domingo, 10 de novembro de 2019

O dia seguinte ao Lula Livre

Por Cláudio Couto* (Nexo, 10/11/2019)

Lula foi o sujeito político constante da política brasileira recente, desde sua primeira vitória presidencial, passando pelos anos de sua sucessora e pela eleição que foi impedido de disputar.

Na primeira fase, figurou o protagonismo inescapável do candidato favorito, a princípio, e do presidente popularíssimo, depois. Na segunda fase, manteve-se pela expectativa inicial de que Dilma lhe cederia vez e, posteriormente, de que ele poderia lhe corrigir os rumos. Na terceira fase, permaneceu por ter sido o candidato mesmo quando não era candidato – “Haddad é Lula” –, nada expressando melhor essa imagem do que a icônica foto do ex-prefeito de São Paulo a espreitar por detrás da máscara do ex-presidente. 

Passada a eleição e empossado Bolsonaro, Lula seguiu presente na campanha do “Lula Livre”, que em meio ao esfacelamento da oposição e, em especial, da esquerda, tornou-se o samba de uma nota só. A sorte dessa oposição é que o governo Bolsonaro fez em boa medida seu trabalho, com suas recorrentes e aparentemente congênitas crises internas. 

Uma vez liberto, o ex-presidente ganha força para atuar como a liderança de que hoje a oposição e a esquerda se veem desprovidas. Para isso, conta com o carisma, a trajetória e a habilidade de negociador. Resta saber como efetivamente se comportará nesse papel. Embora já se tenha o “Lula Livre”, falta ainda o “Lula Inocente”.

Embora essa possa ser uma nova palavra de ordem, é insuficiente para conferir à oposição de esquerda a capacidade de efetivamente se construir como alternativa política real – ainda mais se sucumbir ao messianismo ou ao sebastianismo lulistas. 

Se isto ocorrer, o papel do líder tende a ser não apenas diminuído, mas também arriscado: caso não seja inocentado, dará um abraço de afogado em seu partido e, talvez, até noutros setores da esquerda. Já que não poderá ser candidato se permanecer condenado, a insistência em seu nome tende a dificultar a construção de qualquer alternativa eleitoral em tempo hábil.

O retorno de Lula ao proscênio das articulações políticas da oposição contribui também para o reforço da dinâmica polarizadora entre o bolsonarismo e o petismo. Note-se, porém, que polarização reforçada não implica necessariamente em maior radicalização. A polarização política é inerente à disputa política democrática, contrapondo adversários que se mostram como alternativas claras.

Desde o Plano Real até 2014, a polarização nacional se dava entre o PT – hegemonizando a esquerda – e o PSDB – que angariou um apoio que ia da centro-esquerda à direita tradicional. O “Lulinha paz e amor” de 2002 e a chegada ao governo federal puxaram o PT para a centro-esquerda, deslocando o PSDB cada vez mais para direita. 

Contudo, os seguidos escândalos que afetaram não só ao PT, mas ao conjunto da classe política tradicional, abriram espaço para o surgimento de candidaturas antissistema. À centro-esquerda, Marina Silva ameaçou ser essa candidatura antissistema em sua versão moderada e democrática, mas não vingou. Na extrema-direita, Bolsonaro – nutrido também pelo lavajatismo – apresentou-se como a opção radical e venceu. 

Produziu-se assim uma nova polarização, assimétrica, entre a esquerda moderada, social-democrata e maculada por escândalos de corrupção, dominada pelo PT, e a extrema-direita bolsonarista, com seu neofascismo subletrado, caracterizado por religiosidade antissecular, intolerância, teorias conspiratórias, elogio da violência e ultraliberalismo única e exclusivamente econômico.

Com Lula solto e atuante, o bolsonarismo ganha o pretexto para retomar com força o discurso polarizador antipetista, anti-institucional (vejam-se as críticas ao STF) e pretensamente moralizador. Desvia também o foco, ainda que momentaneamente, dos problemas que afligem o governo, o partido presidencial e a família do presidente. 

Para o bolsonarismo, quanto mais acerbo for esse embate, mais produtivo é seu labor de cerrar fileiras entre a parcela da sociedade que lhe apoia e teme tanto o esquerdismo como a corrupção (ao menos se for a corrupção da esquerda). Resta saber como agirá Lula.

Caso se concretize a disposição de sair da prisão mais à esquerda do que entrou, dificultará a construção de pontes com setores da sociedade que se opõem à extrema-direita no governo, mas não compram o pacote petista completo, sobretudo com seus elementos politicamente mais radicais e economicamente mais duvidosos.

Mesmo no campo da própria esquerda partidária, a construção de alianças não convive bem com hegemonismo petista, que tradicionalmente buscou sujeitar os demais partidos ao seu domínio. Cabe observar também que alguns laços parecem rompidos de forma dificilmente reversível, como no caso do PDT de Ciro Gomes – verdade se diga, em boa parte por responsabilidade deste. 

À oposição, que contou muito até agora com a incompetência do governo, falta uma agenda positiva. Essa agenda não equivale à entronização de uma liderança carismática como Lula – isso pode até mesmo ser um impeditivo para o seu sucesso.

Porém, essa liderança tem a capacidade de costurar essa agenda se usar sua força, mas não se impuser como sendo ela pessoalmente a solução – ainda mais tendo em vista os obstáculos legais que ainda remanescem para sua candidatura. 

Também há a possibilidade de Lula entrar na lógica da polarização encruada, tão ao gosto do bolsonarismo. Se isso ocorrer, abre-se espaço para alguém buscar ocupar o centro (o que inclui a centro-direita e a centro-esquerda).

O desdobrar da luta política brasileira no próximo período depende em boa medida das escolhas que fizer Lula no futuro imediato. No passado recente elas não foram das melhores, como ficou claro na opção por Dilma (alguém desprovido do perfil exigido pelo cargo) e na insistência da própria candidatura (quando ela já não era viável). 

Agora, no esplendor de seus 74 anos, Lula precisará mostrar o quanto aprendeu com os erros para não os repetir. E, claro, precisará convencer os seus a aceitar estrategicamente algo menos do que tudo – como fez ao final da greve de 1979, saindo carregado nos braços pelos seus companheiros de sindicato.


*Cláudio Gonçalves Couto é cientista político, professor do Departamento de Gestão Pública da FGV- Easp.

sábado, 2 de novembro de 2019

Conservadorismo para inglês não ver: das origens britânicas ao caso brasileiro

Por Eduardo Wolf* (Estadão,  25/10/2019)

Imagine o leitor a seguinte agenda de reformas políticas em pleno século XIX: uma ampla reforma eleitoral, garantindo, pela primeira vez, o acesso ao direito de voto a milhões de pessoas; uma lei acabando com as execuções públicas; uma reforma educacional modernizadora (ainda que discreta); um programa de moradias públicas substituindo os antigos cortiços; aprovação de legislação para a promoção da saúde pública. 

Se alguém dissesse que essas reformas todas foram introduzidas por um partido nomeadamente Conservador, seguramente isso causaria estranheza em nossos dias. Mais que isso, se o líder desse Partido Conservador fosse um ardoroso defensor da ideia da promoção do bem-estar dos menos favorecidos na sociedade, uma vez que a fragilidade econômica e social de um grande número de pessoas enfraquece qualquer Nação, é certo que essa informação seria recebida com ainda mais surpresa e espanto no Brasil de hoje.

Essas são, contudo, algumas das grandes reformas sociais promovidas pelo governo conservador do grande líder do Partido Tory no século XIX, Benjamin Disraeli. E não, elas não são inovações pontuais que fogem à regra: na história do conservadorismo britânico, algumas marcas de nascença se fizeram permanentes, e merecem uma breve recapitulação para o leitor brasileiro diante do atual espetáculo de horrores que se assina “conservador” em nosso País.

Como bem sintetizou o filósofo Roger Scruton em seu livro Conservadorismo – um convite à grande tradição, o moderno conservadorismo em sua versão britânica é uma “mentalidade distintamente moderna, modelada pelo Iluminismo”, equilibrando o senso de comunidade com as conquistas do individualismo liberal, que é indissociável, importa frisar, de qualquer acepção moderna do conservadorismo. Como devemos entender esse equilíbrio?

Quando recuamos historicamente para melhor compreender os fenômenos políticos dos últimos quatrocentos anos, nesse arco histórico que chamamos de Modernidade, é preciso lembrar que foi na Inglaterra do século XVII que um gradativo processo de mudanças intelectuais, políticas e institucionais deu início ao que chamamos de liberalismo político. Foi nessa época, que surgiram obras tentando explicar como indivíduos livres escolhem uma boa forma de governo, garantindo-lhe soberania, como veremos no Leviatã (1651), de Thomas Hobbes. 

É nessa época, também, que os Dois tratados do governo civil (1689, mas escritos na década de 1660), de John Locke, demarcam ainda mais o que é o tipo de governo que se considera legítimo: aquele que é fruto do consentimento dos cidadãos, que respeita os direitos à vida, à integridade física, à liberdade e à propriedade, e que assume a forma do governo representativo com a devida divisão dos poderes.

Somemos a isso a sua célebre Carta sobre a tolerância (1689), introduzindo a importante tese de que não deve caber aos Estados e aos governos a determinação da religião dos cidadãos (e, diríamos hoje, de uma concepção moral da vida), e teremos um quadro mais completo: nascia na Inglaterra dos anos de 1600 um conjunto de ideias que chamamos de liberalismo político, ideias essas que são os pilares de todas as modernas concepções de democracia.

Depois de Locke, a fronteira entre a posição liberal e a conservadora se tornou uma fronteira interna ao domínio da soberania popular [i.e., do governo representativo constitucional], e entenderemos o conservadorismo moderno como movimento político apenas se percebermos que alguns elementos de individualismo liberal foram programados nele desde o início. Em particular, conservadores e liberais concordavam sobre a necessidade de governo limitado, instituições representativas e separação dos poderes, além de acreditarem nos direitos básicos do cidadão, que deviam ser defendidos contra a administração de cima para baixo do Estado coletivista moderno.

Quando usamos os termos “conservador” e “liberal” para falar de acontecimentos anteriores a essas grandes transformações que se iniciam no século XVII e culminam no século XIX, fazemos isso de modo anacrônico, de modo que só há sentido nessas expressões graças à significação ampla que tais palavras assumem na linguagem comum. 

Porém, depois desse período, esses termos pouco a pouco passarão a ingressar na corrente da linguagem política para designar realidades bem específicas, e a mais importante deles nos deixa esta lição: a grande transformação política da Modernidade é o liberalismo político, pai das democracias representativas constitucionais modernas, e o conservadorismo surgirá “mais como hesitação no interior do liberalismo do que como doutrina e filosofia em si”, como ensina Scruton. Mas que hesitação é essa?

Quando, no turbulento século XVIII, acontecimentos como a Revolução Americana (1776) e a Revolução Francesa (1789) agitam ideias e instituições, as características mais salientes do conservadorismo moderno, à parte tudo aquilo que ele partilha com o chão conceitual do liberalismo político, começa a se delinear. Podemos encontrar na figura de Edmund Burke, o filósofo e estadista irlandês, e em seus posicionamentos diante desses dois marcantes acontecimentos, o momento fundador da moderna tradição conservadora.

Burke, parlamentar pelo partido Whig (Liberal), apoiou a causa da independência americana, vendo nas postulações dos colonos uma justa reivindicação de seus direitos como cidadãos, violados, na verdade, pelo rei da Inglaterra, que os submetera a taxações sem a devida representação política. No entanto, em face da revolução dos filósofos, a outra, a Revolução Francesa, sua atitude não poderia ser mais diferente: em seu Reflexões sobre a Revolução na França (1790), Burke desferiu um profundo ataque às concepções intelectualistas, abstratas e revolucionárias do iluminismo de tipo francês, que optara por fazer terra arrasada do passado, das tradições e das instituições herdadas, criando um “novo homem” na situação revolucionária. 

Sua obra tornou-se referência por defender uma concepção de política fundada na noção de prudência na política, de ceticismo em matéria de filosofias e de grandes transformações e de permanência de todas as coisas dignas de serem preservadas na experiência das sociedades humanas.

Vale indicar, desde já, que essa marca cética de nascença no conservadorismo moderno nada tem que ver com atitudes niilistas ou descrentes. Antes, trata-se de uma forma de compreender adequadamente os limites do conhecimento político: como viria a observar mais tarde o grande filósofo conservador do século XX, Michael Oakeshott, “governar não é impor uma única moral ou outra direção, tônica ou maneira às atividades de seus governados”, pois a “aprovação ou reprovação moral não fazem parte da função do governo, que não está, de modo algum preocupado com as almas dos homens”, como escreveu em seu excelente A Política da Fé e a Política do Ceticismo

Apenas governos movidos pela “fé” são capazes de suporem-se cruzados numa batalha moral e espiritual pela alma dos cidadãos e da sociedade – e eis tudo o que o conservadorismo britânico mais profundamente rechaça, não importa se no século XVIII com Burke, ou no XX com Oakeshott.

Para Burke, aliás, a liberdade deve ser protegida pela lei, sob a forma de governos constitucionalmente delimitados. Em sua visão, nossas sociedades não são produtos de um contrato social apenas entre os que estão vivos aqui e agora, sendo antes uma grande associação duradoura entre os que já morreram, os que ainda vivem, e os que ainda estão por nascer – é isso que torna a preservação de nossas comunidades algo tão caro ao conservador. Essa preservação se dá não pelo Estado ou pela ação estritamente governamental, mas pela sociedade civil, sob a forma dos “pequenos pelotões”, isto é, pela organização dos cidadãos com base em suas afinidades e nos interesses sociais comuns.

 Contemporâneo de David Hume, nome sempre associado a uma disposição cética para a política, e de Adam Smith, autor à época celebrado por seu livro Teoria dos sentimentos morais, que destacava a importância fundamental da piedade e da compaixão, da benevolência e da empatia, que sintetizou uma marca de todos esses pensadores britânicos do século XVIII: a preocupação com certas virtudes cívicas sem as quais a vida em sociedade fica inviabilizada. É de Adam Smith a famosa afirmação de que “sensibilizar-se muito pelos outros e pouco por nós mesmos”, e que “refrear nosso egoísmo e favorecer nossas afecções benevolentes constitui a perfeição da natureza humana”.

Com essa perspectiva histórica, fica mais fácil compreender por que razão toda aquela lista de reformas sociais do século XIX promovida pelo governo conservador de Benjamin Disraeli, apresentada acima, na abertura deste texto, não deve espantar alguém que conheça a história do conservadorismo britânico. 

Trata-se de certas – é verdade que não únicas – características fundamentais dessa tradição política: o senso de que a reforma é indispensável para a preservação, de que o cuidado com o próximo é um dever moral e social do qual não se pode fugir, de que o pertencimento a uma sociedade ordenada nos brinda com a liberdade ao mesmo tempo que nos onera com a responsabilidade, inclusive, e sobretudo, a responsabilidade para com os mais pobres, e de que o exercício combinado da prudência e do ceticismo afastam o fanatismo político, o sectarismo ideológico e a agitação desagregadora da esfera das práticas respeitáveis. 

Todas essas características são mais do que compatíveis com a vocação conservadora para a preservação das tradições sociais e culturais exitosas e das instituições políticas que permitem que tais tradições floresçam: elas são uma condição para tal realização.

É por essa razão que ao longo do século XX, importantes nomes do conservadorismo britânico farão da defesa dessas características uma tarefa constante, com a ênfase recaindo ora sobre um, ora sobre outro desses elementos. Por exemplo, Winston Churchill, a maior figura do conservadorismo inglês do século passado, foi decisivo na liderança do governo de coalizão durante a II Guerra Mundial para criar um sistema de bem-estar social, incluindo a criação do National Health Service, através da aprovação do Beveridge Report – seu discurso em 21 de março de 1943, “After the War” (“Depois da Guerra”), assume inequivocamente o compromisso com a necessária criação de um estado de bem-estar social de matriz igualitária e com o NHS. 

Mais recentemente, coube a David Cameron – nem de longe um grande político – expressar essa disposição conservadora geral de reformar para preservar, integrar para progredir a que me referi. Em uma convenção do Partido Conservador em 2011, Cameron defendeu a o casamento entre pessoas do mesmo sexo e afirmou o seguinte:

"Sim, é uma questão de igualdade, mas é também sobre algo mais: compromisso. Os conservadores acreditam em laços que nos unem, que a sociedade é mais forte quando fazemos juramentos uns aos outros e nos apoiamos mutuamente. De modo que eu não apoio o casamento gay apesar de ser um conservador. Eu apoio o casamento gay porque eu sou um conservador".

Tomar decisões políticas específicas em contextos políticos determinados não é tarefa fácil, e diante de casos complexos, divisões sempre surgem. Surgiram com Disraeli no século XIX, surgiram com Churchill no século XX e com Cameron no XXI. Pouco importa. A disposição conservadora, nos exemplos que mencionei acima, fez-se presente, com ou sem dissidência, e preservou a comunidade política e social, garantindo-lhe perpetuação e progresso.

Nada dessa matriz conservadora britânica chegou à realidade política brasileira. Apenas para ilustrar a questão, vale recorrer a um episódio frequentemente contado pelo ex-presidente e sociólogo Fernando Henrique Cardoso. Em uma defesa de tese de livre-docência, a autora analisava o pensamento político no Brasil Império quando, referindo-se a certas figuras do conservadorismo do nosso oitocentos, é interrogada pelo examinador, ninguém menos que Sérgio Buarque de Hollanda: “A senhora acha realmente que esses homens do Império eram conservadores, liam Edmund Burke, ou eram apenas atrasados?”. 

A lição contida na pergunta do professor Sérgio Buarque é bastante óbvia: não há nada em comum entre a vigorosa tradição conservadora britânica e o reacionarismo crasso que marca nossa classe dominante escravocrata – não apenas a que se intitulou conservadora – no século XIX. A situação, incômoda por si só, coloca um problema particular para o tema do conservadorismo brasileiro hoje: afinal, que tradição é essa? E mais: o que se quer conservar?

É difícil imaginar que alguém psicologicamente são e intelectualmente capaz vá buscar nos senhores de escravos dos 1800s inspiração para algum pensamento político conservador no Brasil de hoje. Ainda mais grave, no entanto, é o reconhecimento de que, ao longo do século XX, o cenário não é diferente. Afinal, se não entre os conservadores de nome do tempo do Império, onde mais buscar uma origem e uma tradição local que justifique o anseio pela conservação? 

A história do Brasil do século passado mostra-nos posições consistentes daqueles que se chamaram conservadores – consistentemente contrários a qualquer reforma social inclusive, consistentemente inimigos da democracia liberal e das liberdades individuais por ela garantidas, consistentemente aliados dos poderes autoritários que se configuraram em diversos momentos em nossa história, quer na atuação golpista fracassada – como a UDN –, quer no golpismo vitorioso das forças políticas que levaram ao golpe de 1964 e à instalação da ditadura militar que sequestrou vinte anos da história do Brasil.

É verdade que, isoladamente, há nomes importantes das tradições liberal e conservadora dignos de apreço e inequivocamente alheios ao reacionarismo autoritário que acabo de descrever. Nada, contudo, capaz de criar raízes políticas dignas de nota: do protagonismo durante a ditadura militar no exercício do arbítrio e da violência de Estado, os conservadores passaram à resignada posição de coadjuvantes do fisiologismo e da corrupção nos anos da estabilidade democrática, preservando do termo “conservadorismo” apenas sua aplicação na esfera do comportamento e da vida moral. 

Em qualquer quadra histórica que se examine, impõe-se a constatação de que, no Brasil, o conservadorismo não guarda relação alguma com sua origem moderna na tradição britânica, sendo tipicamente um fenômeno de perpetuação de interesses de dominação e de exclusão profundamente antidemocrático. É nessa ausência de uma matriz conservadora própria que floresceu o bolsonarismo, único movimento político assumidamente de direita e conservador a ser bem-sucedido no Brasil desde a redemocratização. 

No embalo da onda populista e nacionalista da direita autoritária que conquistou o poder em inúmeros países nos últimos anos, o bolsonarismo é nuclearmente reacionário, inimigo do Império da Lei, politicamente autoritário e moralmente retrógrado, constituindo-se no exato oposto de toda a tradição conservadora britânica que expus acima. E de nada adianta lamentar que este não é o “bom” conservadorismo, pois é o conservadorismo real que o Brasil produziu, e que não vai desaparecer tão cedo.

* Eduardo Wolf é doutor em Filosofia pela USP e professor do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da PUC/SP. É editor do Estado da Arte