terça-feira, 22 de setembro de 2015

Coxinha e caviar

Por Antonio Engelke* ( O Globo, 22/09/2015)

“Coxinha” e “esquerda caviar” são estereótipos que prestam um desserviço ao debate político no Brasil, e pelos mesmos motivos. Estereótipos reduzem as complexidades, as muitas e variadas singularidades que coexistem dentro de um determinado conjunto a uma só substância negativa, alardeada como se fosse a essência mesma de tal conjunto. Possuem função cognitiva, isto é, não são meros filtros que distorcem a posteriori uma realidade apreendida objetivamente, mas parte integrante da própria moldura perceptiva dentro da qual o sujeito apreende aquilo que lhe parecerá então digno de repúdio. Ajudam a criar e sustentar preconceitos.

Gíria paulistana, “coxinha” inicialmente designava o sujeito rico, arrumadinho e careta. Ressignificada em meio à recente turbulência política do país, tornou-se instrumento retórico via de regra empregado para desqualificar de antemão quem quer que se manifeste contra o governo, nas ruas ou em redes sociais. Como se os protestos não comportassem insatisfações legítimas, oriundas de diversos estratos da sociedade, mas fossem apenas expressões de uma elite desde sempre autorreferida, carcomida pela ignorância de quem é incapaz de estender sua empatia para além do mundinho particular em que vive. É contra o PT? Coxinha.

A expressão “esquerda caviar”, cunhada na França dos anos 80, pretende denunciar o que seria a hipocrisia constitutiva da esquerda: condenar o capitalismo mas aproveitar suas benesses, vivendo de modo a contradizer os valores que prega. A expressão não apenas pressupõe como também faz parecer que há algo como “a esquerda”, um bloco monolítico eminentemente socialista ou comunista. Nada mais distante da realidade. Basta pensar nas diversas formas de esquerda social-democrata existentes — os liberais americanos ou os quadros mais sóbrios do PSDB, por exemplo — e a suposta contradição ou hipocrisia que a expressão denota desaparece.

Além disso, como observou Francisco Bosco em coluna publicada no GLOBO, “a crítica é um princípio democrático de aperfeiçoamento, e não um instrumento de negação absoluta”. Critica-se o capitalismo para melhorá-lo, o que, na perspectiva de esquerda, significa principalmente reduzir as desigualdades que produz. Não importa: se é esquerda, só pode ser comunista; portanto, não pode usufruir dos frutos do capitalismo sem cair em contradição. Esquerda caviar.

Polemistas, profissionais ou amadores, dependem da repetição de estereótipos para avançar seu trabalho de desqualificação do outro ideológico. Ao martelar incessantemente tais expressões em jornais, revistas e blogs, não estão apenas criticando algo de que discordam, mas ajudando a criar uma atmosfera hostil a este outro, com o intuito de negar inteligibilidade à sua visão de mundo.

Uma vez sedimentado um terreno discursivo suficientemente maniqueísta, qualquer coisa que o outro diga será recebida já dentro dos termos de uma percepção distorcida, preconceituosa porque sistematicamente estereotipada. Anula-se, assim, a possibilidade de um diálogo racional, pois os interlocutores passam a se comportar não como adversários honestamente permeáveis às opiniões uns dos outros, mas como inimigos cuja “ladainha” sequer deveria vir a público.

De modo geral, discursos estruturados por sobre estereótipos como “coxinha” e “esquerda caviar” renunciam à difícil tarefa de tentar compreender a realidade em toda a sua complexidade. Transformam posições políticas legítimas em espantalhos, para então enxovalhá-las justamente por isso. Contribuem para a polarização estéril do debate, pois que é próprio do preconceito reproduzir o antagonismo do qual é um sintoma.

*Antonio Engelke é sociólogo

quinta-feira, 10 de setembro de 2015

Paralisia e autoengano

Por  Murillo de Aragão* (Blog do Noblat, 10/09/2015)

Imaginem um navio parado naufragando lentamente. De longe se ouve a balbúrdia. Alguns marinheiros tratam de acionar as bombas, enquanto outros abrem buracos para entrar mais água. As ações são contraditórias. O navio fica mais ou menos na mesma. Contudo, o perigo de naufrágio continua iminente.

A atual conjuntura política no Brasil apresenta um quadro semelhante. O governo não naufraga, mas tampouco se recupera. Não naufraga pela falta de condições políticas para “finalizar” o mandato da presidente Dilma Rousseff. Nem se recupera pela sequência quase inacreditável de trapalhadas que produz.

Prosseguindo nas analogias marítimas, existem alguns no governo que parecem querer jogar a embarcação sobre as pedras. Resistem aos cortes, não dão importância à eventual perda do investment grade nem se mobilizam para atuar na linha do que todos desejam: recuperar o mais rapidamente possível a credibilidade econômica e fiscal.

Ao lado das trapalhadas políticas, o governo Dilma se sacrificou politicamente ao tomar medidas duras no campo dos preços administrados e na política cambial. No entanto, ao enfrentar o rombo fiscal, titubeou e está fugindo da raia. Mandou uma proposta orçamentária covarde. Poderá voltar atrás adiante.

Quando, dias atrás, o vice-presidente, Michel Temer, disse o óbvio – que governo nenhum resiste muito tempo com baixa popularidade —, houve uma grita exagerada. Não foi uma mensagem conspiratória. Foi, simplesmente, a constatação de uma realidade não reconhecida por muitos da alta cúpula.

O risco do autoengano é ainda pior porque as soluções que se apresentam tendem a mascarar o fato. Não há um pleno reconhecimento dos erros. Aqui e ali, de forma tímida e envolvida em muitos véus, surge um mea-culpa. Não convence. As soluções são parciais e mal embaladas. Agora o Planalto pretende aumentar os impostos sem mostrar o corte de gastos que todos esperam. E sem atacar algumas das questões estruturais, como os gastos com a Previdência Social.

Pouco mais de seis meses após a posse de Dilma, o governo envelheceu de forma irreversível. Para sobreviver terá que se reinventar. Elaborar um plano amplo de reestruturação ministerial. Adequar o ministério à base política e não ao contrário. Blindar áreas críticas com nomes acima de qualquer partidarismo. Dar força a uma política fiscal austera. Melhorar radicalmente o ambiente de negócios. Ampliar espaços para o investimento estrangeiro no país. E reafirmar o compromisso com a honestidade e a moralidade públicas.

A receita é simples. Duro é fazer. Governos e governantes devem saber dizer não aos interesses corporativistas. . Devem assumir seus erros e apontar novos caminhos. Não é o que ocorre. Ao contrário. As imagens projetadas e seus atos nos levam ao sentimento de que é preciso o país piorar muito para começar a melhorar.

* Murillo de Aragão é cientista político