segunda-feira, 27 de abril de 2015

Ogum Iê! Mas o Estado é laico

Por Murillo Victorazzo

Há traços culturais que não há como serem apagados. Para o azar dos que acham que identidades são melhores ou piores, e não apenas diferentes, dos preconceituosos, dos fundamentalistas, dos eurocêntricos, o sincretismo religioso brasileiro é parte indissociável nossa, relevante até para os céticos e agnósticos. Graças a Deus, Olorum, Alá e outras divindades.

Dia 23 de abril é dia de São Jorge, santo guerreiro. Ou Ogum (olo = senhor, gum = guerra), orixá capaz de abrir caminhos nas nossas vidas. Sendo um orixá/santo tão popular, especialmente ligado ao samba, não poderia deixar de aqui ser saudado. Nada, porém, que justifique ser a data feriado. Afinal, o Estado é (ou deveria ser) laico.

Embora a maioria dos brasileiros seja católica, o país, manda nossa Constituição, não tem religião oficial. Em outras palavras, as manifestações religiosas têm total liberdade, mas devem vir da sociedade espontaneamente, em suas igrejas, centros, mesquitas, sinagogas, ruas e praças - sem o dedo do Estado.

Não se pode exigir que evangélicos, judeus, ateus, muçulmanos, hindus, embora minoritários, se vejam obrigados a um calendário de cunho religioso. Por que terem que fechar seu comércio e dar folga para seus funcionários cristãos, por exemplo? Ou seus filhos não irem às aulas por algo que não creem? Cerca de 25% da população são evangélicos. Por que devem se submeter a feriados que celebram o que não acreditam, como santos?

Pela mesma lógica, nenhuma repartição estatal deveria ter em suas salas crucifixos ou qualquer outro símbolo religioso à mostra. Entra neste cenário também a proibição do ensino religioso em escolas públicas, abrindo-se exceção talvez para aulas não proselitistas, com explicações sobre a história e visão das diversas crenças. Debate, aliás, presente no Judiciário: está prestes a ser julgado pelo STF uma Adin (ação direta de inconstitucionalidade), impetrada pelo Procuradoria-geral da República, que vai ao encontro disto.

Na laicidade ideal, feriados religiosos arraigados aos brasileiros deveriam deixar de sê-lo. É o caso da Sexta-Feira Santa, Corpus Christi, 12 de outubro (dia da padroeira do país) e até Natal. Pode-se, contudo, imaginar a reação da Igreja católica e sua massa de fiéis mais fervorosa. A favor delas, o argumento, com algum grau de sentido, de que mais do que religiosas tais datas ganharam carga histórica- cultural.

Foi com a Constituição de 1891 que a separação entre Igreja e Estado se deu juridicamente. Levando-se em conta que antes, por 400 anos, o Catolicismo foi a religião oficial do país, não havendo em grande parte desse período nem liberdade de culto para as demais, 124 anos, ao contrário do que parece, não é muito tempo. A longa tradição, querendo ou não, ainda pesa.

É provável ainda que mesmo as lideranças evangélicas se incomodassem com demonstração de laicidade tão sólida. Se usam a sua numerosa e barulhenta bancada no Congresso para, com apoio, discreto ou não, de parlamentares ligados à Igreja Católica, tentar impor visões religiosas sobre direitos sociais e civis, tal perda de força política da principal entidade religiosa do país seria sinal de que seus objetivos estariam mais distantes. Quanto mais secular o Estado brasileiro ficar, mais fracos se tornarão - embora o que se tem visto no Parlamento atual seja infelizmente a relação inversa.

O Estado laico é uma conquista dos brasileiros. Um pré-requisito essencial para qualquer democracia. Um antídoto contra fundamentalismos, teocracias. Em um país como o Brasil, ganha importância ainda maior, pois o sincretismo religioso anda de mãos dadas com a tolerância religiosa, e ambos só são garantidos, sem risco de retrocesso, quando o Estado não influi a favor ou contra crença alguma. Seja tanto não impondo feriados como não sendo tíbio no combate a perseguições de fiéis e religiosos a outras crenças e minorias.

"Se a sociedade quisesse mudar essas datas, deixando de ser um feriado obrigatório para todas as religiões, isso deveria ser feito pelo Congresso Nacional ou pelo Supremo Tribunal Federal, mas não há espaço político para isso", afirma, em entrevista ao portal Terra, o  advogado Gilberto Garcia, especialista em Direito religioso, autor do livro O Novo Código Civil e as Igrejas.

Nada, porém, que nos impeça de sempre enaltecer, rezar e comemorar: Ogum Iê!! "É quem dá confiança pra uma criança virar um leão".

segunda-feira, 13 de abril de 2015

O multiculturalismo russo de Putin

Por Anna Alekseyeva*

Muito tem sido feito nos últimos anos na estreita aliança entre Putin e a Igreja Ortodoxa Russa (ROC). Com acusações de corrupção, lavagem de dinheiro e um agora infame remendo de photoshop na imagem da igreja, poucos negariam que esta parceria é mais uma conveniência política do que piedade genuína.

Mas, enquanto há um consenso ideológico entre a igreja russa e o Estado, não necessariamente isto se reflete em doutrina ecumênica. O ponto central em que convergem Putin e a igreja é a rejeição ao "modo liberal de civilização", como o Patriarca Kirill escreve em seu manifesto "Liberdade e Responsabilidade": a busca da harmonia, a favor da "cultura nacional e da identidade religiosa".

A Rússia é um vasto e diverso país, e na promoção de um modo de governança enraizada na identidade cultural e religiosa, a ideologia nacionalista de Putin se estende para além da base demográfica cristã ortodoxa russa. Em seus discursos, Putin tem trabalhado para cultivar a imagem de uma Rússia multi-étnica e multi-religiosa. Enquanto a ROC certamente mantém um holofote na arena política, Putin tem feito um esforço retórico para se afastar da igreja, como o defensor da identidade russa, insistindo que a força do país reside em sua diversidade cultural. 

Para acomodar uma identidade nacional multicultural – uma vez que está posicionado na junção de Ásia e Europa,  Putin alçou o Islã e o cristianismo ortodoxo russo aos postos de  religiões central do país. Aproximadamente 20 milhões de muçulmanos vivem na Rússia (cerca de 15% da população), tornando-a a maior população muçulmana na Europa.

Putin não apenas defendeu o Islã como historicamente indígena para a cultura russa como também aderiu a proposição de que o cristianismo ortodoxo está mais próximo do Islã do que do catolicismo. Enquanto protestantes ocidentais evidenciam seus valores liberais através do apoio ao aborto e à homossexualidade, afirma ele, o Islã e a ROC estão atrelados em suas deferências a um sistema de valores tradicionais.

Como uma das quatro religiões tradicionais da Rússia (ao lado do judaísmo e budismo), o Islã obtém status especial. O estado tem prestado apoio a várias instituições islâmicas, incluindo escolas religiosas e um canal de TV islâmica. 

Autoridades religiosas dispostas a cooperar com o Estado, como Talgat Tajuddin, chefe Mufti russo, mantêm relações estreitas com Putin. No passado, o vínculo do Estado com líderes muçulmanos chegou a eclipsar, pelo menos momentaneamente, sua proximidade com o ROC. Quando manifestantes antigoverno reuniram-se na Praça de Bolotnaya, em 2011, Damir Mukhetdinov, chefe-adjunto do Diretório Religioso Muçulmano Russo, condenou-os, enquanto representantes do ROC mantiveram posição mais neutra.

Mas a marca do Islã promovida pela Rússia é firmemente circunscrita. Remontando à política imperial, o Estado trabalhou para dissociar os muçulmanos russos do Islã transnacional, criando uma infra-estrutura doméstica de liderança e administração islâmica. Putin denunciou a importação de práticas islâmicas, como o uso do hijab, argumentando que eles são estranhos ao Islã tradicional russo. Em 2012, alinhou-se a proibição do uso do hijab por meninas nas escolas públicas da região de Stavropol. 

Mais preocupante tem sido a política do governo para o extremismo religioso, que tem causado receios no público pelas ameaças Wahhabi comumente alegadas, frequentemente baseadas em pequenas evidências. Durante a preparação para os Jogos Olímpicos de Sochi, autoridades conduziram fortes incursões em locais de culto muçulmanos em Moscou e São Petersburgo, detendo a centenas de pessoas.

As contraditórias relações do Estado com a comunidade muçulmana russa mais ampla pode ser resumida na política de Putin para o norte do Cáucaso. Lá, a guerra em grande escala, que forneceu a Putin capital político no início de sua Presidência, foi sucedida por subsídios do governo e uma remodelação em massa de Grozny. 

No entanto, apesar destas aflitivas políticas, o governo manteve o compromisso retórico de uma Rússia etnicamente inclusiva, mesmo no contexto da crescente maré de nacionalismo étnico (uma tendência tão freqüentemente observada que se tornou platitude em análises contemporâneas sobre o país). Na sequência de motins étnicos em 2010, no Manezh Square de Moscou e em cidades por toda a Rússia, Putin condenou os rebeldes xenófobos do Norte caucasiano. "Somos todos filhos de um mesmo país", declarou: "Temos uma pátria comum. A Rússia tem sido um Estado multiétnico e multiconfessional". 

Enquanto as palavras de Putin podem ser convertidas em mero simbólismo, sua defesa da diversidade étnica e religiosa é claramente parte de uma agenda doméstica e de política externa.

Na década de 1990, demarcando sua posição liminar entre grandes agrupamentos políticos do mundo, a Rússia trabalhou para desenvolver um papel de mediador entre o mundo muçulmano e o Ocidente. Rússia denunciou as intervenções americanas no Iraque, perseguiu a "two track policy" com o Irã, contribuindo com seu programa nuclear ao mesmo tempo em que mantinha diálogo com Washington e se comprometia com a liderança de Hamas. 

Mais recentemente, em 2009, Medvedev afirmou que a Rússia é "uma parte orgânica" do mundo muçulmano, sentimento reiterado por Putin, que argumentou que "nosso país desenvolve relacionamentos estreitos e multifacetados com os governos do mundo muçulmano". Estas declarações de unidade tem sido corroboradas na defesa da do governo sírio, na qual Putin tem vendido a Rússia como um apóstolo do direito internacional. 

O apelo do governo para a unidade com o mundo muçulmano também ajuda a legitimar a expansão econômica russa para o leste, que começou com o estabelecimento da União Econômica Eurasiática, uma aliança eslavo-turca que incluirá Armênia, Bielorrússia, Cazaquistão, Quirguistão e Rússia. " A integração da Eurásia', argumentou Putin em seu discurso, em 2013, no Valdai Internacional Discussion Club, "é uma oportunidade para todo o espaço pós-soviético tornar-se um centro independente para o desenvolvimento global, em vez de marginalizados na periferia da Europa e Ásia".

No contexto da expansão para o Oeste, também a retórica da inclusão tem desempenhado um papel. No início de seu discurso após a anexação da Criméia, Putin enfatizou que "mistura única" de diferentes culturas e tradições daquela região ia ao encontro da "Rússia como um todo, onde nenhum grupo étnico se perdeu ao longo dos séculos." (Os tártaros da Criméia, que somente recentemente retornaram à região depois da limpeza étnica feita por Stálin contra toda sua população em 1944 talvez tenham sido cético quanto a tais palavras.) 

Contudo, se a geopolítica de Putin posiciona a Rússia como uma nação entre Oriente e Ocidente, quando se trata de valores e morais, a Rússia presidencial é decididamente anti-ocidental.   

Este contraste é baseado não só na distinção afirmada entre as religiões da Rússia e o Cristianismo ocidental, mas também na divergência básica entre uma Rússia religiosa e um Ocidente secular. No mesmo discurso em Valdai, Putin lamenteou que "pessoas em muitos países europeus estão envergonhadas ou medo de falar sobre suas afiliações religiosas. Feriados são abolidos ou mesmo chamados de algo diferente; sua essência é escondida, como é seu fundamento moral". Não tanto na Rússia, onde legislação aprovada em 2013 penalizou a promoção de "propaganda gay" para menores e criminalizou atos que insultam os sentimentos religiosos das pessoas. (apelidados por muitos como lei "Pussy Riot").

E enquanto o secularismo Europeu sufoca o multiculturalismo, diz Putin (ou, pelo menos, estabelece um multiculturalismo "artificial", o que quer que isso signifique), a Rússia preserva uma rica concentração de etnias e línguas inigualável até mesmo na terra dos imigrantes, os Estados Unidos.

Tais alegações de multiculturalismo e multi-confessionalismo podem ser parte da tentativa de Putin de posicionar a Rússia como uma civilização proeminente, restabelecendo o país como um centro de gravidade moral e político. Mas o presidente faz questão de casá-las com afirmações de unidade nacional e patriotismo. 

Tomando cuidado para moderar seu endosso à diversidade étnica, Putin ressaltou que "é claramente impossível identificar-se através  apenas da etnia ou religião". Em vez disso, argumentou que "as pessoas devem desenvolver uma identidade cívica com base em valores compartilhados, uma consciência patriótica, responsabilidade cívica e solidariedade..."

 Para este fim, Putin se referiu com entusiasmo aos muçulmanos soviéticos e outros grupos étnicos que defenderam sua pátria durante a Segunda Guerra Mundial "da fortaleza de Brest a Berlim". Referências às deportações em massa de muitos destes grupos praticas pelo governo soviético durante a guerra não encontraram espaço em seu discurso.

Usando o patriotismo como um dos valores compartilhados por todas as religiões tradicionais da Rússia – juntamente com a justiça, verdade e diligência – Putin tenta conciliar identidade étnica e cívica com uma singular lealdade pró-russa.

Na realidade, porém, a relação entre religião e etnia, por um lado, e assimilação cívica, por outro lado, é muito menos harmoniosa do que a magniloquência de Putin diz. Tomemos, por exemplo, a nova política russa de nacionalidades, de 2012, que tem sido criticada por ambos os lados do corredor. Defensores dos direitos de minoria argumentam que ela prejudica o status e a autonomia das nacionalidades não russas. Grupos nacionalistas russos, entretanto, a condenam por remover as referências ao "ao papel de formador do Estado do povo russo (etnicamente)".

Um compromisso superficial à diversidade pode ter certa importância estratégica na projeção de uma Rússia como contrapartida ressurgente ao Ocidente, capaz de aliar-se à Ásia e ao Oriente Médio. No entanto, esta posição política fará pouco para apaziguar correntes eleitorais internas, como nacionalistas e grupos étnicos não-russos, que vão se sentir traídos pela falta de compromisso do governo em qualquer direção.

Sobre a questão fundamental da identidade nacional russa – a que esfera do mundo pertence o país?, – Putin tem outra vez um meio-termo retórico. Segundo ele, a Rússia não é nem um coisa nem outra: é "uma civilização única ligada ao Leste e Oeste. Em outras palavras, a Rússia não tem que escolher um lado. Parece, no entanto, que há uma contradição nesta teoria. É possível, afinal de contas, ser tanto parte como idiossincraticamente diferente do Ocidente?

*Anna Alekseyeva is doutoranda na Oxford University. Seus estudos focam na ideologia governamental no espaço soviético e pós-soviético.

**traduçao livre do blog

terça-feira, 7 de abril de 2015

Apesar de tudo, jornalista

Por Murillo Victorazzo

Meses atrás, o passaralho passou no Globo. Depois, na Band. Parece que ontem foi no Estadão. Mais do que nunca, ser jornalista no Brasil é para os fortes.

Mas, apesar de tudo, das dificuldades no mercado de trabalho, do pouco reconhecimento salarial, da má qualificação de vários, da distorção de alguns, tanto os chapa-brancas quanto os visceralmente antigovernos, que preferem o proselitismo e o discurso panfletário ao dever de informar e interpretar os fatos, dando a César o que é de César, ainda me orgulho de pertencer à categoria.

Embora aquele jornalismo romântico tenha ficado em algum canto dos corredores da faculdade, não deixei de crer no jornalismo de qualidade, aquele que, como defendia o "mestre" Cláudio Abramo, é "o exercício diário da inteligência e a prática cotidiana do caráter". E se ainda creio nisso, é pelo caráter e competência dos com quem convivo ou convivi nestes anos de profissão.

O maior valor de um país é a liberdade, e não se busca nem se pratica a liberdade sem jornalista. Parabéns, coleguinhas! (P.S: aos que desconhecem o jargão jornalístico, passaralho é demissão em massa)