domingo, 11 de junho de 2017

Terrorismo de conveniência

Por Adriana Carranca (O Globo, 11/11/2017)

Esqueça o terrorismo. O que está por trás do isolamento diplomático e econômico do Qatar, capitaneado pela Arábia Saudita, é a maior reserva de gás natural do mundo, sob as águas do Golfo Pérsico, que o pequeno país compartilha com Irã, na margem oposta. Há cerca de um mês, o emir qatari anunciou que retomaria o desenvolvimento do Campo Norte, após 12 anos de moratória autoimposta, oficialmente, para avaliação técnica — extraoficialmente, por pressão dos sauditas.

Arábia Saudita, berço do Islã sunita, e Irã, teocracia xiita, encarnam não apenas a disputa milenar pela sucessão de Maomé e o domínio do mundo muçulmano, como uma guerra econômica. São, respectivamente, o segundo e o terceiro países da Opep em reserva de petróleo, atrás da Venezuela (que perde dos concorrentes pelo preço alto de extração). Analistas projetam para daqui a 25 anos, ou antes, o pico de demanda mundial por petróleo e o início do seu declínio, enquanto a demanda por gás continuará crescendo, por enquanto, a perder de vista.

O Campo Norte — South Pars, para Teerã — responde por 60% das exportações do Qatar, mas vinha perdendo competitividade para EUA, Austrália e Rússia. Em novembro, o Irã firmou acordo com a francesa Total (na qual o fundo Qatar Holding teria participação) para desenvolvimento do South Pars II, no primeiro negócio fechado após o acordo histórico com EUA que relaxou as sanções econômicas contra o regime dos aiatolás. Daí a paciência da Arábia Saudita com o pequeno Qatar ter se esgotado, mesmo antes de suas reservas naturais.

Menor país do Conselho de Cooperação do Golfo, o Qatar era considerado insignificante até o xeque Tamim bin Hamad Al Thani, pai do atual emir, assumir o poder, em 1995, e começar a perseguir autonomia e uma política externa independente do vizinho gigante. Pouco mais de 20 anos, uma série de crises diplomáticas e duas tentativas de golpe depois — ambas atribuídas pelos qataris aos sauditas —, o Qatar se tornou o país mais rico do mundo, em renda per capita, e se projetou como um ator regional influente, ameaçando a supremacia geoestratégia de Riad.

O Qatar diversificou a economia, investiu na Europa e Ásia, transformou Doha em um hub econômico, financeiro e cultural, com Qatar Airways entre as maiores companhias aéreas do mundo; fundou a rede Al Jazeera, que concorre em audiência internacional com BBC e CNN — embora os interesses do Qatar afetem sua credibilidade, é a emissora que mais se aproxima de um modelo “independente” no Mundo Árabe, que expõe e enfurece as monarquias vizinhas.

O xeque comprou símbolos ocidentais como o clube Paris Saint-German e a loja Harrod’s, em Londres, onde sua mulher pretendia transformar o Cornwall Terrace, projetado pelo arquiteto do Buckingham Palace, em um palácio para o filho e novo emir, xeque Tamim, que se prepara para sediar (não sem acusações de compra de votos e uso de trabalho escravo) a Copa do Mundo em 2022.

Ao abdicar em favor do jovem, o xeque ameaçou monarcas vitalícios. O emir apoiou a Primavera Árabe e a eleição de Mohammed Mursi, no Egito, deposto em 2013 por militares, que têm apoio da Arábia Saudita — a perspectiva de eleições e o Islã político são vistos como ameaça existencial às monarquias do Golfo. É acusado de financiar grupos radicais na Síria ao mesmo tempo em que se aliou à Otan na Líbia e abriga uma base aérea, de onde os EUA lançam operações militares em toda a região.

Os argumentos para o isolamento do Qatar foram o jogo duplo na política externa e financiamento do terrorismo, mas estas são acusações das quais a própria Arábia Saudita é alvo. É a ascensão econômica e política do Qatar, com influência regional e internacional, que irrita Riad e os vizinhos do Golfo e provoca fissuras no bloco há mais de duas décadas, intensificadas pela possibilidade de aproximação com Irã, arqui-inimigo da Arábia Saudita.

O primeiro atentado do Estado Islâmico no Irã, em momento tão delicado, somou-se à crise. A Guarda Revolucionária acusou Riad. O EI, como se sabe, deriva da al-Qaeda, de origem saudita, e é integrado por ex-militares de Saddam Hussein, deposto pela invasão americana e substituído por um governo xiita no Iraque — o quarto país da Opep em reservas de petróleo, em disputa, como na Síria.

São grupos que se escondem sob a couraça da religião, mas servem a interesses econômicos de quem os financiam, sequestrando a fé de dois bilhões de pessoas, entre as quais está a maioria das vítimas do terrorismo e das guerras.

sexta-feira, 9 de junho de 2017

A triste comédia de um circo chamado TSE

Por Murillo Victorazzo

Muitas vezes, o Judiciário vai genuinamente de encontro ao desejo da opinião pública. Ritos, técnicas, leis nem sempre alcançam o senso comum. O populismo judicial é tão prejudicial quanto um juiz que lê leis como um fundamentalista lê a Bíblia. Mas o que se viu nesta semana, no julgamento pelo TSE da chapa Dilma-Temer não foi nenhum destes casos.

O que o brasileiro engoliu pela TV foi um circo armado onde quatro canastrões, dois recentemente chegados àquele local para encenar exatamente esse papel, interpretaram um pastelão de péssimo gosto. Os argumentos tão escancaradamente cínicos e rasos, não simples filigranas jurídicas, decorados com tanto empenho para livrar Temer, deixou apenas uma conclusão: eles de fato pensam que somos otários. 

O voto de desempate, o clímax da patifaria, só poderia ter sido dado por quem melhor sintetiza o ocorrido: Gilmar Mendes, aquele que não cansou de se encontrar nas noites de Brasília ou na Europa com o presidente acusado, é um câncer narcisista e arrogante imune a críticas pelo antipetismo visceral até recentemente. Talvez agora estes tenham acordado.

A bizarra peça ainda abriu espaço para monólogos estarrecedores alheios à analise da ação, como a eloquência do ministro Napoleão Mais ao se defender de denúncias que o envolveriam em delações.

Calúnias são resolvidas com ações judiciais. Algo está disfuncional ou não cheira bem quando, em plenário, um membro do próprio Judiciário, ainda que apenas como força de expressão, faz o gesto de degola para dizer desejar que a "ira do profeta" caia sobre seus acusadores. Corre-se o risco da leviandade, mas o passado exige o ceticismo com discursos altamente indignados: quanto mais forte o tom, mais fraca a credibilidade.

Depois de hoje, o melhor seria que o TSE fechasse, e o nababesco prédio se tornasse um mero comitê pra cuidar apenas da logística e burocracia de eleições. Só não peço um Engov porque sou alérgico a Aas.

terça-feira, 6 de junho de 2017

Luta contra corrupção?

Por Murillo Victorazzo

Se o clamor contra a corrupção bradado por lideres de movimentos e certos articulistas até recentemente - seguidos por uma parcela da sociedade - fosse de fato prioritário, sem seletividade e obsessão ideológicas ou tolerância com o "rouba, mas faz", esta, além de imoral, inócua e cega (não há reformas econômicas estruturais que se sustentem a longo-prazo sobre um sistema político podre como o sintetizado em Temer e seu círculo, e ele no poder as inviabiliza, ao contrário do que prega), haveria pelo menos algumas centenas de pessoas à frente do TSE por esses dias, clamando pela cassação da chapa PT-PMDB.

É a mobilização nas ruas, além da esquerda lulista, que falta pra cravar a estaca no governo do "Vampiro". Externar a rejeição a Temer não pode significar desejar Lula. E relevar o primeiro por "medo" do segundo não faz sentido ético nem prático - para quem não quer apenas fazer catarse direitista.

sábado, 3 de junho de 2017

PSDB sendo PSDB

Por Murillo Victorazzo

Principal voz de apoio ao impeachment de Dilma, o PSDB não só aceitou participar como se tornou o esteio programático do governo Temer, o outro lado da moeda que será julgada no TSE dia 6 graças a uma ação sua ("só pra encher o saco deles [petistas]", como admitiu Aécio nas fitas da JBS). Agora, afirma que a debandada do governo que ajudou a ascender depende do julgamento que ajudou a acontecer. Quanta ironia...

Assessores de Temer, segundo o Globo, dizem duvidar da ruptura, por estarem no mesmo barco, já que, entre outras razões, Aécio, o presidente até então da sigla, foi alvejado no coração na mesma delação que bombardeou o Planalto. A denúncia da PGR apresentada nesta sexta-feira, 2, reforça o argumento.

Alckimim, de olho em 2018, de início, torcia para que o abandono do barco acontecesse logo. Depois, refez a estratégia e, sentindo que uma eleição indireta embaralharia as cartas do jogo sucessório, por fortalecer o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM), recuou. Pressiona neste momento para a seção paulista se manter ao lado de Temer. Deputados da ala jovem desejam o oposto.

Ameaçados, o PMDB chantageia. Manda mensagens garantindo que não apoiarão nenhuma chapa do PSDB ano que vem, caso a sigla faça com Temer o mesmo que os peemedebistas fizeram com o PT.

Os tucanos estão presos à armadilha da hipocrisia, incoerência e pouca visão (Temer ser alvejado pela Lava Jato não deveria surpreender ninguém; ao contrário, era o esperado) que criou para si próprio. E se mantém "consteando a alambrado", como diria o velho Brizola, com a dubiedade típica do partido que cresceu com a pecha de gostar de um muro e ser naturalmente rachado.