terça-feira, 25 de abril de 2017

Coreia do Norte corre para ter bomba e EUA temem não impedir avanço

Por David E. Sanger e William J. Broad ( The New York Times/UOL, 25/04/2017)

Por trás da súbita urgência do governo Trump para lidar com a crise nuclear na Coreia do Norte há um duro cálculo político: um volume cada vez maior de estudos de peritos e relatórios secretos da inteligência conclui que o país asiático é capaz de produzir uma bomba nuclear a cada seis ou sete semanas.

Esse ritmo mais acelerado --impossível de verificar até que os peritos ultrapassaram o acesso limitado às instalações da Coreia do Norte, que terminou anos atrás-- explica por que o presidente Donald Trump e seus assessores temem que o tempo esteja se esgotando. Durante anos, os presidentes americanos decidiram que cada avanço no programa da Coreia do Norte --mais um teste nuclear, uma nova variante de um míssil-- era preocupante, mas não valia um confronto que poderia desaguar em um conflito declarado.

Hoje esses avanços passo a passo da Coreia resultaram em ogivas que dentro de poucos anos poderão atingir Seattle (costa oeste dos EUA). "Eles melhoraram muito", disse Siegfried Hecker, professor em Stanford que dirigiu de 1986 a 1997 o laboratório de armas em Los Alamos, no Novo México, onde nasceu a bomba atômica. Os norte-coreanos deixaram Hecker entrar sete vezes em suas instalações.

A Coreia do Norte está ameaçando mais um teste nuclear, que seria o sexto em 11 anos. Os últimos três --o mais recente foi em setembro-- produziram explosões do porte de Hiroshima. Não está claro como Trump reagiria a um teste, mas ele disse a representantes do Conselho de Segurança da ONU na Casa Branca na segunda-feira (24) que se preparem para aprovar sanções muito mais restritivas. Segundo autoridades dos EUA, estas deverão incluir o corte de suprimento de energia. "As pessoas colocaram tapa-olhos durante décadas, e agora é hora de resolver o problema", disse Trump.

Ele fez os comentários depois de um telefonema no domingo à noite com o presidente chinês, Xi Jinping, em que discutiram a Coreia do Norte. Xi pediu que Trump mostre "contenção" com a Coreia do Norte, segundo uma reportagem na televisão chinesa. Autoridades da Casa Branca falaram pouco sobre o telefonema, e assessores estão tentando usar a imprevisibilidade de Trump em sua vantagem, esperando que mantenha os chineses fora do prumo e detenha os norte-coreanos.

O QUE SE SABE SOBRE O PROGRAMA NUCLEAR DA COREIA DO NORTE

Um arsenal crescente

Na CIA, ela é chamada de "bola de discoteca". É uma esfera metálica coberta por pequenos círculos, que o líder norte-coreano, Kim Jong-un, é visto acariciando em fotos oficiais, como se fosse sua joia da coroa. E talvez seja: a esfera é supostamente uma arma nuclear, reduzida para caber no nariz em forma de cone de um míssil do crescente arsenal do país.

Membros da inteligência americana ainda discutem se é uma bomba de verdade ou um simulacro que faz parte do vasto esforço de propaganda do país. Mas se destina a mostrar para onde a Coreia do Norte está rumando.

A menos que alguma coisa mude, o arsenal norte-coreano poderá ter 50 armas nucleares até o fim do mandato de Trump, aproximadamente a metade do arsenal do Paquistão. Autoridades americanas dizem que a Coreia sabe encolher essas armas para que caibam na ponta de um de seus mísseis de curto e médio alcance, capazes de atingir a Coreia do Sul e o Japão, onde estão mobilizadas milhares de tropas dos EUA. As melhores estimativas são de que a Coreia do Norte tenha aproximadamente mil mísseis balísticos de até oito variedades.

Mas realizar o sonho de Kim --colocar uma arma nuclear num míssil balístico intercontinental capaz de alcançar Seattle ou Los Angeles, ou um dia Nova York-- continua sendo um problema mais complexo.

Como disse Hecker --que construiu uma grande quantidade de armas nucleares-- na semana passada, qualquer arma que possa viajar tão longe teria de ser "menor, mais leve e superar as dificuldades adicionais das tensões e temperaturas" da reentrada em chamas na atmosfera.

Segundo a maior parte das estimativas, isso ainda vai demorar de quatro a cinco anos. Mas muitas autoridades graduadas disseram isso quatro ou cinco anos atrás.

O Norte chegou mais longe do que a maioria dos especialistas esperava desde o nascimento de seu programa, nos anos 1950, quando a União Soviética começou a treinar cientistas norte-coreanos no conhecimento básico da energia nuclear.

Levou três décadas para que o Norte reunisse a tecnologia necessária para fabricar seu próprio combustível para a bomba. Finalmente, de um reator em Yongbyon, ela conseguiu fabricar plutônio suficiente para produzir uma bomba atômica por ano.

A primeira crise nuclear da Coreia do Norte, em 1994, terminou com um acordo com o governo Clinton para que o Norte congelasse suas instalações de produção em troca de petróleo e reatores pacíficos. Ele desmoronou no início do governo de George W. Bush. Em 2006, a primeira explosão de teste, embora não impressionante, colocou a Coreia do Norte no clube das potências nucleares. Analistas dizem que a primeira explosão foi uma bomba de plutônio, assim como uma segunda detonação poucos meses após o início do governo Obama, em 2009.

Hecker visitou Yongbyon em 2010, e os norte-coreanos mostraram a ele uma instalação completa de enriquecimento de urânio, que as agências de inteligência dos EUA não tinham notado. A mensagem foi clara: o Norte agora tinha dois caminhos para chegar à bomba: urânio e plutônio. Hoje ela tem um arsenal feito dos dois, segundo membros da inteligência.

E está almejando algo muito maior: uma bomba de hidrogênio, com uma força destrutiva até mil vezes superior à das armas nucleares comuns. Foi exatamente o caminho que os EUA seguiram nos anos 1950.

Recentemente, investigadores da ONU encontraram evidências de que as fábricas do Norte conseguiram produzir lítio 6, um ingrediente raro necessário para fabricar combustível termonuclear. Gregory Jones, um cientista da Rand Corp., disse que o Norte pode ter usado pequenas quantidades de combustível termonuclear em suas detonações em 2016.

Uma pista potencial, segundo analistas, é que as cinco explosões do Norte na última década se tornaram cada vez mais destrutivas.
Encolhendo a bomba

Uma bomba é inútil para a Coreia do Norte --como arma ofensiva ou de dissuasão-- se o país não puder afirmar de modo convincente que tem um sistema de remessa confiável. Por isso, quando o país exibe mísseis em desfiles militares, como fez em 15 de abril, os astros do show tendem a ser os grandes mísseis destinados a alcançar Washington e Nova York. Enquanto vários mísseis balísticos intercontinentais rolaram pelas avenidas de Pyongyang, realizar um teste que prove a capacidade de voar tão longe e pousar com precisão é apenas uma aspiração, até agora.

Não estiveram na parada os mísseis de curto e médio alcance que já foram disparados com sucesso em testes de voo. As agências de inteligência dos EUA acreditam que alguns desses podem carregar armas nucleares operacionais. O mais crítico é o Nodong, que pode voar cerca de 1.300 km.

Mas os norte-coreanos estão descobrindo --assim como já fizeram os EUA, a União Soviética e a China-- que é muito mais complicado projetar um míssil intercontinental. Com esse sistema de armas, uma ogiva se deslocaria a 6,4 km por segundo e reentraria na atmosfera em chamas --por isso, se a engenharia não for boa, queimaria muito antes de atingir o alvo. Para alcançar seu objetivo, os projetistas de armas da Coreia do Norte estão tentando miniaturizar suas ogivas, tornando-as muito mais leves e poderosas.

O grande esforço hoje é combinar duas tecnologias: ter um míssil capaz de atravessar o Pacífico e juntá-lo com uma ogiva que consiga sobreviver à viagem. É por isso que os EUA estão tão desesperados para deter o ciclo de testes.

Os ataques de guerra cibernética e eletrônica que o presidente Barack Obama ordenou contra a frota de mísseis do país se destinavam a conter a curva de aprendizado da Coreia do Norte. O Musudan, que pode percorrer 3.500 km, acumulou um índice de falhas embaraçoso, de 88% --embora não se saiba quanto disso se deve a incompetência ou a interferência externa. Até que os norte-coreanos descubram o que deu errado, e como consertá-lo, parecem hesitantes em testar o KN-14 e KN-08, ambos desenhados para atingir o território continental dos EUA.

A pressão diplomática da China para deter um sexto teste nuclear no sítio de testes de Punggye-ri destina-se a impedir que os norte-coreanos avancem na miniaturização das ogivas e no projeto de uma bomba de hidrogênio. Como comentou Obama antes de deixar o cargo, até os fracassos são instrumentos de aprendizado importantes para os norte-coreanos, ajudando no processo de tentativa e erro na fabricação de novas ogivas.

Quanto tempo levarão os norte-coreanos para resolver esses problemas? O melhor palpite é por volta de 2020 --enquanto Trump ainda estará no poder.
Congelar, para quê?

A estratégia que surge da equipe de segurança nacional de Trump se resume a aplicar forte pressão à Coreia, militar e econômica, para congelar seus testes e reduzir o arsenal. Depois usar essa abertura para negociar, com o objetivo final de fazer os norte-coreanos abandonarem todas as suas armas.

Muitos especialistas, porém, acreditam que isso é uma fantasia, porque Kim considera até um pequeno arsenal crítico para sua sobrevivência. O lado positivo dessa estratégia, se funcionar, é que o "congelamento nuclear" retardaria durante anos o dia em que o Norte poderá encaixar uma arma pequena, confiável e bem testada em um míssil grande, confiável e bem testado. O lado negativo é que isso deixaria os norte-coreanos com um arsenal pequeno e potente, que os EUA estariam basicamente reconhecendo, senão aceitando.

Por isso será difícil Trump cumprir sua promessa de "resolver esse problema". E a cada dia há a possibilidade de um erro de cálculo ou um acidente.

A qualquer momento, disse Hecker em uma ligação para repórteres organizada pela União de Cientistas Preocupados, uma arma viva poderia dar em uma detonação nuclear acidental ou alguma outra catástrofe. "Eu sou um que acredita que a crise já está aqui", disse ele.

Tradução: UOL

sexta-feira, 21 de abril de 2017

Como lidar com regime mais perigoso do mundo

The Economist* (21/04/2017)

A Coreia do Norte pode ser tão confusa como alarmante. É uma monarquia hereditária marxista. Tem o líder mais jovem do mundo e também o mais antigo. O tirano reinante, Kim Jong-Un, está em seus 30 anos; e seu avô, Kim Il Sung, é o "Presidente eterno", apesar de ter morrido em 1994. Para comemorar o aniversário do vovô Kim em 15 de abril, seu neto ordenou que aviões sobrevoassem escrevendo no céu sua idade: 105.

Também ordenou um desfile gigantesco, com soldados e mísseis em caminhões. Um coro masculino cantava "A paz é garantida por nossos braços", mesmo que o regime ameace fazer chover a destruição de seus inimigos e está a prestes a construir um míssil projetado para atingir o território norte-americano.

Lidar com o Deus-Rei Júnior belicoso será uma das tarefas mais difíceis de Donald Trump. Também será o primeiro grande teste de como ele lida com as relações em transformação com a China, potência que desafia crescentemente a Pax Americana na Ásia.

 Não há boas opções, mas chegar ao menos-mal exigirá a compreensão tanto do regime e como do quebra-cabeça geopolítico asiático no qual ele se encaixa. Também exigirá paciência. Sinistramente, Trump diz que ele tem pouco quando se trata de Coreia do Norte, e seu vice-presidente, Mike Pence, afirma que "todas as opções" estão sobre a mesa.

Querer fazer algo rapidamente é emocionalmente apelativo.  A Coreia do Norte é uma ditadura vil, ensanguentada, onde qualquer indício de deslealdade é punível com "Gulag" ou a morte. Kim prende filhos presos por crimes de pensamento dos seus pais e mandou matar seus próprios familiares mortos por capricho. A perspectiva desste homem ameaçando Los Angeles é angustiante.

 Ainda na Coreia do Norte, um ataque preventivo seria imprudente. Seus dispositivos nucleares estão escondidos, possivelmente em profundos subsolos. Seus mísseis são dispersos em lançadores móveis. Tóquio é só atravessar o mar do Japão. Seul, a capital da pacífica e capitalista Coreia do Sul está a  apenas algumas milhas da fronteira. A artilharia e mísseis convencionais poderiam devastá-la, em um conflito que pode rapidamente transformar-se nuclear e matar milhões de pessoas.

Trump não vai querer começar uma guerra. Suas ações militares na Síria e Afeganistão sugerem que ele é mais cauteloso do que faz soar. Mas mesmo a apenas impressão de que ele pode atacar primeiro é perigoso. Se Kim acreditar que um ataque americano é iminente, pode lançar seu próprio ataque nuclear preventivo, com consequências desastrosas. Trump deveria, portanto, esfriar sua retórica imediatamente.

Afora suas excentricidades, Kim comporta-se racionalmente. Assistiu Muammar Kadaffi,  na Líbia, desistir de seu programa nuclear em troca de melhores relações com o Ocidente — e acabar morto. Ele vê seu arsenal nuclear como garantia de que seu regime - e ele- irão sobreviver (embora seja suicida para ele usá-lo).

Trump pouco pode fazer para mudá-lo de ideia. As sanções econômicas que prejudicam o povo norte-coreano não vão tirar o apetite do ditador. Cyber-ataques, que podem explicar o fracasso de alguns recentes lançamentos de mísseis, podem retardar mas não impedi-lo. Apenas com a ajuda da China a  América pode resolver o enigma coreano.

A China está em vantagem sobre Kim. É responsável por 85% do comércio exterior da Coreia do Norte e poderia interromper seu suprimento de petróleo. Mas seus interesses não são os mesmos da América. A Coreia do Norte é seu aliado. Os líderes chineses não gostam do regime de Kim, mas não desejam vê-lo entrar em colapso, muito menos a unificação, no estilo alemão, com o Sul democrático. Seria, para o pavor chinês, a perda de uma valiosa reserva. Há 28.500 soldados americanos estacionados no sul; a China não os quer em sua fronteira.

Para conter a Coreia do Norte - e para conduzir uma política externa bem sucedida mais amplamente - Trump tem que aprender a falar com a China. Seu instinto é fazer negócios. Na semana passada, twittou que dissera a Xi Jinping, o presidente chinesa, que "um acordo de comércio com os EUA seria "muito melhor para eles caso resolvem o problema da Coreia do Norte!" Mais tarde, explicou que sua decisão de não acusar a China de manipuladora de moeda, como tinha ameaçado, era um quid pro quo para China ajudar na crise com Coreia do Norte. Abandonar a ameaça sobre a moeda foi a política certa, mas a abordagem diplomática transacional de Trump é a errada.

A China adoraria esculpir o mundo bilateralmente em esferas de influência, com as grandes potências dominando suas regiões e troca de favores em outro lugar. A América tem sido a guardiã de algo diferente: uma ordem baseada em regras que se aplicam a todos países, grande ou pequeno, e que sustentou a relativa paz e o crescimento notável do mundo desde 1945. Trump aparentar desprezar esta ordem global baseada em regras é preocupante.

O mundo será um lugar mais perigoso se a América começar a deixar a China quebrar regras (por exemplo, no mar da China Meridional) em troca de ajuda na resolução de qualquer questão que passe a ser notícia.  Para a América, a melhor resposta à ascensão da China seria reforçar a ordem baseada em regras e convidá-la a participar mais ativamente. Infelizmente, é improvável que Trump faça isso.

Assim, a esperança é que ele ou seus diplomatas convençam os chineses que é de seu próprio interesse para travar a Coreia do Norte. E a maneira de fazer isso é falar especificamente sobre a Coreia do Norte em si, não o yuan ou aço de empregos americanos.

A China não ganha se Coreia do Norte desestabilizar o sudeste da Ásia, ou começar uma corrida armamentista regional que leve Japão e Coreia do Sul a construir suas próprias armas nucleares. Trump deveria tranquilizar seus aliados em Tóquio e Seul que permanecem sob a proteção do tio Sam, mas também deveria lidar com as preocupações da China.

Para este fim, poderia esclarecer  que seu objetivo é congelar e então reverter o programa nuclear do Norte, em vez  da mudança de regime. Pode ainda garantir que, se o Norte cair nos braços do Sul, a América manteria suas tropas ao sul da atual fronteira Norte-Sul. A China odeia a admitir que a dinastia Kim pode não durar muito, mas não é precipitado fazer planos para esta possibilidade.

A mensagem crucial para Kim, tanto como foi para seus antecessores, é que, se usar suas armas nucleares, o regime será reduzido. A longo prazo, a reunificação é inevitável e desejável. Enquanto isso, o Deus-Rei Júnior pode ser dissuadido.

*Tradução livre do blog

quarta-feira, 19 de abril de 2017

A Narrativa Final

Por Alexandre Rodrigues (Revista Piauí, 19/04/2017)

Em 30 de agosto de 2016, às vésperas do afastamento da presidente Dilma Rousseff, o senador Jorge Viana, do PT do Acre, questionou: “Como a história nos julgará?”, disse, dirigindo-se aos demais parlamentares. Menos de um ano depois, pode-se contar com uma pista e ela não é esclarecedora. Acumula-se um farto material sobre um dos mais controversos episódios políticos da história recente para ser examinado por pesquisadores, estudantes e curiosos num futuro próximo.

 Nos últimos meses, foram lançados – ou estão em fase de conclusão – nada menos do que cinco filmes e cinco livros tratando dos eventos que precederam a queda da ex-presidente. Os enfoques são os mais variados. Há desde coletânea de tuítes de jornalista, ilações sobre o que teria acontecido se ela tivesse seguido as lições do pensador italiano Nicolau Maquiavel, os bastidores das semanas que antecederam sua saída do cargo e até um livro de poesia baseado nos discursos proferidos por congressistas na hora de votar pelo impeachment. Se boa parte dos filmes parece defender a tese do golpe, a maioria dos livros expõe as mazelas produzidas pela própria presidente – o que justificariam seu afastamento.

A versão do golpe tem ganhado visibilidade internacional com o périplo de Dilma Rousseff, que tem viajado pelo mundo com o objetivo de sedimentar a narrativa. Se não encontra eco no Brasil, no exterior tem reverberado a ideia em palestras para acadêmicos, intelectuais, estudantes e em entrevistas para os maiores veículos de imprensa na Europa e nos Estados Unidos. 

No começo de abril, ela proferiu discursos em prestigiosas universidades americanas – Harvard, Columbia, Princeton, Brown. “Qual foi o high crime que eu cometi?”, perguntou a uma concentrada plateia em um dos auditórios de Harvard. ”Vocês americanos se indignariam se o Congresso de vocês destituísse um presidente eleito, nestas condições”, continuou ela, que falava na Brazil Conference, um dos principais eventos de debates sobre o Brasil nos Estados Unidos. Ao final, foi aplaudida com entusiasmo. Entre os convidados do evento, também estavam lá aqueles que poderiam ser chamados de seus algozes – o procurador Deltan Dallagnol e o juiz Sérgio Moro, líderes da Operação Lava Jato. A organização rebolou e, com sucesso, ela e eles não se cruzaram nos corredores.

No que diz respeito à herança audiovisual sobre o fim da era Dilma, a tese do golpe parece prevalecer entre os cineastas. “Creio que em poucos anos a história vai ter claro que esse impeachment, apesar de sua aparência constitucional, foi um golpe”, diz Anna Muylaert, produtora e roteirista do filme que retrata os últimos 180 dias do governo Dilma, dirigido por Lô Politi e César Charlone.

A equipe teve acesso à rotina da presidente e aos bastidores da defesa petista. “Acompanhamos o funcionamento do Palácio neste período, nos aproximamos da personagem de Dilma e narramos sua resistência e de seus aliados na luta contra o impeachment”. O projeto, ainda em produção e sem título, não tem data de lançamento.

Em Harvard, no fundo da sala filmando tudo o que Dilma falava, estava a cineasta Petra Costa, do premiado curta-metragem Olhos de Ressaca e dos longas Elena (2012) e Olmo e a Gaivota (2015). Há mais de um ano, ela prepara o documentário Impeachment: Dois Pesos, Duas Medidas, sobre o fatos que levaram à derrocada da primeira mulher eleita presidente. Ainda que não questione a legalidade do processo, a obra levanta dúvidas sobre seu efeito na democracia brasileira. No ano passado, a diretora ficou irritada com as insinuações de que seu filme seria partidário. Ela classifica os comentários como “surrealistas”.

Entre abril e agosto de 2016, Maria Augusta Ramos (diretora de Justiça e Futuro Junho) acompanhou a tramitação do impeachment no Congresso e foi autorizada pelo Senado a fazer filmagens na Casa. Também foi vítima de notas na imprensa acusando-a de militância. Ela promete um filme neutro. “As críticas são um peso, sim, e tenho certeza de que os debates vão se centrar muito nesse aspecto”, disse o diretor carioca Douglas Duarte sobre a suposta parcialidade pró-Dilma. “Acho ruim? Não. Acho ótimo. Ruim é ficar cada um na sua matilha, trancado num canil, latindo. As mordidas vão fazer bem à gente.”

Em seu filme Excelentíssimos, o foco é a atuação dos parlamentares durante o processo de afastamento da presidente. A produção começou como um documentário sobre o funcionamento da Câmara. “Mas no dia em que começamos a rodar, foi o dia em que, por ordem do juiz Sérgio Moro, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi levado por agentes da Polícia Federal para prestar depoimento”, disse. 

A “condução coercitiva”, termo incorporado ao vocabulário policial e político, incendiou o que restava de calma no país e tudo mudou para o diretor: “Dias depois, nós que pensávamos em fazer o filme inteiro dentro do prédio do Congresso, olhamos para 30 mil manifestantes, sirenes, helicópteros, policiais e cavalos do lado de fora e decidimos que era hora de jogar os planos para o alto e seguir o instinto”.

No material que vem do prelo, as opiniões são dissonantes. Críticos à ex-presidente, os 118 textos reunidos em A Verdade é Teimosa: Diários da Crise que Adiou o Futuro (Intrínseca), da jornalista Miriam Leitão, retratam a queda de Dilma como uma longa tragédia anunciada. As colunas, publicadas primeiro em O Globo, resgatam medidas como a redução na marra da taxa de juros em 2012 ou a decisão de congelar as tarifas de energia para derrubar a inflação. “Fui alertando antes que era crime fiscal, que ia dar errado, que era crime o que estava sendo feito. O leitor tem a oportunidade de ver isso no dia a dia”, comentou a autora. 

Há dois capítulos discutindo o antes e o depois do impeachment e as perspectivas para o futuro. O veredito é implacável: se a queda teve uma aprovação polêmica por parte dos congressistas, foram as escolhas de Dilma que fomentaram a crise econômica e tiraram dela o apoio da população: “Eu acho que a história vai contar que foi um impeachment cometido contra a lei fiscal do país”, defendeu. “A crise se deu após um processo longo. A conquista da lei fiscal foi longa, precisou de muito trabalho, então não se pode fazer isso que fizeram de passar por cima. Estou convencida de que a história não verá isso como golpe, mas como crime de responsabilidade.”

Já em Ascensão e Queda de Dilma Rousseff (Globo Livros), do também colunista do Globo Jorge Bastos Moreno – que cultivava uma boa relação com a então presidente a ponto de ouvir dela confissões sobre culinária e netos –, a preocupação é narrar em tempo real a derrocada da petista. O livro é uma compilação de centenas de posts, publicados originalmente no Twitter, que remontam a meados de 2010. Episódios como o que ficou conhecido como “faxina ética”, ainda no primeiro mandato para afastar ministros suspeitos de corrupção, são lembrados para mostrar como foi criado o campo minado que impediu a ex-presidente de governar depois da reeleição.

“Fiz como se fosse um index para o leitor refrescar a memória dos fatos”, disse Moreno. “Ali se tem um apanhado da crise. Uma leitura rápida, como se fosse uma política haikai. É quase uma linha do tempo.” Para o jornalista, o impeachment passará à história como parte de um processo de depuração da política. “Com a política brasileira nessa velocidade, o impeachment é relevante, mas é diferente do Fernando Collor (ex-presidente afastado em 1992), que foi um caso isolado”, defendeu. “Aquilo era como um câncer. Foi removido e a vida seguiu. Agora o impeachment faz parte de um conjunto de fatos”.

À Sombra do Poder (Leya), lançado no final de 2016, traz a visão privilegiada do jornalista Rodrigo de Almeida, último secretário de Imprensa do Planalto no governo da petista. O relato evita a defesa da ex-chefe, admite alguns erros do governo, mas põe a maior parte da culpa da crise política na intransigência da oposição. A obra é pontuada por fofocas internas. Abundam menções ao mau humor da presidente e críticas sobre sua maneira de lidar com problemas.

Nada tão original quanto o enfoque do poeta carioca Roy David Frankel, que transformou em versos os discursos do impeachment. Em Sessão – lançado esse mês – lê-se: “Aqui uma situação/ Quero mandar um abraço. Eu não mencionei o meu filho Paulo Henrique/ Paulo Henrique, é para você meu filho”. Ainda que a cadência poética não seja óbvia, Frankel argumenta: “Muita gente fala sobre o impeachment, eu queria que o impeachment falasse. E cada um que chegue à própria conclusão”, disse. Ele acredita que o “julgamento da história” vai depender de como estiver o país no futuro. “Vivemos tempos muito turbulentos para se ter certeza dos próximos acontecimentos.”

Em maio, deve chegar às livrarias A Queda de Dilma (Universo dos Livros). Crise política, popularidade despencando, a economia em recessão e a acusação de gastar sem controle não bastariam para o impeachment se, na opinião do autor, o também jornalista Ricardo Westin, Dilma tivesse prestado atenção nas lições do pensador político italiano Nicolau Maquiavel (1469-1527) em O Príncipe.

“Maquiavel ensina que, para conservar o povo a seu lado, o príncipe precisa, por exemplo, fazer todas as maldades inevitáveis de uma só vez e entregar as bondades a conta-gotas. Dilma fez o contrário”, comentou. “O Palácio do Planalto passou o tempo todo, mês após mês, anunciando más notícias para a população. Ao mesmo tempo, ela não teve nenhuma bondade para conceder ao país no segundo mandato. As mesmas pessoas que pouco antes lhe haviam confiado o segundo mandato passaram a sentir raiva da presidente.”

O livro também aponta erros tanto da petista como de seus adversários. Naquele que se mostrou o mais grave, segundo o autor, a então presidente também ignorou Maquiavel, para quem uma luta inevitável jamais deve ser adiada. Segundo o autor, ela demorou meses para confrontar o então vice-presidente Michel Temer – que participava da articulação para afastá-la do cargo. “Apenas às vésperas da votação na Câmara que autorizou o Senado a afastá-la, Dilma confrontou Temer, vinculando-o ao ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha”, afirmou. Mas era tarde.

O canal francês Arte produziu o documentário Brésil: Le Grand Bond en Arrière [Brasil: O Grande Salto para Trás], que mostra o impeachment como um golpe contra a esquerda brasileira. As diretoras Frédérique Zingaro e Mathilde Bonnassieux narram a história pela ótica do humorista e colunista Gregório Duvivier – notório defensor de Dilma –, que faz a maioria das entrevistas, inclusive com a presidente. Indo de acampamentos do MST a beneficiários de programas sociais, ele quer mostrar, com humor ácido e crítico, um país fraturado e polarizado.

 Para o humorista, a imprensa estrangeira cumpriu um papel fundamental no impeachment, “que nossa imprensa não estava cumprindo, o de cobrar isonomia no noticiário”. “Vendo de fora as coisas são mais claras. A mesma coisa se dá na imprensa brasileira: é muito mais progressista, não teme esculhambar o (presidente dos Estados Unidos, Donald) Trump.”

O ex-ministro da Justiça José Eduardo Cardozo, advogado de Dilma, também se disse surpreso com a profusão de material produzido sobre o impeachment. Segundo ele, Dilma ou seus assessores próximos não têm qualquer ingerência ou conhecimento sobre o conteúdo das obras. “De vez em quando pedem uma imagem, um vídeo para nós. Mas é só”, afirmou. 

Ele disse estar curioso pelo resultado da memorabilia. “Eu não sei que versão do golpe vai entrar para a história, mas acho que os fatos e as imagens – vistos em retrospectiva – vão nos ser muito favoráveis”, comentou por telefone. “É Eduardo Cunha falando que combinou o parecer com o Temer antes, o Romero Jucá falando que era preciso dar um jeito para controlar a situação”, disse. “Isso tudo junto é a confissão de um crime.”

terça-feira, 11 de abril de 2017

Doria e o vazio do centro

Por Jose Roberto de Toledo (Estadão, 09/04/2017)

Pela primeira vez desde o fim da ditadura, um candidato presidencial tem chance de lacrar mais de 10% dos votos na ponta mais conservadora do eleitorado. Antes de Jair Bolsonaro, Paulo Maluf foi quem chegou mais perto, ao obter 9% em 1989. Enéas bateu 7% em 1994, mas virou folclore. Desde então, os eleitores conservadores se dispersaram e, mais recentemente, acabaram inchando o balaio de votos de presidenciáveis do PSDB. Não mais.

A evolução de todas as pesquisas de intenção de voto mostra os três mais emplumados tucanos – Aécio Neves, Geraldo Alckmin e José Serra – em rasante cada vez mais baixa na proporção em que Bolsonaro decola. O eleitor de arribação ouve a própria voz nas declarações extremadas do ex-militar eleito deputado. Não são poucos: pelo Ipsos, Bolsonaro tem potencial de 14%, fora o desconhecimento autodeclarado de um terço do eleitorado.

Essa ponta, portanto, parece ocupada. A outra também.

A ressurreição eleitoral de Lula se dá da periferia para o centro. A porção que o petista parece recuperar de seu eleitorado está concentrada – segundo as mesmas pesquisas – entre os mais pobres, menos escolarizados e nas minorias estigmatizadas por Bolsonaro. Ao contrário de 2002 e 2006, Lula terá que radicalizar seu discurso para consolidar esse eleitor.

O ex-presidente vai disputar seu campo prioritário com os candidatos do PSOL e, eventualmente, da Rede. Pelas pesquisas disponíveis, Lula tem, hoje, um quarto das intenções de voto, com potencial para chegar a um terço, talvez um pouco mais.

Essa ocupação das pontas deixa um grande vazio no centro: no mínimo um terço do eleitorado sem candidato, com chance de passar da metade. A possibilidade de haver entre 35% e 60% de eleitores órfãos é música hipnótica para os partidos. Atrairá mais candidatos a presidente do que o flautista de Hamelin.

Daí a comparação de 2018 à eleição de 1989 e seus 21 presidenciáveis. Foi a única de sete vezes em que a soma dos votos dos dois primeiros colocados não chegou nem a 50% da votação total do primeiro turno. Desde então, os candidatos petista e tucano levaram, juntos, de 70% (2002) a 90% (2006) do total.

Hoje essa polarização acabou. Pode ressuscitar? Apenas se o PSDB encontrar um candidato carismático o suficiente para, ao mesmo tempo, fazer frente a Lula e tirar votos de Bolsonaro. Nada indica que os já derrotados pelo lulismo – Aécio, Alckmin e Serra – tenham esse perfil. Daí o frenesi dentro e fora do PSDB em torno de João Doria e seus inéditos 43% de ótimo e bom (Datafolha) nos primeiros três meses como prefeito de São Paulo.

Viabilizar Doria como candidato tucano a presidente não é simples, porém. Além de superar a oposição do padrinho Alckmin, ele precisa ganhar visibilidade nacional (vem tentando através das mídias sociais, principalmente do Facebook, mas ainda é desconhecido por 39% no Ipsos), tornar-se o anti-Lula (no que se empenha desde a campanha a prefeito em 2016, pelo menos) e ainda fazer frente a Bolsonaro e seus militantes virtuais.

Talvez essa última necessidade explique os panos quentes que o prefeito aplicou diante do enfrentamento entre seu secretário da Educação e o MBL. Alexandre Schneider virou alvo após criticar o vereador do movimento, Fernando Holiday, por ele ter entrado em escolas municipais para ver se havia “doutrinação ideológica por parte de professores”. O MBL sabe que Doria precisa de seu arsenal virtual para avançar no território de Bolsonaro.

Se Doria não se viabilizar no PSDB, abrem-se duas possibilidades não necessariamente excludentes: a pulverização do centro como em 1989 e/ou o surgimento de um Collor 2.0 em outro partido. Talvez o próprio Doria.

segunda-feira, 10 de abril de 2017

Trump pode ir à guerra, mas não tem plano para a paz

Por Ilan Goldenberg e Nicholas Heras* (Estadão, 09/04/2017)

O ataque com mísseis contra a base aérea de Shayrat, na Síria, decidido pelo presidente Donald Trump em razão do uso de armas químicas contra civis pelo regime de Bashar Assad, foi uma resposta adequada a um ato de horror atroz. Mas, como analistas que sempre defenderam um maior envolvimento militar dos Estados Unidos para pôr fim à guerra civil na Síria, estamos divididos quanto à decisão do presidente: nosso medo é o de que não haja nenhum plano para o futuro.

Para garantir o sucesso, além dos ataques limitados da quinta-feira, os líderes americanos têm de estabelecer um conjunto claro de objetivos: um fim realista, como se chegar a ele e quais são os riscos. Propomos três opções para o caso de seguirmos em frente com essa operação.

Os Estados Unidos poderiam implementar uma estratégia limitada concentrada em investidas isoladas em resposta ao uso de armas químicas pelo regime sírio. No caso atual, o ataque contra a base aérea de onde saiu o gás sarin provavelmente será suficiente. O presidente Assad e seus generais entenderão a mensagem e deixarão de usar esse tipo de arma.

Mas Trump poderá descobrir que não foi o bastante. O regime sírio continuará a aterrorizar civis com ataques aéreos, mísseis terra-terra e uso de artilharia contra áreas densamente povoadas. E continuará a privar os habitantes de comida e transferir populações para dividir comunidades.

Imagens de crianças mortas e “lindos bebês”, como observou o presidente, continuarão a ser vistas na TV. E as forças de Assad e seus aliados russos podem intensificar os ataques, para humilhar Trump e demonstrar a ineficácia da força militar americana.

Assim, a pressão sobre os Estados Unidos para que respondam poderá aumentar e será difícil Trump resistir. Os EUA lentamente começarão a expandir seus objetivos e observaremos uma escalada do conflito, podendo se chegar a uma situação similar à da Líbia em 2012, quando uma missão limitada de proteção dos civis se transformou numa operação mais ampla com o objetivo de mudar o regime.

Alternativamente, o governo pode ir além de apenas tentar dissuadir o regime do uso de armas químicas. Por exemplo, pode dar prioridade ao fim da guerra civil e preencher os vácuos de segurança – fonte dos ataques extremistas e dos amplos fluxos de refugiados que vêm desestabilizando os parceiros dos Estados Unidos no Oriente Médio e na Europa.

Para atingir esses objetivos, os EUA ameaçariam lançar mais mísseis contra alvos do regime de Bashar Assad, salvo se o presidente sírio e seus aliados russos deixarem de atacar civis em territórios controlados por seus opositores. Os Estados Unidos podem estabelecer como alvo uma série de estruturas, como fábricas de armas, bases militares e até ministérios em Damasco responsáveis pelas operações de guerra. Usar ataques com mísseis é muito menos perigoso do que aviões pilotados lançando bombas.

Os Estados Unidos não teriam de destruir antes todas as defesas aéreas da Síria – medida altamente provocativa que certamente resultaria em vítimas russas, uma vez que conselheiros russos colaboram na operação de muitos desses sistemas. Em seguida, os Estados Unidos passariam a trabalhar com grupos armados moderados em áreas onde se concentra a oposição ao regime, para marginalizar os extremistas e estabilizar esses territórios.

Essa é uma estratégica arriscada. Os russos se deslocam por toda a Síria, e estão ou em bases do regime ou assumindo um papel de consultores integrados nas forças de Bashar Assad nas linhas de frente da guerra. Se o Exército americano inadvertidamente matar um número significativo de russos, as tensões entre as duas maiores potências nucleares do mundo podem disparar. Os EUA poderiam alertar a Rússia sobre os alvos de ataque, como foi feito nesta semana, mas os riscos aumentarão na medida em que o número de alvos crescerem.

Além disso, essa estratégia exige uma oposição armada moderada viável, que sirva como parceira local efetiva nas operações de campo. Esses grupos existem no sul e leste da Síria, mas são muito mais fracos na região noroeste do país, que é muito disputada e onde ocorreram os ataques com armas químicas.

Uma opção militar final seria pressionar Assad a partir do sul do país, onde os Estados Unidos e a Jordânia apoiam uma coalizão de grupos moderados de oposição conhecidos como Frente do Sul. Nos últimos anos, essa força, no geral, estabilizou as áreas que fazem fronteira com Israel e a Jordânia e combateu duramente o Estado Islâmico. Mas ela também tem sido contida por EUA e Jordânia, que preferem uma frente estável perto da fronteira da Jordânia e ameaçaram cortar sua ajuda militar se a coalizão atacar agressivamente demais. Se essa restrição for eliminada, a força rebelde poderá em breve dominar Damasco e exercer pressão sobre o regime.

Mas isso exigirá uma intensificação dos combates numa região que tem se mantido muito calma nos últimos anos. O regime de Assad provavelmente reagirá usando as mesmas táticas de terra arrasada que tem adotado. E os civis é que sofrerão. Além do mais, a Frente do Sul pode obter uma vitória avassaladora e, inadvertidamente, derrubar Assad, e o resultado seria o caos. Nesse caso, Jordânia e Israel sentirão os efeitos desestabilizadores da intensificação dos combates sobre suas fronteiras.

No final, todas essas opções militares serão inúteis se não produzirem um resultado político. As três opções militares delineadas colocarão os Estados Unidos em posição de vantagem nas negociações com Rússia, Irã, Assad, Turquia e os Estados do Golfo, mas somente se Trump tiver uma clara ideia do objetivo desejado.

O objetivo político mais viável é uma Síria que permaneça uma única nação, com um modelo de governança em que o poder seja devolvido pelo governo central para atores locais que detêm o território em seis zonas diferentes de controle em que o país está hoje dividido. Essa ideia reflete a realidade local e o apoio a ela tem aumentado entre os especialistas na medida em que a guerra se intensifica.

Isso exigirá uma importante força de sustentação diplomática para mediar um acordo entre turcos e curdos no norte do país. Os Estados Unidos terão de pactuar com a Rússia e Irã sobre quem retomará o território atualmente em mãos do Estado Islâmico e da Al-Qaeda. E teremos de tranquilizar Israel e Arábia Saudita no sentido de que a influência iraniana na Síria será contida.

Infelizmente, essa é a parte final e mais importante de qualquer plano para a Síria – o plano político –, o que nos preocupa muito ao observarmos o enfoque do governo Trump a respeito. Discordamos do ex-presidente Barack Obama quando ele mantinha muita precaução antes de adotar qualquer medida com relação à Síria. A guerra nem sempre funciona desse modo. Às vezes é preciso assumir riscos e jogar com tudo. No caso de Trump, temos ainda de ver alguns sinais de que ele tem uma abordagem política mais ampla em mente.

Há menos de uma semana a equipe de Trump afirmava que a deposição de Bashar Assad era irrealista e, em vez de se concentrar na guerra civil no oeste da Síria, o governo daria prioridade à luta contra o Estado Islâmico, no leste da Síria. O próprio presidente passou dois anos se opondo a um aprofundamento do envolvimento americano no Oriente Médio.

Sua equipe de governo ainda tem de se envolver seriamente nos processos diplomáticos em torno do conflito sírio, como as conversações intensivas em Astana, no Casaquistão, patrocinadas pelos russos, ou a grande conferência internacional sobre a reconstrução da Síria realizada na semana passada em Bruxelas.

O mais preocupante é que esse governo colocou em segundo lugar a diplomacia, a ajuda externa e a reconstrução como instrumentos de política externa americana, com cortes financeiros enormes nessas áreas e deixando claro para a comunidade internacional que os Estados Unidos estão se retirando da coordenação desses esforços.

Se os Estados Unidos decidirem transformar os ataques táticos limitados na Síria em um ganho estratégico real, a equipe do presidente Trump terá de mudar sua abordagem e se concentrar não só em ganhar a guerra – mas também em ganhar a paz.

*Ilan Gioldenerg é diretor do Middle East Security Program do Center For a New American Security/ Nicholas Heras é membro do Center For a New American Security

segunda-feira, 3 de abril de 2017

A guerra ajuda a explicar por que o bem-estar dos americanos é diferente

Da The Economist (16/03/2017)

O plano de saúde dos republicanos, o American Health Care Act, pode, se promulgado, deixar 24 milhões de americanos sem cobertura, de acordo com o Escritório de Orçamento do Congresso. Mas para aqueles grupos determinados a encolher o governo pode não ser suficiente. O Americans for Prosperity, um grupo influente de campanha, chama-o de "Obamacare 2.0"; o FreedomWorks, um grupo anti-imposto, de "Obamacare-lite". O Comitê de Estudos Republicanos, que consiste em 170 republicanos, descreve-o como "um direito de bem-estar republicano". 

Quando o Obamacare tornou-se lei, democratas ecoaram que ele provaria ser impossível tirar o seguro de saúde das pessoas uma vez que já tinham. Para aqueles na ala do Partido Republicano colados no governo, a revogação da lei é um risco. Se um presidente republicano com maiorias nas duas casas do Congresso não conseguir tirar um direito, então eles podem desistir.

Visto do resto do mundo, este debate carece de qualidade. A América está sozinha entre os países ricos em não apresentar alguma forma de proteção de saúde governamental para toda a população. Quando Obamacare tornou-se lei em 2010, América parecia estar convergindo com o resto do mundo.

Com a lei de Obama, o percentual de pessoas que não têm seguro de saúde e não são cobertas por programas para idosos ou pobres caiu de 16% para 8,8%, de acordo com a Kaiser Family Foundation. Teria caído mais se mais governadores republicanos tivessem tomados fundos federais para expandir o Medicaid, que financia seguros para americanos pobres. Essa convergência agora pode ser revertida.

 A diferença americana no trato com a proteção à saúde é em parte uma questão de filosofia. Os americanos são mais inclinados a acreditar que as pessoas fazem a própria sorte do que os países com o Estado de bem-estar social mais desenvolvidos. De acordo com Pew Global Attitudes Survey, 31% dos alemães pensam que sucesso é determinado por forças dentro de seu controle, enquanto 57% dos americanos dizem o mesmo. Em outras palavras, aqueles que não têm seguro poderiam obtê-lo se apenas trabalhassem mais duro.

Mas é também uma questão de história; mais especificamente, de como os Estados de bem-estar social no resto do mundo se desenvolveram em épocas de guerra. Estes tipos de Estados europeus começaram na Prússia, no final do século XIX, quando a guerra com a França exigiu a mobilização de um grande número de civis. 

O Estado de bem-estar social da Grã-Bretanha tem suas origens na descoberta de que muitos dos homens que se alistaram durante a Guerra dos Boeres não eram saudáveis o suficiente para lutar. Antes da Segunda Guerra Mundial, os liberais britânicos teriam visto a criação de um serviço de saúde nacional estatal como uma intromissão indevida do governo na vida privada da população. Depois de 1945, parecia uma recompensa justa para um povo sofrido.

Na América, essa relação entre guerra e proteção à saúde evoluiu diferente. A época em que a maior proporção de homens em idade de recrutamento estava em guerra, durante a guerra civil (quando foi mobilizada 13% da população), chegou muito cedo para estimular a criação de um sistema nacional de saúde. Em vez disso, o governo federal quebrou a relação entre guerra e proteção de saúde universal ao tratar ex-combatentes diferente dos demais.

Em 1930 a Veterans Administration foi criada para cuidar de quem tinha servido na Primeira Guerra Mundial. Tornou-se um sistema de pagamento único de hospitais do tipo que muitos americanos associam à medicina social na Europa. A América chegou perto de introduzir algo como um serviço universal durante a Guerra do Vietnã, quando, mais uma vez, um grande número de homens foram recrutados. Richard Nixon propôs um plano de seguro de saúde abrangente ao Congresso em 1974. Se não fosse o Watergate, poderia ter tido sucesso.

Embora lento no caminho à assistência social, o sentido da marcha americana tem sido inconfundível. No início da década de 1930, durante a Grande Depressão,  o Congresso gradualmente adicionou direitos federais. Eles se multiplicaram novamente na década de 1960 e têm crescido constantemente desde então. A última vez que o país teve um presidente republicano, um novo direito, o Medicare parte D, foi criado. Ao invés de se oporem, muitos republicanos raciocinaram que, se alguém ia criar um novo programa social, poderia também ser deles. 

Este crescimento rastejante do suporte governamental levou os conservadores que realmente desejam cortar programas sociais  a tentarem sufocar as receitas do governo federal, na esperança que um dia que ele entre em colapso sob o peso de suas próprias contradições. O acerto de contas ainda está por vir.  A Lei de Wagner, em homenagem ao economista alemão Adolph Wagner, diz que, como as sociedades crescem mais ricas, o consumo do governo tende a ocupar parcelas maiores do PIB. Serve para a América também (gráfico ao lado). Daí a angústia da direita sobre o American Health Care Act

Pressionando a lei de Adolph Wagner, está outra mais recente tendência. Americanos que se recordam da Depressão e da Segunda Guerra tendem a parecer mais favorável à redistribuição de renda. Ilyana Kuziemko, de Princeton, e Vivekinan Ashok e Ebonya Washington, ambos de Yale, concluíram que o apoio à redistribuição caiu entre pessoas aposentadas durante as últimas décadas. (gráfico abaixo à esq.)

Uma explicação para essa tendência é a ausência de recordação daqueles dois grandes eventos, unificadores do século XX, entre os que estão se aposentando agora. Talvez não seja coincidência que uma onda de imigração no final do século XX tenha precedido esta relutância em redistribuir, particularmente forte na oposição entre pensionistas atuais a estender o seguro de saúde . Na década de 1950, a imigração média para a América era de 250 mil pessoas por ano; na década de 1990, chegou a um milhão.

Se verdadeira, essa tendência (que poderia ser chamada Lei de Richard Wagner, depois que o compositor compreendeu quão poderoso pode ser o impulso para a raiz de sua tribo) é tão alarmante para os "liberals" da América como a lei de Adolph Wagner, de crescentes gastos, é para os conservadores. Pois parece sugerir que, ao abraçar as causas da imigração e diversidade, podem acidentalmente enfraquecer o suporte às políticas econômicas que são favoráveis.

Exclua os embates entre Donald Trump, Paul Ryan e Barack Obama, e o debate poderia ser visto como um conflito entre essas duas leis de Wagner: Richard contra Adolph. Se a assistência social americana continuará a convergir gradualmente com o resto do mundo rico ou permanecerá distintamente empedernida, depende de qual Wagner sairá por cima.

*Tradução livre do blog

sábado, 1 de abril de 2017

Uma represa chamada América Latina

Manifestantes incendeiam o Parlamento do Paraguai após o Senado aprovar em votação secreta emenda constitucional que permite a reeleição do presidente

Olhe para cima, Venezuela. Olha para baixo, Paraguai. Isto apenas por esses dias. Seja à esquerda ou à direita, quando se trata de teste às instituições democráticas, a América Latina parece algumas represas. 
Podem aparentar estabilidade, mas, quando pressionadas, os furos que ameaçam rompê-las voltam a surgir por todos os lados. Ainda mais perigoso em um momento em que o país cuja liderança regional seria natural se encontra no córner da debilidade política e econômica.  

O personalismo, além dos populismos, é um dos cânceres da região - incluindo esse Brasilzão.

Por que não se surpreender com arrastões e funcionalismo em penúria

Por Murillo Victorazzo

Garotinho (98-02), aquele do piti no hospital para evitar voltar à cadeia e marido da flor de ex-governadora (02-06) cassada como prefeita de Campos, adora provocar seus adversários no Twitter. Hoje não perdeu tempo e fez graça com a situação de Marco Antonio Alencar e Jorge Picciani. (imagem ao lado.)

O primeiro, conselheiro do TCE preso e filho do ex-governador tucano Marcelo Alencar (94-98). O segundo, presidente da Alerj, capo do PMDB e aliado-mor de Cabral (06-10), o ex-governador que passa temporada em Bangu, e Pezão (14-?), cujo governo parece um moribundo definhando a céu aberto. O mesmo PMDB do Gato Angorá (86-90) das delações da Odebrecht.

Seis dos sete governadores eleitos desde a década de 80 atingidos pela Justiça/MP/PF, em maior ou menor grau, e ainda se surpreendem com arrastão na Avenida Brasil e funcionalismo na penúria?

A degradação por trás dos eufemismos

Por Murillo Victorazzo

Talvez não seja o único, mas estranho o país onde negligência é tratada como acidente, assassino esquartejador diz que cometeu um erro, presidenta dissemina o termo "malfeito" pra se referir a ladroagem e, estimulado por presidente de tribunal superior, ainda se discute o indiscutível: se caixa dois é crime.

 Acidente é jaca cair na cabeça; erro é bater pênalti e a bola ir na trave; malfeito é algo defeituoso; e caixa dois é crime em qualquer lugar civilizado, seja através de peculato ou não. Por trás de eufemismos e cinismos, a degradação da Pindorama.