enraizada na natureza biológica e psicológica do homem". É fácil notar aqui a influência do filósofo britânico Thomas Hobbes, para quem o "estado natural" dos homens seria a violência, o que os faria tender a entrar constantemente em conflitos uns com os outros na busca de seus objetivos.

Contudo, se, no plano interno, o Leviatã (o Estado) utiliza-se do monopólio do uso legítimo da força para garantir a segurança das pessoas, no plano interestatal, a ausência de um poder superior torna anárquico o sistema, o que o leva a conflitos constantes. A guerra seria seu "estado natural".

 "O homem da mentalidade militar é, por essência, o homem de Hobbes", afirma Huntington. E seu pessimismo advém (e reforça) do "dilema da segurança"- não por acaso também conhecido como o "medo hobbesiano": o aumento da segurança de um Estado acarreta na insegurança do outro, em um círculo vicioso que leva à tensão permanente entre eles.

É esse poder superior supranacional, já existente para outros assuntos, que o liberal Macron indica almejar para a defesa europeia. Mas como essa supranacionalidade se concretizará é a principal questão. A imagem de um superexército manipulado por burocratas anônimos de Bruxelas despertaria rejeição não apenas dentro de quartéis.

É inegável, porém, que, comparada a outros blocos regionais, a interligação na área de defesa e segurança na Europa chegou a um grau que Vattel não imaginaria, como se vê na Política Comum de Segurança e Defesa (PCSD) que normatizou a cooperação na área, com estrutura permanente de comando e controle único para o planeamento e a condução de missões militares unificadas, como as Forças de Paz. 

Outro exemplo é o Fundo Europeu de Defesa, destinado a estimular a indústria de defesa do bloco e financiar pesquisa conjunta. Avanços decorrentes justamente da sensação de ausência de "estado natural" de guerra hobbesiano intrabloco, propiciada pela profunda integração nas demais áreas.

Mas, acima de tudo, é o futuro alemão que indicará para onde vai a integração militar europeia. Se um chanceler alemão fraco abre espaço para a liderança francesa, sua fraqueza significa perda de influência sobre os demais. E Macron precisa da Alemanha, pois nada se faz no bloco sem a concordância do país, independente de quem esteja à frente de Berlim.

Merkel deu declarações conjuntas com Macron a favor da ideia de um Exército europeu, mas, por temperamento ou prioridades, pouco agiu nesse sentido, nem entrou em detalhes sobre prazos. Já em 2007, declarou em entrevista ao jornal popular Bild: "Dentro da própria UE, teremos que nos mover na direção de estabelecer uma força militar comum ". 

Para seus críticos, o esforço contínuo por consensos e concessões mútuas mostrou-se ser o ponto negativo de sua personalidade confiável, traço que teria acarretado decisões demoradas. Esse estilo de abordagem ganhou até seu próprio verbo, “Merkeln”, que significa hesitar ou aguardar - e se difere explicitamente do perfil voluntarioso, arrogante para muitos, do líder francês. 

Seja Scholz ou Lachet, a Alemanha continuará engajada na construção europeia. A intensidade e o estilo, porém são incógnitas, inclusive por dependerem do perfil da coligação majoritária que nascerá. A defesa da completa integração militar está presente em documentos e reuniões do SPD do favorito Scholz, mas a agenda eleitoral de ambos ( e do relevante Partido Verde ) priorizou a mudança climática, salário-mínimo, benefícios sociais, impostos e indefinições fiscais. Um chefe de governo será tanto mais fraco quanto for menos coesa sua base.

Paradoxalmente, a própria raiz kantiana da União Europeia, avessa à projeções agressivas de poder, é um fator inibidor para que a pauta sobre um Exército europeu torne-se prioritária. Mas os desafios defensivos existem, e a agenda internacional muitas vezes se impõe. A ideia da força militar única é vantajosa para os dois principais países do bloco, que inevitavelmente teriam mais peso em sua feição. 

Pelo novo inquilino do edifício da Chancelaria Federal, goste ou não Macron, passa o futuro do projeto franco-alemão pensado por Monnet e seu ideal kantiano de "paz perpétua" - com consequências para além do Velho Continente. 

Legalizando a devastação ambiental no Brasil

 Por Oscar Vilhena Vieira* ( Folha de SP, 25/09/2021)

Como era esperado, o pronunciamento de Jair Bolsonaro na abertura da 76ª Assembleia Geral da ONU, na última terça-feira (21), foi constrangedor. Maquiou dados sobre desmatamento e queimadas, mentiu sobre a corrupção, gabou-se de um inexistente sucesso econômico, além de se auto incriminar pelo apoio ao “tratamento precoce”.

Causaram surpresa, entretanto, os elogios à legislação ambiental brasileira, que “deveria servir de exemplo para outros países”, posto que o presidente e seus auxiliares não têm poupado esforços para bloquear administrativamente a ação dos órgãos de monitoramento e proteção ambiental. Com a chegada de Arthur Lira à presidência da Câmara dos Deputados, o presidente finalmente parece ter encontrado um braço forte disposto a legalizar o que a “exemplar” legislação brasileira hoje considera ilegal.

Entre os projetos de lei com maior potencial de erosão dos direitos socioambientais destacam-se o PL 2633, que trata da regularização fundiária, e o PL 490, voltado a alterar o processo de demarcação de terras indígenas e a imposição de um marco temporal. Ambos atendem predominantemente a interesses da grilagem, do desmatamento e da mineração ilegais.

O PL 3729, por sua vez, flexibiliza o licenciamento ambiental, que é uma ferramenta indispensável a um processo sustentável de desenvolvimento, prevenindo desastres ambientais e a transferência às gerações futuras de atividades econômicas presentes. O objetivo original da proposta apresentada em 2004 era unificar a legislação, garantindo maior segurança jurídica, eficiência e agilidade ao licenciamento ambiental.

O texto aprovado pela Câmara e preste a ser analisado pelo Senado Federal vai, no entanto, na direção oposta daquilo que o Brasil precisa. Dispensou o licenciamento ambiental para diversas atividades potencialmente causadoras de degradação ambiental. Para a maioria das atividades licenciáveis, o projeto criou a Licença por Adesão e Compromisso, mecanismo meramente declaratório que, na prática, esvazia a noção de avaliação ambiental, transformando o auto licenciamento em regra e não mais exceção.

Órgãos públicos ligados à preservação ambiental e patrimonial, como o ICMBio, Funai e Iphan perdem espaço no licenciamento ambiental. Na pior tradição brasileira o projeto premia quem descumpriu a lei, isentando de responsabilidade empreendimentos que já operam sem licença ambiental válida, que deverão apenas solicitar um Licenciamento Ambiental Corretivo. Também isenta de responsabilidade instituições de financiamento, como bancos, pelos eventuais danos socioambientais causados pelos empreendimentos que apoiaram.

A OCDE, em relatório lançado em julho, apontou que a política ambiental brasileira já deixa a desejar: dos 48 requisitos legais analisados pela organização, o Brasil foi considerado como total ou parcialmente desalinhado em 29, ou seja, em 60% do total. Caso o PL 3729 seja aprovado, tal como está, o Brasil perderá ainda mais espaço na luta por investimentos e credibilidade internacional. Também testemunharemos mais desastres ambientais, desmatamento na Amazônia e violações aos direitos humanos.

Cabe ao Senado Federal evitar que mais esse ataque ao nosso sistema de proteção ambiental se consume, se não por respeito ao bem-estar das futuras gerações, ao menos pelo interesse estratégico do Brasil de se reinserir numa posição de liderança num contexto internacional cada vez mais exigente em termos ambientais e climáticos.

* Oscar Vilhena Vieira é professor da FGV Direito SP, mestre em Direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em Ciência Política pela USP.

quinta-feira, 23 de setembro de 2021

Código de Conduta

Por Creomar de Souza* ( MyNews, 23/09/2021)

Expectativa é uma palavra marcante desde os eventos do último 7 de Setembro. De uma tentativa de captura do feriado da Independência, envelopada com um ensaio de putsch tupiniquim, passando por um rascunho de impeachment à construção de um acordo costurado por Michel Temer, a situação política do presidente da República é uma peça teatral digna de nota. 

Se de um lado o apaziguamento dos atores institucionais deu sobrevida ao chefe do Executivo, este, por sua vez, segue se considerando acima das regras do jogo democrático e não deixa de chamar atenção a repetição deste padrão de conduta cada dia mais agressivo entre seus auxiliares mais próximos.

A fácil identificação de um padrão de conduta agressivo por parte de um número considerável de ministros do Governo permite vislumbrar que, mais do que mera repetição, há uma espécie de competição estimulada pelo modelo de gestão de pessoas da Presidência. Isto significa dizer que há o estímulo pessoal do chefe de Governo no sentido de colocar seus ministros em posição de confronto com outros atores políticos ou opositores. 

Esta lógica de confrontação como um elemento de diversionismo tira dos atos agressivos perpetrados por distintos auxiliares o ar de coincidência e demonstra uma lógica de embate com fins de erosão do diálogo político em ambiente democrático.

Partindo desta premissa, alimentada com os acontecimentos observados em Nova York e em Brasília nesta semana, é possível, com o auxílio de autores que se propõem a construir análises cognitivas de processo decisório, compreender que a lógica de embate constante promovida discursivamente pelo presidente tem sido comprada entusiasticamente pelos seus ministros. 

Tal processo, que em momentos anteriores do governo estava restrito aos representantes daquilo que se convencionou chamar de ala ideológica, ganha tração à medida que dois fatores convergem: as limitações impostas ao presidente via processo de acomodação até aqui em curso e a necessidade de defender um governo com claras dificuldades de dar respostas eficazes a problemas concretos.

Estes dois elementos permitem retornar atenção para o último feriado da Independência. Em determinado sentido, é possível dizer que toda a comoção e mobilização gerada pelos apoiadores do presidente tinha como objetivos principais mostrar a viabilidade político-eleitoral de Bolsonaro, ao mesmo tempo que daria dimensão da capacidade de expansão da bolha de suporte ao presidente.

Segundo esta premissa de interpretação da realidade, a maioria silenciosa que dá suporte ao chefe do Executivo invadiria as ruas e daria o combustível necessário ao nascimento de uma democracia direta em que o líder seria o único intérprete legítimo da realidade política.

Passado o momento apoteótico e sobrando apenas a ressaca de respostas institucionais e articulações até aqui não vistas contra si, restou ao governo recorrer a Michel Temer para ganhar tempo. E se esta prorrogação do período de jogo deu ao presidente a possibilidade de seguir sua ambição de desgaste dos outros atores institucionais, ela também tornou evidente o risco de que este assuma para si esta tarefa de maneira exclusiva. E como decorrência direta desta conclusão, em um processo que se assemelha à construção de uma confraria, os ministros parecem tomar para si a responsabilidade de serem mártires da causa do presidente.

Ao assumirem, portanto, um posicionamento que é visto de maneira perplexa por alguns, mas que é efetivamente louvado pelo núcleo duro do governo, é possível conjecturar que estes se colocam em posição de destaque diante da liderança. A questão que cabe, portanto, é saber se tal movimento é motivado por pura fidelidade personalista ou se há uma crença na ideia de que a confrontação tem um fim em si mesma. 

Caso a resposta esteja na primeira das hipóteses, a capacidade de aderência e liderança do presidente criou um núcleo de seguidores que possivelmente não irá esvanecer após o mandato. Porém, se a resposta se encontrar no segundo ponto, possivelmente se desenhará no horizonte um futuro permeado pelo crescimento de tumulto e desordem.

E, neste sentido, quaisquer que sejam os caminhos a serem tomados, de fato se requererá daqueles que desenham o fortalecimento da democracia nacional uma retomada de hábitos mais civilizados. Afinal, como a própria literatura de democratização demonstra, não há estabilidade política que sobreviva a um processo constante de desgaste e incivilidade.

* Creomar de Souza é  cientista político, CEO da Dharma Political Risk and Strategy