quinta-feira, 29 de novembro de 2018

Hora de acordar: um caminho para cobrir o governo Bolsonaro

Por Malu Gaspar (Revista Piauí, 28/11/2018)

Na sexta-feira, 22 de novembro, o presidente eleito Jair Bolsonaro anunciou pelo Twitter mais um ministro de seu futuro governo. “Gostaria de comunicar a todos a indicação de Ricardo Vélez Rodríguez, filósofo, autor de mais de trinta obras, atualmente professor emérito da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, para o cargo de ministro da Educação.” A reação da imprensa, dos acadêmicos da área de educação e uma boa parte do público foi um sonoro “Quem!?”

Até então, a chamada grande mídia havia investido trabalho e tempo discutindo nomes como o do diretor do Instituto Ayrton Senna Mozart Neves Ramos e o do procurador da República Guilherme Schelb, soprados aos ouvidos dos jornalistas por membros da equipe de transição ou do entorno de Bolsonaro. Dois jornais, inclusive, chegaram a anunciar que Neves Ramos havia sido escolhido, para em seguida serem desmentidos pelo próprio presidente eleito via Twitter.

Nas horas que se seguiram ao anúncio de Bolsonaro, artigos foram escritos com dados básicos do currículo de Vélez Rodríguez. Peças de sua retórica antipetista e pró-Escola Sem Partido emergiram nas redes sociais, num tom de rematado espanto. No final daquela noite, eu era uma das que postavam no Twitter trechos de artigos de Vélez Rodríguez e buscavam mais informações sobre ele, quando topei com um blog do professor, que havia sido mencionado em matéria do El País.

No texto mais recente, de 7 de novembro e intitulado “Um roteiro para o MEC”, Vélez Rodríguez já dizia ter sido indicado para “a possível escolha pelo senhor presidente eleito Jair Bolsonaro” por “vozes de algumas pessoas ligadas à educação e à cultura, entre os quais se destaca o professor e amigo Olavo de Carvalho”. 

A questão que mais me incomodou, imediatamente, não tinha nada a ver com o novo ministro, e sim com a cobertura jornalística. Como foi possível que um sujeito que tinha toda essa chance de ser escolhido ministro de uma pasta importante como a da Educação tivesse dito com todas as letras que estava entre os cotados, e o nome dele sequer tivesse sido mencionado nos grandes jornais, sites e tevês que passam dia e noite falando do governo de transição? Será que nós, jornalistas, vamos continuar a repetir, no governo Bolsonaro, os mesmos erros cometidos na campanha eleitoral?

Pesquisando mais um pouco, descobri que Vélez Rodríguez era apontado como possível ministro por alguns dos influenciadores digitais de direita, como o blogueiro Bernardo Küstner, que tem um canal no YouTube com mais de 550 000 seguidores, ou Filipe Martins, que além de blogueiro é assessor internacional do PSL e muito próximo dos filhos de Bolsonaro. E, no entanto, o espanto diante da indicação de Vélez Rodríguez foi o mesmo que assomou diante do crescimento de Bolsonaro nas pesquisas e do arrastão direitista que tomou as urnas no primeiro turno. 

Não que Bolsonaro fosse ignorado pela grande mídia. Mas a visão predominante sempre foi a de que a candidatura tinha um “teto”. Quando ele provou que essa premissa estava errada, a parte da opinião pública que ou se alinha à esquerda ou ao centro do espectro ideológico passou a apontar o dedo para os supostos “culpados” pela reversão de expectativa.

Um deles foi a “mídia” – que, ao cobrir a candidatura do ex-capitão da mesma forma que cobria as outras, “normalizou” Bolsonaro ao invés de apontar de forma eficiente suas “monstruosidades”. Cansei de ler e ouvir, em debates, listas de WhastApp, textões no Facebook e trolagens no Twitter esse mesmo argumento. E mil vezes pensei em responder com outro textão, mas desisti diante de tarefas que considerei mais urgentes. Agora encasquetei.

Há muita falha e autocrítica a ser feita pela imprensa quanto à cobertura dessas eleições. O que se constata, aliás, é que vimos falhando há muito tempo. Mas as ideias de que ela possa ser responsabilizada pela ascensão de Bolsonaro ou que tenha “normalizado” Bolsonaro apenas mostram que, como os jornalistas, os críticos da imprensa não estão entendendo nada.

No início do ano, a Folha de S.Paulo publicou que uma servidora do gabinete de Bolsonaro trabalhava, na verdade, na sua casa em Angra dos Reis. O mesmo jornal verificou que os Bolsonaro tinham treze imóveis avaliados em 15 milhões de reais, mesmo atuando exclusivamente na vida pública. A Veja mostrou que sua segunda ex-mulher o havia acusado de ter um patrimônio maior do que o declarado à Justiça Eleitoral, e de ter roubado um cofre com dinheiro e joias que ela mantinha em uma agência do Banco do Brasil. 

Depois disso, a Folha trouxe a informação de que ela fugiu para a Noruega com medo das ameaças do ex-marido. Foram amplamente divulgadas sua admiração pelo coronel Brilhante Ustra, que dirigiu o mais notório centro de torturas do regime militar, suas opiniões sobre os direitos das mulheres e sobre homossexuais. Inúmeros artigos e entrevistas, no Brasil e no exterior, reverberaram a ideia de que as eleições no Brasil eram um embate entre a civilização e a barbárie, a democracia e a ditadura, direitos civis e fascismo – com Bolsonaro sendo sempre a segunda opção. 

Sua trajetória e suas opiniões foram minuciosamente escrutinadas, justamente como deve ser com todo aquele que postula um cargo público. Que se saiba, nenhum aspecto que esses críticos da mídia considerariam fatal para a candidatura do PSL deixou de ser divulgado.

Ainda assim, tenho a impressão de que ficarei velhinha ouvindo dizer que Bolsonaro foi “normalizado” – no pressuposto de que o único tratamento correto para o ex-capitão do Exército fosse o de aberração, e na presunção de que, se ele tivesse sido retratado com tintas mais fortes, poderia não ter ganhado a eleição. Pois a autocrítica que eu defendo parte exatamente desse ponto. Quem faz esse tipo de afirmação atribui à imprensa um poder que ela não tem. 

Se a imprensa sofreu uma derrota nestas eleições, não foi porque Bolsonaro ganhou. Ela foi derrotada porque muitas vezes deixou de cumprir sua função primordial como instituição – que, ao contrário do que pedem alguns críticos, não é ser militante de nada a não ser da busca pelos fatos. Falhamos porque, para os leitores e telespectadores, a eleição trouxe um Vélez Rodríguez por dia, uma quantidade impressionante de assuntos e pessoas que não faziam parte do cardápio dos jornais até se apresentarem como fatos consumados.

Elas estavam por aí, na internet e nas ruas. Quando Lula deixou a disputa e as pesquisas constataram que Bolsonaro era o favorito, em setembro, já fazia pelo menos dois anos que ele e seus aliados mantinham redes sociais ativas, com milhões de seguidores, e multiplicavam os grupos de WhatsApp que se revelaram um diferencial das eleições.

Olavo de Carvalho, o guru de Bolsonaro, já era um fenômeno editorial e nas redes, mas só agora estamos descobrindo que ele tem poder e influência na nomeação de ministros. Há tempos ele vem criticando o movimento Escola Sem Partido, mas essa divergência que pode ter efeitos sobre a política educacional do governo também vinha passando despercebida. 

Carlos Bolsonaro foi responsável pela ascensão digital do pai e é uma metralhadora giratória até para dentro do bolsonarismo, mas só agora descobrimos sua importância. Os generais se batem contra o grupo de Gustavo Bebianno desde que a campanha começou, mas até agora não sabíamos disso. O bolsonarismo e a nova direita fizeram 52 deputados federais e emergiram com uma força imprevista, mas ainda não os conhecemos muito bem e nem entendemos a dinâmica entre eles.

Há algumas explicações para esse “branco” que atingiu as redações brasileiras. Não discordo que os jornalistas sejam um contingente predominantemente de esquerda ou de centro, e não descarto que a ideologia possa ter minado a cobertura das eleições.

É verdade também que o jornalismo tem sido progressivamente contaminado pelo ambiente polarizado das redes sociais e vem transformando opinião em commodity – fazendo parecer necessário todo mundo dar opinião sobre tudo, e gerando uma confusão entre o espaço da opinião e o da informação. Mas, para mim, a principal razão para explicar o que se passou na cobertura das eleições tem a ver com o caráter disruptivo da candidatura Bolsonaro.

Nas últimas duas décadas, o jornalismo nacional se acostumou a transitar no ambiente da social-democracia. O jornalismo político mainstream é um integrante ativo do sistema político, e subestimou as chances de vitória de Bolsonaro da mesma forma que todo o sistema.

Depois de tantos anos vendo os sociais-democratas petistas e tucanos se alternarem no poder, os jornalistas passaram a se comportar como se o “sistema” fosse invencível, e nem mesmo a onda direitista que vem varrendo algumas partes do mundo nos fez duvidar dessa premissa. Pela mesma razão, subestimamos as redes sociais como arena política, e deixamos de cobri-la como tal. O fato é que Bolsonaro não pode mais ser encarado como esdrúxulo e absurdo. Ele é a nova realidade do poder e assim tem de ser compreendido.

O desafio que temos pela frente é grande, mas a oportunidade, também. A ruptura que Bolsonaro representa na política ocorreu em paralelo e é uma consequência das transformações vividas pela mídia nos últimos tempos. Assim como o presidente eleito está deslocando o eixo do poder no Brasil para a direita, buscando imprimir uma nova lógica na negociação com o Congresso e na comunicação com os eleitores, as redes sociais e seus protagonistas empurram o jornalismo para uma reinvenção.

Da mesma forma que Bolsonaro forçou uma mudança, essa reinvenção vai acontecer de uma forma ou de outra, porque há uma crescente demanda por informação, investigação e serviço público que não será suprida pelas redes sociais. Nos Estados Unidos, em que a mídia passou por uma auto-análise parecida com a que estamos enfrentando agora após a eleição de Donald Trump, já se notam os resultados.

A polarização política continua, como mostram a dicotomia entre a Fox News e a CNN. Mas o jornalismo reagiu, com transformações como a do The New York Times, que aumentou sua base de assinantes investindo fortemente em núcleos investigativos e em novos formatos e plataformas online.

Ou a do Washington Post, que adotou uma postura mais combativa contra o governo Trump. Startups criadas antes da ascensão do atual presidente, como a ProPublica, exclusivamente destinado à investigação, ou o Texas Tribune, que se dedica à cobertura de políticas públicas, também surgiram como novidade importante, conquistando respeito, credibilidade e engajamento de leitores órfãos de informação de qualidade.

Tais iniciativas têm um traço em comum: são produto de um jornalismo que desapegou das antigas formas de cobertura para oferecer ao leitor ou espectador bem mais do que se divulga nas redes sociais. Que aceita a nova multiplicidade de atores no ambiente político e tenta retratar essa nova ordem de forma organizada e séria, apesar do estranhamento.

Que se dispõe a fazer esforço para escapar ao método das cortinas de fumaça e armadilhas diárias colocadas no caminho por um governante que encara a mídia como inimigo. E que tenta não perder o foco no interesse público, apesar da cacofonia perturbadora do novo momento.

Creio que aí temos um norte. Há um mundo a desbravar, que vem se movimentando há tempos sem que tivéssemos nos dado ao trabalho de investigá-lo com rigor e abrangência. Há uma nova ordem política emergindo, por força das urnas, e o jornalismo não pode mais perder tempo se escandalizando com ele. 

Que a esquerda esteja perdida ou em crise de identidade é compreensível e natural. Mas o jornalismo profissional não tem (ou não deveria ter) nada a ver com isso. O trabalho diante de nós é gigantesco, e tem de começar com uma reflexão sobre os vacilos, os pré-julgamentos, os erros e a (auto)complacência que turvaram a nossa visão nos últimos tempos.

 Só assim poderemos aprender com o que aconteceu e não mais deixar a história desfilar na nossa frente como se fosse um vídeo bizarro do YouTube.

segunda-feira, 26 de novembro de 2018

Não há modelo chileno para ser copiado, dizem especialistas

Por Ana Fernandez ( Folha de SP, 26/11/2018)

Estabilidade política, níveis baixos de corrupção e um dinamismo econômico iniciado na ditadura (1973-1990) baseado em um Estado menor e mais exportações tornaram o Chile um modelo que líderes como Jair Bolsonaro desejam imitar.

Mas existe modelo chileno? "É um erro falar do modelo chileno, como se desde (Augusto) Pinochet até o atual presidente Sebastián Piñerahouvesse as mesmas políticas econômicas", disse o economista Ricardo Ffrench-Davis.

"Há coisas em comum que se mantêm ao longo do tempo e padrões, mas há mudanças substanciais, tanto de políticas, quanto de reformas", disse o economista, autor do livro "Reformas económicas en Chile, 1973-2017" e professor da Universidade do Chile.

Desde que, em 1975, Pinochet recorreu aos "Chicago boys", alunos do economista ultraliberal norte-americano Milton Friedman, para elaborar um modelo que rompesse com o projeto socialista de seu antecessor Salvador Allende, contra quem deu um golpe de Estado militar em 11 de setembro de 1973, o país foi adaptando suas políticas à realidade social.

O modelo é marcado por um Estado reduzido ao mínimo, venda de empresas públicas e privatização de serviços básicos —como saúde, educação e principalmente Previdência, com a introdução à época de um sistema de de capitalização individual copiado por vários países e que, hoje, com a primeira geração de aposentados, mostra limitações.

Nos últimos anos, as pressões de estudantes exigindo educação gratuita e —mais recentemente— o clamor popular para reformar o sistema previdenciário, que hoje entrega aposentarias baixíssimas, forçaram os governos a dedicar maiores recursos do Estado.

Apenas as Forças Armadas —hoje em crise por casos de corrupção e abusos de poder— ficaram de fora da febre privatizadora da época, e se beneficiam de um regime de aposentadorias e saúde garantido pelo Estado.

Em 1989, um ano antes de entregar o poder ao social-democrata Patricio Aylwin à frente da Concertación, coalizão de centro-esquerda que governou o país por duas décadas, o poder de compra real do salário mínimo era inferior ao de 20 anos antes.

"O Chile está longe de ser um país desenvolvido, mas cresceu muito mais na democracia do que na ditadura", diz Ffrench-Davis, também aluno da Universidade de Chicago, onde Paulo Guedes, futuro ministro da Economia, fez mestrado e doutorado.

Guedes, que morou no Chile no início dos anos 1980, quer levar ao Brasil algumas das receitas aplicadas pelo Chile: menos Estado, menos proteção social e menos impostos, um programa ambicioso, levando em conta que o governo não tem maioria na Câmara.

Acostumado a se reconstruir a cada vez que um terremoto lhe destrói, o Chile se tornou o país com mais acordos comerciais —o último, assinado na quarta-feira (21), justamente com o Brasil— e um dos principais defensores do livre-comércio, contrário ao protecionismo de Donald Trump e Bolsonaro.

"Nos opomos a toda forma de protecionismo e de práticas desleais no comércio, e queremos fortalecer e promover com muita força a economia digital, a inclusão e nossa incorporação à quarta revolução tecnológica", disse Piñera, no Fórum Ásia Pacífico (APEC) em Papua Nova Guiné.

Contudo, alcançar a maior renda per capita da América Latina e aspirar a se transformar, em menos de uma década, em um país desenvolvido, não teria sido possível sem a probidade dos políticos que governaram o país durante o período democrático.

"A impressão que tínhamos nos anos 1990 era que as pessoas que estavam no governo eram ultra honestas. Os cargos eram por mérito e não por militância. Trabalharam muito, embora tenha havido um processo gradual de deterioração, mas não de grande escala", diz Ffrench-Davis, lembrando que, quando os mandatários deixavam o governo, "voltavam para casa" onde sempre viveram.

Diferentemente dos países vizinhos, não há políticos locais envolvidos no escândalo de corrupção da Odebrecht, embora a imagem da classe econômica tenha sido machada por outros escândalos.

Redução da desigualdade no Brasil estagnou, diz estudo da Oxfam

Por Fabiano Maisonnave (Folha de SP, 26/11/2018)


Relatório da Oxfam Brasil revela que a redução na desigualdade de renda estancou pela primeira vez em 15 anos. O documento atribuiu a piora a uma série de limitações econômicas, em particular à recessão, ao aumento do desemprego e à crise nas contas dos governos, que limita o fôlego de políticas públicas voltadas aos mais pobres e ao investimento.

De acordo com a ONG, a desigualdade de renda domiciliar per capita, medida pelo Índice de Gini, permaneceu inalterada entre 2016 e o ano passado, interrompendo um processo de queda iniciado em 2002. O relatório utiliza os números da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad), do IBGE.

Consequência disso, o Brasil passou de 10º para o 9º mais desigual do mundo em uma lista de 189 países, segundo o relatório do Pnud (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), que também usa o Índice de Gini.

Nesse período, houve o aumento da pobreza. Em 2017, o Brasil contava 15 milhões (7,2% da população) de pessoas consideradas pobres pelo Banco Mundial —renda de até US$ 1,9 (R$ 7,3) por dia. Trata-se de um crescimento de 11% em relação a 2016.

As tendências de aumento da população pobre, do nível de desigualdade de renda do trabalho e do índice de mortalidade de infantil são a marca da aguda crise socioeconômica e política iniciada em 2014, diz o relatório.

Para a Oxfam, no entanto, um elemento adicional piora o cenário: o teto de gastos. A emenda constitucional 95, proposta pelo governo Michel Temer (MDB) e aprovada 2016 para impedir o aumento das despesas públicas acima da inflação por duas décadas, é considerada uma "medida extrema" pela entidade.

O estudo defende a revogação do teto mediante o argumento de que a regra, ao longo do tempo, vai comprometer a liberação de recursos para áreas sociais —que têm menor poder de pressão na disputa por dinheiro público. Assim, no médio e longo prazo, o teto contribuirá para aprofundar a desigualdade.

O relatório argumenta que a restrição faz com que as despesas sociais compitam entre si e com outros gastos, como folha de pagamento e investimento. "Seu efeito final é reduzir o tamanho do gasto público em relação ao PIB, ao mesmo tempo que a população crescerá e envelhecerá."

Na avaliação de Carlos Góes, pesquisador-chefe do Instituto Mercado Popular, o estudo aponta de forma consistente a estagnação na queda da desigualdade desde o fim da recessão, mas a ONG peca nas recomendações, sobretudo na crítica ao teto de gastos.

"As despesas com educação básica e saúde estão majoritariamente intocáveis porque são financiadas prioritariamente por meio de transferências constitucionais", diz o doutorando em economia pela Universidade da Califórnia.

Góes afirma que ficou surpreso com a falta de ênfase na reforma da Previdência e na revisão dos salários do funcionalismo. "Há ampla evidência empírica de que reformar a Previdência é essencial para garantir a capacidade de financiar gastos sociais do governo e de que tanto a Previdência quanto os salários do funcionalismo têm amplo papel regressivo [aumentam a desigualdade]", diz ele.

Outro alvo das críticas mais duras é o regime tributário. Para a Oxfam, é preciso reduzir os impostos sobre bens e serviços, que oneram mais o setor produtivo e têm custo maior para as classes média e pobre, e aumentar a tributação sobre renda e patrimônio.

Como medidas, o estudo propõe novas faixas e alíquotas para os mais ricos no Imposto sobre a Renda da Pessoas Físicas (IRPF) e o restabelecimento da tributação de lucros e dividendos de forma progressiva, além de maior combate à sonegação fiscal.

Sobre o assunto, Góes concorda com a tributação progressiva de lucros e dividendos, "mas para viabilizar isso sem prejudicar o crescimento e investimento é necessário que ela seja concomitante a uma redução nos impostos sobre pessoa jurídica".

A Oxfam também detectou aumento da proporção da renda média de homens e a população branca em relação a mulheres e à população negra, embora esses movimentos não tenham sido grandes o suficiente para alterar o Gini.

A renda das mulheres em relação aos homens registrou o primeiro recuo em 23 anos, segundo os números do Pnad compilados pelo relatório. No ano passado, elas ganharam 70% do rendimento masculino, contra 72% em 2016.

Com relação à disparidade racial, em 2016, os negros ganhavam 57% dos rendimentos médios de brancos; no ano passado, esse percentual caiu para 53%.

segunda-feira, 12 de novembro de 2018

Retorno do nacionalismo marca os cem anos do fim da Primeira Guerra Mundial

Por Marc Bassets (El País/ O Globo, 11/11/2018)

Juntos em Paris, um século depois, mas com visões diferentes. Os líderes das nações que participaram da Primeira Guerra Mundial se reuniram neste fim de semana para celebrar o fim do conflito. É um momento sui generis, marcado pelo regresso do nacionalismo e pela crise das instituições multilaterais.

“Sou um nacionalista”, afirmou dias atrás o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. “A Europa enfrenta um risco: desmembrar-se por causa da lepra nacionalista e ser superada por potências estrangeiras”, replicou o presidente francês, Emmanuel Macron, que tenta se afirmar na Europa e no mundo como a resistência ante o avanço do nacionalismo e do unilateralismo.

As comparações entre a época atual e o período entre as guerras mundiais proliferam. Catastrofismo gratuito ou recordação útil das lições da História? O nacionalismo é forçosamente “uma lepra”, como diz Macron? Ou existe um nacionalismo bom.

Há 100 anos, em 11 de novembro de 1918, franceses e alemães assinaram o armistício que suspendia as hostilidades. A guerra iniciada em 1914 deixou milhões de mortos e redesenhou o mapa. Deu ensejo a organizações internacionais como a fracassada Sociedade das Nações, antecessora da ONU, mas também a condições férreas para os derrotados, que contribuíram para o revanchismo prévio à guerra seguinte.

Hoje o mundo é radicalmente diferente. Mais democrático e estável. Menos violento. E com instituições internacionais que compelem os países a resolver na mesa de negociações o que há um século se resolvia na base do canhão. Mas também é um mundo onde a arquitetura global instaurada no final da Segunda Guerra Mundial mostra fissuras. 

Trump irrita os aliados e ameaça abandoná-los. A China e a Rússia se reafirmam. O prestígio das democracias progressistas diminui. Do Brasil à Itália, do Brexit a Trump, avança um novo nacionalismo populista. A União Europeia se divide e a OTAN é posta em xeque. Tempos de retirada.

"As razões do fracasso da paz em 1918 constituem uma advertência para o mundo e 2018", disse ao EL PAÍS o cientista político francês Dominique Moïsi, conselheiro especial do Instituto Montaigne e autor, entre outros livros, de A Geopolítica das Emoções.

"Em 1918, vimos que o armistício não trazia a paz. Por duas razões importantes. Primeiro, porque os vencedores foram rígidos demais em suas exigências com a Alemanha. E também porque a organização internacional que foi construída, a Sociedade das Nações, era fraca demais. Ou seja: uma mistura de nacionalismo muito forte e internacionalismo muito fraco. Hoje reencontramos essa combinação".

Palavras como povo, identidade e nação voltam ao primeiro plano. "Há uma crise de identidade ligada à globalização", explica Moïsi. "Quanto mais global, interdependente e transparente é o mundo, mais os cidadãos embarcam numa busca identitária, enfatizando o culto à diferença, embora essa diferença seja cada vez mais marginal. E aí vemos o efeito de uma mundialização, que para muitos tem sido infeliz".

Nacionalismo é uma palavra ambígua, de difícil definição, como populismo. “Muitas pessoas pensam no nacionalismo como uma ideologia coesiva, mas ele aparece em várias formas, incluindo suas versões de esquerda e direita”, adverte, por e-mail, o acadêmico britânico Roger Eatwell, coator com Matthew Goodwin de "National Populism: The Revolt Against Liberal Democracy" (nacional-populismo: a rebelião contra a democracia liberal), publicado recentemente em inglês. 

“Uma distinção comum é entre o nacionalismo étnico, que é fechado, e o nacionalismo cívico, que está vinculado a uma série de valores políticos.” Alguns aplicam palavras diferentes a essas distinções: nacionalismo e patriotismo.

O próprio Macron é herdeiro de uma tradição francesa que poderia ser chamada de nacionalista: a do gaullismo, inspirada pelo general De Gaulle, que quis situar a França como potência capaz de mediar entre os grandes poderes globais. A reunião de Paris – Macron e França, por algumas horas, no centro do tabuleiro – é gaullismo puro. Nacionalismo? Ele, europeísta convicto, diria que não. Patriotismo, talvez.

Há alguns dias, Macron disse numa entrevista ao jornal "Ouest-France" que via paralelismos entre o mundo atual — “uma Europa dividida pelos medos, a retirada nacionalista, as consequências da crise econômica” — e o dos anos posteriores ao armistício de 1918.

Eatwell não vê o paralelismo entre o nacionalismo que levou à Segunda Guerra Mundial e os movimentos atuais, que poderiam ser chamados de nacional-populistas ou nacionalistas de direita. “Os nacionais-populistas não são descaradamente antidemocratas, e menos ainda fascistas”, diz. “Em alguns aspectos, propõem uma ameaça à democracia. Por exemplo, reforçam um crescente distanciamento, inclusive uma cólera, contra as elites políticas e os acadêmicos. 

Sua oposição a uma nova imigração, inclusive quando se argumenta razoavelmente em termos da necessidade de pessoas formadas para um país, tende a alimentar a xenofobia. Por outro lado, ressaltam problemas no funcionamento da democracia liberal: seu elitismo, sua agenda politicamente correta e a desatenção às classes trabalhadoras.”

O novo nacionalismo é com frequência antielitista e antiprogressista. Seus inimigos são os que eles chamam de globalistas: os novos cosmopolitas. "O nacionalismo apresenta-se como antídoto à globalização. É como Trump o apresenta, dizendo: ´Sou contra a globalização e sou nacionalista`", explica por telefone François Heisbourg, presidente do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos, com sede em Londres, e conselheiro especial da Fundação para a Pesquisa Estratégica, em Paris.  

"À sua maneira, rústica e simples, (Trump) resume bem a essência desses nacionalismos, que é a rejeição das identidades múltiplas, da complexidade, da livre circulação de pessoas e bens".

Heisbourg considera inadequada a comparação que Macron faz entre o mundo atual e o do período entre as guerras. Para ele, o nacionalismo atual lembra mais o que houve no século XIX e início do século XX, antes da I Guerra Mundial, do que o dos anos trinta. Heisbourg vê o paralelismo com os anos 1930 em outro lugar.

"Não vejo movimentos fascistas potentes", diz. "Hoje esse movimento ideológico, totalitário, violento e organizado é o Daesh (sigla do Estado Islâmico, em árabe), os jihadistas".