segunda-feira, 5 de abril de 2010

Leituras brasileiras no Irã

Por Matias Spektor (10/03/10) (https://www.ipen.br/sitio/?idc=6796)
As grandes potências nucleares têm pouca autoridade moral para invocar o Tratado de Não-Proliferação Nuclear - TNP, porque não o cumprem.
É impossível ouvir referência ao Brasil em Washington que não venha acompanhada de uma frase sobre o Irã. Em seminários acadêmicos, no governo e entre jornalistas há duas perguntas recorrentes: ao rejeitar possíveis sanções do Conselho de Segurança da ONU contra o Irã, o Brasil não estaria fazendo o jogo de Teerã? Esse comportamento não enfraquece o regime de não proliferação nuclear?
As respostas mais comuns são previsíveis. Um grupo responde afirmativamente, denunciando o antiamericanismo do governo Lula. Outro grupo reage negativamente, acusando a hipocrisia americana em relação ao Irã. A falsa dicotomia empobrece o debate e atrapalha a leitura atenta das motivações brasileiras.
Hoje há três fatores que ajudam a explicar a postura brasileira em relação ao programa nuclear iraniano. Primeiro, na interpretação brasileira, as sanções podem ser um prelúdio para uma intervenção militar no Irã. A lembrança é recente: a última vez que o Conselho de Segurança votou com base em evidência não conclusiva, o mundo teve de lidar com uma intervenção ilegítima no Iraque que minou o princípio básico da segurança coletiva.
Segundo, o Brasil rejeita a noção de quais sanções da ONU possam criar um ambiente favorável para negociações de ´´boa fé´´. Ao contrário, pressões externas e isolamento podem convencer o Irã a buscar de fato a nuclearização. O Brasil tem experiência histórica ampla com esse tipo de lógica: quando a ditadura brasileira tentou desenvolver um programa nuclear civil fora do âmbito do Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP) encontrou enormes pressões internacionais. Para esquivar-se delas, criou um programa nuclear secreto. Os resultados foram limitados e custaram caro, mas o país desenvolveu a tecnologia para enriquecer urânio. Como disse um diplomata recentemente, ´´quando o Brasil olha para o Irã, não vê apenas o Irã, também vê a si próprio´´.
Terceiro, na leitura brasileira, as potências nucleares têm utilizado o TNP de forma seletiva. Afinal de contas, argumenta-se em Brasília, não há pressão sobre Israel para que reconheça as armas nucleares que possui mas não declara. Tampouco houve punição contra a Índia, que se nuclearizou, desafiou o TNP abertamente e, de quebra, recebeu um vantajoso acordo de cooperação nuclear por parte de Washington. Finalmente, diz o argumento, as grandes potências nucleares têm pouca autoridade moral para invocar o TNP porque ainda não conseguiram honrar sua parte do acordo, qual seja o progressivo desmantelamento de seus arsenais nucleares.
Seria um erro descartar esses três fatores como mero antiamericanismo. Nas três instâncias trata-se de mitigar aquilo que Brasília vê como o lado mais duro e injusto da postura americana em questões de não-proliferação. Isso não impede o Brasil de ter grandes faixas de coincidência com os Estados Unidos no tema. Como um dos maiores beneficiários do sistema de segurança coletiva existente desde 1945, o Brasil não irá desafiar a concepção de ordem internacional vigente. Como um país emergente com uma longa história de fragilidade e dependência, busca impedir que as normas internacionais sejam instrumento a serviço dos mais fortes.
Também seria um erro atribuir a argumentação ao governo atual. Os três raciocínios encontram eco nos principais partidos do país, da esquerda à direita. Basta fazer um exercício hipotético: se o Palácio do Planalto estivesse hoje sob comando da oposição, é plausível supor que os três fatores continuariam a ser centrais na definição da atitude brasileira? A resposta é possivelmente ´´sim´´.
É claro que há divisões partidárias importantes quando o tema é Irã. É difícil imaginar outro governo lidando da mesma forma com Teerã. Mas para explicar por que o Brasil se comporta como o faz diante do crescente desafio iraniano, olhar para o embate político-partidário brasileiro é seguir uma pista secundária. A pista principal tem a ver com a experiência histórica do Brasil no sistema internacional.
O Brasil não é um membro permanente do Conselho de Segurança da ONU e por isso não pode vetar resoluções daquele foro. Mas como detentor de uma cadeira rotativa no biênio 2010-2011, sua atitude pode facilitar ou complicar a criação de um consenso internacional em relação ao programa nuclear iraniano. O Brasil já disse que não gosta de sanções. Agora precisa dizer o que a comunidade internacional deve pôr no lugar delas. Entender os porquês da postura brasileira é mais que nunca um exercício urgente.
Matias Spektor é coordenador do Centro de Relações Internacionais no CPDOC da Fundação Getulio Vargas e autor de Kissinger e o Brasil (Zahar 2009). Em 2010, é pesquisador visitante junto ao Council on Foreign Relations (EUA).