segunda-feira, 7 de junho de 2010

Para analista, acordo nuclear com Irã não prejudica imagem do Brasil

Por Maria Carolina Abe (Folha de S.Paulo, 24/05/2010)
O Irã concordou em enviar parte de seu urânio enriquecido para a Turquia, em um acordo de troca de combustível nuclear alcançado com mediação de Brasil e Turquia, divulgado na segunda-feira (17). O Ocidente acusa o Irã de desenvolver um programa nuclear com fins militares, mas Teerã alega que a finalidade é pacífica. Para Matias Spektor, coordenador do Centro de Estudos sobre Relações Internacionais da Fundação Getulio Vargas (FGV), o acordo firmado entre os três países teve uma reação negativa imediata em Washington, porque foi visto como algo que não resolve o problema principal, e ainda atrasa a votação de novas sanções da ONU.
O efeito colateral "não esperado e não intencionado" do acordo foi uma reunião de emergência do Conselho de Segurança da ONU na terça-feira (18) e uma nova proposta de sanções ao Irã, alcançada após meses de negociação entre os cinco membros permanentes do CS --Estados Unidos, Rússia, China, França e Reino Unido-- mais a Alemanha. No entanto, Spektor diz não acreditar que o imbróglio diplomático piore a imagem do Brasil, que já é visto pelos EUA como "um negociador duro" que não se alinha facilmente, como foi visto nas negociações da Alca [Área de Livre Comércio das Américas, defendida pelos EUA] e da Rodada Doha da OMC (Organização Mundial do Comércio).
Folha de S.Paulo - Qual sua percepção sobre a reação que o acordo Brasil-Turquia-Irã causou nos EUA?
Matias Spektor - A reação imediata em Washington foi negativa, porque interpretou-se como um acordo que não conseguiu resolver o problema principal em questão - a insistência iraniana em enriquecer urânio a 20% - e por contribuir para atrasar e protelar a votação de uma nova rodada de sanções contra o Irã. Agora, a aceleração dos tempos em direção a um texto [de sanções] consensuado foi um resultado inesperado tanto no Brasil como aqui nos EUA, foi um efeito colateral não esperado e não intencionado.
Folha - Isso pode comprometer a imagem do Brasil no exterior?
Spektor - Eu não acredito que comprometa a imagem do Brasil mais seriamente. O Brasil tem uma imagem de um negociador duro, como a gente pôde acompanhar na negociação da Alca ou da rodade de Doha. Sabe-se e espera-se que o Brasil não diga sim facilmente aos EUA, e aceita-se como legítima a discordância com o Brasil. Ninguém nos EUA espera que o Brasil faça alinhamento automático com os EUA.
Folha- Mas a insistência em negociar com o Irã pode prejudicar a imagem brasileira?
Spektor - Como eu falei, a reação aqui nos EUA foi negativa. Agora, a expectativa geral dos EUA em relação ao Brasil é de que as negociações com o Brasil sempre precisam de muito engajamento para se chegar a algum acordo, porque o Brasil é um negociador duro. A reação foi negativa, mas isso não quer dizer que a imagem tenha piorado muito para o Brasil, porque o Brasil já tem uma imagem de duro negociador.
Folha - O fato de o Conselho de Segurança da ONU continuar com a votação de sanções contra o Irã, apesar do acordo, pode ser visto como uma derrota?
Spektor - Alguns países do mundo em desenvolvimento acreditam que o Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP) tornou-se uma ferramenta para os fortes imporem as regras do jogo para os mais fracos de acordo com seus próprios interesses. Israel e a Índia nucleares não serão punidos por sentarem de fora do regime, e podem até ser recompensados, dizem esses países, mas o Irã terá seu direito negado. Acho que o que veremos nos próximos dias é o recrudescimento das divisões em volta do regime de não proliferação nuclear, que está sendo revisado em Nova York ao mesmo tempo em que as sanções estão sendo postas na mesa. Ou seja, esses eventos revelam que há um poço muito profundo no mundo hoje a respeito de como avançar com o regime de não proliferação nuclear, que já tem 40 anos e precisa ser readaptado ao mundo atual. Não há consenso nas relações internacionais hoje sobre como proceder, e isso é o que ajuda a explicar os problemas que estamos vivendo nestas semanas.
Folha - O sr. acha que a maior inserção do Brasil no cenário internacional nos últimos anos está, de certa forma, ligada à figura do presidente Luiz Inácio Lula da Silva ou tem mais a ver com o panorama global atual?
Spektor - A questão do Irã, especificamente, está diretamente ligada a duas figuras: o presidente Lula e o ministro Celso Amorim. Amorim foi embaixador do Brasil nas Nações Unidas durante oito anos --seja em Nova York ou em Genebra--, foi presidente dos paineis responsáveis pelas sanções e foi presidente dos paineis sobre Iraque do Conselho de Segurança das Nações Unidas no final da década de 1990. Essas duas figuras fazem toda a diferença para explicar o que o Brasil está fazendo no caso do Irã. Nas outras inserções, não tem tanto a ver com a personalidade do presidente e do ministro, mas sim com o fato de que o sistema internacional está sofrendo transformações hoje em dia, cuja natureza dá destaque a países como o Brasil. Nos temas centrais da agenda internacional - energia, não proliferação, comércio internacional, reforma do sistema financeiro internacional -, o Brasil é definitivamente um jogador cada vez mais importante. Em alguns desses quesitos, é impensável hoje qualquer acordo ser fechado sem o Brasil. Então, independentemente de quem governe, a inserção internacional do Brasil hoje é muito maior do que era há apenas dez anos, porque mudanças da estrutura do sistema produziram isso. Independentemente de quem vá ganhar a corrida eleitoral este ano, a gente provavelmente vai ver um Brasil crescentemente exposto e desafiado a lidar com temas difíceis da gerência internacional, e a crises internacionais [diplomáticas] que o Brasil antes podia ignorar e agora não pode mais.
Folha - É possível fazer alguma comparação entre a negociação nuclear com o Irã mediada pelo Brasil e a Turquia, e a visita do presidente Lula a Israel e aos territórios palestinos poucas semanas antes, quando houve críticas de que Lula estava "se metendo onde não foi chamado"?
Spektor - O governo atual tem a interpretação de que o Brasil precisa desenvolver uma política para o Oriente Médio. Essa percepção tem a ver com dois fatores. O primeiro é que não há uma saída óbvia para a crise no Oriente Médio, as grandes potências não têm conseguido encontrar um encaminhamento, e o governo atual acredita que trazer mais vozes para o debate possa trazer novas aberturas e desenvolvimentos. O outro fator é a crença do governo brasileiro atual de que ter opinião sobre o que acontece no Oriente Médio é legítimo, já que o Brasil alberga uma enorme comunidade de ascendência daquela região, seja judaica ou seja árabe. Tem a ver também com crescentes interesses econômicos e políticos do Brasil na região. À medida que o Brasil começa a jogar em ligas das quais não participava antes, precisa ter apoio em lugares que antes podia se dar ao luxo de ignorar. Na leitura do atual governo, o Oriente Médio é um caso, assim como a África.