quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

A "res pública" e o debate eleitoral brasileiro

Por Murillo Victorazzo

Res pública é uma expressão latina cujo significado é "coisa do povo". Quis a História que,coincidentemente ou não, justamente no dia em que os brasileiros celebram a proclamação de sua República,  políticos de grande relevância, enfim, fossem presos por desviarem "coisas do povo". Será este o início do longo processo que levará o Brasil a tornar-se de fato uma república democrática, aquela que, como disse Abraham Lincoln, é feita "do povo, pelo povo, para o povo"? Tomara, porque corrupção não é propriedade de partido algum.

Exemplos não faltam. Recentemente os casos Alston/Siemens, do metrô de São Paulo, o escândalo envolvendo fiscais da Prefeitura da mesma cidade, além de outros mais antigos, como os mensalões tucano e do DEM e o "Cachoeiragate", nos mostraram que partidarizar a corrupção serve apenas como discurso eleitoral para dirigentes e militantes das siglas adversárias ao envolvido da vez. Fazer um exercício de memória e recordar as notícias de jornais de décadas passadas também

Assim que o PT viu dois de seus principais líderes irem para a cadeia, tornando-se, dessa vez negativamente, protagonista de um fato histórico, a cúpula do seu principal adversário reuniu-se para ensaiar indignação. Ao lado de integrantes da Executiva e de governadores do PSDB, o ex-presidente Fernando Henrique comemorou a prisão dos petistas, chegando a dizer que eles teriam tentado "rasgar a Constituição". "Hoje vejo que a Justiça começa a se fazer", afirmou ele.

Duas ausências foram notadas, embora não lamentadas necessariamente: os ex-governadores José Serra e Eduardo Azeredo. A do primeiro não surpreende. Serra não desiste de remar contra a maré e reluta em admitir que a bola da vez tucana é Aécio Neves. A outra, como mostra matéria do Estadão de 18 de novembro, nada mais foi do que uma conveniente "coincidência" - as aspas, neste caso, são fundamentais.

Réu no "mensalão mineiro", escândalo cujo operador, o publicitário Marcos Valério, e o modus operandi são o mesmo da ladroagem petista, Azeredo constrange a legenda e é um dos nomes de alta plumagem a por por terra qualquer tentativa dela de levantar a bandeira de um verdadeiro republicanismo.

Ex-governador, ex-senador, fundador e ex-presidente da sigla, o hoje deputado federal será julgado pelo STF provavelmente no primeiro semestre do ano que vem, a poucos meses das eleições presidenciais. Assim como José Dirceu e José Genoíno, não foi expulso de seu partido, mesmo não tendo a força política interna dos dois petistas Para constrangimento maior do tucanato, seu presidenciável, aquele que FHC, no mesmo encontro, alcunhou de "o nome da esperança", é o cacique maior do PSDB no estado do réu. 

A diferença entre os mensalões petistas e tucanos é apenas de dimensão: uma, nacional; outra, regional. Um comprou deputados para votar como o governo desejava. O outro comprou votos futuros. Pois partido que financia candidaturas a deputado estadual de outro partido não objetiva outra coisa que não seja a retribuição nos debates da Assembleia local. Fora tempo de televisão na campanha eleitoral. Moralmente, são igualmente repulsivos: desviaram dinheiro público para atingir seus objetivos.

Muitas vezes, o discurso da ética também é a brecha para eleitores tentarem referendar e justificar suas antipatias ideológicas prévias. É a catarse do "Está vendo, não falei? Essa raça não presta". É o grave erro de misturar caráter com visões de mundo; de julgar a probidade da pessoa ou do grupo sob o prisma das políticas públicas e das ideias socioeconômicas defendidas/praticadas por eles. O meu ladrão não é melhor do que o seu. Ou não deveria ser.

Sob a comoção de um julgamento histórico, em meio a um debate que vem se polarizando, qualquer ponderação é, cínica ou ingenuamente vista por muitos como defesa do PT. Mas não é. Trata-se de olhar para o futuro em busca de uma real solução. Para quem, antes de tudo, apenas deseja refundar nossa república em bases que justifique a etimologia da palavra, pouco importando se está mais à direita ou à esquerda, a questão é muito mais complexa. Exigirá muito mais tempo, esforço e conscientização. 

Serve ainda para entender por que o discurso eleitoral da ética é falho. Quem tem memória política sabe que, há décadas, presidenciáveis o vendem e, diante da novidade que representavam, até 2002, obtiveram êxito. Foi assim com Jânio Quadros e sua vassourinha, o "caçador de marajás" Fernando Collor e, ironicamente, Lula, que,  em um ambiente econômico de desemprego, crescimento econômico nulo e racionamento de energia, só chegou ao poder por dizer representar a "nova política".

Do mesmo modo, ainda que com um discurso menos virulento, o PSDB nasceu como a dissidência ética do PMDB. Eram os 'peemedebistas do bem" que saiam da legenda por não concordarem com o domínio da máquina partidária por Orestes Quercia, símbolo do fisiologismo e da ladroagem. Sem entrar nos méritos ou deméritos da gestão de políticas públicas, ao assumirem o poder em 1994, os tucanos repetiram os mesmo erros no trato com a res pública. 

O processo de aprovação da emenda constitucional da reeleição, que, se não bastassem as denúncias de compra de votos, favoreceu os próprios detentores de mandato à época e não exigiu o afastamento temporário do cargo para concorrer ao novo mandato, e ter Renan Calheiros como ministro da Justiça são dois de outros sintomáticos exemplos. Não por acaso, boa parte da base governista de FHC é a mesma de Lula/Dilma.

Sem opções, grande parcela do eleitorado viu-se obrigada a tornar-se ainda mais pragmática. Convicta, com razão, de que todo grupo político tem seus podres, optou por usar como critério de voto basicamente sua sensação de bem-estar econômico. Aquele que lhe permitiu melhorar sua qualidade de vida será seu escolhido.

De certa forma, aliás, a lógica econômica quase sempre prevaleceu, mesmo quando Lula, ainda não testado, representava "uma nova forma de fazer política". Foi assim em 1994 e 1998, quando a população preferiu o candidato do Real, FHC, apesar de sua composição com os setores mais atrasados e depois, na busca pela reeleição, das denúncias envolvendo seu governo e aliados.

Parece, portanto, fadado ao fracasso a retórica (falsa) moralista de Aécio Neves. Melhor será por em discussão os erros administrativos de Dilma e suas eventuais diferentes visões de mundo. Quem é mais capaz de melhorar os serviços públicos e fazer o país crescer sem deixar de lado o combate à desigualdade social, reconhecendo os avanços dos últimos 20 anos? Qual o tipo de Estado e de relacionamento com os outros países é melhor para alcançarmos esse objetivo?

Os fiéis petistas e os ardorosos antipetistas já sabem a resposta. Resta convencer os que se encontram no meio caminho. Isso sem falar no híbrido Eduardo Campos (PSB), no que ele proporá e qual será o papel e o peso da ex-senadora e ex-ministra Marina Silva na sua chapa. Esta, por hora, a única que pode canalizar o  chamado voto ético.

Alguns dirigentes petistas, no entanto, se arriscam e dão o gancho sonhado pelos tucanos ao insistirem com a ladainha de que o julgamento do mensalão foi político. Embora supostos abusos no processo de expedição das prisões devem sim ser condenados, pois Justiça não é sinônimo de justiçamento, insistir que não houve direito de defesa ou que seus condenados são presos políticos é cinismo. Agindo assim,  ajudam a estigmatizar o PT, cuja cúpula - e não todos - fez por merecer a condenação.

Rótulos, arroubos preconcebidos e generalizações a favor ou contra uma ou outra legenda, no aspecto moral, turvam o debate. Assim como o tempo provou ser estelionato eleitoral a pecha de partido puro, é falacioso qualificá-lo como quadrilha, como se todos os petistas fossem criminosos. Ou a sigla a única a sofrer com escândalos.

Não há no mundo, nem tem como haver, partido honesto, do mesmo modo que não há corporações honestas. Há, sim, políticos, executivos, funcionários honestos. No Brasil, cujo sistema político falido é a mescla de uma cultura sociopolítica viciada com um arcabouço que afasta o representante do representado e uma burocracia estatal que de pública, desde muito, pouco tem, o terreno tende a ser ainda mais fértil para escândalos.

Este sistema, em seus processos de formação de maiorias legislativas e na pouco transparente relação entre doadores privados e eleitos, estimula e até impele governos e políticos a entrarem no mercado do fisiologismo, do clientelismo, do balcão de negócios de emendas, da cooptação de siglas menores pelas maiores através de ajuda financeiras para campanhas e  da trocas de favores por meio de licitações encaminhadas ou superfaturadas.

Quando tal contexto encontra quem, por desvio de caráter, pensa ser a carreira política o modo mais fácil de enriquecer, desviando dinheiro público, o cenário torna-se apavorante. E evidencia que, além de uma profunda reforma política, o país precisa de uma efetiva modernização do Judiciário e de deixar para trás a cultura do jeitinho, do patrimonialismo, da esquizofrenia ética, que faz com que muitos que cometem seus pecadilhos cotidianos, frutos de maus costumes, pensem que estes nada têm a ver com isso. Político não é ET; vem do berço da sociedade.

O caso dos fiscais de ISS paulistanos talvez sintetize nosso drama com perfeição. Arraigado em vários escalões da prefeitura, mostrou-se ser um corroído sistema suprapartidário que ultrapassara gestões. Secretários e subsecretários ligados aos ex-prefeitos Gilberto Kassab e Serra e ao atual prefeito, Fernando Haddad, políticos de legendas diferentes, são investigados.

Caso corrupção tivesse DNA, seria mais fácil retirá-la do nosso dia a dia Mas não é. Portanto, que os demais larápios acabem como os mensaleiros; que façamos o debate ideológico ou programático à parte; que reflitamos sobre que sociedade é a nossa - e que, assim, esse 15 de novembro faça jus ao seu significado.