domingo, 9 de dezembro de 2018

A negação do progresso

Por Míriam Leitão (O Globo, 09/12/2018)

O mundo passou os últimos dias discutindo o futuro do clima na Polônia, enquanto aqui, o que o novo governo fez foi recusar ser a sede da próxima COP e emitir algumas opiniões discutíveis sobre o tema. Será irracional desprezar a agenda ambiental e climática. O país só tem a ganhar se seguir as metas do Acordo de Paris e fortalecer os objetivos de desenvolvimento sustentável. E isso olhando objetivamente, e sem qualquer paixão, os nossos próprios interesses.

 O Brasil é uma potência ambiental e nessa área sua voz tem sido ouvida porque é o primeiro país na lista dos 18 megadiversos que controlam 70% da biodiversidade do planeta. A preocupação climática tem mudado a nossa matriz energética e pode reduzir a poluição do ar que hoje mata milhares de pessoas nas grandes cidades.

Os primeiros sinais do governo Bolsonaro nesta área são de negação da ciência climática e da ordem do progresso no século 21. Hoje se cresce de outra forma. A lista de medidas que o Brasil precisa seguir pelo Acordo de Paris só fará bem. A primeira é combater o desmatamento. O que o Brasil ganhou no ano passado quando destruiu uma área maior do que o Distrito Federal de Floresta Amazônica?

Foram postos abaixo 7.900 km² de floresta. A destruição do patrimônio coletivo é predatória porque é conduzida em grande parte por grileiros que ocupam terra pública sem nada pagar. Uma “privatização” sem lei e sem benefício para os brasileiros. A grilagem costuma estar vinculada a crimes como trabalho escravo e lavagem de dinheiro.

A segunda medida é combater a poluição do ar nos transportes e na produção de energia. Estimulado por esse objetivo, o Brasil avançou muito na geração eólica e solar. Atraiu investimentos, principalmente para o Nordeste. Eu visitei no ano passado, para a série História do Futuro da GloboNews, parques eólicos no Rio Grande do Norte, estado com o maior potencial da energia dos ventos.

Do ponto de vista microeconômico, o arrendamento das terras dos pequenos produtores locais, para a instalação de torres, deu a eles renda extra, e não prejudicou a produção. Do ponto de vista macro, a região Nordeste só não teve apagão nos últimos anos, com a crise no setor e a seca prolongada, porque a energia eólica chegou a fornecer mais da metade do consumo.

A energia solar tem crescido de forma incessante. A empresa norueguesa Equinor instalou em Quixeré, no Ceará, a sua primeira usina fotovoltaica no mundo. A gigante britânica BP acaba de anunciou a sua entrada em projetos de energia solar no Brasil, por meio de sua subsidiária Lightsource. Esse caminho, além de produzir energia de baixa emissão aumenta a segurança energética do país. Visitei usinas solares até em Santa Catarina, lugar de sol mais fraco e projetos promissores na UFSC. Virar as costas para o nosso potencial nessas duas fontes seria uma insensatez.

Mesmo quem é cético em relação ao aquecimento global terá de concordar que diminuir a poluição nas grandes cidades só fará bem à saúde de brasileiros. Morrem milhares de pessoas por ano pela poluição do ar. Quem duvida pode ouvir o professor Paulo Saldiva, da USP, o maior estudioso brasileiro neste assunto. Ficará estarrecido com os números. Reduzir o uso de energia fóssil nos veículos levará à diminuição dos gastos de saúde.

As metas firmadas pelo Brasil no Acordo de Paris foram escolhidas pelo próprio país e não foram imposição externa para impedir nosso progresso. Os relatórios da ONU sobre Mudanças Climáticas são feitos por milhares de cientistas do mundo inteiro, inclusive alguns dos melhores do Brasil, que se reúnem anualmente desde 1988. Mesmo quem negue a mudança climática haverá de concordar que evitar a exploração predatória dos ativos florestais, aumentar a produção de outras fontes de energia, diminuir a poluição do ar nas grandes cidades trará efeitos benéficos.

A agenda climática nos leva também, nesse círculo virtuoso, a proteger os rios e reduzir o desperdício no uso da água. É lógico que esse problema precisa ser enfrentado. O Brasil vive em várias cidades, inclusive na maior delas, crises de desabastecimento.

Quem mora em Brasília convive nos últimos anos com racionamento de água. Essa mesma agenda terá de nos levar também às obras no saneamento que elevarão o grau de progresso do Brasil. No fundo, é disso que está se falando: do desenvolvimento do país.

Qual conservadorismo? Da América de Trump ao Brasil de Bolsonaro

Por Carlos Gustavo Poggio* (Estadão, 08/12/2018)

O boné usado pelo filho de Jair Bolsonaro em recente viagem aos Estados Unidos não é a única coisa com o nome Trump que está na cabeça da família do futuro presidente e seus assessores. A julgar por uma série de declarações, tanto antes como após as eleições, as ideias do presidente americano também têm adornado as cabeças dos bolsonaristas.

Claro que não se trata aqui das ideias do indivíduo Trump, que não é exatamente um intelectual, mas daquilo que ele representa. Parte da narrativa de integrantes do futuro governo, em especial dos responsáveis pela política externa, é que o governo deve refletir os valores da maioria da sociedade brasileira, e esses valores seriam em grande medida conservadores.

 O problema é que inexiste um conservadorismo moderno intelectualmente organizado no Brasil, fato reconhecido até mesmo por Olavo de Carvalho, o intelectual que mais tem tido aderência na equipe do presidente-eleito. Ou seja, uma coisa é um sentimento conservador difuso na sociedade, outra é o conservadorismo organizado que traduza intelectualmente esse sentimento e lhe dê uma direção.

 A solução bolsonarista para a ausência de um movimento conservador organizado no Brasil tem sido, aparentemente, importá-lo dos Estados Unidos. Portanto, torna-se fundamental compreender a evolução do movimento conservador naquele país – bem como que tipo de conservadorismo é representado por Trump – se quisermos entender o que se passa atualmente em terras tupiniquins.

Antes de mais nada, a primeira questão a ser enfrentada é a seguinte: para além da declarada admiração da família Bolsonaro ao presidente americano, quais as razões para a nova direita brasileira buscar inspiração nos Estados Unidos e não na Europa, berço das ideologias modernas?

Creio que a resposta passa pelo fato de que, ao contrário da direita americana, a europeia tende a ser menos confortável com a influência religiosa. Marine Le Pen, que se distanciou de Bolsonaro durante a campanha, provavelmente concordaria apenas com metade do slogan de campanha do então candidato – “Brasil acima de tudo” – dado que compartilha com o nacionalismo representado por essa frase. No entanto, ela certamente estranhou a segunda parte – “Deus acima de todos” – dado o aspecto secular da direita francesa. 

Por outro lado, menções a Deus são frequentes na direita americana. Ao contrário da Europa, os Estados Unidos contam com uma direita religiosa bastante ativa politicamente. Da mesma forma, no Brasil vemos a ascensão dos evangélicos enquanto força política relevante, contando inclusive com uma bancada no Congresso. Pesquisa recente do instituto Pew Research Centeraponta que para 72% dos brasileiros e 55% dos americanos a religião é considerada muito importante, contra apenas 11% dos franceses e 10% dos britânicos.

 Faz sentido, portanto, que as ideologias políticas reflitam essa realidade. Em suas viagens internacionais durante a campanha, Bolsonaro visitou Estados Unidos, Japão, Coreia do Sul, Taiwan e Israel, mas nenhum país Europeu. O futuro chanceler brasileiro, Ernesto Araújo, em artigo publicado no ano passado, intitulado “Trump e o Ocidente”, mostrou-se bastante crítico em relação a secular sociedade europeia classificando o continente como um “espaço culturalmente vazio” dominado por “esnobes intelectuais”.

Nesse artigo, Araújo enxerga em Trump uma espécie de salvador de um Ocidente que, até a chegada do empresário e apresentador americano, se afastava cada vez mais de suas raízes cristãs. Trump representaria uma “reconexão com o patrimônio mítico do passado ocidental”.

Araújo extrai essas conclusões a partir da análise de dois discursos proferidos pelo presidente americano ao longo de seu primeiro ano de governo, ambos escritos pelo jovem assessor Stephen Miller, a quem o futuro chanceler não faz menção. Araújo tece inúmeros elogios ao fato de Trump mencionar a importância de Deus em um discurso proferido em Varsóvia.

 É a reconexão com Deus que, de acordo com o autor, irá salvar o Ocidente da trajetória de decadência que vivia com os esnobes europeus e com os próprios americanos até a chegada de Donald Trump à Casa Branca. Os ocidentais, nos diz Araújo, deveriam ansiar pelo – e aqui uso novamente suas próprias palavras – “Deus de Trump”.

Nesse artigo, que foi a razão principal da sua indicação ao cargo, encontramos diversas pistas para entender qual o tipo de conservadorismo o Brasil pretende importar. Antes de explorarmos essa questão, no entanto, é preciso recuperar brevemente a história do movimento conservador nos Estados Unidos.

Aquilo a que nos referimos hoje nos Estados Unidos como “conservadorismo” é na verdade uma coalizão de diferentes perspectivas ideológicas que de início não faziam parte de um mesmo conjunto articulado de ideias. Essa coalização, como demonstra George Nash no seminal The Conservative Intelectual Movement in America, foi construída apenas a partir dos anos 1950 e consolidada ao longo da década seguinte.

Não que não houvesse conservadores antes disso, mas os que existiam eram vozes isoladas e não um movimento organizado de intelectuais. Isso só se tornou possível com a criação da revista National Review, fundada por William Buckley Jr. em 1955. Dentre as principais motivações de Buckley para a fundação da revista estava o diagnóstico de muitos conservadores de que tanto a academia quanto a mídia eram então largamente dominadas pela esquerda.

Não por acaso, o livro que catapultou a fama de Buckley foi God and Man at Yale, de 1951, onde o autor, então com 25 anos de idade, relatava sua experiência como estudante na famosa universidade da elite americana. Como indica o título, Buckley criticava a instituição por supostamente forçar nos estudantes crenças secularistas e hostilidade a crenças religiosas, além de princípios coletivistas. Na dedicatória, o jovem e provocativo autor escreveu: “Para Deus, para a nação, e para Yale, nessa ordem”.

Até a fundação da National Review não havia nos Estados Unidos nenhum periódico relevante dedicado à discussão do que seria o pensamento conservador americano. A revista permitiu que esses intelectuais tomassem contato mais sistemático com as ideias uns dos outros. Grande parte do esforço de Buckley à frente do periódico foi compatibilizar duas perspectivas que de início não pareciam ter muito em comum: os libertários e os tradicionalistas.

 Os primeiros, eram representados por intelectuais austríacos que, durante a ascensão do nazismo entre os anos 30 e 40, emigraram para Inglaterra, como Hayek, ou para os Estados Unidos, como Mises. Esses intelectuais da chamada “Escola Austríaca” e seus aderentes reagiam contra aquilo que viam como um excesso de intervenção estatal na economia. A publicação de O Caminho da Servidão de Hayek, em 1944, foi um enorme sucesso nos Estados Unidos, que naquele momento experimentavam as políticas intervencionistas representadas pelo New Deal de Roosevelt. 

Nesse livro, Hayek faz uma incisiva crítica ao planejamento estatal da economia, que tenderia a levar ao totalitarismo. Ao desenvolver a noção de “ordem espontânea”, Mises, Hayek e outros integrantes da escola austríaca deram uma forte contribuição intelectual para a defesa do livre mercado e para a crítica ao intervencionismo estatal. A partir de então, muitas das críticas ao New Deal seriam feitas tendo como pano de fundo o edifício intelectual construído pela Escola Austríaca.

Paralelamente ao desenvolvimento da Escola Austríaca, emergia nos Estados Unidos um grupo de intelectuais que seriam posteriormente classificados como “tradicionalistas”, cujo marco central foi a publicação do clássico de Russell Kirk, The Conservative Mind, em 1953. Esse livro é largamente considerado o texto fundador do moderno conservadorismo americano.

Kirk, e outros intelectuais de peso, como Richard Weaver e Robert Nisbet, tinham como preocupação central não necessariamente o aspecto econômico, mas os efeitos sociais e políticos tanto do totalitarismo como da democracia moderna de massas. Eram classificados como tradicionalistas, pois defendiam a tradição e os costumes da civilização cristã ocidental que era percebida como ameaçada pelas forças da modernidade industrial.

 Numa sociedade majoritariamente protestante, esses intelectuais eram predominantemente católicos. Entre tradicionalistas e libertários as diferenças eram gigantescas. Enquanto os últimos defendiam a “ordem espontânea” gerada por indivíduos autointeressados, os primeiros criticavam a postura individualista e defendiam os chamados “extratos intermediários”, como a família e associações comunitárias e religiosas.

Enquanto libertários se focavam em aspectos econômicos, tradicionalistas pouco falavam de economia, preferindo tratar de sociologia, filosofia ou literatura. Enquanto libertários sublinhavam a questão da liberdade, tradicionalistas se preocupavam com a virtude.  Enquanto que as teorias libertárias prosperavam entre intelectuais seculares no norte industrial dos Estados Unidos, os tradicionalistas se sentiam mais confortáveis no sul agrário. Com enorme frequência, os tradicionalistas criticavam o capitalismo moderno, encarado como uma ameaça aos valores tradicionais.

Kirk em particular era um forte crítico das posições libertárias. Ele chegou a confrontar diretamente Mises ao argumentar que o mero auto-interesse individual não seria adequado para a preservação da ordem, levando a um “atomismo social”, termo também usado por Nisbet e outros conservadores. 

Kirk detestava que associassem o seu conservadorismo com os valores de “businessmen” americanos. Por outro lado, quando morava nos Estados Unidos no início dos anos 1960, Hayek achou por bem esclarecer a sua posição em meio a esse debate em um famoso artigo com um inequívoco título: “Por que não sou um conservador”.

Juntar essas duas vertentes não foi tarefa simples. Exigiu anos de debate nas páginas da National Review, cuidadosamente orquestrado por Buckley. Uma função importante de Buckley durante esses debates foi marginalizar expressões do conservadorismo consideradas indesejáveis, tais como aquelas que esposavam ideias abertamente racistas, teorias da conspiração ou ateísmo militante. Os defensores dessas ideias eram frequentemente criticados ou impedidos de escrever para a revista. 

Em 1962, por exemplo, Buckley publicou um artigo em que criticava fortemente Robert Welch, líder da chamada John Birch Society que, entre outras coisas, acusava o governo dos Estados Unidos de serem controlados por comunistas, e o próprio presidente Einsehower de ser um agente a serviço da URSS. Se Buckley e outros enxergavam a maior parte da mídia nos Estados Unidos como influenciadas por ideias de esquerda, Welch defendia a tese de que a mídia era diretamente controlada por comunistas.

Buckley escreve que repelir Welch era necessário, dado que a “extravagância das suas afirmações” seria prejudicial às chances de sucesso do movimento conservador, ameaçando leva-lo à “irrelevância e ineficácia”. Para Buckey, as ideias de Welch seriam um obstáculo àquilo que ele considerava como prioridade dos conservadores: “vencer eleições e reeducar a classe governante”.

 Em parte graças aos esforços da National Review, a John Birch Society, que na década de 1960 ganhava influência, acabou sendo completamente marginalizada do movimento conservador nos Estados Unidos. Birch é apenas um exemplo da longa lista de indivíduos conservadores que foram sendo gradualmente expurgados do movimento intelectual que então tomava forma.

Marginalizando algumas expressões e ajustando outras, chegou-se por fim a um compromisso, que ficou conhecido como “fusionismo” – a fusão de ideias libertárias e tradicionalistas com o fim de criar um conservadorismo de características marcadamente norte-americanas. Essa delicada operação ficou associada ao editor da National Review, Frank Meyer, que em 1962 publicou essa síntese filosófica em seu livro In Defense of Freedom: A Conservative Credo

Para Meyer, a liberdade individual poderia ser perfeitamente compatibilizada com uma ordem moral transcendental. Moralidade tradicional e livre mercado passariam então a andar lado a lado nessa complexa síntese entre libertarianismo e tradicionalismo que acabou por definir o conservadorismo moderno nos Estados Unidos.

No entanto essa fusão não pode ser atribuída apenas às habilidades intelectuais de Buckley e Meyer. Um elemento crucial era a existência de um inimigo em comum a ambas as vertentes: o comunismo. O sistema representado pela União Soviética, ateísta e estatista, era simultaneamente uma ameaça tanto à tradição cristã quanto à liberdade econômica. Em outras palavras, o anticomunismo da Guerra Fria foi o cimento dessa união que criou e sustentou o conservadorismo norte-americano durante a segunda metade do século XX. 

É também em virtude da disputa política e ideológica com a URSS que o movimento conservador nos Estados Unidos adquire um caráter internacionalista em política externa. Colocava-se assim, em clara oposição ao isolacionismo daquilo que ficou então conhecido como a “velha direita”, representada, por exemplo, por Robert Taft, candidato derrotado por Eisenhower nas primárias do Partido Republicano em 1952.

Tendo sido, portanto, o cimento que consolidou a síntese libertarianismo-tradicionalismo que caracterizou o período formativo do moderno conservadorismo americano não é de se surpreender que a dissolução da União Soviética e o fim da Guerra Fria tenham expostos fissuras que até então estavam relativamente camufladas. Um dos primeiros indícios de fragmentação se deu ainda em meados dos anos 1980, em um debate que acabou por ser um dos mais contundentes do movimento conservador americano, e que até hoje mostrou-se irreconciliável. 

Refiro-me à disputa entre neoconservadores e paleoconservadores. Os neoconservadores foram plenamente incorporados ao movimento conservador americano a partir da década de 1970, quando um grupo de intelectuais ex-Trotskystas e que até então tinham simpatia pelo Partido Democrata, decidem apoiar a candidatura do Republicano Richard Nixon contra George McGovern, visto como um indesejável representante dos valores da nova esquerda pós-1968. 

Esses intelectuais recém-convertidos ao conservadorismo, a maior parte baseados em Nova York e de origem judaica, como Irving Kristol e Norman Podhoretz, defendiam uma postura ativa dos Estados Unidos em política externa no combate ao comunismo, e a promoção ativa da democracia ao redor do globo via intervenção militar, se necessário.

Não demorou muito para os urbanos neoconservadores entrarem em confronto direto com um grupo de conservadores majoritariamente sulistas e católicos, que eram mais próximos dos tradicionalistas, mas que lembravam mais a direita americana pré-1950, dado o seu caráter fortemente isolacionista e populista. Ao contrário do secularismo dos neoconservadores, para esse grupo, de matiz mais religiosa, conservadorismo e cristianismo eram inseparáveis. Como que para marcar a sua oposição aos neoconservadores, ficaram conhecidos pela alcunha de paleoconservadores.

Ao longo dos anos 1980, a guerra civil entre ambos dentro do movimento conservador americano foi largamente vencida pelos neoconservadores, que obtiveram enorme influência no governo Reagan. Os paleoconservadores, por outro lado, permaneceram em grande medida irrelevantes e marginalizados. Apesar da importância de intelectuais como Mel Bradford e Paul Gottfried, o nome de maior destaque dentro do paleoconservadorismo americano é o de Pat Buchanan, que ganhou os holofotes ao disputar as primárias do Partido Republicano em 1992, desafiando o então presidente Bush. 

Ao contrário dos neoconservadores, que criticavam Bush por não ter “finalizado o trabalho” na Guerra do Golfo e mantido Saddam Hussein no poder, Buchanan era um crítico da própria guerra. A plataforma política com a qual Buchanan disputou as primárias em 1992 reunia os temas centrais do paleoconservadorismo: nacionalismo, isolacionismo, protecionismo econômico, combate ao multiculturalismo, defesa de valores tradicionais e, principalmente, uma postura fortemente anti-imigração. 

Buchanan manteve uma excepcional consistência nesses temas ao longo das outras disputas políticas que participou: novamente nas primárias em 1996, e nas eleições gerais pelo Partido Reformista em 2000, quando obteve menos de 0,5% dos votos. O slogan utilizado por Buchanan na sua campanha em 2000 foi “America First”, lembrando o “America First Committee” formado em 1940 para se opor à entrada dos EUA na Segunda Guerra Mundial. 

Enquanto isso, os neoconservadores iam ganhando espaço e influência, criando institutos como o Project for the New American Century (1997) e revistas como a Weekly Standard (1995), até atingirem o momento que representaria ao mesmo tempo o seu auge e o seu ocaso dentro do movimento conservador: a invasão do Iraque em 2003, da qual Pat Buchanan e os paleoconservadores foram críticos tão ferozes quanto ignorados. 

As diversas consequências e a impopularidade da Guerra do Iraque marcaram a administração Bush e multiplicaram as críticas aos neoconservadores. A Guerra do Iraque, a crise financeira de 2008, e a reação à administração Obama acabariam por implodir o delicado equilíbrio de forças que caracterizou o movimento conservador desde os anos 1950.

Tendo concluído esse breve apanhado do movimento conservador nos Estados Unidos, estamos agora em condição de retomar a questão inicial desse texto. Qual o tipo de conservadorismo representado por Trump, que tanto agrada aos novos conservadores brasileiros? Conforme indicado acima, o texto de Araújo nos fornece algumas pistas. 

A primeira delas é que se trata de uma perspectiva que enxerga no cristianismo, mais especificamente no catolicismo, a base filosófica para a salvação de um Ocidente em declínio ameaçado por multiculturalistas que rezam a cartilha do marxismo cultural. Um dos problemas apontados por Araújo em texto mais recente é a “destruição da identidade dos povos por meio da imigração ilimitada”. 

Pat Buchanan desenvolve argumento semelhante, focando em especial na questão da imigração, em um livro de 2001 intitulado, não por acaso, The Death of theWest. Dentre os temas tratados por Buchanan, está a crítica ao marxismo cultural como um dos elementos centrais da decadência da civilização ocidental. Araújo retoma assim o argumento de Buchanan e dos paleoconservadores ao apontar Trump como o responsável por salvar o Ocidente da “morte” que parecia certa. Ele define, de maneira elogiosa, a postura de Trump como um “anticosmopolitismo radical” ou “pan-nacionalismo”, que seria a tradução do princípio de “America First”. 

Portanto, os aspectos que Araújo elogia em Trump, quais sejam, uma hipotética centralidade da filosofia cristã e uma ênfase em aspectos nacionalistas, o aproxima claramente de uma perspectiva paleoconservadora. Para não deixar dúvidas de seu pedigree paleoconservador, o autor menciona que o nacionalismo de Trump não tem como objetivo a imposição da democracia a outros países e, portanto, “afasta-se de qualquer ideia neocon”, usando a abreviação pela qual os neoconservadores são conhecidos. Ausentes nas análises de Araújo estão quaisquer menções ao livre mercado ou ao capitalismo. 

Sendo um intelectual perspicaz, Araújo compreende que o conservadorismo representado por Trump tem pouco a ver com o movimento conservador americano que se consolidou a partir dos anos 1950, mas sim que está mais próximo de correntes intelectuais conservadoras pré-Guerra Fria e que permaneceram marginalizadas até a implosão da síntese Buckleyliana e a chegada de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos. Creio que é por essa razão que ele evita engajar autores como Kirk e Hayek, preferindo ancorar-se em Homero e Parmênides.

Dado que um elemento central da eleição de Bolsonaro foi sua conversão ao liberalismo econômico, representada pela escolha de Paulo Guedes como assessor de primeira hora, temos um óbvio dilema para a consolidação do nascente movimento conservador brasileiro. De forma similar à síntese operada pela National Review ao longo dos anos 1950 e 1960, os novos conservadores brasileiros têm pela frente a tarefa de harmonizar o liberalismo guedista com o paleoconservadorismo araujista. 

Já é possível detectar alguns indícios desse esforço na insistência dos defensores do presidente eleito em marcar as diferenças entre o conceito de globalização e o que seria o “globalismo”. Assim, Paulo Guedes e a ala liberal bolsonarista são a favor da globalização. Araujo e os paleocons não se oporiam necessariamente à globalização, que seria um fenômeno meramente econômico, mas apenas ao “globalismo”, que seria um fenômeno político.

Portanto, insistem os bolsonaristas, são duas coisas diferentes que não necessariamente se anulam.  Falta ao fusionismo tupiniquim, no entanto, o cimento da Guerra Fria que foi tão central para a versão original americana. Não está claro ainda se o antipetismo, que foi um fator importante para a aproximação dessas duas correntes, poderá ser esse cimento no longo prazo. Com o PT fora do poder é possível que o antipetismo perca gradualmente esse papel, podendo levar a uma desagregação desses blocos.

Se examinarmos a trajetória do movimento conservador americano brevemente relatada acima e compararmos com a situação brasileira, podemos concluir que o nascente movimento conservador brasileiro se encontra em um estágio de desenvolvimento similar ao que os americanos se encontravam no início dos anos 1950.A diferença crucial é que Bolsonaro ganhou as eleições.

Nos Estados Unidos, após anos de elaboração intelectual, principalmente nas páginas da National Review, os conservadores foram bem-sucedidos em alçar Barry Goldwater como candidato à presidência pelo Partido Republicano em 1964. No meio da comoção pelo assassinato de Kennedy, entretanto, Goldwater sofreu umas das piores derrotas eleitorais da história para Lyndon Johnson. 

Um dos principais discursos em defesa da candidatura Goldwater foi feito por um ex-ator recém-saído do Partido Democrata, e que se tornaria governador da Califórnia em 1966: Ronald Reagan. Quando Reagan venceu as eleições presidenciais de 1980, já havia, portanto, um movimento conservador bem estruturado tanto intelectual quanto institucionalmente. 

Think tanks como The Heritage Foundation (1973) e o Cato Institute (1977), organizações como a National Rifle Association (fundada no século XIX, mas com atuação política apenas após 1975), instituições de ensino como a Liberty University (1971), além de uma série de revistas que surgiram após a National Review, como a The Public Interest (1965-2005), formavam uma extensa rede de suporte ao conservadorismo americano.

Entre o final dos anos 1980 e meados dos anos 1990, programas de rádio como The Rush Limbaugh Show (1988) e canais de TV a cabo como a Fox News (1996) forneceram uma plataforma para as ideias conservadoras jamais imaginada pelos intelectuais que debatiam a relevância de Edmund Burke nas páginas da National Interest. 

Potencializado pela ascensão da internet, o conservadorismo americano se fragmentou e perdeu consistência ideológica, ao mesmo tempo em que suas manifestações menos sofisticadas se popularizavam. A cacofonia trazida pelas redes sociais tornou inviável a existência de um William Buckley como guardião do que seria um conservadorismo respeitável, abrindo espaço para grupos que antes estavam marginalizados, juntamente com a ascensão de outros. Donald Trump, cuja candidatura foi abertamente combatida pela National Review, é produto dessa cacofonia. 

Assim, quando os conservadores brasileiros olham para Trump como inspiração, devem ter claro que estão diante de algo bastante distinto do conservadorismo que historicamente predominou no país. Se, na ausência de base intelectual própria, vamos importar o conservadorismo dos Estados Unidos, devemos ao menos saber o que estamos importando.

Ainda assim, uma vez eleito, Trump pôde contar com o suporte de várias dessas organizações como a Heritage Foundation e a National Rifle Association, além de estar ancorado em um partido tradicional e ter o apoio explícito de grande parte da mídia conservadora que se desenvolveu nos últimos 30 anos, representados por Rush Limbaugh e pela Fox News. Por outro lado, o conservadorismo brasileiro chega ao poder ainda pouco desenvolvido não só intelectual como institucionalmente. 

Não há no Brasil um grupo robusto de intelectuais conservadores respeitados, o que explica o destaque dado a um único indivíduo. Quem não tem Kirk, caça com Carvalho. O problema é que apenas um indivíduo pode até caracterizar uma seita, mas não um movimento intelectual. Sem esse corpus intelectual estruturado, o conservadorismo brasileiro tem sido elaborado online via posts em redes sociais e memes. Se isso se provou eficaz do ponto de vista eleitoral, restam dúvidas sobre como construir um movimento intelectual com tweets de 280 caracteres. 

Da mesma forma, ao contrário dos Estados Unidos, não existem instituições conservadoras relevantes no Brasil. É verdade que temos o Instituto Liberal, fundado em 1983 e responsável, por exemplo, pela tradução para o português de O Caminho da Servidão de Hayek, além de alguns grupos liberais organizados que apareceram recentemente. Esses grupos, porém, são mais representantes do liberalismo guedista, que por sinal se afasta da posição protecionista de Trump, que do conservadorismo araujista, que se pretende mais próximo do trumpismo. 

Finalmente, sequer existe no Brasil um partido político que se identifique como abertamente conservador. O próprio Bolsonaro, antes de ir para o então nanico PSL era filiado a um partido autodenominado “progressista.” Como deve estar óbvio a essa altura, trata-se de uma situação bastante diferente da que Reagan encontrou quando foi eleito. Testemunharemos nos próximos anos um governo que deverá tentar desenvolver a sua filosofia política ao mesmo tempo em que governa.

Não surpreende, portanto, que muito do que Ernesto Araújo vem escrevendo em artigos de jornais e no seu blog após sua indicação como chanceler praticamente não toque em aspectos práticos da política externa que o governo pretende perseguir a partir do ano que vem.

O futuro ministro está preocupado mais com aquilo que T.S. Eliot chamou de “pré-política”, do que propriamente com a política em si.  Eliot, criticando o intelectual monarquista francês Charles Maurras por ter entrado na política ao integrar a Action Française, afirmou que se Maurras tivesse se restringido à literatura de teoria política, suas ideias poderiam ter tido mais influência. 

Na ausência de um conservadorismo intelectualmente organizado, Araújo se lança a preencher esse vácuo e usa suas manifestações escritas para organizar uma filosofia política, mais do que refletir sobre a aplicabilidade imediata de suas ideias. Tivesse o Brasil desenvolvido um movimento conservador bem estruturado nos últimos anos, Araújo talvez pudesse fazer a transição da pré-politica para a política com mais facilidade. 

Por enquanto, ele pode ainda fazer elucubrações filosóficas sobre o pertencimento ou não do Brasil ao Ocidente, ou sobre o “Deus de Trump”. A partir de 1 de janeiro, ele não terá mais opção – a política vai se impor com ou sem o desenvolvimento de uma base intelectual definida. Sugiro ao futuro chanceler, que já declarou acreditar que Trump tenha lido Homero, que deixe a Ilíada de lado por ora, e comece a estudar The Art of the Deal.



*Carlos Gustavo Poggio Teixeira é pesquisador visitante na Universidade de Georgetown, onde realiza pesquisa sobre a ascensão de Donald Trump. É professor dos cursos de graduação em relações internacionais na FAAP e na PUC-SP, do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas, e coordenador do NEPEU – Núcleo de Estudos sobre a Política Externa dos Estados Unidos.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2018

Frentes parlamentares são pouco para sustentar presidente

Por Silvio Cascione e Suely Araújo* (Folha de SP, 02/12/2018)

As frentes parlamentares temáticas proliferam. Ganharam fama com o trio “boi, bala e Bíblia”, mas vão muito além: a legislatura 2015-2018 termina com 342 registradas na Câmara, sobre os temas mais diversos. Em um momento em que os partidos têm baixíssima credibilidade junto ao eleitorado, não surpreende que Jair Bolsonaro olhe para elas como alternativa para a construção de sua base.

Há grande curiosidade sobre esse experimento. Muitos cientistas políticos estão céticos porque as frentes não têm as mesmas ferramentas dos partidos para negociar com um presidente: especialmente, não podem punir dissidentes. Concordamos. Mas temos outra razão para desconfiar dessa empreitada, segundo pesquisa da Universidade de Brasília (UnB).

As frentes parlamentares não são tão grandes quanto dizem ser, nem organizadas o bastante. Mesmo com toda a atenção que ganharam, não há controle consistente sobre a composição desses grupos.  O único dado é a lista de assinatura para registro formal, que não significa quase nada: deputados as assinam apenas como favor a seus pares, sem jamais ir a uma reunião.

É ilógico esperar que todas as 342 frentes tenham de fato, cada uma, pelo menos 171 deputados mobilizados, mínimo exigido pela Câmara. Então, fomos a campo em 2017 perguntar diretamente aos parlamentares quais as bancadas temáticas em que eles atuavam. Ao todo, 367 responderam. Pudemos estimar, com pequena margem de erro, a verdadeira composição das frentes.

Como esperávamos, a maioria existe apenas no papel ou é composta por um ou poucos membros. Mas o mais interessante foi notar que as grandes bancadas temáticas são significativamente menores do que dizem ser.

A maior de todas, grande exceção do Congresso, é a da agropecuária. A partir da pesquisa, foi estimado que ela tinha 118 integrantes efetivos em 2017. Mas as quatro seguintes —educação, evangélica, segurança e saúde— não reúnem mais do que 40 parlamentares atuantes cada.

Somadas, as cinco maiores são menores que os cinco maiores partidos, e bem mais concentradas na Câmara do que no Senado. Há que levar em conta ainda que há sobreposição, com parlamentares que pertencem a mais de uma frente.

Esses dados importam porque um dos argumentos em defesa das frentes como pilares de uma coalizão é de que elas teriam uma capacidade de aglutinar congressistas maior do que a de muitos partidos. Esse argumento perde muita força quando comparado aos dados. Juntando isso com a impossibilidade de punir dissidentes, fica difícil apostar que as frentes possam ser o pilar de uma coalizão política estável.

As bancadas temáticas decerto têm muita influência em suas áreas. Agregam deputados e, posicionando-se em pontos estratégicos do Congresso, conseguem influenciar pautas de seus interesses. Elas podem ser muito importantes para facilitar a comunicação entre o Congresso e a sociedade. Mas, como um deputado nos confidenciou, as frentes são boas para obstruir, mas não servem para construir.

Se nem as próprias frentes sabem quem são efetivamente seus integrantes, não conseguem assumir compromissos críveis para votar propostas fora de suas área de domínio —como a reforma da Previdência, por exemplo, um tema caro ao novo governo.

E nosso ponto é que, além disso, nem são grandes o bastante para tanto. As frentes complementam os partidos, mas não os substituem. Bolsonaro terá que negociar com os verdadeiros donos do Congresso Nacional; quanto menos o fizer, mais dependerá da popularidade para avançar sua agenda.


*Silvio Cascione é mestre em ciência política pela UnB, jornalista e analista da Eurasia Group; Suely Araújo é consultora legislativa, doutora em ciência política e presidente do Ibama desde junho de 2016

O medo da Ursal

Por Demetrio Magnoli (O Globo, 03/12/2018)

O Brasil já temeu a mula sem cabeça, o boitatá, a cuca, o corpo-seco, a iara e o curupira. Hoje, teme a Ursal. Os medos antigos assombravam o universo rural de caipiras e caboclos. O medo atual assombra o novo governo que, para dormir em paz, entregou dois ministérios estratégicos a apóstolos do Bruxo da Virgínia, um astrólogo repaginado como filósofo místico. Daqui em diante, a superstição norteará nossas políticas externa e educacional. Não adianta dizer que a Ursal não existe, pois ela existe na mente dos que nos governarão.

A Ursal, União das Repúblicas Socialistas da América Latina, ganhou popularidade pela voz do Cabo Daciolo. A evocação da sigla exprime a crença de que uma conspiração comunista internacional ameaça a pátria brasileira. O Bruxo da Virgínia e seus evangelistas compartilham o credo de Daciolo, mas o vestem em peças de estilistas.

Na linguagem arcana que preferem, a conspiração é conduzida por uma liga constituída por “liberais globalistas” e “marxistas”. Armados com as teses de Antonio Gramsci, os maléficos conspiradores apropriam-se silenciosamente tanto das chaves do poder quanto das mentes dos indivíduos por meio de uma prolongada guerra cultural. É Ursal, em versão de butique.

De acordo com as superstições do Bruxo da Virgínia, a China lidera o tentáculo marxista da conspiração mundial. Ernesto Araújo, futuro ministro das Relações Exteriores, dá indícios de que submeterá as relações com a China ao “Deus de Trump”, engajando o Brasil na guerra comercial deflagrada pelos EUA. O medo da Ursal ameaça degradar uma de nossas principais parcerias econômicas, fonte de quase um terço do superávit brasileiro no comércio exterior e de vultosos investimentos externos diretos.

Segundo as crendices do Bruxo da Virgínia, a escola funciona como palco de uma doutrinação dos jovens destinada a destruir a família e a religião. Ricardo Vélez, futuro ministro da Educação, declara que enfrentará o perigo por meio do projeto de lei Escola Sem Partido — ou seja, pelo uso do poder público como polícia pedagógica destinada a perseguir professores “desviantes”.

O medo da Ursal ameaça bloquear os caminhos para a reforma e qualificação da educação no Brasil. No lugar dessa tarefa inadiável, o Estado anuncia uma estratégia de “contrainsurgência cultural” nas escolas.

As teocracias medievais e os regimes totalitários do século passado imaginavam-se como representações de uma verdade suprema, oriunda de Deus, do Destino Nacional ou da História. A separação entre Estado e Igreja (isto é, a laicidade estatal) e a separação entre Estado e partido (isto é, o princípio do pluralismo político) formam dois pilares estruturais dos sistemas democráticos.

Nas democracias, o Estado administra as coisas, não as mentes. Os dois ministérios ocupados por acólitos do Bruxo da Virgínia ambicionam administrar as mentes, libertando-as das forças alienígenas da Ursal. Há fortes doses de ridículo nisso, mas o assunto é sério: o misticismo está no poder.

Um paralelo apropriado é com a Arábia Saudita. O reino nasceu de uma longa jihad (“guerra santa”) empreendida pela aliança do clã guerreiro dos Saud com a seita islâmica puritana Wahab. Na base da monarquia saudita, encontra-se o pacto original entre esses componentes, que se exprime pela entrega dos ministérios da Educação e das Comunicações à facção religiosa.

A seita liderada pelo Bruxo da Virgínia ocupa, no governo Bolsonaro, um lugar semelhante ao dos wahabitas no reino dos Saud. A diferença é que sua doutrina não repousa sobre a leitura literal de um livro sagrado, mas sobre crendices cozidas no forno de uma espécie de ocultismo pós-moderno.

A “confluência entre História e Mito” alardeada por Ernesto Araújo, o combate sem trincheiras à “revolução cultural gramsciana” pregado por Ricardo Vélez são piadas que saltaram de túneis escuros das redes sociais para o aparelho de Estado. Uma festa estranha, com gente esquisita — nisso transformaram-se o Itamaraty e o Ministério da Educação. A Ursal passeia entre nós. Deus não é brasileiro.

domingo, 2 de dezembro de 2018

O livro que criou o termo ‘meritocracia’ é uma distopia

Por Camilo Rocha (Nexo Jornal, 18/04/2018)

É comum se defrontar com o termo “meritocracia” em discussões políticas e econômicas. Na acepção mais comum, designa um modelo em que se progride social e economicamente com base em qualidades pessoais. De acordo com essa visão, a meritocracia premia o esforço individual, que se sobreporia a fatores externos.

Para seus críticos, o conceito é falho pois ignora o contexto social e cultural das pessoas, que podem se traduzir em vantagens ou desvantagens. Segundo essa visão, ao ignorar o histórico das pessoas, a meritocracia serve apenas para reforçar desigualdades existentes. O termo tem origem no livro “The rise of the meritocracy” (“A ascensão da meritocracia”, em tradução livre), publicado em 1958 pelo sociólogo e político britânico Michael Young. 

Satírica, a obra descreve uma sociedade distópica do futuro em que se consolida uma elite baseada em resultados de testes de QI padronizados. Como apenas aqueles com acesso a boas escolas conseguem ir bem nos testes, a “meritocracia” da história apenas perpetua o desequilíbrio social.

A intenção de Young era criticar o sistema educacional britânico de sua época, baseado em um modelo similar de testes de inteligência, que todas as crianças do país deveriam fazer em certas fases da vida escolar. A aprovação ou não nesses testes, em vigor no país até o fim da década de 1980, costumava ser determinante para o futuro profissional dos estudantes.

O termo ganhou sentido positivo nas décadas seguintes ao ser adotado por uma variedade de escritores de autoajuda, pensadores, empresários e políticos. Nos Estados Unidos, o conceito foi incorporado à sólida mitologia do “self-made man”, do personagem de origem humilde que venceu sozinho na vida, associado às histórias do escritor Horatio Alger, do século 19.

No Reino Unido, o termo foi adotado com entusiasmo pelo primeiro-ministro Tony Blair, que ocupou o cargo entre 1997 e 2007. Em um discurso de 2001, Blair fez alusão ao conceito, pregando que “as pessoas deveriam ascender de acordo com o mérito e não nascença”.

Em artigo para o jornal britânico The Guardian no mesmo ano, Young criticou o político pelo uso inadequado da palavra. “É altamente improvável que o primeiro-ministro tenha lido o livro, mas ele abraçou a palavra sem se dar conta dos perigos do que está defendendo”. Figura importante do Partido Trabalhista britânico (o mesmo de Blair), nas décadas de 1940 e 50, o autor foi um dos responsáveis por nortear políticas trabalhistas em áreas como educação, saúde e habitação.

No Brasil, o senador Aécio Neves se valeu do termo em diversas ocasiões, como por exemplo em declarações sobre o funcionalismo público. Em 2015, publicou no Twitter que “sou favorável à meritocracia, a qualificação da ocupação dos cargos públicos em todas as esferas da administração”.

“Sem resolver a desigualdade de oportunidades, ficar falando em meritocracia é piada. Como discutir o mérito de quem chegou em primeiro lugar em uma corrida onde as pessoas saíram em tempos diferentes e a distâncias diferentes?”, declarou Ricardo Paes de Barros, economista-chefe do Instituto Ayrton Senna e professor no Insper, em 2016. 

Em seu artigo de 2001, Young lembrou que a prática pode criar um sistema viciado: “É bom senso indicar pessoas individuais a trabalhos com base no seu mérito. É o oposto quando aqueles que são considerados possuidores de um certo tipo de mérito se engessam em uma nova classe social que não permite lugar para os outros”. Entre seus defensores, há quem ressalve que o conceito vale apenas para situações específicas, não para a sociedade como um todo. Por exemplo, como critério de seleção ou promoção dentro de uma empresa. 

Mesmo nesse tipo de situação, há espaço para desequilíbrio. Uma pesquisa de 2016 do MIT (Massachussets Institute of Technology) identificou que organizações que usam a meritocracia como base para políticas de recompensas têm mais chances de oferecer recompensas de maneira desigual a indivíduos com performance parecida, mas com gênero, etnia ou origem social diferentes. 

Em artigo de 2012 para o Financial Times, Daniel Bell, professor de teoria política na universidade chinesa de Tsinghua, e Eric Li, capitalista de risco em Shanghai, explicaram as vantagens do modelo meritocrático para o preenchimento de cargos no Partido Comunista Chinês. Neste sistema, aspirantes enfrentam alta competição em diversos níveis para ascender dentro da máquina partidária e na administração pública. Testes de personalidade e qualificação ocorrem em várias etapas. Só aqueles com um histórico de desempenho excelente alcançam os níveis mais altos. 

“Em vez de perder tempo e dinheiro tentando angariar votos, líderes podem buscar a melhoria de seu conhecimento e desempenho”, afirmaram os autores do artigo. Mas fazem a ressalva em seguida: “a meritocracia só pode funcionar em um sistema de partido único”. Na democracia, com a alternância de partidos, não há garantia de permanência em um cargo público por muito tempo.

quinta-feira, 29 de novembro de 2018

Hora de acordar: um caminho para cobrir o governo Bolsonaro

Por Malu Gaspar (Revista Piauí, 28/11/2018)

Na sexta-feira, 22 de novembro, o presidente eleito Jair Bolsonaro anunciou pelo Twitter mais um ministro de seu futuro governo. “Gostaria de comunicar a todos a indicação de Ricardo Vélez Rodríguez, filósofo, autor de mais de trinta obras, atualmente professor emérito da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, para o cargo de ministro da Educação.” A reação da imprensa, dos acadêmicos da área de educação e uma boa parte do público foi um sonoro “Quem!?”

Até então, a chamada grande mídia havia investido trabalho e tempo discutindo nomes como o do diretor do Instituto Ayrton Senna Mozart Neves Ramos e o do procurador da República Guilherme Schelb, soprados aos ouvidos dos jornalistas por membros da equipe de transição ou do entorno de Bolsonaro. Dois jornais, inclusive, chegaram a anunciar que Neves Ramos havia sido escolhido, para em seguida serem desmentidos pelo próprio presidente eleito via Twitter.

Nas horas que se seguiram ao anúncio de Bolsonaro, artigos foram escritos com dados básicos do currículo de Vélez Rodríguez. Peças de sua retórica antipetista e pró-Escola Sem Partido emergiram nas redes sociais, num tom de rematado espanto. No final daquela noite, eu era uma das que postavam no Twitter trechos de artigos de Vélez Rodríguez e buscavam mais informações sobre ele, quando topei com um blog do professor, que havia sido mencionado em matéria do El País.

No texto mais recente, de 7 de novembro e intitulado “Um roteiro para o MEC”, Vélez Rodríguez já dizia ter sido indicado para “a possível escolha pelo senhor presidente eleito Jair Bolsonaro” por “vozes de algumas pessoas ligadas à educação e à cultura, entre os quais se destaca o professor e amigo Olavo de Carvalho”. 

A questão que mais me incomodou, imediatamente, não tinha nada a ver com o novo ministro, e sim com a cobertura jornalística. Como foi possível que um sujeito que tinha toda essa chance de ser escolhido ministro de uma pasta importante como a da Educação tivesse dito com todas as letras que estava entre os cotados, e o nome dele sequer tivesse sido mencionado nos grandes jornais, sites e tevês que passam dia e noite falando do governo de transição? Será que nós, jornalistas, vamos continuar a repetir, no governo Bolsonaro, os mesmos erros cometidos na campanha eleitoral?

Pesquisando mais um pouco, descobri que Vélez Rodríguez era apontado como possível ministro por alguns dos influenciadores digitais de direita, como o blogueiro Bernardo Küstner, que tem um canal no YouTube com mais de 550 000 seguidores, ou Filipe Martins, que além de blogueiro é assessor internacional do PSL e muito próximo dos filhos de Bolsonaro. E, no entanto, o espanto diante da indicação de Vélez Rodríguez foi o mesmo que assomou diante do crescimento de Bolsonaro nas pesquisas e do arrastão direitista que tomou as urnas no primeiro turno. 

Não que Bolsonaro fosse ignorado pela grande mídia. Mas a visão predominante sempre foi a de que a candidatura tinha um “teto”. Quando ele provou que essa premissa estava errada, a parte da opinião pública que ou se alinha à esquerda ou ao centro do espectro ideológico passou a apontar o dedo para os supostos “culpados” pela reversão de expectativa.

Um deles foi a “mídia” – que, ao cobrir a candidatura do ex-capitão da mesma forma que cobria as outras, “normalizou” Bolsonaro ao invés de apontar de forma eficiente suas “monstruosidades”. Cansei de ler e ouvir, em debates, listas de WhastApp, textões no Facebook e trolagens no Twitter esse mesmo argumento. E mil vezes pensei em responder com outro textão, mas desisti diante de tarefas que considerei mais urgentes. Agora encasquetei.

Há muita falha e autocrítica a ser feita pela imprensa quanto à cobertura dessas eleições. O que se constata, aliás, é que vimos falhando há muito tempo. Mas as ideias de que ela possa ser responsabilizada pela ascensão de Bolsonaro ou que tenha “normalizado” Bolsonaro apenas mostram que, como os jornalistas, os críticos da imprensa não estão entendendo nada.

No início do ano, a Folha de S.Paulo publicou que uma servidora do gabinete de Bolsonaro trabalhava, na verdade, na sua casa em Angra dos Reis. O mesmo jornal verificou que os Bolsonaro tinham treze imóveis avaliados em 15 milhões de reais, mesmo atuando exclusivamente na vida pública. A Veja mostrou que sua segunda ex-mulher o havia acusado de ter um patrimônio maior do que o declarado à Justiça Eleitoral, e de ter roubado um cofre com dinheiro e joias que ela mantinha em uma agência do Banco do Brasil. 

Depois disso, a Folha trouxe a informação de que ela fugiu para a Noruega com medo das ameaças do ex-marido. Foram amplamente divulgadas sua admiração pelo coronel Brilhante Ustra, que dirigiu o mais notório centro de torturas do regime militar, suas opiniões sobre os direitos das mulheres e sobre homossexuais. Inúmeros artigos e entrevistas, no Brasil e no exterior, reverberaram a ideia de que as eleições no Brasil eram um embate entre a civilização e a barbárie, a democracia e a ditadura, direitos civis e fascismo – com Bolsonaro sendo sempre a segunda opção. 

Sua trajetória e suas opiniões foram minuciosamente escrutinadas, justamente como deve ser com todo aquele que postula um cargo público. Que se saiba, nenhum aspecto que esses críticos da mídia considerariam fatal para a candidatura do PSL deixou de ser divulgado.

Ainda assim, tenho a impressão de que ficarei velhinha ouvindo dizer que Bolsonaro foi “normalizado” – no pressuposto de que o único tratamento correto para o ex-capitão do Exército fosse o de aberração, e na presunção de que, se ele tivesse sido retratado com tintas mais fortes, poderia não ter ganhado a eleição. Pois a autocrítica que eu defendo parte exatamente desse ponto. Quem faz esse tipo de afirmação atribui à imprensa um poder que ela não tem. 

Se a imprensa sofreu uma derrota nestas eleições, não foi porque Bolsonaro ganhou. Ela foi derrotada porque muitas vezes deixou de cumprir sua função primordial como instituição – que, ao contrário do que pedem alguns críticos, não é ser militante de nada a não ser da busca pelos fatos. Falhamos porque, para os leitores e telespectadores, a eleição trouxe um Vélez Rodríguez por dia, uma quantidade impressionante de assuntos e pessoas que não faziam parte do cardápio dos jornais até se apresentarem como fatos consumados.

Elas estavam por aí, na internet e nas ruas. Quando Lula deixou a disputa e as pesquisas constataram que Bolsonaro era o favorito, em setembro, já fazia pelo menos dois anos que ele e seus aliados mantinham redes sociais ativas, com milhões de seguidores, e multiplicavam os grupos de WhatsApp que se revelaram um diferencial das eleições.

Olavo de Carvalho, o guru de Bolsonaro, já era um fenômeno editorial e nas redes, mas só agora estamos descobrindo que ele tem poder e influência na nomeação de ministros. Há tempos ele vem criticando o movimento Escola Sem Partido, mas essa divergência que pode ter efeitos sobre a política educacional do governo também vinha passando despercebida. 

Carlos Bolsonaro foi responsável pela ascensão digital do pai e é uma metralhadora giratória até para dentro do bolsonarismo, mas só agora descobrimos sua importância. Os generais se batem contra o grupo de Gustavo Bebianno desde que a campanha começou, mas até agora não sabíamos disso. O bolsonarismo e a nova direita fizeram 52 deputados federais e emergiram com uma força imprevista, mas ainda não os conhecemos muito bem e nem entendemos a dinâmica entre eles.

Há algumas explicações para esse “branco” que atingiu as redações brasileiras. Não discordo que os jornalistas sejam um contingente predominantemente de esquerda ou de centro, e não descarto que a ideologia possa ter minado a cobertura das eleições.

É verdade também que o jornalismo tem sido progressivamente contaminado pelo ambiente polarizado das redes sociais e vem transformando opinião em commodity – fazendo parecer necessário todo mundo dar opinião sobre tudo, e gerando uma confusão entre o espaço da opinião e o da informação. Mas, para mim, a principal razão para explicar o que se passou na cobertura das eleições tem a ver com o caráter disruptivo da candidatura Bolsonaro.

Nas últimas duas décadas, o jornalismo nacional se acostumou a transitar no ambiente da social-democracia. O jornalismo político mainstream é um integrante ativo do sistema político, e subestimou as chances de vitória de Bolsonaro da mesma forma que todo o sistema.

Depois de tantos anos vendo os sociais-democratas petistas e tucanos se alternarem no poder, os jornalistas passaram a se comportar como se o “sistema” fosse invencível, e nem mesmo a onda direitista que vem varrendo algumas partes do mundo nos fez duvidar dessa premissa. Pela mesma razão, subestimamos as redes sociais como arena política, e deixamos de cobri-la como tal. O fato é que Bolsonaro não pode mais ser encarado como esdrúxulo e absurdo. Ele é a nova realidade do poder e assim tem de ser compreendido.

O desafio que temos pela frente é grande, mas a oportunidade, também. A ruptura que Bolsonaro representa na política ocorreu em paralelo e é uma consequência das transformações vividas pela mídia nos últimos tempos. Assim como o presidente eleito está deslocando o eixo do poder no Brasil para a direita, buscando imprimir uma nova lógica na negociação com o Congresso e na comunicação com os eleitores, as redes sociais e seus protagonistas empurram o jornalismo para uma reinvenção.

Da mesma forma que Bolsonaro forçou uma mudança, essa reinvenção vai acontecer de uma forma ou de outra, porque há uma crescente demanda por informação, investigação e serviço público que não será suprida pelas redes sociais. Nos Estados Unidos, em que a mídia passou por uma auto-análise parecida com a que estamos enfrentando agora após a eleição de Donald Trump, já se notam os resultados.

A polarização política continua, como mostram a dicotomia entre a Fox News e a CNN. Mas o jornalismo reagiu, com transformações como a do The New York Times, que aumentou sua base de assinantes investindo fortemente em núcleos investigativos e em novos formatos e plataformas online.

Ou a do Washington Post, que adotou uma postura mais combativa contra o governo Trump. Startups criadas antes da ascensão do atual presidente, como a ProPublica, exclusivamente destinado à investigação, ou o Texas Tribune, que se dedica à cobertura de políticas públicas, também surgiram como novidade importante, conquistando respeito, credibilidade e engajamento de leitores órfãos de informação de qualidade.

Tais iniciativas têm um traço em comum: são produto de um jornalismo que desapegou das antigas formas de cobertura para oferecer ao leitor ou espectador bem mais do que se divulga nas redes sociais. Que aceita a nova multiplicidade de atores no ambiente político e tenta retratar essa nova ordem de forma organizada e séria, apesar do estranhamento.

Que se dispõe a fazer esforço para escapar ao método das cortinas de fumaça e armadilhas diárias colocadas no caminho por um governante que encara a mídia como inimigo. E que tenta não perder o foco no interesse público, apesar da cacofonia perturbadora do novo momento.

Creio que aí temos um norte. Há um mundo a desbravar, que vem se movimentando há tempos sem que tivéssemos nos dado ao trabalho de investigá-lo com rigor e abrangência. Há uma nova ordem política emergindo, por força das urnas, e o jornalismo não pode mais perder tempo se escandalizando com ele. 

Que a esquerda esteja perdida ou em crise de identidade é compreensível e natural. Mas o jornalismo profissional não tem (ou não deveria ter) nada a ver com isso. O trabalho diante de nós é gigantesco, e tem de começar com uma reflexão sobre os vacilos, os pré-julgamentos, os erros e a (auto)complacência que turvaram a nossa visão nos últimos tempos.

 Só assim poderemos aprender com o que aconteceu e não mais deixar a história desfilar na nossa frente como se fosse um vídeo bizarro do YouTube.

segunda-feira, 26 de novembro de 2018

Não há modelo chileno para ser copiado, dizem especialistas

Por Ana Fernandez ( Folha de SP, 26/11/2018)

Estabilidade política, níveis baixos de corrupção e um dinamismo econômico iniciado na ditadura (1973-1990) baseado em um Estado menor e mais exportações tornaram o Chile um modelo que líderes como Jair Bolsonaro desejam imitar.

Mas existe modelo chileno? "É um erro falar do modelo chileno, como se desde (Augusto) Pinochet até o atual presidente Sebastián Piñerahouvesse as mesmas políticas econômicas", disse o economista Ricardo Ffrench-Davis.

"Há coisas em comum que se mantêm ao longo do tempo e padrões, mas há mudanças substanciais, tanto de políticas, quanto de reformas", disse o economista, autor do livro "Reformas económicas en Chile, 1973-2017" e professor da Universidade do Chile.

Desde que, em 1975, Pinochet recorreu aos "Chicago boys", alunos do economista ultraliberal norte-americano Milton Friedman, para elaborar um modelo que rompesse com o projeto socialista de seu antecessor Salvador Allende, contra quem deu um golpe de Estado militar em 11 de setembro de 1973, o país foi adaptando suas políticas à realidade social.

O modelo é marcado por um Estado reduzido ao mínimo, venda de empresas públicas e privatização de serviços básicos —como saúde, educação e principalmente Previdência, com a introdução à época de um sistema de de capitalização individual copiado por vários países e que, hoje, com a primeira geração de aposentados, mostra limitações.

Nos últimos anos, as pressões de estudantes exigindo educação gratuita e —mais recentemente— o clamor popular para reformar o sistema previdenciário, que hoje entrega aposentarias baixíssimas, forçaram os governos a dedicar maiores recursos do Estado.

Apenas as Forças Armadas —hoje em crise por casos de corrupção e abusos de poder— ficaram de fora da febre privatizadora da época, e se beneficiam de um regime de aposentadorias e saúde garantido pelo Estado.

Em 1989, um ano antes de entregar o poder ao social-democrata Patricio Aylwin à frente da Concertación, coalizão de centro-esquerda que governou o país por duas décadas, o poder de compra real do salário mínimo era inferior ao de 20 anos antes.

"O Chile está longe de ser um país desenvolvido, mas cresceu muito mais na democracia do que na ditadura", diz Ffrench-Davis, também aluno da Universidade de Chicago, onde Paulo Guedes, futuro ministro da Economia, fez mestrado e doutorado.

Guedes, que morou no Chile no início dos anos 1980, quer levar ao Brasil algumas das receitas aplicadas pelo Chile: menos Estado, menos proteção social e menos impostos, um programa ambicioso, levando em conta que o governo não tem maioria na Câmara.

Acostumado a se reconstruir a cada vez que um terremoto lhe destrói, o Chile se tornou o país com mais acordos comerciais —o último, assinado na quarta-feira (21), justamente com o Brasil— e um dos principais defensores do livre-comércio, contrário ao protecionismo de Donald Trump e Bolsonaro.

"Nos opomos a toda forma de protecionismo e de práticas desleais no comércio, e queremos fortalecer e promover com muita força a economia digital, a inclusão e nossa incorporação à quarta revolução tecnológica", disse Piñera, no Fórum Ásia Pacífico (APEC) em Papua Nova Guiné.

Contudo, alcançar a maior renda per capita da América Latina e aspirar a se transformar, em menos de uma década, em um país desenvolvido, não teria sido possível sem a probidade dos políticos que governaram o país durante o período democrático.

"A impressão que tínhamos nos anos 1990 era que as pessoas que estavam no governo eram ultra honestas. Os cargos eram por mérito e não por militância. Trabalharam muito, embora tenha havido um processo gradual de deterioração, mas não de grande escala", diz Ffrench-Davis, lembrando que, quando os mandatários deixavam o governo, "voltavam para casa" onde sempre viveram.

Diferentemente dos países vizinhos, não há políticos locais envolvidos no escândalo de corrupção da Odebrecht, embora a imagem da classe econômica tenha sido machada por outros escândalos.

Redução da desigualdade no Brasil estagnou, diz estudo da Oxfam

Por Fabiano Maisonnave (Folha de SP, 26/11/2018)


Relatório da Oxfam Brasil revela que a redução na desigualdade de renda estancou pela primeira vez em 15 anos. O documento atribuiu a piora a uma série de limitações econômicas, em particular à recessão, ao aumento do desemprego e à crise nas contas dos governos, que limita o fôlego de políticas públicas voltadas aos mais pobres e ao investimento.

De acordo com a ONG, a desigualdade de renda domiciliar per capita, medida pelo Índice de Gini, permaneceu inalterada entre 2016 e o ano passado, interrompendo um processo de queda iniciado em 2002. O relatório utiliza os números da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad), do IBGE.

Consequência disso, o Brasil passou de 10º para o 9º mais desigual do mundo em uma lista de 189 países, segundo o relatório do Pnud (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), que também usa o Índice de Gini.

Nesse período, houve o aumento da pobreza. Em 2017, o Brasil contava 15 milhões (7,2% da população) de pessoas consideradas pobres pelo Banco Mundial —renda de até US$ 1,9 (R$ 7,3) por dia. Trata-se de um crescimento de 11% em relação a 2016.

As tendências de aumento da população pobre, do nível de desigualdade de renda do trabalho e do índice de mortalidade de infantil são a marca da aguda crise socioeconômica e política iniciada em 2014, diz o relatório.

Para a Oxfam, no entanto, um elemento adicional piora o cenário: o teto de gastos. A emenda constitucional 95, proposta pelo governo Michel Temer (MDB) e aprovada 2016 para impedir o aumento das despesas públicas acima da inflação por duas décadas, é considerada uma "medida extrema" pela entidade.

O estudo defende a revogação do teto mediante o argumento de que a regra, ao longo do tempo, vai comprometer a liberação de recursos para áreas sociais —que têm menor poder de pressão na disputa por dinheiro público. Assim, no médio e longo prazo, o teto contribuirá para aprofundar a desigualdade.

O relatório argumenta que a restrição faz com que as despesas sociais compitam entre si e com outros gastos, como folha de pagamento e investimento. "Seu efeito final é reduzir o tamanho do gasto público em relação ao PIB, ao mesmo tempo que a população crescerá e envelhecerá."

Na avaliação de Carlos Góes, pesquisador-chefe do Instituto Mercado Popular, o estudo aponta de forma consistente a estagnação na queda da desigualdade desde o fim da recessão, mas a ONG peca nas recomendações, sobretudo na crítica ao teto de gastos.

"As despesas com educação básica e saúde estão majoritariamente intocáveis porque são financiadas prioritariamente por meio de transferências constitucionais", diz o doutorando em economia pela Universidade da Califórnia.

Góes afirma que ficou surpreso com a falta de ênfase na reforma da Previdência e na revisão dos salários do funcionalismo. "Há ampla evidência empírica de que reformar a Previdência é essencial para garantir a capacidade de financiar gastos sociais do governo e de que tanto a Previdência quanto os salários do funcionalismo têm amplo papel regressivo [aumentam a desigualdade]", diz ele.

Outro alvo das críticas mais duras é o regime tributário. Para a Oxfam, é preciso reduzir os impostos sobre bens e serviços, que oneram mais o setor produtivo e têm custo maior para as classes média e pobre, e aumentar a tributação sobre renda e patrimônio.

Como medidas, o estudo propõe novas faixas e alíquotas para os mais ricos no Imposto sobre a Renda da Pessoas Físicas (IRPF) e o restabelecimento da tributação de lucros e dividendos de forma progressiva, além de maior combate à sonegação fiscal.

Sobre o assunto, Góes concorda com a tributação progressiva de lucros e dividendos, "mas para viabilizar isso sem prejudicar o crescimento e investimento é necessário que ela seja concomitante a uma redução nos impostos sobre pessoa jurídica".

A Oxfam também detectou aumento da proporção da renda média de homens e a população branca em relação a mulheres e à população negra, embora esses movimentos não tenham sido grandes o suficiente para alterar o Gini.

A renda das mulheres em relação aos homens registrou o primeiro recuo em 23 anos, segundo os números do Pnad compilados pelo relatório. No ano passado, elas ganharam 70% do rendimento masculino, contra 72% em 2016.

Com relação à disparidade racial, em 2016, os negros ganhavam 57% dos rendimentos médios de brancos; no ano passado, esse percentual caiu para 53%.

segunda-feira, 12 de novembro de 2018

Retorno do nacionalismo marca os cem anos do fim da Primeira Guerra Mundial

Por Marc Bassets (El País/ O Globo, 11/11/2018)

Juntos em Paris, um século depois, mas com visões diferentes. Os líderes das nações que participaram da Primeira Guerra Mundial se reuniram neste fim de semana para celebrar o fim do conflito. É um momento sui generis, marcado pelo regresso do nacionalismo e pela crise das instituições multilaterais.

“Sou um nacionalista”, afirmou dias atrás o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. “A Europa enfrenta um risco: desmembrar-se por causa da lepra nacionalista e ser superada por potências estrangeiras”, replicou o presidente francês, Emmanuel Macron, que tenta se afirmar na Europa e no mundo como a resistência ante o avanço do nacionalismo e do unilateralismo.

As comparações entre a época atual e o período entre as guerras mundiais proliferam. Catastrofismo gratuito ou recordação útil das lições da História? O nacionalismo é forçosamente “uma lepra”, como diz Macron? Ou existe um nacionalismo bom.

Há 100 anos, em 11 de novembro de 1918, franceses e alemães assinaram o armistício que suspendia as hostilidades. A guerra iniciada em 1914 deixou milhões de mortos e redesenhou o mapa. Deu ensejo a organizações internacionais como a fracassada Sociedade das Nações, antecessora da ONU, mas também a condições férreas para os derrotados, que contribuíram para o revanchismo prévio à guerra seguinte.

Hoje o mundo é radicalmente diferente. Mais democrático e estável. Menos violento. E com instituições internacionais que compelem os países a resolver na mesa de negociações o que há um século se resolvia na base do canhão. Mas também é um mundo onde a arquitetura global instaurada no final da Segunda Guerra Mundial mostra fissuras. 

Trump irrita os aliados e ameaça abandoná-los. A China e a Rússia se reafirmam. O prestígio das democracias progressistas diminui. Do Brasil à Itália, do Brexit a Trump, avança um novo nacionalismo populista. A União Europeia se divide e a OTAN é posta em xeque. Tempos de retirada.

"As razões do fracasso da paz em 1918 constituem uma advertência para o mundo e 2018", disse ao EL PAÍS o cientista político francês Dominique Moïsi, conselheiro especial do Instituto Montaigne e autor, entre outros livros, de A Geopolítica das Emoções.

"Em 1918, vimos que o armistício não trazia a paz. Por duas razões importantes. Primeiro, porque os vencedores foram rígidos demais em suas exigências com a Alemanha. E também porque a organização internacional que foi construída, a Sociedade das Nações, era fraca demais. Ou seja: uma mistura de nacionalismo muito forte e internacionalismo muito fraco. Hoje reencontramos essa combinação".

Palavras como povo, identidade e nação voltam ao primeiro plano. "Há uma crise de identidade ligada à globalização", explica Moïsi. "Quanto mais global, interdependente e transparente é o mundo, mais os cidadãos embarcam numa busca identitária, enfatizando o culto à diferença, embora essa diferença seja cada vez mais marginal. E aí vemos o efeito de uma mundialização, que para muitos tem sido infeliz".

Nacionalismo é uma palavra ambígua, de difícil definição, como populismo. “Muitas pessoas pensam no nacionalismo como uma ideologia coesiva, mas ele aparece em várias formas, incluindo suas versões de esquerda e direita”, adverte, por e-mail, o acadêmico britânico Roger Eatwell, coator com Matthew Goodwin de "National Populism: The Revolt Against Liberal Democracy" (nacional-populismo: a rebelião contra a democracia liberal), publicado recentemente em inglês. 

“Uma distinção comum é entre o nacionalismo étnico, que é fechado, e o nacionalismo cívico, que está vinculado a uma série de valores políticos.” Alguns aplicam palavras diferentes a essas distinções: nacionalismo e patriotismo.

O próprio Macron é herdeiro de uma tradição francesa que poderia ser chamada de nacionalista: a do gaullismo, inspirada pelo general De Gaulle, que quis situar a França como potência capaz de mediar entre os grandes poderes globais. A reunião de Paris – Macron e França, por algumas horas, no centro do tabuleiro – é gaullismo puro. Nacionalismo? Ele, europeísta convicto, diria que não. Patriotismo, talvez.

Há alguns dias, Macron disse numa entrevista ao jornal "Ouest-France" que via paralelismos entre o mundo atual — “uma Europa dividida pelos medos, a retirada nacionalista, as consequências da crise econômica” — e o dos anos posteriores ao armistício de 1918.

Eatwell não vê o paralelismo entre o nacionalismo que levou à Segunda Guerra Mundial e os movimentos atuais, que poderiam ser chamados de nacional-populistas ou nacionalistas de direita. “Os nacionais-populistas não são descaradamente antidemocratas, e menos ainda fascistas”, diz. “Em alguns aspectos, propõem uma ameaça à democracia. Por exemplo, reforçam um crescente distanciamento, inclusive uma cólera, contra as elites políticas e os acadêmicos. 

Sua oposição a uma nova imigração, inclusive quando se argumenta razoavelmente em termos da necessidade de pessoas formadas para um país, tende a alimentar a xenofobia. Por outro lado, ressaltam problemas no funcionamento da democracia liberal: seu elitismo, sua agenda politicamente correta e a desatenção às classes trabalhadoras.”

O novo nacionalismo é com frequência antielitista e antiprogressista. Seus inimigos são os que eles chamam de globalistas: os novos cosmopolitas. "O nacionalismo apresenta-se como antídoto à globalização. É como Trump o apresenta, dizendo: ´Sou contra a globalização e sou nacionalista`", explica por telefone François Heisbourg, presidente do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos, com sede em Londres, e conselheiro especial da Fundação para a Pesquisa Estratégica, em Paris.  

"À sua maneira, rústica e simples, (Trump) resume bem a essência desses nacionalismos, que é a rejeição das identidades múltiplas, da complexidade, da livre circulação de pessoas e bens".

Heisbourg considera inadequada a comparação que Macron faz entre o mundo atual e o do período entre as guerras. Para ele, o nacionalismo atual lembra mais o que houve no século XIX e início do século XX, antes da I Guerra Mundial, do que o dos anos trinta. Heisbourg vê o paralelismo com os anos 1930 em outro lugar.

"Não vejo movimentos fascistas potentes", diz. "Hoje esse movimento ideológico, totalitário, violento e organizado é o Daesh (sigla do Estado Islâmico, em árabe), os jihadistas".

sábado, 25 de agosto de 2018

A John McCain, meus respeitos

Por Murillo Victorazzo

Jonh McCain foi contra a nomeação da indicada por Trump para a direção da CIA por ela, acusada de conveniência com a tortura no passado, negar-se a reconhecer a prática como imoral. Torturado por vietnamitas, ele sabia o quão abjeta esta é. O mesmo Trump, aliás, que o ridicularizou por sua prisão na guerra, afirmando que heróis não são capturados.

Antes de morrer hoje, McCain deixou pedido para o democrata Obama, adversário nas civilizadas e históricas eleições de 2008, ser orador em seu velório - e que o atual presidente não compareça. Era uma das vozes mais antagônicas a Trump entre os republicanos. Sabia que ele não representava os tradicionais ideais do partido.

Bons tempos em que as vozes à direita eram McCain e não Trump ou Bolsonaro, aquele que por aqui faz apologia a torturador, debocha de mulher grávida torturada com cobra nas partes íntimas, como a jornalista Miriam Leitão e, por exemplo, pensa que carta branca para policial matar é política de segurança pública.

McCain, o republicano que a gente respeitava. Descanse em paz.

segunda-feira, 13 de agosto de 2018

Problema do Estado não é tamanho, mas injustiça, afirma economista

Por Marcos Pinto* (Folha de SP, 13/7/2018)

O debate econômico brasileiro nos últimos anos tem tido como foco o tamanho do Estado. Porém, o principal problema do Estado brasileiro não é seu tamanho, mas a forma como ele contribui para produzir e reproduzir a desigualdade social.

Embora não possa ser considerado pequeno, nosso Estado não destoa do que se vê em países desenvolvidos. Pagamos em impostos e tributos em geral o equivalente a cerca de 33% do PIB, percentual inferior ao da média da OCDE (organização que reúne as nações mais avançadas). Os gastos do governo, que chegam perto de 40% do PIB, também estão em linha com os países ricos.

Fora da curva, isto sim, é a desigualdade brasileira. Segundo o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, somos o décimo país mais desigual do mundo. Estima-se que o grupo dos 5% mais ricos no Brasil fique com uma fatia da renda igual à de todo o resto da população. Pior, apenas 6 pessoas concentram juntas a mesma riqueza que os 100 milhões de brasileiros mais pobres.

Infelizmente, o Estado brasileiro contribui muito para isso. Estudos demonstram, por exemplo, que os tributos cobrados dos mais pobres na prática eliminam o efeito positivo das transferências de renda que eles recebem, como o Bolsa Família.

Por que isso ocorre? Primeiramente, porque o sistema tributário do Brasil é regressivo: quem tem mais paga menos. Os 10% mais pobres gastam cerca de 30% da renda com tributos, enquanto os 10% mais ricos gastam 21%. Em outras palavras, os mais pobres comprometem uma fatia quase 50% maior de sua renda com tributos do que os mais ricos.

A principal causa dessa anomalia é a alta tributação do consumo. Os mais pobres gastam tudo o que ganham com serviços e produtos básicos, como alimentação e transporte, nos quais estão embutidos impostos elevados. Os mais ricos conseguem poupar parte substancial dos rendimentos, o que faz com que os tributos sobre consumo representem uma fatia menor do que ganham.

Em tese, essa injustiça deveria ser corrigida por meio de impostos diretos sobre o patrimônio e a renda. No Brasil, porém, esses tributos representam menos de 25% da arrecadação, enquanto os tributos sobre consumo chegam a 50%.

Além disso, embora os mais pobres tenham isenção de Imposto de Renda, os muito ricos pagam proporcionalmente menos do que a classe média. As alíquotas máximas são baixas no Brasil. O teto de 27,5% é muito inferior aos 45% que incidem no Reino Unido, 50% em alguns estados norte-americanos ou 60% da Suécia. Em relação à herança, a diferença é ainda maior: máximo de 8% no Brasil contra até 40% nos EUA.

Os brasileiros mais ricos também têm inúmeras vantagens fiscais. Uma delas é a isenção dos dividendos distribuídos pelas empresas, com o que o Imposto de Renda pago por empresários é relativamente baixo. No Brasil, a tributação do lucro da pessoa jurídica somada à dos dividendos é de 34%; na OCDE, a média é 43%.

Por sua vez, os rendimentos das aplicações financeiras, quando não são isentos, têm alíquotas de no máximo 22,5%, um percentual inferior ao que incide sobre os rendimentos mais elevados do trabalho e abaixo da média nos países desenvolvidos.

Tão injustos quanto os impostos são os gastos com o custeio da máquina pública, altíssimos devido aos elevados salários do funcionalismo. Um servidor ganha, em média, 70% mais do que um trabalhador da iniciativa privada. No caso de servidores federais civis, a desigualdade é ainda mais gritante: ganham cinco vezes o que se recebe no setor privado.

É verdade que diversos serviços públicos contribuem para reduzir a desigualdade, como saúde e educação. Porém, existem injustiças mesmo aí. O principal exemplo está nas universidades públicas: são boas, mas custam caro e têm vagas ocupadas majoritariamente por alunos pertencentes aos estratos mais ricos.

Quando analisamos as transferências diretas de renda, percebemos que o Bolsa Família é uma pequena e honrosa exceção. Custa relativamente pouco (menos de 0,5% do PIB) e seus recursos vão, em sua maioria, para os 20% mais pobres.

Grande parte dos recursos transferidos pelo Estado, no entanto, vai para os mais ricos. Os generosos subsídios concedidos aos empresários são um bom exemplo. O Banco Mundial estima que o Brasil tenha gasto mais de 4% do PIB dessa forma em 2015. Ou seja: em um ano, o país repassou a empresários o equivalente a oito programas Bolsa Família.

Outra injustiça está nas aposentadorias. No Brasil, elas são subsidiadas pelo Estado, pois seu valor médio supera a contribuição média dos trabalhadores. Ocorre que quase a metade dessa subvenção vai para os 40% mais ricos, enquanto somente 4% vão para os 20% mais pobres.

Por fim, não se pode esquecer dos juros da dívida pública, cujo custo anual, em termos reais, chega a 4% do PIB. Tais gastos —por coincidência, também equivalentes a oito programas Bolsa Família— agravam ainda mais a desigualdade, pois os credores domésticos dessa dívida são, evidentemente, os mais ricos.

O resultado de todas essas injustiças é uma enorme concentração de renda —e, infelizmente, elas têm sido negligenciadas no debate político. São apresentadas propostas de reforma fiscal para reduzir o tamanho do Estado, e não para torná-lo mais justo. Os projetos de reforma tributária, por sua vez, procuram tornar o sistema mais eficiente, sem atentar para seu impacto sobre a distribuição de renda.

Controlar gastos e tributar de maneira mais eficiente são objetivos importantes, mas não mais do que combater a pobreza e a desigualdade. Precisamos de uma reforma no padrão de arrecadação e despesas do Estado que elimine injustiças e melhore a distribuição de renda.

Para tanto, a primeira iniciativa é reduzir o peso dos impostos sobre consumo. A fim de que as contas públicas não entrem em colapso, essa medida deve ser compensada com a elevação de tributos sobre a renda e o patrimônio dos mais ricos, sem aumentar a carga tributaria.

Não seria absurdo criar uma nova faixa do Imposto de Renda —de 35%— aplicável a altíssimos rendimentos, nem duplicar —para 16%— a alíquota máxima do imposto sobre herança para grandes fortunas.

Ademais, o Brasil deveria voltar a tributar dividendos. Uma alíquota de 10% colocaria a carga de tributos sobre lucros em linha com a prevalecente em países desenvolvidos. Tal medida permitiria arrecadar o equivalente a um Bolsa Família por ano.

Outras iniciativas importantes seriam elevar as alíquotas de impostos sobre rendimentos de aplicações financeiras e acabar com os benefícios tributários existentes para diversos tipos de investimento, como fundos exclusivos fechados, títulos imobiliários e títulos do agronegócio.

Do ponto de vista do custeio da máquina, o Brasil deveria reduzir, gradualmente, a vantagem remuneratória do funcionalismo em relação ao setor privado. Somente na esfera federal, a eliminação do prêmio salarial dos servidores geraria economia de 1,8% do PIB por ano.

No que tange às transferências de renda, é urgente reduzir os subsídios às empresas. Se eles caíssem pela metade, por exemplo, o governo poderia quadruplicar o Bolsa Família, aumentando tanto sua abrangência quanto o valor dos benefícios.

Aprovar a reforma da Previdência em tramitação no Congresso também seria um avanço enorme. Mas é preciso ir além e reavaliar os privilégios que não serão atacados pela proposta em discussão, sobretudo os relacionados ao regime de aposentadoria de parte do funcionalismo.

É também indispensável reduzir gastos com juros da dívida pública. Isso não se faz por simples decisão política, como já se imaginou no passado. Porém, o país não pode ficar parado enquanto o Estado transfere aos mais ricos mais de 10% do que arrecada. Para diminuir os juros de maneira perene, é preciso praticar uma política fiscal consistente e responsável.

A redução da desigualdade, contudo, não virá apenas dos cortes nos gastos. Para melhorar a distribuição de renda no país, é preciso redirecionar a atuação do Estado para os mais pobres, de preferência por meio de transferências diretas de renda que sejam bem focadas e pouco vulneráveis a desvios.

Medidas desse tipo deveriam estar no centro do debate político. De nada adianta reduzir o tamanho do Estado se ele continuar concentrando renda e ignorando a pobreza em que vivem milhões de brasileiros. Nenhuma agenda de reformas estará completa enquanto essas injustiças persistirem.

*Marcos Pinto é mestre em direito pela Universidade de Yale, mestre em economia pela FGV-RJ e doutor em direito pela USP, é sócio da Gávea Investimentos. Foi diretor da Comissão de Valores Mobiliários de 2007 a 2010.

terça-feira, 7 de agosto de 2018

A seita estrelada

Por Murillo Victorazzo

Por 13 anos, o PT governou com boa parte do Centrão, sendo a compra do grupo a razão do mensalão. Agora que eles se bandearam para Geraldo Alckimin, não prestam, são o "atraso". Além de muito amiga sua, Kátia Abreu foi ministra da Agricultura de Dilma, que, ademais, em sua base contava com vários "Sarneys" - sem contar o apoio de Blairo Maggi a Lula. Agora que é vice de Ciro Gomes ( "não confiável"), petistas ressaltam suas fazendas com trabalho escravo e votos contra o meio ambiente.

 Ao mesmo tempo. pejorativamente chamam Marina Silva de "fadinha da floresta" ou neoliberal "fundamentalista ambiental". Marina, que fundou o partido e, ministra de Lula, foi por ele preterida como gestora do Plano da Amazônia Sustentável (PAS) em favor de Mangabeira Unger, confesso "ignorante" sobre a região, coautor de um livro com Ciro e hoje principal conselheiro da campanha pedetista.

Ou seja, para o PT, se está a seu reboque, tudo vale; se não está, é de direita. Tudo o que o Deus Lula disser é Sagrada Escritura, e, portanto, seus "pragmatismos" são os únicos abençoados, logo, legítimos, perdoados. É ou não é uma seita? Que desperdício...

segunda-feira, 30 de julho de 2018

Bolsonaro e Pinochet: mais uma evidência da hipocrisia do "mito"

Por Murillo Victorazzo

Sem mencionar seus votos contrários ao Plano Real e às reformas de FHC e para justificar sua repentina nova roupagem neoliberal ao mesmo tempo em que defende o projeto econômico estatizante - burocratizante, fechado, endividador e concentrador de renda - da ditadura militar, Bolsonaro argumenta que, “naquela época”, não havia opções. No "Roda Viva" de hoje, deu, como sempre, exemplo falaciosamente reducionista: "A iniciativa privada não construiria Itaipu".

Mas essa mesma ditadura, em seu primeiros anos de Castelo Branco, namorou com propostas liberais de Roberto Campos. E, ao nosso lado, Pinochet, enquanto comandava um regime que executou três mil pessoas, liberalizava radicalmente a economia do Chile, privatizando até a Previdência. Ou seja, restrição contextual não foi a razão fundamental daquelas políticas; foi sim escolha ideológica dos generais brasileiros - basta recordar a gritaria dos clubes Militar e Naval no processo de privatização da Vale e Telebrás na década de 90.

Esse mesmo Pinochet que ele admira a ponto de pedir ao Itamaraty para enviar, em 2006, mensagem oficial elogiosa ao ditador morto, também por seu "legado" econômico. Esse mesmo ditador preso por genocídio, processado por corrupção e sonegação (com fortunas no exterior descobertas) e suspeito de tráfico de drogas após denúncia de ex-assessor meses antes de seu falecimento. (https://theintercept.com/2018/07/30/telegrama-inedito-bolsonaro-pediu-a-embaixada-elogio-a-ditador-acusado-de-trafico/)

Logo Bolsonaro, que acusa outros de terem bandidos de estimação. O "mito", entre outros defeitos, é um poço de contradição e hipocrisia.

quinta-feira, 19 de julho de 2018

O general adhemarista e o mito de barro

Por Murillo Victorazzo

PRP é aquela legenda nanica recriada por Ademar de Barros Filho nos anos 90 a fim de recuperar o “legado” do pai, o falecido ex-governador paulista famoso pelo lema “rouba mas faz”, criado por seus eleitores, e símbolo do populismo da década de 60. É por ela que o famigerado Garotinho tentará voltar ao Palácio Guanabara este ano. É a ela que o general Heleno, o “super-herói” contra a “corrupção” e os “comunas”, se filiara.

Fracassada a tentativa de ser vice de Bostonauro, o general diz agora que vai se desfiliar porque não tinha meta de ser candidato a nada nem tem relação afetiva com o partido - por que então entrou nele não sei. E o mito de barro, após namorar o mensaleiro PR do Waldemar, fica também sem a sigla adhemarista.

Mas claro que os casamentos não rolaram porque Bostonauro é um ético outsider. Não foi porque tentou chupar tempo de TV sem entregar espaço na chapa de deputados, troca legítima, sem nada de imoral, em coligações. É muita ironia em um caso apenas. Personalismo, autoritarismo e hipocrisia: são nos detalhes que se revelam personalidades. 

Nada como uma eleição para as máscaras cairem tão rápido - menos para seus robotizados e fanáticos simpatizantes.

quinta-feira, 26 de abril de 2018

O desembargador explicitamente militante

Por Murillo Victorazzo

Nesses dias em que são aventadas todos os tipos de relações entre juízes (de todas as instâncias) e grupos políticos, algumas bem esdrúxulas, incoerentes ou sem base factual, um exemplo se destaca por ser de transparência estarrecedora, sem risco de ser leviano.

Segundo a "Folha de SP" de anteontem, ao dar seu voto vencido no julgamento do ex-governador mineiro Eduardo Azeredo (PSDB), o desembargador do TJ-MG Eduardo Machado chamou o réu de "nosso governador", um "homem de bem" que "devemos preservar a qualquer custo"; alguém que não deve ser jogado "nessa lama hoje nós temos aqui de que todo político não presta".

Machado afirmou não acreditar que Azeredo estivesse envolvido no caso, pois “o que ele precisava ele tinha: votos.” "Foi um plano mirabolante para elegê-lo e conseguir uma vaga de secretário. Se teve participação, foi de omissão. De confiar em quem não podia confiar", garantiu, não sem antes lamentar: "Estamos sepultando o pouco do que ainda nos resta do conceito e reserva dos políticos mineiros. Por dever de ofício, participo de um velório, mas não carrego o caixão."

Ex-advogado, o desembargador foi alçado ao TJ em 2009, na gestão do também tucano Aécio Neves. Dos seis selecionados em uma primeira lista elaborada pela OAB, foi o menos votado, revelou o jornal. Sem um pingo de constrangimento, ainda apontou o dedo para os demais togados ao afirmar que "muitos ali" teriam votado no tucano. E daí?

Palavras, em tom e conteúdo, esperadas de ardorosos militantes partidários em conversas de botequim, redes sociais e comícios. Não em plenário de tribunal. Juiz não acusa nem defende; julga sob critérios técnicos, ainda que com eventual viés político. Elementar. Nem Tóffoli, sobre petistas, ou Gilmar Mendes, para emedebistas e tucanos, chegariam a tanto. Pior, nada acontecerá com ele. É de cair o c... da bunda.

sábado, 21 de abril de 2018

Júlio César e Flamengo: um eterno caso de amor correspondido

Por Murillo Victorazzo

Um time insosso, que acumula fracassos e frustrações há mais de um ano - a mais recente na última quarta-feira, leva mais de 50 mil pessoas ao Maracanã em um jogo contra o medíocre América-MG. Por quê?

Simples: a Nação Rubro-Negra ama quem a ama, quem a respeita e principalmente quem sabe ou soube traduzir essas palavras principalmente em campo - nos bons e maus momentos - mas fora também: o cara largou a mulher em Lisboa pra jogar contra Boa Vista em Bacaxá, num Carioquinha, só para encerrar a carreira no seu time de coração!

Pouco importa o que ele fez com a camisa do Brasil - ele poderia ter tido culpa nos sete gols da Alemanha. Nada importa o que torcedores dos outros times pensam dele. Pouco importa seus títulos europeu e mundial pela Inter de Milão em 2010, quando foi eleito o melhor goleiro do mundo, ainda que dê orgulho uma "cria da Gávea" lá fazer sucesso. Importa é sua história no clube de maior torcida do país mais vitorioso do mundo no futebol e sua relação de apaixonada reverência recíproca com ela.

O choro do sempre discreto Juan pela despedida de seu amigo desde as categorias de base resume tudo. É muito flamenguismo raiz, legítimo, sincero, numa cena só. Valeu, Julio César!!!! Valeu muito!

O general ideologizado que reclama de ideologia

Por Murillo Victorazzo

O gosto por usar redes sociais já se tornou marca do comandante do Exército, general Villas Bôas. Recentemente causou apreensão com seus comentários sobre impunidade somente às vésperas do julgamento do habeas corpus de Lula no STF. O silêncio imperou quando outros escaparam da Justiça.

Agora, Villas Bôas resolveu criticar a suposta "ideologização dos problemas nacionais", como transcrito pelo excelente escritor Laurentino Gomes em seu twitter. O que afinal o general quis dizer com tal frase? 

Não só se pode como se deve criticar visões ideológicas extremadas, que beiram dogmas, sobre determinados assuntos, à esquerda e à direita. Sim, muitos resvalam neste erro, que simplifica o que é complexo. Mas certamente não foi este o sentido da declaração.

Para alguns setores da direita, algo ideologizado é sinônimo de “esquerdismo.” No mau sentido. É uma maneira subliminar de afirmar que sua visão de mundo é a racional, a pragmática, logo isenta e certa. Todo o resto seriam pontos fora da curva da lógica; devaneios, paixões, de fanáticos, utópicos ou de quem deseja destruir a “ordem”e a “família”. Desonestidade intelectual em forma de falácia

General, há muitos ideologizados ao seu redor. Quem, por exemplo, afirma que 1964 foi uma “revolução” e não golpe de estado, a partir da qual se instalou não uma ditadura mas um “regime militar” em que se combateu apenas “terroristas marxistas”, ou vê os governos petistas como comunistas, está radicalmente ideologizado (para não dizer adestrado).

País nenhum do mundo pensa sem debate de IDEIAS, por pior que elas sejam. É bem diferente de lamentar polarizações reducionistas e sem bases conceituais corretas. É antes de tudo questão de semântica.