domingo, 9 de outubro de 2022

O que está em jogo

Murillo Victorazzo

Tudo bem, pode parecer repetitivo escrever, mas alguns, uns de forma genuína outros nem tanto, não conseguem juntar os pontos e apegam-se a palavras de ordem simultaneamente banais e presunçosas, como se algum eleitor fosse a favor de corrupção. Voltemos então no tempo: escolha um PGR arrivista, ausente da lista tríplice produzida pelos membros do MP, que ajuda a destruir a estrutura da Lava-Jato e arquiva todas as denúncias sobre o governo, sem sequer serem investigados indícios fornecidos por outros órgãos, CPIs e imprensa. Remaneje inúmeros delegados da PF que "coincidentemente" atuavam em casos envolvendo sua família e gestão. Empodere as Forças Armadas com milhares de cargos civis e as insufle como avalista final de eleições, fragilizando o controle civil sobre o poder militar, inerente às principais democracias no mundo. Leve a política para dentro também dos quartéis de outras forças de segurança.

Use a máquina e seu poder político ( sigilos, pressão na Receita, promessas de indicações para magistrados de tribunais inferiores) para, a partir de uma decisão do tão criticado STF, embarreirar denúncia do MP contra o filho - em um caso de peculato e lavagem de dinheiro que reúne assessores (muitos laranjas) alocados também no gabinete do pai quando parlamentar, a começar da filha de foragido abrigado em residência do advogado da família presidencial , além de outros parentes de milicianos notórios. Não é “fake news” recordar que a mãe e esposa de Adriano da Nóbrega, líder  do Escritório da Morte, trabalhavam no escritório de Flávio na Alerj. Nóbrega, que possuía, até ser assassinado, relações financeiras demonstradas com o amigo de Jair, o famoso Queiroz. Assim é fácil afirmar que nada foi provado, enquanto, anos atrás, acusavam de cara outros políticos baseados apenas em delações e reportagens, cercando virtual e politicamente magistrados por condenações. É incrível como o Brasil, em especial o bolsonarismo, naturalizou tais círculos de amizade. Nem com uma pulga atrás da orelha ficam.

Depois de entregar a Casa Civil, coração do governo, e vários órgãos de segundo escalão ao Centrão, dê ao grupo acesso livre, discricionário e nada transparente a dezenas de bilhões de reais ( "orçamento secreto). Filie-se a um partido desse grupo e fortaleça eleitoralmente sua bancada no Congresso, entregando consequentemente àqueles caciques donos de fichas criminais pouco igualáveis poder de gestão de fundos partidário e eleitoral ainda mais robustos.
 
Não bastasse, garantida uma base mais ampla no Congresso a partir do ano que vem, insinua, emulando Hugo Chávez, aumentar o número de integrantes do STF, onde muitos destes parlamentares estão sob investigação ou são réus. Com direito à explícita chantagem: “se não baixarem a temperatura”. Não captaram ainda? Desenho: além do risco democrático embutido na proposta, é do interesse também do Centrão uma Suprema Corte acuada e aparelhada. Ou vocês acham que, com tamanho poder de barganha, não serão indicados para tantas novas vagas nomes que corroborem seus interesses, como Nunes Marques? Tudo isso depois de, quatro anos atrás, o filho Eduardo afirmar que bastava "um soldado e um cabo" para fechar o STF e alguns de seus simpatizantes clamarem, em passeatas e redes sociais, pelo mesmo fim.

Em troca de mais poder político, dinheiro e fiscalização frouxa, um Centrão com maior musculatura deu aval ao projeto autocrático de Bolsonaro. É o pior dos mundos, mesmo se ignorado seu teor reacionário e teocrático. Um projeto cujo DNA é a deslegitimação, com discurso hipócrita antissistema, das instituições, a fim de enfraquecê-las e assim controlá-las. De órgãos de pesquisa como INPE a controladorias de forças de segurança, passando pelo fim da participação da sociedade civil em conselhos ministeriais. Hugo Chávez cassou concessão de emissora de televisão opositora alegando irregularidades fiscais. Lembram-se das ameaças recentes contra a Rede Globo com o mesmo tom supostamente moralizador?

Sim, Lula sempre foi aliado do coronel bolivariano, mas, sem ignorar a corrupção e o que implicava no relacionamento com o parlamento e a presença de radicaloides em segmentos minoritários do PT, em oito anos de seu governo jamais importou para cá práticas semelhantes de coerção institucional nesses níveis, nem mesmo na economia. Ao contrário do que difundem os histéricos bolsonaristas que conseguem ver socialismo naqueles anos. Um governo que tinha um dos maiores empresários do país como vice-presidente, um representante do agronegócio no Ministério da Agricultura, Henrique Meireles no Banco Central e dirigentes dos grupos Sadia e Volkswagem no Ministério da Indústria e Comércio. Rejeitou, por saber o grau de instabilidade que causaria, proposta de possibilidade de terceiro mandato, quando atingia 80% de popularidade. George W. Bush o via como o irmão adulto e moderado do caudilho venezuelano e a ele recorreu em diversos momentos. Isto são fatos, não opinião.

Com Legislativo sob controle através do dinheiro, Forças Armadas instrumentalizadas, o tribunal revisor constitucional e a PGR tutelados, reforça-se o desequilíbrio institucional, esfacela-se a transparência e aumenta-se a impunidade. Sem freios e contrapesos, não há democracia e, portanto, não há combate à corrupção- nem a exposta no primeiro mandato, que muitos insistem em não ver, ou minimizam,  muito menos as de um eventual segundo mandato. Não por acaso, essa turma insiste na cantilena de que “na ditadura militar não havia roubo”. Ditadura, aliás, que, ao mesmo tempo que lhe retirou poderes, também aumentou o colegiado do STF.

Ou vocês realmente acham que respeita as leis quem, não bastasse tal repertório, já admitiu ser sonegador em programa de TV e praticar garimpagem irregular? Que acredita na democracia liberal quem, além de tudo já citado, passou décadas defendendo fuzilamento de presidente, elogiando torturador de mulheres ( algumas grávidas), exaltando como estadistas ditadores como Medici, Pinochet e Stroessner e afirmando que o “erro da ditadura foi ter matado poucos”, porque não se resolve nada “sem guerra civil”? “Se inocentes morrerem, paciência”, minimizou.  Esse mesmo Bolsonaro que planejou atentado terrorista na adutora de Guandu apenas no final da década de 80, como sempre foi de conhecimento na caserna bem antes de sua entrada na política, apesar da absolvição por dubiedade de exame grafológico, em recurso à tribunal militar. Não por uma causa ideológica nem como combate à regime de exceção, apenas para reivindicar melhores soldos. 

Acham mesmo que foram meras “frases mal colocadas”, assim como na falta de empatia de expressões como “e daí, não sou coveiro?" e outras tantas do tipo em meio a uma pandemia cuja condução por ele, repleta de teorias irresponsáveis, seria ainda mais repetitivo relembrar?  Permanecem pensando assim mesmo juntando todos os pontos acima? Ainda acreditam ser essa eleição um plebiscito sobre quem roubou, fazendo uma linha de corte simploriamente quantitativa para ilegalidades toleráveis, no fundo em função de afeições e preferências ideológicas? Bolsonaro faz, com mais esperteza retórica, o que acusa os outros de terem feito.