sexta-feira, 21 de agosto de 2020

Mais coesos, democratas apostam na empatia do vovô boa praça

Por Murillo Victorazzo

Quando as primárias não deixam grandes sequelas internas, convenções partidárias nos Estados Unidos têm basicamente uma utilidade: aproveitar o enorme espaço gratuito nas mídias para difundir os pilares das campanhas eleitorais. Assim se encontra o Partido Democrata para as eleições de 2020, cenário distinto ao que muitos imaginaram após os primeiros resultados nos estados no início do ano. Temia-se o pugilato de quatro anos atrás.

Pacificados, os democratas puderam se ater ao tipo de mensagem com a qual tentarão voltar à Casa Branca. Personificada em um veterano político do noroeste americano que, se eleito, será o mais velho a sentar-se à mesa do Salão Oval, ela pode ser captada nas entrelinhas ou de forma clara através de duas palavras: empatia e democracia.

Ainda que muitos eleitores do segundo colocado, o "socialista democrático" Bernie Sanders, não se empolguem com o escolhido Joe Biden, o clima se difere bastante diferente ao de 2016, quando a tensa disputa com Hillary Clinton consumiu as energias da legenda até o dia da convenção. Apenas com os votos dos "superdelegados" ( nomes tradicionais do partido, detentores e ex-detentores de mandato, não eleitos nas primárias), a ex-senadora alcançou o número necessário para a nomeação.

A sensação de vítima do establishment  entre Sanders e seus militantes tornou-se revolta com o vazamento, às vésperas do evento, de emails que revelavam manobras de integrantes do Comitê Nacional Democrata para minar sua candidatura. Cisão irrecuperável: a ausência de muitos deles nas urnas em novembro foi determinante para a  surpreendente vitória de Donald Trump.

A antipatia da cúpula democrata por Sanders continuou. Mas, desta vez, limitou-se a articulação por união dos demais pré-candidatos "centristas" em favor de Biden. O ex-vice-presidente já conquistara larga diferença de votos, quando ao "socialista democrático" não restou desistir. As insatisfações da esquerda democrata continuam, assim como a dúvida se, dessa vez, esse eleitorado sairá de casa para votar contra o atual presidente. Mas o partido chegou à convenção bem mais coeso.

Além de destaque para negros, gays, imigrantes/latinos e classe média trabalhadora em cada um dos quatro dias, viu-se a estratégia discursiva dos democratas também nos detalhes: a palavra empatia esteve presente em quase todos os oradores. Kamala Harris, ao aceitar formalmente a candidatura a vice-presidente, alvejou: “Reconheço um predador quando vejo um”.  Na sua vez de aceitar, Biden não foi tão implícito: "A compaixão está na cédula. Decência, ciência, democracia. Está tudo na cédula. E a escolha não poderia ser mais clara"

Sutis contrapontos a Trump que sinalizam a tentativa de levar a disputa para além da dicotomia partidária. Os valores democráticos, civilidade e caráter acima de tudo, retórica reforçada pela presença de nomes relevantes da sigla adversária como Colin Powell, John Kasich e familiares do falecido John MacCain.  Uma ampla coalizão com democratas, independentes e republicanos moderados. Este é o objetivo. "Esta administração já demonstrou que destruirá nossa democracia se isso for necessário para vencer", alertou Obama.

Os democratas passarão a campanha inteira tensos a cada declaração de Biden, conhecido por gafes e oratória insossa, amenizadas talvez pelo estilo vovô boa praça. Mas, pelo menos nessa quinta-feira, puderam dormir  tranquilos. O até agora mais importante discurso de seu candidato foi, em tom e conteúdo, forte, eloquente - "presidencial", como os americanos costumam dizer.

Biden colocou-se como "a luz em época de escuridão"; um presidente que unirá o país. Um leve conforto para quem já contou com, gostem ou não dele, um orador brilhante do nível de Obama, dom, aliás, que pode ser revisto ontem. Para quem novamente terá do outro lado do ringue um trator humano extremista que empolga sua militância a cada tweet e declaração ferinos, sarcásticos, vulgares até. Restam infindáveis pouco mais de 70 dias.

terça-feira, 18 de agosto de 2020

Relação entre racismo e austeridade fiscal polariza analistas

Por Fernanda Perrin (Folha de S.Paulo, 16/08/2020)

“É incompatível ser antirracista e defender política de austeridade e o desmonte do SUS.” A afirmação, feita pelo jurista e filósofo Silvio de Almeida durante sua participação no programa Roda Viva, polarizou economistas.

Liberais reagiram questionando o uso do termo “austeridade”, que teria sido equivocado —segundo eles, a depender de como é executada, austeridade poderia ser inclusive antirracista. Por outro lado, economistas críticos a esse tipo de política corroboraram Almeida: cortes de gastos públicos penalizam mais a população negra, levando ao aumento da desigualdade racial.

A divergência começou no Twitter, mas já extrapolou para artigos, como o publicado pelo próprio Almeida esclarecendo seu argumento no blog da editora Boitempo, e outro do economista e consultor legislativo Pedro Nery intitulado “Austeridade progressista” em sua coluna no jornal O Estado de S. Paulo.

Para os liberais, trata-se de uma questão sobretudo semântica. “Para mim, o problema está mal definido, porque austeridade incorpora tanto aumento de imposto sobre lucros e dividendos e grandes fortunas quanto redução de gastos sociais. Cada um vai ter um impacto diferente sobre a população atingida e sua composição étnica”, afirma Carlos Góes, pesquisador-chefe do Instituto Mercado Popular e ex-assessor econômico especial da Presidência da República durante o governo Michel Temer.

Na mesma linha, o economista Pedro Menezes, também ligado ao Instituto Mercado Popular, afirmou em sua conta no Twitter que “se austeridade for encarada como mera responsabilidade fiscal, então é a anti-austeridade que é racista. Desequilíbrios macroeconômicos trazem imensos prejuízos para os negros e favorecem a ascensão do populismo reacionário”.

Já Almeida define austeridade como “o corte das fontes de financiamento dos ‘direitos sociais’ a fim de transferir parte do orçamento público para o setor financeiro privado por meio dos juros da dívida pública”. De modo semelhante, Luiz Augusto Campos, professor de sociologia e ciência política da UERJ, entende austeridade como “redução do papel de proteção social do estado”.

O economista Pedro Rossi, professor da Unicamp, concorda com Góes que há um problema conceitual na discussão. “Austeridade pode ser via impostos progressivos? Sim, mas não é como vem sendo aplicada no mundo todo desde 2009”, afirma.

“Quando uma política econômica coloca constrangimento ao crescimento do gasto público, ela reforça o racismo estrutural, porque esse é o lado da política fiscal que reduz as desigualdades. Nesse contexto, a austeridade que é praticada no Brasil é racista”, diz.

Góes, no entanto, discorda dessa afirmação. Defensor da reforma da Previdência, ele diz que a mudança —a principal desde a implementação do teto de gastos com o objetivo de equilibrar o orçamento— teve efeitos progressivos ao proteger os mais vulneráveis ao mesmo tempo em que teria colocado um fardo maior sobre quem ganha mais.

Apesar dessas discordâncias, quando o assunto é corte de gastos públicos, especialmente os voltados para programas sociais, há certa convergência entre os dois campos sobre o fato de que o impacto negativo é sentido sobretudo pela população negra.

Isso acontece, em primeiro lugar, porque são os mais pobres os que mais dependem de serviços públicos. Como essa população é majoritariamente negra, ela é mais impactada quando há cortes no financiamento de saúde e educação, por exemplo.

“A partir do governo atual, ocorre menor ênfase em expandir beneficiários do Bolsa Família. Obviamente isso prejudica mais a população mais pobre, na qual a população negra é sobrerepresentada”, afirma Góes.

Mas, de acordo com Campos, há ainda um segundo efeito, relacionado diretamente à discriminação racial, que explica o ônus maior sobre a população negra: o aumento da competição pelos serviços providos pelo estado.

Um exemplo se daria no SUS: na medida em que o acesso a ele é mais restrito, a população negra é mais atingida porque sofre discriminação mesmo dentro do sistema. Situação semelhante ocorre na educação: num cenário em que esses espaços são limitados, pessoas brancas pobres têm mais chance de alcançá-los porque têm redes sociais maiores capazes de fornecer ajuda.

“Temos sempre que distinguir desigualdade de condição da desigualdade de oportunidades. Condição é classe, seu ponto de partida na competição. O Brasil tem grande desigualdade de classes que atinge pessoas de diferentes raças. Já a desigualdade de oportunidades é sempre relacional. A população negra é mais atingida pela de condições, porque tem pontos de partida piores, mas sobretudo pela de oportunidade, porque tem menos chance de melhorar de vida”, diz Campos.

Estudo publicado no ano passado na revista BMJ Global Health identificou uma queda real de 15% nas despesas autorizadas de 19 programas sociais entre 2014 e 2017, período em que o ajuste fiscal passou a ser implementado no Brasil –superior, portanto, à redução geral das despesas, de 11%. Entre as quedas, destacam-se a de 80% no Programa Confrontando o Racismo e Promovendo a Igualdade Racial, de 63,5% no Programa de Políticas para as Mulheres, de 82,4% no de Habitação Recente e de 84,6% no de Segurança Alimentar e Nutricional.

Os programas foram selecionados pelo seu impacto nas chances de o Brasil alcançar os objetivos de desenvolvimento sustentável estabelecidos pelas Nações Unidas. Não foram analisadas as despesas efetivamente executadas, mas as autorizadas.

O estudo, assinado por pesquisadores da UFBA, da Universidade de Glasgow, do Imperial College e da Fundação Oswaldo Cruz, conclui que “há um risco de que as medidas de austeridade fiscal promoverão uma economia que beneficia mais os privilegiados na sociedade em detrimento dos brasileiros pobres, negros, mulheres, rurais e da região Norte”.

Góes, por sua vez, destaca que não se pode perder de vista que estabilidade macroeconômica –objetivo declarado do ajuste fiscal– impacta desproporcionalmente a vida dos mais pobres, dentre os quais os negros são sobrerepresentados.

“Ter um ambiente econômico de crescimento e estabilidade com inflação baixa é importante para os mais pobres. Se você pensar na época da hiperinflação, os ricos investiam em overnight e os pobres tinham que correr para o mercado para fazer a compra do mês”, afirma o pesquisador-chefe do Mercado Popular.

terça-feira, 11 de agosto de 2020

Dois EUA em confronto: enfim um debate entre vices que vale a pena

Por Murillo Victorazzo

Mulher negra da cosmopolita California, ex-procuradora-geral do estado, de oratória aguerrida, filha de jamaicano e indiana, entusiasta do Black Lives Matters, defensora de políticas públicas progressistas sobre drogas, casamento homoafetivo, imigração, acesso a armas e sistema prisional.

Rotular Kamala Harris de "esquerda radical", como Trump já começou a disseminar, nada mais é do que caricato porém ardiloso espantalho eleitoral, mesmo em um país onde a defesa de um sistema público universal de saúde é vista como socialismo. Serve apenas para assustar os desinformados e mobilizar sua base radicaloide à direita.

Mas é inegável o profundo contraste com o atual vice-presidente, Mike Pence, homem branco, de semblante blasé, extremamente religioso, de Indiana, simpatizante do Tea Party, ala mais conservadora dos republicanos. Dois Estados Unidos opostos. 

Imageticamente, embora também em conteúdo, debates televisivos entre eles tendem a ser mais instigantes e emblemáticos, ainda que obviamente bem menos importantes, do que os dos veteranos brancos cabeças de chapa: um "picolé de chuchu" atrapalhado contra um sociopata vulgar e autoritário.