sábado, 24 de agosto de 2019

Refém da própria imagem

Por Murillo Victorazzo

Há 30 anos, começando pelo direitista liberal Collor, passando pelo tucano FHC, os petistas Lula e Dilma e indo até Temer, o Brasil percebeu que manter a postura reativa negacionista da ditadura militar em um área em que tínhamos simultaneamente "calcanhares de aquiles" e fortíssimos ativos, como o meio ambiente, era tiro no pé.

Com nuances entre eles e apesar de momentos de empecilhos políticos internos, passamos a não só participar como moldar as regulamentações internacionais. Sem "hard power", era, por nossa riquíssima biodiversidade, dos poucos "soft powers" nosso. Nenhum debate ambiental em fóruns passou a ser feito sem o nosso protagonismo.

Nessa questão nos tornamos "global players". Assim como no agronegócio, que, ao mesmo tempo, também tornava-se um dos mais competitivos do mundo. Na primeira década deste século, combinamos crescimento em produção agrícola com queda do desmatamento. O selo ambiental brasileiro tinha credibilidade, embora longe de sermos exemplos perfeitos de sustentabilidade em todos nossos biomas.

De quarto lugar no início da década de 90, passamos a décimo maior emissor de gases do efeito estufa. A prova de que desenvolvimento é tecnologia e uso coordenado de terra, não necessariamente mais quilômetro quadrado ocupado.

A melhor maneira de se defender era mostrar, com práticas e normas internas e externas, que integrávamos um comunidade internacional cuja pauta ambiental, seja em países governados à esquerda ou à direita, tornara-se inevitavelmente prioridade. Em um mundo globalizado, há assuntos que, queiram ou não, fogem fronteiras.

Enquanto isso, Bolsonaro fazia do seu mandato parlamentar e candidatura a resistência do reacionarismo. Acusava os outros do que ele era: viés ideológico. Chamava fiscais do IBAMA e ICMBio de "xiitas", gritava contra reservas indígenas e ambientais. Chegou ao absurdo de ameaçar sair do Tratado de Paris, caso eleito - recuou, depois, por pressão da parte mais internacionalizada dos aliados ruralistas.

Como presidente, reforçou o discurso, quis a ruptura, estimulou o desmonte de agências. Penalidades ambientais (que caíram em proporção inversa ao número de queimadas) foram rotuladas de "indústria da multa". Dados científicos foram negados. Cientistas foram levianamente acusados.

Trocaram-se funcionários de carreira por policiais nas chefias de órgãos. Justificava como fim de "aparelhamento" quando ele sim aparelhava. Demonizou ONGs e fundos de cooperação externa. Seu filho senador, aquele amigo do Queiróz, propôs lei que acaba com a reserva legal nas propriedades rurais, um "disparate", segundo presidente de associação de... agronegócio!!

Acuado, nos últimos dias, passou seu Itamaraty a difundir que somos um país com maioria de área florestal e forte legislação na área. Se somos, e é verdade, se deve ao que ele passou a vida inteira combatendo. (aliás, não por coincidência, lembrem-se do memorando interno do Exército que o acusava de garimpagem ilegal)

Agora, pouco importa afirmar que estão exagerando. O presidente da República é refém de sua retórica, de seus atos passados recentes e remotos. Só lhe resta se vitimizar, apelando a teorias soberanistas, muitas vezes paranoicas, tradicionais da caserna. Ou repetir ladainhas sobre imprensa e "esquerda". Não cola.

Números semelhantes anos atrás ocorreram sim, mas estruturas haviam sido estabelecidas para evitar a piora permanente. O patamar, inclusive de exigência, mudara. A reversão da curva de desmatamento e queimadas não começou em janeiro, mas os números preliminares indicam alto acréscimo percentual desde então.

Há preocupações legítimas e genuínas com a Amazônia, que se não é o “pulmão do mundo”, tem, por seu tamanho, rios e biodiversidade, papel expressivo que vai além da troca de gases que envolve o efeito estufa. O que não significa ignorar o interesse de setores agrícolas protecionistas europeus em se aproveitar do caso para prejudicar concorrente.

Por seu obscurantismo, Bolsonaro deu a deixa, a desculpa, que eles tanto gostariam. Tudo o que havíamos conseguido inverter, minimizar, com políticas proativas. Imagem é tudo, já garantia aquele velho comercial.