domingo, 27 de janeiro de 2019

O risco militar

Por Merval Pereira (O Globo, 7/012/2019)

A presença de militares, da ativa e da reserva, em postos eminentemente civis chama a atenção no primeiro ministério do presidente Jair Bolsonaro, ele próprio um capitão da reserva do Exército. O cientista político Octavio Amorim Neto, professor da EBAPE/FGV, em artigo intitulado “O Governo Bolsonaro e a Questão Militar”, analisa essa “ampla fatia de poder” dos militares com cautela, advertindo para as conseqüências que podem afetar tanto a democracia brasileira quanto a própria corporação militar.

Estejam ou não exercendo funções, os militares têm, quase sempre, visões de mundo e preferências semelhantes, comenta Octavio Amorim Neto. Além disso, a população e as elites civis percebem e tratam os militares como um grupo coeso, usem ou não farda.

A ressalva que faz lembrando que os oficiais de alta patente hoje em dia diferem muito dos que lideraram o regime de 1964-1985, sendo mais liberais em temas econômicos e mais comprometidos com a democracia e os ditames constitucionais, não o impede de levantar duas questões relevantes: o grau de controle dos militares pelos civis (ou o grau de subordinação dos militares à autoridade política dos civis) e a elaboração e orientação da política de defesa.

“Não há democracia quando as Forças Armadas vetam decisões governamentais que não digam respeito à defesa nacional”, ressalta o cientista político da Fundação Getulio Vargas do Rio. Ele admite que, até o momento, não se pode dizer que o Brasil esteja sob tutela militar, mas acha que o risco existe, sobretudo “se a corporação castrense contribuir decisivamente para a derrota da reforma da Previdência”.

A partir do final do século passado, muita coisa começou a mudar nas relações civis-militares em geral e no papel dos civis na política de defesa em particular, e Octavio Amorim Neto ressalta (1) a criação do Ministério da Defesa em 1999; (2) a publicação da Estratégia Nacional de Defesa em 2008, redigida tanto por civis como por militares; (3) o início, em 2009, de um amplo e ambicioso programa de reaparelhamento das Forças Armadas; (4) a promulgação da Lei da Nova Defesa em 2010; e (5) a publicação do primeiro Livro Branco da Defesa Nacional em 2012, escrito com considerável participação de civis.

“Aqueles fatos e eventos indicavam claramente o fortalecimento do controle dos militares pelos civis, um maior envolvimento destes na elaboração da política de defesa e uma maior saliência desta na agenda política nacional”, comenta Octavio Amorim Neto.

Além de evitar golpes de Estado, Octavio Amorim Neto diz que as elites democráticas têm “a obrigação de remover os militares da política, privando-lhes de qualquer veto às decisões de governo que não digam respeito à defesa nacional e reduzindo drasticamente sua autonomia”, estabelecendo assim a supremacia civil.

A eleição de Bolsonaro tem, como primeira conseqüência, a suspensão dessa etapa da transição para a democracia que os militares estavam aceitando até o momento. Octavio Amorim Neto pergunta: como ficará a participação dos civis na gestão do Ministério da Defesa e na elaboração da política de defesa, já que, desde fevereiro de 2018, o MD tem sido chefiado por um general?

Ele está convencido de que essas duas áreas ficarão sob total controle dos militares. “O Congresso e os partidos aceitarão passivamente isso?”. Outra questão que inquieta Octavio Amorim Neto: as Forças Armadas se concentrarão quase que exclusivamente em missões internas ao território nacional, sobretudo nas frequentes operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO)?

Os comandantes do Exército sempre afirmam que GLO é desvio de função e que gostariam de concentrar-se em suas tarefas precípuas. Contudo, lembra Octavio Amorim Neto, será que realmente crêem que, com tal presença de militares no governo em atividades eminentemente civis, haverá fortes incentivos para que as Forças Armadas se dediquem prioritariamente às suas missões fundamentais, nomeadamente a defesa das fronteiras nacionais, a manutenção da paz na América do Sul, o apoio à política externa e a prontidão para guerras interestatais?

Para Octavio Amorim Neto, “a história é farta em exemplos que mostram que, quando as Forças Armadas de um país passam a exercer excessivamente atividades políticas, o aprestamento (efetividade) militar é a primeira baixa”.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

Para lidar com a China, Bolsonaro tem um instrumento nas mãos

Por Oliver Stuenkel* (El País, 21/01/2019)

Jair Bolsonaro prometeu uma revolução na política externa, e as primeiras semanas de seu governo indicam que liderará a mudança mais radical na história das relações internacionais do Brasil, rejeitando muitos dos pilares da tradição diplomática do país. Um alinhamento completo com os Estados Unidos de Trump é a peça central da nova política externa brasileira, com consequências diretas em todas as suas áreas, como fóruns multilaterais, negociações sobre o clima, defesa e conflito Israel-Palestina, nas quais Bolsonaro deverá vir a emular o posicionamento de Trump.

Considerando essa mudança inédita, alguns tentarão convencer o presidente de reduzir a participação do Brasil no grupo BRICS (formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) ou sair dele completamente, argumentando que se trata de mais uma iniciativa petista que merece ser descartada. O chanceler Ernesto Araújo questiona a utilidade do grupo e alega que o Brasil deve buscar laços mais estreitos com países como Israel, Itália, Polônia e Hungria.

De fato, considerando que as intensas tensões entre os Estados Unidos e a China são o novo normal - muitos já falam de uma "nova Guerra Fria" - o alinhamento incondicional de Bolsonaro a Trump pode reduzir o escopo de cooperação nas iniciativas lideradas pelos BRICS. Da mesma forma, o mal-estar criado em Pequim pela retórica anti-China de Bolsonaro durante a campanha ainda não foi superado, e os recentes ataques de eleitores de Bolsonaro e de Olavo de Carvalho contra parlamentares do PSL que visitam a China sugerem que a cooperação com Pequim poderá ter significativo custo político.

Reduzir a participação no BRICS, porém, seria uma oportunidade perdida para o novo presidente. Ao contrário, faria mais sentido para seu governo fortalecer sua atuação no bloco para alcançar seus objetivos principais de política externa: ganhar o respeito de Trump e renegociar a relação bilateral com a China.

Diferentemente do que o chanceler Ernesto Araújo parece acreditar, o Brasil não vai ganhar o respeito de Trump expressando admiração incondicional, como Eduardo Bolsonaro fez durante sua primeira viagem recente a Washington. O presidente dos EUA é conhecido por exigir lealdade absoluta e oferecer nenhuma em troca. Trump tem pouco interesse ou incentivo para criar a parceria de longo prazo com a qual sonha o ministro das Relações Exteriores do Brasil.

 A decisão de Trump de não comparecer à posse de Bolsonaro e enviar apenas o secretário de Defesa, Mike Pompeo, demonstra como será difícil estabelecer laços fortes entre o presidente brasileiro e seu ídolo norte-americano.

Em novembro, Bolsonaro terá oportunidade única de se projetar como estadista globalmente relevante quando sediar a 11ª Cúpula dos BRICS. Ele receberá os líderes da China, Índia, África do Sul e Rússia, além da maioria dos presidentes da América do Sul. Será uma das cúpulas mais relevantes das relações internacionais em 2019 e provavelmente o maior evento diplomático de seu primeiro mandato. Isso torna Bolsonaro muito mais interessante para Trump do que um fiel cãozinho de estimação, tal como Araújo e Eduardo Bolsonaro acabam por projetá-lo.

Ademais, preocupar-se com a ascensão da China não é motivo para deixar o grupo dos BRICS - na verdade, todos os outros membros do bloco - Índia, Rússia e África do Sul - compartilham muitas das preocupações do Brasil em relação ao tema. A Cúpula Presidencial anual do BRICS e as numerosas reuniões ao longo do ano - entre ministros da Educação, Meio Ambiente, Defesa e assim por diante - proporcionam acesso privilegiado aos líderes políticos chineses, oferecendo uma plataforma única para defender os interesses do Brasil em relação à China. 

O que muitos críticos do BRICS não percebem é que as reuniões do bloco não se limitam a alinhar ideias, mas também oferecem ao Brasil a oportunidade de influenciar Pequim. Em vez de rebaixar os BRICS, Bolsonaro poderia pensar em coordenar com o premiê indiano, Modi; o presidente russo, Putin; e o presidente sul-africano, Ramaphosa, uma estratégia conjunta para pressionar Pequim em relação ao que os quatro países querem da China.

Seria um erro acreditar que a ideologia de Bolsonaro difere muito da de alguns de seus pares no grupo dos BRICS. Modi e Putin são ambos nacionalistas de direita, que adotam uma retórica chauvinista conservadora e de tom religioso que deixaria Ernesto Araújo à vontade. O Brasil é o único país dos BRICS onde a cooperação Sul-Sul é considerada, incorretamente, uma ideia de esquerda. 

Ocupando a presidência temporária do grupo dos BRICS neste ano, Bolsonaro tem a oportunidade promover debates sobre temas que preocupam seu governo: defesa, política antidrogas, redução do crime e antiterrorismo. Em algumas dessas áreas, outros países do BRICS têm larga experiência, e o Brasil pode aprender com eles - em particular quando se trata de antiterrorismo, importante para o país se Bolsonaro vier de fato a transferir a embaixada brasileira em Israel para Jerusalém.

Por fim, independentemente da orientação ideológica de seu presidente, qualquer país no mundo hoje – mesmo aqueles críticos a Pequim -- precisa ter o conhecimento necessário para lidar com a China, que caminha para ser em breve o centro econômico do mundo. Com o grupo BRICS, o Brasil já tem a vantagem de ser parte de uma plataforma institucionalizada que facilita a adaptação a essa nova realidade. 

A importância geopolítica do bloco hoje é maior do que nunca. A 11ª Cúpula dos BRICS ocorrerá em meio a uma profunda incerteza sobre o futuro da ordem econômica global. Isso cria uma oportunidade para o BRICS - e o Brasil nele - assumir um papel mais proeminente.

*Oliver Stuenkel é professor adjunto de Relações Internacionais na FGV e coordenador do programa de pós-graduação da Escola de Relações Internacionais da FGV

quinta-feira, 10 de janeiro de 2019

Deus e o diabo na terra da política externa

Por Dawisson Belém Lopes* (O Globo, 06/01/2019)

Há algo de farsesco, ainda que bastante engenhoso, no modo como a política externa do governo Bolsonaro vem buscando legitimar-se publicamente. O principal impulso ao processo é dado pelo chanceler Ernesto Araújo, homem de fortes convicções morais, admirador dos nacionalismos românticos e da herança ocidental. Trata-se, ademais, de um fiel devoto de Donald Trump.

Araújo vem se aproximando, nas manifestações feitas em seu blog pessoal e nas peças que publica na imprensa, do apelo popular de Jair Bolsonaro à religiosidade do povo brasileiro. A fórmula da nova política externa, segundo o chanceler, terá de alinhar-se a essas circunstâncias.

Se a gente brasileira é religiosa, logo a política externa, praticada por um presidente com mandato democrático, também deverá sê-lo. O Brasil, entende Bolsonaro, necessita pautar-se nas suas relações internas e internacionais por valores judaico-cristãos, pois é isso que o povo reivindica na atualidade.

Do raciocínio deriva o receituário da política externa bolsonarista: o país precisa rejeitar o “globalismo” e o “marxismo cultural”, tendências emanadas de foros diplomáticos e editoriais internacionais, desprovidas do empuxo popular e, alegadamente, corruptoras da soberania nacional e do patriotismo. Eis o bilhete para a “libertação do Itamaraty” – na expressão carregada de Araújo.

Para tanto, devem-se recusar peremptoriamente as resoluções das entidades multilaterais e juntar-se à liga dos regimes fortes e cultores das tradições ocidentais. Estados Unidos, Itália, Polônia e Hungria, nações cristãs, credenciam-se como parceiras preferenciais. Israel, o Estado judaico, candidata-se a aliado incondicional.

Percebe-se, todavia, que a equivalência “voz do povo, voz de Deus”, proposta pelos bolsonaristas como o verdadeiro elo perdido da autoridade, resulta logicamente falaciosa. Se é bem verdade que a sociedade brasileira preza a dimensão religiosa, não se extrai daí que os cidadãos sejamos refratários ao secularismo como princípio organizador da vida política.

De resto, a experiência religiosa dos brasileiros, como já amplamente difundido pelos antropólogos, é de um tipo sincrético, não acomodando no cotidiano os rigores da ortodoxia. Somos o país dos milhões de cristãos “não praticantes”, das infusões e dos intercâmbios entre as variadas denominações de fé.

Ao substituir as máximas mundanas do realismo político por princípios idealistas e metafísicos, Araújo e colaboradores recriam o ciclo de produção da política externa brasileira. Tira-se o povo da conversa, reduzindo-o a mero estereótipo de uma expressão religiosa. Habilmente, o chanceler e seu grupo promovem jogos filosóficos e de linguagem cujo saldo é a elitização decisória em política externa.

Explica-se: quando o mote da política externa democrática era anteriormente evocado, imaginava-se uma tensão constitutiva entre os aristocráticos homens de Estado e a plebe. A democratização poderia até avançar, lenta e dialeticamente, por meio de choques de interesses. Por um truque retórico, contudo, essa tensão dissipou-se no discurso corrente, dado que os novos mandatários imaginam falar pelo e para o povo, interpretando de maneira peculiar os sentidos da sua fé.

Os diplomatas profissionais, integrantes da comunidade cosmopolita global, tradicionalmente autorizados a pronunciar-se sobre as relações exteriores do Brasil, dão lugar a teocratas e nativistas. Dentro desse esquema de coisas, saber técnico, trajetória institucional e acúmulo acadêmico não se tornam, necessariamente, alavancas de poder. Afinidade ideológica e proximidade com a chefia do Poder Executivo, sim.

Existe, ainda, um inesperado problema empírico com a narrativa diplomática em construção: segundo levantamento do instituto Datafolha, divulgado em 27 de dezembro último, 66% dos brasileiros não querem ver o país associado aos Estados Unidos nos assuntos estrangeiros. É um rechaço popular emitido em alto e bom som aos caminhos vislumbrados pelo novo governo federal.

* Professor de política internacional da UFMG, é o autor de “Política Externa e Democracia no Brasil: Ensaio de Interpretação Histórica” (Ed. Unesp, 2013) e “Política Externa na Nova República: Os Primeiros 30 Anos” (Ed. UFMG, 2017).

terça-feira, 8 de janeiro de 2019

O Trotsky da Netflix

Por Murillo Victorazzo*

Como todo ícone revolucionário, Liev Bronstein, o Leon Trotsky, desperta admirações, paixões, repulsas, ódio, mas, acima de tudo, instiga pela dúbia personalidade. Não por acaso, a série russa que leva o nome do lendário bolchevique causou previsível polêmica no país de origem quando transmitida pela rede pública Pevry Kana, no final de 2017.

O burburinho ultrapassou fronteiras com sua aquisição pela Netflix. Embora com pouquíssima repercussão entre o público geral do Brasil, a obra, produzida por Alexander Kott e Konstantin Statsky, incomodou também militantes de esquerda daqui, críticos igualmente da forma como é reconstituído o criador do Exército Vermelho e figura central da Revolução Russa.

Perseguido pelo aparato de Stalin por quase 15 anos até ser assassinado a seu mando em 1940, Trotsky costuma ser encarado como contraponto ao sanguinário ditador, que, em 1922, conspirou para suceder Lênin, mesmo o primeiro comandante da União Soviética gastando seus últimos dias de vida em demonstrações a favor do rival.

No início da luta contra o regime czarista, Stálin era um admirador dos textos de Trotsky contra os Romanov. A recíproca, porém, nunca foi verdadeira. Invejável intelectual, dono de talento literário e com hipnotizante oratória, Trotsky desprezava a rudeza de seu correligionário georgiano, que, por sua vez, nunca deixou de vê-lo como maior ameaça à manutenção de seu poder. No comando do regime, não satisfeito em expulsa-lo do partido, baniu-o do país e mandou executar dois de seus quatro filhos.

Mas mais do que choque de egos, a distinção entre eles ganha significado especial dentro do movimento comunista após 1956, quando Nikita Krushev, novo secretário-geral do PC, denuncia, em discurso no Congresso do partido, a brutal dimensão da política de execução de opositores (dentro e fora do partido) de seu antecessor, morto três anos antes. Dava-se início "desestanilização" da União Soviética: mais de 80 mil presos em campos de trabalho forçado são soltos e resgata-se a memória de vários militantes assassinados.

Entre eles, destaque para Trotsky, cuja imagem, banida da historiografia oficial do país, fora, durante décadas, vítima de orquestrada campanha da burocracia stalinista. Na tentativa de deslegitimá-lo como traidor contrarrevolucionário, coube até acusações de cumplicidade com o nazifascismo. Desde então, o antagonismo passou a simbolizar, para a esquerda socialista, o contraste entre o ideal marxista e o desvio burocrático totalitário.

Asilado no México, Trotsky escrevia uma biografia de seu algoz quando foi morto a golpes de picareta por um agente soviético de origem espanhola infiltrado em sua casa. No livro, ele, de certa forma, nos mostra o Stálin revelado por Krushev: "(...) se divertia em sua casa de campo degolando ovelhas ou jogando querosene nos formigueiros e ateando fogo (...) caminhava pelo bosque e continuamente se divertia atirando nos animais selvagens e assustando a população local. Tais histórias sobre ele, procedentes de observadores independentes, são numerosas. E, no entanto, não faltam pessoas com esse tipo de tendências sádicas no mundo. Foram necessárias condições históricas especiais antes de que esses instintos obscuros encontrassem uma expressão tão monstruosa".

É esse Stalin que, também na série, Trotsky, interpretado pelo popular ator russo Konstantin Khabensky, não cansa de descrever nos diálogos com o jornalista Frank Johnson, admirador do ditador. Confrontado inúmeras vezes por ele sobre episódios em que também não poupou vidas de "camaradas", Trotsky, como mantra, justifica-os como necessários para a consolidação da revolução e do Exército Vermelho, ameaçados por deserções e sublevações em meio aos combates contra o Exército Branco (que reunia czaristas e liberais) durante os três anos da Guerra Civil. Segundo o velho revolucionário, diferente de Stalin, a violência praticada sob suas ordens não teria sido nem disseminada nem praticada por sadismo ególatra.

Mas - e aqui se encontra a razão de tanta inquietação -,  os oito episódios da obra logo mostram um cenário um tanto diferente: surge na tela um Trotsky irascível, arrogante e cruel, que relega a família e não hesita em matar quem o vê como "homem comum", mesmo que fossem leais colaboradores. Alguém não muito diferente de seu algoz. A  ideia de que homens assim , simples "seres humanos", não conduzem a revoluções teria vindo de seu truculento carcereiro czarista, ainda no final do século XIX, em Odessa. Na fuga do país, dele Trotsky pega também o pseudônimo que o eternizaria. "As pessoas só podem ser controladas com o medo. O medo está nos alicerces de qualquer ordem", afirma o verdadeiro Trotsky em tensa conversa com ele.

Impossível assegurar se a União Soviética comandada por Trotsky se caracterizaria por opressão tão brutal e disseminada quanto a de Stalin. Mas, segundo Robert Service, autor de Trotsky, uma biografia, "qualquer um que governasse o país de forma eficaz precisaria de métodos autoritários para conservar o poder comunista. O sistema forjado pelos bolcheviques, nada democrático, ‘cobrava’ violência para mantê-lo". Trotsky, acrescenta ele, "era de um egocentrismo extremo. Passava por cima da resistência institucional sempre que queria ação rápida e obediência. Tinha uma maior propensão para dar ordens do que para a discussão".

Exemplos que aparentam confirmar o que diz Service são retratados na série: a liderança na repressão aos marinheiros rebeldes em Kronstadt; o apoio ao restabelecimento da pena de morte; e à execução da família imperial. As últimas duas, contudo, controversas. Na versão televisiva, a autoria intelectual teria sido sua. Outros historiadores, porém, afirmam que Trotsky "apenas" seguiu o proposto pelo comitê supremo do partido.

O desejo narcisista de Trotsky de impor-se com áurea superior e infalível perante as massas pode não corresponder a verdade, mas foram os próprios trotskistas que, de certo modo, alimentaram esse seu traço excepcional, o que sempre atrapalhou qualquer debate não maniqueísta. Neste sentido, a série comete o mesmo pecado, mas pelo lado oposto, ao preferir uma abordagem lugar-comum de vilão de novela. Afasta-se assim da "complexa personalidade" escrita na própria sinopse.

Abusando das hipérboles e reducionismos, a obra chega a distorcer fatos, no intuito de reforçar grosseiramente a frieza do biografado. A começar por mostrar a primeira esposa, Alexandra, como uma passiva mulher abandonada por um marido que foge do campo de prisioneiros na Sibéria para o exílio. Seis anos mais velha, Alexandra, na verdade, era uma militante revolucionária, com posições firmes e que incentivou sua fuga. De acordo com Hedda Gaza, autora de outra breve biografia sobre Trotsky, Alexandra defendia que "o dever para com a revolução suplantava qualquer coisa, especialmente as relações pessoais".

Do mesmo modo é retratada Natália Sedova, a segunda esposa e companheira até os últimos dias de vida. Natália também era uma ativista, que, em meio a boemia parisiense, escrevia textos marxistas. Pouco a ver com o que se vê na Netflix: uma fútil frequentadora de festas, regadas a bebida e drogas, à procura de homem rico mas que acaba seduzida pela inteligência de Trotsky e, após casar, recolhe-se em meras palavras de apoio.

Fragilizar as mulheres para reforçar a suposta hipocrisia de suas teses emancipatórias diante de seu machismo. A crítica à ideia "burguesa" de fidelidade lhe teria servido como mero pretexto para justificar, entre outras traições a Natalia, seu rumoroso caso com a vanguardista pintora e símbolo mexicano Frida Kahlo. Igualmente, nada mais do que arma de sedução seria a defesa do pleno direito da mulher sobre seu próprio corpo. O sutil objetivo é reforçado no duelo verbal com Sigmund Freud, no qual o bolchevique compara as massas à “psicologia feminina”: instável e emotiva.

É fácil, portanto, captar a correlação pretendida nas cenas de sexo com Larissa Reissner em um vagão do imponente trem blindado bolchevique, utilizado por ele, como presidente do Comitê Revolucionário Militar, no monitoramento das frentes de batalha por todo o gigantesco território russo. Jornalista e ativista na vida real, Larissa é caracterizada com feições fúteis e compromissada com um oficial do Exército Vermelho - subordinado ao amante. 

A Revolução Russa tornou o matrimônio uma relação voluntária; legalizou o divórcio e o aborto (gratuito); eliminou as diferenças entre filhos legítimos e ilegítimos; e igualou os direitos trabalhistas de homens e mulheres. Não deveria estranhar a repulsa em setores da esquerda com o enfoque machista sobre um de seus principais artífices. 

É, aliás, através do fictício diálogo com Freud, que são insinuados traços psicopatas em Trotsky, real admirador e leitor do austríaco, em que pese outros marxistas considerassem a psicanálise uma prática "burguesa e capitalista". A cena é um dos melhores momentos da produção. Após afirmar que o homem vive "pelo medo da morte" e pelo sexo, Freud compara a conquista de um país a conquista de uma mulher. Referindo-se a ele como "tipo raro de agressor sexual", olha no fundo de seus olhos e dispara: “Só vi isso [súbito dilatamento de pupilas] em dois tipos de pessoas: serial killers e fanáticos religiosos". 

O reducionismo enviesado que em nada ajuda a entender fenômenos históricos leva ainda a frases quase caricaturais como as ditas no que teria sido o primeiro contato de Trotsky com Lênin. O futuro primeiro líder soviético, de cara, afirma: “Quero mudar o mundo. O que o povo tem a ver com isso? O povo é um instrumento.” “Nas suas mãos?”, pergunta Trotsky. “Ou nas suas”, responde Lênin. 

O mesmo viés depreciativo se vê na resposta de Trotsky à crítica de Lênin por ter eclodido o levante bolchevique antes da hora: "Sim, é um golpe, mas terá que parecer uma revolução". Afirmação nada crível, pois, de fato, toda revolução tem um componente golpista, por derrubar um governo constituído. Mas nem todo golpe é uma revolução, definida academicamente, em termos gerais, como um movimento que rompe a estrutura da ordem socioeconômica vigente a partir de alguma mobilização popular. Gostem ou não, Outubro de 1917 foi um dos grandes exemplos revolucionários. 

O termo golpe para minimizar o feito comunista é recorrente entre setores à direita e passou a ser utilizado pelo regime de Putin - por sinal, acusado por trotksistas de ser o responsável pelo tom da série, transmitida em emissora estatal nos 100 anos de um evento que seu governo fez questão de oficialmente ignorar.

Carece ainda de verossimilhança a reconstrução de Frank Jackson - codinome de Ramon Mercader - como um jornalista declaradamente stalinista. Sabe-se que ele, o agente assassino, ganhou a confiança de Trotsky justamente por se passar por um comerciante disposto a patrocinar suas ideias. Se a intenção era fazer das perguntas e comentários provocativos de Jackson o eixo condutor ao passado, não se pensou que faria pouco sentido um veterano militante aceitar em casa, sem receio algum, um simpatizante de seu ardiloso inimigo.

É de se lamentar ainda mais o não aprofundamento das diferenças entre Stalin e Trotsky. Ao resumi-las a inimizades pessoais e julgamento de personalidades, perdeu-se a chance de explicar um dos principais embates doutrinários internos ao movimento comunista: o internacionalismo proletário contraposto ao nacionalismo stalinista. Abordá-lo enriqueceria a produção sobre fato histórico que reconfigurou o mundo.

Foi Trotsky quem contribuiu para atualizar a tese marxista de que a revolução só poderia se dar em países industrializados. Sendo o comunismo o estágio final do capitalismo, ela seria possível apenas havendo uma forte classe operária como agente condutor, apontava Marx. Para Trotsky, porém, embora o operariado fosse incipiente na atrasada e rural Rússia, uma aliança com o campesinato tornaria possível a instauração de um governo que visasse o fim da propriedade privada dos meios de produção.

Contudo, para o país se industrializar e os requisitos socialistas se firmarem, tal aliança não seria suficiente a longo prazo. A divisão mundial do trabalho, a dependência da indústria soviética em relação à técnica estrangeira e a dependência das forças produtivas dos países avançados em relação às matérias-primas asiáticas tornavam impossível a construção de uma sociedade socialista isolada em um ponto do mundo. "A revolução socialista torna-se permanente num sentido novo e mais amplo do termo: só está acabada com o triunfo definitivo da nova sociedade sobre todo o nosso planeta", vislumbrava Trotsky. 

A ideia reforçava de outra forma a emblemática expressão marxista "Proletários do mundo todo, uni-vos". Mas seria escanteada com a ascensão de Stalin, para quem a Rússia deveria ela própria, sem envolvimento direto com levantes externos, concentrar-se no desenvolvimento de suas forças produtivas, prioridade que justificava a construção do crescente aparato burocrático. 

A favor da série, ressalte-se que, se ela força as cores em muitos aspectos de sua personalidade, delineia em Trotsky um relativo desapego por liderança. Em nome da "revolução", aceita ceder sem resistência o comando do partido a Lênin, mesmo após ser o mentor da insurreição que derruba o governo provisório de Kerensky. "Lenin tinha razão. Na Rússia, o poder nas mãos de um judeu não duraria nem um mês (...)  me libertou para realizar a revolução mundial", admite para Jackson, recordando o antissemitismo que lhe perseguiu, inclusive por parte de alguns do movimento comunista, enquanto pregavam um "novo mundo" onde todos seriam iguais independente de origens. Trotsky, de fato, "não desejava com suficiente intensidade a autoridade suprema”, corrobora Service.

Polêmicas à parte, a série merece ser vista. Vale pela fotografia, que alterna a escuridão gélida da pobre mas bela Rússia do início do século com as cores vivas do calor mexicano. E por uma reconstituição de época que, se talvez não tão requintada para o gosto de muitos, ganha charme diferenciado por fugir da estética ocidentalizada. Destaques especiais para o trem blindado bolchevique, as legendas explicativas em alfabeto cirílico e as passagens finais dos episódios, nas quais Trotsky sempre enfrenta seus fantasmas do passado, com remorsos e frustrações em forma de alucinações.

Vale ainda mais por resgatar o protagonismo de figura relegada a segundo plano no senso comum sobre a Revolução Russa. Trotsky não foi apenas um de seus principais ideólogos; foi seu principal operador, desde a derrubada do czar, em 1917, até a vitória na Guerra Civil, em 1921. Sem ele, correndo o risco das deduções contrafactuais e sem juízo de valor, a História do século XX seria diferente. Figuras assim nunca terão biografias definitivas.

*Murillo Victorazzo é jornalista, com especialização em Política & Sociedade (Iesp-UERJ) e MBA em Relações Internacionais (FGV-Rio)