sábado, 22 de abril de 2023

Uma pintura de livro

Por Murillo Victorazzo

Mais do que ligar dois mares, o Estreito de Bósforo carrega consigo o simbolismo de, dentro das fronteiras da Turquia, separar a Europa da Ásia, o que dá à principal cidade do país a singularidade de ser o único grande centro urbano do mundo localizado em dois continentes. E não é qualquer cidade. Hoje a mais populosa entre as europeias, a bela Istambul, outrora chamada de Bizâncio e Constantinopla, insere-se de modo protagonista na História. Antiga capital do Império Bizantino - o "Império Romano do Oriente"-, sua tomada pelos turco otomanos, em 1453, é a linha divisória entre a Idade Média e a Idade Moderna. Melhor palco, portanto, não haveria para a literatura discorrer a respeito dos contrastes entre as culturas ocidental e islâmica.

É essa Istambul, mas lá no final do século XVI, que serve de cenário para “Meu nome é vermelho”, o premiado livro de Orhan Pamuk, já traduzido em 60 idiomas. Passada um ano após o armistício entre turco otomanos e persas, a trama se desenvolve a partir do assassinato de um dos ilustradores da equipe contratada pelo sultão para produzir, sob sigilo, um livro em celebração ao milésimo aniversário da Hégira, a fuga de Maomé para Medina, a ser celebrada no ano seguinte.

A Hégira é entendida pelos seguidores de Maomé como o início da expansão do Islã como religião, tendo sido, por isso, convencionada como o ano I do calendário muçulmano (o ano 622 dos cristãos). O livro encomendado deve assim servir como prova da superioridade da cultura islâmica em relação à dos "infiéis" europeus e demonstração da riqueza do Império Turco Otomano, um gigantesco território multilíngue cujas fronteiras iam do sudeste europeu até além de terras mesopotâmicas, passando pelo norte africano. "Um símbolo do vitorioso poder do Califa do Islã, Nosso Glorioso Sultão", nas palavras de Tio Efêndi, o chefe da equipe.
Entretanto, diferente da outras obras financiadas pelo monarca, nesta ele exige a utilização de técnicas da Itália renascentista, o que, para alguns, "trai as regras sagradas da nossa arte e atentam contra a religião”. Suas intenções secretas desencadeiam uma série de intrigas que culmina na morte de Elegante Efêndi. A trama de Pamuk, contudo, é mais do que um romance policial. É também um caso de amor proibido e, antes de tudo, uma aula de costumes islâmicos e de História turca. Não é absurdo dizer que, diante de tamanha beleza estilística e assuntos mais profundos, descobrir o autor do crime torna-se secundário.

São 568 páginas repletas de passagens reflexivas, filosóficas até, com inúmeros contos, provérbios e parábolas característicos do Islã. Alguns trechos abordam diferenças entre interpretações do Alcorão, expondo a miopia intelectual dos que veem os que professam essa fé como uma massa homogênea. É, inclusive, ponto relevante na motivação do crime a aversão fundamentalista do hodja (pregador) de Erzurum aos cantos, danças, "orgias gastronômicas" e "idolatria" à "santuários de mortos” dos sufistas, acusados por ele e seus simpatizantes de deturparem o Islã, degeneração responsável pela carestia, epidemias e derrotas militares. Ficamos também sabendo, por exemplo, que Efêndi não é sobrenome, mas uma forma de tratamento respeitoso aos homens na região. Dilemas existenciais não faltam, e é essa diversidade de gêneros que torna a história mais especial, dada a maestria com que o autor oscila harmonicamente entre eles, embaralhados muitas vezes em um mesmo capítulo.

Vencedor do Prêmio Nobel de 2006, Pamuk, hoje o principal nome da literatura turca, foi pintor durante alguns anos de sua juventude, o que explica seu enorme conhecimento sobre as características históricas da ilustração oriental e os mitos que a envolvem. Revela-nos especialmente como ela faz parte da identidade turca e o papel tradicional de sultões e paxás como mecenas. Mestres são citados e dois deles, rivais em visão de mundo, estão entre os personagens. Mestres que, além de suas expertises técnicas, emprestam sabedoria a seus discípulos - sempre em nome de Alá, claro. Exceto o casal protagonista - Negro Efêndi e sua amada Shekure - e a judia Esther, todos os envolvidos são calígrafos, iluminadores, pintores, encadernadores de uma época em que livros eram seletas obras de arte que mesclavam letras a imagens artesanalmente produzidas, e não textos vendidos em massa pela indústria cultural como hoje.

É através do diálogo entre eles que o choque entre essa escola de artistas e a europeia vem à tona. Tradicionalmente, pintores turcos não deixavam identificação alguma em suas obras. Ao pintarem heróis, guerras, amantes e datas festivas, buscavam "as lembranças de Alá com o fim de ver o mundo tal como Ele ô vê”. Não se devia, pois, procurar a individualidade. "Estilo é erro", garante um ilustrador, que completa: "A pintura é uma homenagem à riqueza da vida dos homens, ao amor, as cores do mundo tal qual Alá o criou e exorta-nos à piedade e reflexão. A identidade do miniaturista não importa".

Em conversa com Negro, outro artista lamenta que "a paixão pelo estilo, pelas assinaturas, chegou até nós vinda do Oriente, por obra de certos infelizes mestres chineses corrompidos pela influência dos europeus e de suas imagens, que lhes foram levadas do Ocidente pelos padres jesuítas". O choque ao conhecer a cultura ocidental é relembrado por Tio Efêndi, que, como embaixador do sultão, conhecera pouco tempo antes a Europa. O mestre recorda seu espanto ao ver a "epidemia" de retratos de monarcas, nobres e demais membros da elite, todos precisamente pintados com "rostos únicos, sem nenhuma parecença", distinguíveis em uma multidão. “Testemunhos de vida e símbolo de poder e dinheiro, a fim de proclamar sua individualidade", afirma.

A paixão pelo retrato, portanto, "acarretaria o fim da pintura do Islã, a pintura cujos modelos perfeitos e irretocáveis haviam sido estabelecidos pelos antigos mestres de Herat [cidade localizada no hoje Afeganistão]". Afinal, o "infiel" pinta a realidade, e o muçulmano, sua interpretação dela. “Pintores europeus medíocres pintam cavalos olhando para cavalos verdadeiros”, desdenha um dos ilustradores. "Mesmo assim é uma representação do que ele viu, gravada na sua memoria nesse piscar de olhos", ressalta enquanto discorre sobre a importância do tempo e da memória para a arte. 

Na possivelmente mais emblemática fala do livro, outro personagem vai ao cerne da questão: “Uma imagem pendurada na parede, qualquer que seja nossa primeira intenção, sempre acaba convidando à adoração. Se - não queira Alá! - eu acreditasse, como os infiéis, que o profeta Jesus é ao mesmo tempo o próprio Senhor Deus, então eu concordaria com que Alá pudesse ser visto nesse mundo e até aparecer sob a forma humana. Só então poderia aceitar que fossem pintadas e exibidas imagens representando pessoas com todos seus detalhes".

Em outra trecho, ao comentar sobre a falsificação por venezianos de moedas de outro, a maneira como o muçulmano entende a pintura ocidental é resumida de forma irônica: "Quando esses infiéis pintam, é como se não estivessem fazendo uma pintura, mas na verdade produzindo o objeto que pintam! Já quando se trata de moeda, em vez de produzir moeda verdadeira, produzem moeda falsa". E acrescenta: entre o amor à arte e a adoração ao dinheiro, motivo da busca desvirtuada pelo estilo, a moeda, além de unidade de valor, ganha o valor simbólico de “juiz do talento do pintor" e, por isso, mantenedor da ordem.

Mas provavelmente o traço mais peculiar do livro é como ele é contado. São 19 narradores diferentes, entre eles, um cachorro, uma árvore, o dinheiro, o diabo, um cavalo e um pigmento de cor. Mais do que costumeiras narrações ou descrições esmeradas do ambiente da cidade e do perfil das pessoas, eles conversam com o leitor em tom intimista, não nos poupando desabafos, indiretas, confissões, deboches e sarcasmos. É assim quando se trata do próprio morto, que, em seu monólogo, esmiúça sua passagem para o além: o que sentiu, suas dúvidas, preocupações e raiva.

Igualmente se vê quando quem narra é o criminoso, que, até o final do livro, mesmo de cara nos revelando o motivo do homicídio, conversa conosco sem se revelar. Não lhe faltam, porém, angústia, ironia, desprezo e ressentimento: "Quem teme Alá, como é meu caso, não se acostuma de um dia para outro com sua nova condição de assassino, principalmente se ela não é premeditada. Para poder continuar como se minha vida não houvesse mudado, criei uma segunda voz, em harmonia com essa nova personalidade. É com essa segunda voz, galhofeira e irônica, sem nenhuma relação com minha vida antiga, que me exprimo nesse momento".

É bem possível que o leitor que conheça o clássico "O Nome da Rosa", de Umberto Eco, encontre semelhanças entre os dois livros. Assim como a obra turca, a italiana é um suspense que une preceitos religiosos, tramoias relacionadas a estes e livros secretos. Apesar da gritante diferença estilística, ambas têm um caráter filosófico. Uma no início da Era Moderna, relacionada a um grande ateliê de pintura; outra, na Baixa Idade Média, tendo uma biblioteca como pano de fundo principal. Taí, quem sabe, outra oportunidade para se comparar as duas culturas.

Metaliguagem é a linguagem que descreve a si própria. Um livro que fala sobre um livro, por exemplo. Mas a obra-prima de Pamuk pode, ainda que no sentido figurado, ser elevada também a outro caso de metalinguagem. Diante de texto tão rico e detalhista, "Meu nome é vermelho" parece ter sido escrito com a delicadeza com que o mais talentoso ilustrador pincela sua ilustração. Uma “pintura” que, com palavras, nos conta sobre pintura. 

Publicado na Turquia em 1998, o livro ganhou vários prêmios internacionais. Os principais foram o de Melhor Livro Estrangeiro de 2002, na França, o Prêmio Grinzane Cavour de 2002 (melhor romance traduzido para o italiano) e o Prêmio Literário Internacional de Dublin de 2003 (melhor romance traduzido para o inglês). No Brasil, foi publicado pela Companhia das Letras em 2006, e traduzido por Eduardo Brandão. Apesar dos 17 anos passados, continua aqui como melhor exemplo de literatura estrangeira. Faz-nos refletir, rir e adquirir conhecimento. Nos dá tudo que um livro pode nos dar, seja aqui, na Turquia ou em qualquer outro lugar do mundo.

domingo, 16 de abril de 2023

A overdose de Lula na Guerra da Ucrânia

Por Murillo Victorazzo

Tão patológico quanto o americanismo deslumbrado de setores da direita liberal da sociedade brasileira é o antiamericanismo anacrônico de setores da esquerda. Preconcepções assim costumam empobrecer não só estratégias de política de externa como o debate sobre ela na opinião pública, imprensa e Parlamento. A interpretação das ações diplomáticas acaba por ser em função do ângulo ideológico do crítico. Essa discussão foi reacesa na última semana, quando o presidente Lula foi recebido com pompas pelo presidente chinês, Xi Jinping. Na ocasião, entre outras alfinetadas nos Estados Unidos, Lula afirmou que a superpotência "precisava parar de incentivar” a guerra na Ucrânia e que "a decisão dessa guerra fora tomada por dois países” - no caso o invasor e o invadido. Críticas em resposta não faltaram. E com razão.
O filme, de certa forma, não é novo. A diplomacia “ativa e altiva” de Lula em seus dois primeiros mandatos, com foco na cooperação "Sul-Sul" e busca por protagonismo internacional, foi muitas vezes rotulada como “antiamericanismo esquerdista”. No entanto, sem ignorar esse óbvio viés em um partido como o PT, é tradição no Itamaraty a busca da “autonomia”, seja pela "distância", "integração" ou "diversificação", como diversos governos expressaram suas políticas externas. Com breves períodos de exceção, como nos governos Dutra, Castelo Branco e Bolsonaro, não é da natureza do Itamaraty alinhamentos automáticos.

Ir a reboque de uma potência (bandwagoning) é custoso e pouco funcional qualquer que seja ela. Interesses nem sempre convergem e congela-se os passos do país mais fraco, preso ao "bom humor" do mais forte para obtenção de ganhos. Quando explicável, o é em circunstâncias específicas. Dutra foi o primeiro presidente eleito após o fim da II Guerra Mundial. Com o Brasil recém saído da ditadura varguista, alinhar-se à potência vencedora que emergia como líder do polo democrático parecia natural. Iniciava-se a Guerra Fria. Castelo Branco chegou ao poder através do golpe militar de 1964, que fora não só apoiado como insuflado pelos Estados Unidos. Tropas do país estavam no Atlântico caso Jango resistisse ( a Operação Brother Sam). Era preciso a qualquer custo manter esse apoio para a consolidação do novo regime. 

Em ambos os casos, porém, não tardou para que as ilusões acerca das vantagens prometidas viessem à tona. O afastamento decorrente desses dois momentos teve na Política Externa Independente (PEI), de Jânio e Jango, e o Pragmatismo Responsável, de Geisel, seus exemplos mais marcantes. Bolsonaro foi ainda mais sem sentido. Em um cenário externo que não se explicava, criou uma espécie esdrúxula de bandwagoning, na qual o alinhamento não era nem aos Estados Unidos em si, mas ao projeto de poder do inquilino de plantão na Casa Branca. Exceto o status de "alinhado preferencial extra-OTAN", nada ganhou. Derrotado Trump, o isolamento mundial veio.

É compreensível o interesse de potências médias por uma ordem internacional que não seja unipolar e baseada no multilateralismo. Quanto mais forte for o hegemon, mais fraca é a governança multilateral. Quanto mais fraca as instâncias multilaterais, menos espaço esses países terão para tentar projetar seus parcos recursos de poder e serem ouvidos. Mesmo assim, nos oito primeiros anos de Lula no Planalto, sua política externa não se pautou pela defesa da ruptura da ordem global. Os princípios não eram contestados, mas sim algumas de suas regras, entendidas injustas para países com a pretensão do Brasil.

Fazia sentido, por isso, que o Brasil, na primeira década do século, optasse por balancear o poder ( balancing, como conceituado) com os “países emergentes”, à época em forte expansão econômica. Era a época do foguete brasileiro subindo na capa da Economist, quem não se lembra? Daí surgiu os Brics, termo por sinal cunhado por um banqueiro. O Brasil assim recolocou na lista de prioridades uma vaga permanente no Conselho de Segurança da ONU e liderou o processo de consolidação do G-20. Explicava-se ainda o olhar voltado à África e a integração sul-americana como meio de projeção. Não sendo desenvolvido, mas mais rico do que estes, o Brasil, como potência regional, se apresentaria nas disputas na arena internacional como o porta-voz dos mais pobres, reforçando suas cartas no jogo.

Para o americanista patológico, contudo, qualquer diversificação de parceiros e posições que se choquem com as dos Estados Unidos são tachadas de antiamericanismo. Ignoram, por exemplo, que, embora consensos fossem inevitavelmente difíceis em certas agendas, o diálogo entre Lula e o conservador George W. Bush foi positivo. Pessoalmente inclusive houve simpatia mútua, com o norte-americano vendo no brasileiro um interlocutor junto a Hugo Chavez. O petista, aos olhos da Casa Branca, era o “irmão mais velho”, moderado e confiável, do "caçula rebelde" venezuelano. 

Em seu livro "18 dias: quando Lula e FHC se uniram para conquistar o apoio de Bush", o professor de Relações Internacionais da FGV Matias Spektor narra um telefonema dado por Lula ao republicano: "´Se vocês querem tranquilidade na Vene­zuela, eu estou disposto a ajudar. Agora, cada vez que a Con­doleezza [Rice, então secretária de Estado] bate no Chávez, ele tem um bom pretexto para fazer uma passeata contra vocês!` Bush ouviu e os artigos de Rice [em jornais] cessaram”. No mesmo livro, Lula admite: “Muita gente estranha quando eu digo isso, mas eu tive uma relação muito boa com Bush. Nós estivemos perto de construir uma parceria estratégica”.

Por outro lado, na esquerda repete-se até hoje como mantra que a política externa de Fernando Henrique foi “entreguista” e “subserviente” a Washington. Os anos 90 foram o auge da unipolaridade norte-americana, e o processo de estabilização econômica exigia uma aproximação com eles. O fim da década de 80 marcara não um antagonismo, mas um vácuo entre os dois países, e antes, como citado, exceto com Castelo Branco e ao contrario do que o senso comum simplifica, a ditadura militar, ainda que compartilhando a aversão ao lado soviético, entrou constantemente em choque com a superpotência capitalista. Os focos de embate iam desde Direitos Humanos até o acordo nuclear com Alemanha e a critica ao “congelamento de poder” na ONU.

Na visão dos tucanos, voltar a estar no radar norte-americano e participar do mainstream do sistema internacional, cuja liderança pelos Estados Unidos não tinha como ser contestada, era fundamental para sair do isolamento. Aderiu-se então às normas internacionais da ordem global liberal, mas sem haver um alinhamento. A recusa em apoiar o Plano Colombia ( acordo entre Bogotá e Washington contra o narcotráfico que previa financiamento, envio e treinamento militar norte-americano) e, embora com concepção distinta a de Lula, a atenção dada ao Mercosul são exemplos da preocupação em afastar o hegemon do nosso quintal. Se não colocou a pá de cal na Área de Livre-Comércio das Américas (Alca) como fez seu sucessor, Fernando Henrique postergou o quanto pode as negociações, vistas com ceticismo por setores do Itamaraty e da indústria nacional.

De fato, após quatro anos da mais anômala politica externa que tivemos, na verdade um amontoado de palavras de ordem e espantalhos ideológicos, o Brasil voltou ao cenário internacional. A postura proativa na agenda ambiental merece elogios. Em pouco mais de três meses de governo, é sintomático Lula já ter sido recebido pelos presidentes das duas maiores economias do mundo. Que os chineses tenham remarcado rapidamente a visita após o adiamento causado por sua pneumonia é evidencia da relevância do encontro para Pequim, interessado em retornar à maturidade uma relação afetada pelo tosco anticomunismo de rede social de Bolsonaro. Simbolismos e protocolos norteiam a diplomacia.

Mas outros sinais também foram vistos durante as duas viagens. Enquanto Lula voltou de mãos abanando da visita a Washington, de Pequim trouxe 15 acordos assinados, entre eles a construção de um novo satélite de monitoramento e memorando sobre cooperação no desenvolvimento de tecnologia de informação. No total, uma promessa de investimentos de cerca de US$ 50 bilhões. Nem mesmo o discurso ambientalista durante a campanha eleitoral de 2020 fez com que Joe Biden abrisse os bolsos para o Fundo Amazônia. A promessa de doação de irrisórios U$$ 50 milhões constrangeu o Itamaraty.

Não é de hoje que os Estados Unidos não colocam a América Latina na sua lista de prioridades. Com o fim da Guerra Fria, acabou a necessidade de manter longe da região regimes satélites de Moscou. A Guerra ao Terror, declarada após o 11/9, moveu de vez o radar para o outro lado do oceano. Hoje as pautas que o mobilizam na região se resumem ao combate às drogas, à imigração irregular e a manutenção do embargo a Cuba. 

Nos anos que antecederam à II Guerra Mundial, Getúlio Vargas baseou sua política externa pela "equidistância pragmática" entre Estados Unidos e Alemanha. Utilizou-se do acirramento da disputa econômica entre os dois países a fim de barganhar vantagens para seu projeto de industrialização. Era de conhecimento de Washington as vozes simpáticas aos nazistas dentro do governo brasileiro, como seu ministro da Guerra, general Gois Monteiro, e o chefe da polícia do Distrito Federal, Filinto Müller. Foi através desse movimento pendular que o Brasil conseguiu o financiamento norte-americano para a construção da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN). 

A China hoje é a maior parceira comercial dos países da América do Sul. O Uruguai, governado pelo direitista Lacalle Pou, está finalizando um acordo de livre-comércio com a potência asiática, motivo de rusgas com o Brasil, por enfraquecer Mercosul, cujo pilar é a negociação coletiva. "Os governos latino-americanos querem oportunidades de negócios e criação de empregos. E a China pode oferecer isso de alguma forma", resumiu ao jornal "O Globo" Xiaoyu Pu, cientista político da Universidade de Nevada.

 Diante desse panorama, algumas críticas feitas após a visita de Lula aos chineses são exageradas. Mesmo com viabilidade incerta, a desdolarização do sistema internacional já está em curso, com experimentos de comércio bilateral por meio de compensações e ensaios de moedas comuns que tentam fortalecer a integração econômica entre determinadas regiões. "Aderir firmemente ao princípio de uma só China", como diz o comunicado bilateral, não é novidade. Desde 1974, quando o Brasil reconheceu o regime de Pequim, consideramos Taiwan "parte inseparável" dele, posição, aliás, de mais de 180 nações, inclusive União Europeia e Estados Unidos, apesar da ambiguidade recente deste. Trump e Biden sinalizaram retaliação caso Xi Jinping parta para ações bélicas contra a ilha. Os exercícios militares de norte-americanos nas Filipinas uma semana após os chineses agirem igual no Estreito de Taiwan elevaram a tensão na região e fez com que, ao reiterar seu posicionamento histórico, o Brasil passasse a imagem de apoiar as pretensões de Pequim.

Em tese, portanto, usar como barganha os Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), grupo composto por três democracias ( ainda que imperfeitas) e duas autocracias, é pragmatismo, não simples ideologia. Princípios contam nas relações internacionais, mas sempre são modulados pelos interesses, como mostra o próprio Estados Unidos e sua política externa de seletiva ênfase na democracia. Ver com bons olhos um mundo multipolar não é necessariamente alinhar-se ideologicamente aos autocratas chines e russo, e a não adesão brasileira à Iniciativa Cinturão e Rota, mega projeto de infraestrutura chinês, com tentáculos em diversos continentes, pode ser uma prova. Vinte e um países latino-americanos fazem parte da iniciativa.  

Entretanto, uma linha tênue separa as duas intepretações. Uma relevante linha na qual a retórica ganha maior peso. Nada justifica, especialmente em território chinês, a subida de tom de Lula contra os Estados Unidos. Ainda pior quando apela a falsas equivalências sobre a guerra na Ucrânia. O presidente brasileiro já havia sido criticado quando sugeriu que a Crimeia, anexada pelos russos em 2014, ficasse de fora das negociações. Dando-lhe o benefício da dúvida, não há como negar que, de forma realista, Putin jamais retrocederá na conquista da península, onde até um polêmico referendo já foi realizado para referendar o domínio de Moscou, status quo até 1954. Na região, encontra-se, por acordo de décadas, a base da Frota Naval russa do Mar Negro. 
 
Sim, é falacioso dividir o conflito na Ucrânia como um choque entre democracias e autocracias. É compreensível que soe hipócrita a defesa dos direitos humanos pela Casa Branca. Sim, a OTAN pecou por expandir seu alcance para as fronteiras russas. Não é mentira que o Ocidente pressionou pela aprovação no Parlamento ucraniano do pedido para entrada na aliança transatlântica - assim como Vladimir Putin pressionou em sentido contrário, ambos os lados incentivando a queda de governos contrários ao que lhes interessa. Mas a escolha foi soberana e há apenas um agressor. Há um país invasor e uma nação invadida. Nenhuma escola russa está sendo atacada. Nenhum hospital russo está sendo bombardeado. Nenhuma criança russa está sendo deslocada à força. Nenhuma cidade russa está sendo destruída. Nenhum civil russo morreu. É disto que se trata.

O próprio sistema de segurança coletiva, base legal da ONU, prevê que uma guerra só é legítima como defesa a uma agressão e com a aprovação da comunidade internacional, representada pela organização, que tem na Rússia uma de suas fundadoras e membro permanente do Conselho de Segurança. Sim, os Estado Unidos agiram igual no Iraque, e o Brasil, à época também sob o governo Lula, também condenou acertadamente. Além do direito internacional rasgado pelo autocrata russo, a Constituição brasileira, em seu artigo 4º, diz que nossa política externa se regerá pela autodeterminação dos povos e a não intervenção. "Putin e Zelensky nada fazem para parar a guerra", declarou Lula. Se Putin parar de atacar, a guerra acaba. Se Zelensky parar de se defender, quem acaba é a Ucrânia. Em essência, a fala é tomar partido de um lado sob o manto da neutralidade.

As reações logo vieram. A Casa Branca obviamente considerou "profundamente problemática" as declarações; nada mais do que uma "repetição da propaganda russa e chinesa" sem "olhar para os fatos". Alguns governos da União Europeia ainda preferem ver Lula como uma ponte entre ocidentais e russos. Para estes, suas falas seriam acenos ao Kremlin de que é um interlocutor confiável. Outros, porém, já não o veem com legitimidade para esse papel. Não há espaço para relativizar a invasão, afirmam. As críticas chegaram até ao Parlamento de Portugal, onde o presidente brasileiro discursará na próxima semana. O líder de um partido de centro-direita disparou: "A Assembleia da República que convidou Zelenski para discursar não pode receber um aliado de Putin. E o presidente que atribuiu a Ordem da Liberdade a Zelenski não pode estar confortável com a presença de um aliado de Putin como Lula na Assembleia da República."

Nesta segunda-feira, dia 17, Lula recebeu no Palácio do Planalto o chanceler russo, Sergei Lavrov, o que por si só pouco diz, desde que brevemente receba alguém de alto nível do governo ucraniano. Em entrevista coletiva ao lado de seu homólogo brasileiro, Mauro Vieira, Lavrov afirmou que "as abordagens de Brasil e Rússia de questões que acontecem hoje no mundo são similares". Vieira voltou a criticar a imposição de sanções unilaterais, fora da ONU, outro traço tradicional do Itamaraty. Ano passado o governo Bolsonaro votou contra resoluções com esse mesmo fim no Conselho de Segurança. Perguntado, mais tarde, sobre o comentário russo, escapou sem refutá-lo: "A conversa, tanto comigo como com o presidente, não entrou em quadro de guerra. Falamos de paz. Reiteramos que o Brasil está disposto a cooperar com a paz". 

São ambiguidades semelhantes às com as ditaduras venezuelana e nicaraguense. A visita do assessor para assuntos internacionais do governo, o ex-chanceler Celso Amorim, a Nicolas Maduro rendeu críticas na parcela bem à direita da sociedade brasileira, mas reabrir o diálogo com Caracas é fundamental caso o Brasil queira reassumir a liderança regional. É necessário voltar a ter papel protagonista nas negociações acerca da infindável crise venezuelana, e os laços históricos do chavismo com o PT são um ativo. As bravatas ideológicas de Bolsonaro, que o levaram a romper relações diplomáticas com a Venezuela e reconhecer um presidente e uma embaixadora fakes serviram apenas para agradar Trump e sua base mais incendiária, que ignora a contradição de exaltar liberdade enquanto namora com afinco as monarquias teocráticas do Oriente Médio e o regime de Victor Orbán, na Hungria. Sem falar nas antigas exaltações a Pinochet, Medici e Stroessner... 

O diversionismo ideológico do governo anterior abriu espaço para russos e chineses cacifarem-se para esse papel que deveria ser de Brasília. No entanto, a dificuldade em externar rejeição ao autoritarismo chavista fragiliza a credibilidade do movimento de Amorim. Reforça a imagem não de mediador, mas a de cúmplice, já arraigada em parcela da população. Na mesma linha, embora tenha anunciado acolher os refugiados do regime nicaraguense, a diplomacia brasileira negou-se a aderir à declaração do Conselho de Direitos Humanos da ONU, assinada por 55 países, que condena as violações contra os direitos humanos do governo de Daniel Ortega. A justificativa foi discordar do tom, um empecilho a "um canal de diálogo". O silêncio, porém, joga contra.

 Com a derrota de Trump, Bolsonaro se escudou no líder russo para tentar atenuar o isolamento. Não hesitou em viajar à Moscou quando se sabia que Putin estava contando as horas para atravessar seus tanques e disparar mísseis. Ao abraçar Bolsonaro, o russo cutucava Biden e a União Europeia, outro alvo ideológico do bolsonarismo. No Kremlim, o brasileiro disse ser "solidário à Rússia", ter um "casamento perfeito", com Putin e que este "buscava a paz". Assim como Lula hoje, Washington e Bruxelas, apesar do voto brasileiro a favor da condenação da invasão russa na ONU, entenderam aqueles movimentos não como neutralidade, mas como apoio, ainda que disfarçado. 

Os reacionários de Bolsonaro veem Putin como a ponta de lança na batalha contra o "globalismo" uma visão compartilhada pela extrema-direita do próprio Estados Unidos, em contraste com os republicanos tradicionais, independentes e democratas, unidos no apoio à Ucrânia. São frequentes, nessas redes e grupos, elogios ao russo, contra Biden e Macron, representantes dos valores progressistas, causa da "decadência" do Ocidente.

Ironicamente, setores da militância petista e de outros grupos da esquerda clássica veem o mesmo déspota como a ponta de lança na batalha contra o "imperialismo" norte-americano e a OTAN, seu principal instrumento. Pipocam entre eles a relativização da agressão à Ucrânia, "fantoche" do Ocidente. Insistem em repetir a propaganda do Kremlin sobre "desnazificação" do país e o direito à suposta defesa preventiva. Não importa que Putin persiga movimentos sociais que aqui dizem defender nem que de socialismo hoje na Rússia exista apenas o mausoléu de Lênin e outras estátuas. Putin comanda um regime fascistóide e plutocrático, mas a patologia os prende aos grêmios estudantis e células clandestinas da década de 60.

Lula recentemente foi convidado pelo primeiro-ministro japonês, Fumio Kishida, a participar da reunião do G7, o grupo das sete democracias mais ricas do mundo, a ser realizada no final de maio em Hiroshima. Desde 2008, quando o Brasil estava sob seu segundo mandato, esse convite não era feito ao país. É mais uma mostra da boa vontade do Ocidente com o petista, depois de quatro anos da excrescência bolsonarista. Sem até agora confirmar presença, restringiu-se a criticar a ausência da "segunda, ou primeira, dependendo como se analisa, maior economia do mundo" (a China) no grupo. “O G-20 é coisa muito mais importante”,  desdenhou.

Percepções são subjetivas, mas a sensação que fica é que, de forma semelhante ao do seu antecessor, Lula almeja manter um pé nas tradições do Itamaraty e outro nas idiossincrasias de sua base mais fiel. Mas, quanto mais se agravar a disputa entre Washington e Pequim/Moscou, mais a linha se atenuará. Vargas, ainda que tardiamente, teve que optar por um lado, chegando a mandar tropas contra o Eixo na Itália. Nesse quadro instável, cada movimento no tabuleiro precisa ser meticulosamente pensado, incluindo declarações presidenciais.

A dinâmica política, especialmente a internacional, não é binária, para espanto de militantes. Não dá pra negar, contudo, que os últimos passos da diplomacia brasileira colocaram em risco a autoimagem neutra, o que, se não por princípios morais, é péssima para o almejado papel protagonista de mediador da paz mundial, roupagem que Lula tanto busca usar. Ainda por cima, ofuscaram o êxito da viagem em termos econômicos. O tom se dissociou da ideia. É a velha máxima: a diferença entre o remédio e o veneno é a dose.

segunda-feira, 10 de abril de 2023

No Oriente Médio, clichês são inevitáveis

Por Murillo Victorazzo

Ramadã significa "calor intenso" em árabe. Foi sob as altíssimas temperaturas do deserto, típicas do nono mês do calendário lunar islâmico, que os versículos do Alcorão - "as palavras de Allah” - foram revelados a Maomé (Muhammad) através do arcanjo Gabriel enquanto o profeta meditava na caverna de Hirá, em Meca. Pessach, em hebraico, significa "passagem". No sentido bíblico, marca a libertação do povo judeu da escravidão infligida pelo Faraó egípcio. Segundo o Livro do Êxodo, foi quando os hebreus, conduzidos por Moisés, atravessaram o Mar Vermelho rumo a Canaã, a Terra Prometida.

O Ramadã é, por isso, o mês sagrado para o Islã, período no qual deve-se jejuar entre o nascer e o por do sol. Nenhuma ingestão é permitida, nem mesmo água, restrição dispensada para alguns, como crianças, doentes e gestantes. Entre as cinco rezas diárias de sempre, os muçulmanos buscam com o jejum “aproximar-se” de Deus, uma espécie de rito de purificação física e espiritual. Doações para instituições de caridade são incentivadas. Por ser baseado no ciclo da lua, o mês começa entre 10 e 12 dias antes que no ano anterior no calendário gregoriano, o utilizado oficialmente em grande parte do mundo. Iniciado no dia 23 de março, parte dele coincidiu este ano com a Pessach, a Páscoa judaica, celebrada desde quarta-feira, dia 5.

A festa dos judeus ocorre sempre durante a primeira lua cheia após o início da primavera no hemisfério norte, entre os dias 15 e 22 do mês hebraico de Nissan. Entre outros ritos, um jantar, o Séder, marca a primeira noite, durante a qual as famílias fazem a leitura do Hagadá, livro que narra a libertação. Na véspera, os primogênitos jejuam em agradecimento por seus antepassados terem sido poupados da praga que vitimou os primogênitos egípcios. São oito dias em que se proíbe alimentos a base de grãos fermentados (chamêtz), tradição que se explica pelo pão ázimo (sem fermento) que os antepassados tiveram que comer na apressada fuga do cativeiro.

Mas esses costumes, que remetem à paz, liberdade e empatia, não raramente são ofuscados pela realidade geopolítica. Na manhã do mesmo dia 5, policiais israelenses invadiram a mesquita de Al-Aqsa enquanto fiéis faziam a Itikaf, a vigília realizada durante o Ramadã. Localizada em uma colina de Jerusalem conhecida pelos muçulmanos como Al Haram al Sharif (o Nobre Santuário) ou Esplanada das Mesquitas, a mesquita fica próxima ao Domo da Rocha, imponente santuário declarado Patrimônio da Humanidade pela UNESCO, de onde, segundo a tradição islâmica, Maomé teria ascendido ao céu no ano de 620.

“Eles atacaram de forma selvagem as pessoas, mesmo sem saber se havia mulheres lá dentro. Restringem a liberdade de movimento. Estão prontos para uma nova onda de repressão contra os fiéis”, disse uma muçulmana à Rádio França Internacional (RFI). De acordo com a polícia, a incursão se deveu à presença de "jovens criminosos e agitadores mascarados" que lá ficaram entrincheirados "para perturbar a ordem pública". Entre pedaços de pau, pedras e fogos de artifício de um lado e bombas de gás lacrimogêneo e cassetetes de outro, as cenas de violência resultaram em 350 palestinos presos e 37 feridos.

A mesma colina é chamada pelos judeus de Monte do Templo (Har ha Bayit, em hebreu), onde, no mesmo terreno em que o califa Abd al-Malik construiu o Domo da Rocha, Abraão teria oferecido seu filho Isaque em sacrifício a Deus. Logo abaixo dela, encontra-se o Muro das Lamentações, os resquícios do que acreditam ter sido o Templo de Salomão, o primeiro templo judeu, construído há mais de três mil anos. O Monte é, por isso, o lugar mais sagrado para o Judaísmo, tão sagrado que praticamente todas suas correntes recomendam a seus fieis não rezarem lá até um novo templo ser construído, o que só ocorreria após a chegada do Messias. Anexado por Israel após a Guerra dos Seis Dias, em 1967, todo esse complexo tem seu acesso controlado pelas forças de segurança do país, embora seja atualmente administrado pela Jordânia, em acordo que prevê a permissão para visita e reza de muçulmanos a qualquer hora do dia e da noite.

O mais novo episódio da enésima temporada dessa infindável série teve origem com os rumores de que organizações nacionalistas judaicas se preparavam para sacrificar um cordeiro no Monte em celebração à Pessach. Um ritual bíblico segundo eles, mas proibido por autoridades israelenses e o Rabinato-Chefe. Para os muçulmanos, mais do que uma provocação, uma profanação à Esplanada já ocorrida outras vezes, quando o mesmo fim se repetira. Palestinos se anteciparam e, armados, redobraram a vigilância da região. Descobertos pela polícia, refugiaram-se na mesquita, logo invadida. Profanação dobrada. No outro dia, dois judeus ortodoxos foram vistos tentando entrar novamente na Esplanada com um cordeiro, "feito" orgulhosamente divulgado em suas redes sociais. Mais pancadaria. Outra invasão policial. Mais presos.

"Nosso desafio é marcar nossa presença, reafirmar a identidade de nossos lugares sagrados. Aqui, é a Esplanada das Mesquitas, não é o Monte do Templo como dizem os judeus. Todos os anos, durante o Ramadã, é a mesma luta. Especialmente quando os judeus comemoram seus feriados ao mesmo tempo”, afirmou também à RFI um idoso muçulmano. A Jordânia condenou o "ataque" e exigiu a retirada imediata das forças israelenses do local, em tese sob sua jurisdição, ao mesmo tempo que o secretário-geral da ONU, António Guterres, afirmou sentir-se "consternado" com "a violência e as agressões" dos policiais. O presidente da Turquia, Recep Erdogran advertiu que "desrespeitar a mesquita de Al Aqsa é nossa linha vermelha". Em reunião extraordinária, a Liga Árabe alertou contra qualquer "provocação" que possa ferir "os sentimentos dos fiéis".

É um "crime sem precedentes", denunciou o Hamas. Além de convocarem os palestinos à irem em massa à mesquita, a organização terrorista sunita respondeu com foguetes lançados da Faixa de Gaza, território palestino controlado por eles, e do sul do Líbano, de onde partiram 34 artefatos. A maioria foi interceptada, mas seis atingiram Israel, deixando dois feridos e causando um incêndio. O Estado judeu não hesitou em contra-atacar e bombardeou as duas regiões na noite de quinta-feira, dia 6. 

As incursões atingiram túneis e fábricas de armas do Hamas em Gaza e uma pequena cidade ao sul do Líbano. Dois projéteis caíram em um campo de refugiados perto do local. Atentados na Cisjordânia e Tel Aviv acarretaram na morte de duas irmãs e um turista italiano, além de seis feridos graves. Um palestino foi morto por um policial em circunstâncias ainda incertas. O governo israelense ordenou a mobilização de reservistas da Força Aérea e convocou militares para o policiamento de ruas, enquanto três foguetes disparados da Síria atingiram o país e a Colina de Golã, território sírio ocupado desde 1967.

Ano passado, quando o Ramadã também coincidiu com a Pessach, confrontos na mesma mesquita terminaram em uma guerra de 11 dias entre Israel e Hamas. Este ano, porém, o cenário é ainda mais preocupante. Israel hoje tem o governo mais à direita de sua História. Réu por corrupção, Benjamin Netanyahu se aliou à radicais ultranacionalistas e ultraortodoxos religiosos para voltar ao poder em dezembro passado. Deu a eles pastas importantes, como a da Segurança Nacional, destinada a Itamar Ben-Gvir, um notório radical que, com discursos incendiários, defende a anexação total da Cisjordânia e tem em na parede de sua sala foto de Baruch Goldstein, extremista judeu condenado por, em 1994, matar 29 palestinos após abrir fogo em uma mesquita.

Goldstein era membro do movimento Kach, criado pelo rabino Mair Kahana, defensor de um Estado israelense teocrático onde não-judeus não teriam direitos políticos. Os inúmeros atos violentos contra árabes praticados pelo "kahanismo" durante as décadas de 80 e 90 levaram os Estados Unidos a considerá-lo uma organização terrorista. Ainda jovem, Ben-Gvir aproximou-se de Kahana. Condenado por racismo e incitação ao terror, foi proibido de servir às Forças Armadas. Pouco anos atrás, militantes do Sionismo Religioso, sua frente política, tentaram colocar bandeiras israelenses aos pés da mesquita de Al-Aqsa. No início do ano, apenas cinco dias após assumir o cargo, uma visita sua à Esplanada soou como provocação aos palestinos, merecendo críticas inclusive de Washington. À época, o Hamas respondeu: "Isso não ficará impune".

Israel está em turbulência desde que Netanyahu, incentivado por seus aliados radicais, propôs uma reforma judicial que dá ao Legislativo o poder de anular decisões da Suprema Corte, aumenta o peso do governo na comissão que define juízes, impede entidades da sociedade civil de recorrer à instância máxima da Justiça e fragiliza as "leis básicas" que norteiam os direitos humanos no país. O primeiro-ministro busca escapar da condenação, enquanto Ben-Gvir e seus semelhantes veem a Corte como maior obstáculo a suas ideias contra minorias - sejam os árabes ou o movimento GLBTQI+. 

Há 14 semanas, milhares de pessoas estão nas ruas contra o que consideram um "golpe judicial" que dilacera a democracia. Ex-chefes dos serviços de inteligência interna e externa ( Shin Bet e Mossad) repudiaram o projeto publicamente. Agências de ratings e empresários alertaram para a fuga de investimentos. Estudos do Banco Central projetam a perda de até 4% do PIB nacional caso a proposta seja aprovada e a reação da sociedade se aprofunde. A crise aumentou quando integrantes de grupos de elite das Forças Armadas aderiram aos protestos, negando-se a participar de operações militares. O ministro da Defesa, Yoav Galant, ciente da gravidade da situação, clamou pela suspenção do projeto, mas, em resposta, foi demitido por Netanyahu. A temperatura política aumentou, e uma greve-geral paralisou as principais cidades do país semana passada. Enfática, Casa Branca declarou que os "valores compartilhados pela relação entre Estados Unidos e Israel" estão ameaçados. 

Acuado, o premiê anunciou a suspensão da tramitação da reforma na Knesset ( o Parlamento israelense), até o fim do recesso legislativo, no final de maio. No entanto, além de não acabar com as manifestações, o recuo fez Ben-Gvir ameaçar pedir demissão, saída que derrubaria o Gabinete. Como barganha, o ministro obteve a promessa de criação de uma Força Nacional sob seu comando. Na prática, uma milícia oficializada para seus extremistas. É Ben-Gvir, com seu histórico e simpatizantes, quem comanda a polícia israelense, o que reforça a desconfiança e ira dos palestinos com a invasão à mesquita em pleno Ramadã. 

Foguetes partindo da Faixa de Gaza não surpreendem os israelenses, mas chamaram a atenção os 34 artefatos disparados do sul do Líbano. Ao contrário do ano passado, teme-se que o Hezbollah esteja envolvido. Movimento xiita que, além de partido político, é uma poderosa milícia que ocupa partes do país vizinho, o Hezbollah é visto por muitos como um Estado dentro do Estado libanês. Contra eles, Israel entrou em guerra em 2006, conflito iniciado após a morte de oito soldados e o sequestro de outros dois que patrulhavam a fronteira. Durou pouco mais de um mês, mas o saldo foi chocante: do lado libanês, 1.200 mortos, a grande maioria civis, e 900 mil desabrigados; entre os israelenses, pouco mais de 150 militares perderam suas vidas.    

A organização silenciou a respeito dos ataques, assumidos por grupos libaneses ligados ao sunita Hamas, mas é pouco crível que os xiitas não soubessem, dado o poder que têm na região de onde saíram os foguetes. Na véspera, o líder do Hamas, Ismail Haniyek, chegou a Beirute para se encontrar com o líder do Hezbollah, Hassan Nasrallah, ocasião em que declararam buscar reforçar o "eixo de resistência", como se referem a grupos palestinos, libaneses, sírios e outro apoiados pelo Irã. Israel "está à beira de uma guerra civil. Eles vão se destruir sozinhos", profetizou Haniyek. 

Como, entre outros, Gallant e a Casa Branca advertiram, a cizânia domestica fragiliza externamente Israel. A falta de coesão interna incentiva esses grupos terroristas a testarem até que ponto militares continuarão mobilizados contra Netanyahu e em que medida a oposição legitimará suas respostas aos ataques. Por outro lado, surgiram preocupações acerca do interesse no fomento de uma guerra como saída para tirar o foco da reforma judicial. O conhecido senso comum do inimigo externo como unificador nacional em proveito do governante.

As cenas do último sábado, porém, enfraquecem a hipótese, pelo menos por enquanto. Em pleno feriado da Pessach e em clima de alerta após os atentados e foguete lançados, mais de 200 mil pessoas voltaram a se reunir em protesto contra Netanyahu. No retrato mais forte e simbólico da crise até agora, uma enorme faixa com o premiê caracterizado de Faraó foi estendida. Abaixo da imagem, os dizeres "Deixe meu povo ir". Por outro lado, Bibi, como o premiê é conhecido, sabe que um conflito contínuo com o Hezbollah ganharia proporções bem mais graves do que a troca de chumbo com o Hamas.

Treinado pelo Guarda Revolucionária do Irã, a unidade especial do regime dos aiatolás, o grupo xiita é muito mais forte do que o sunita; é a milícia terrorista mais poderosa do mundo, capaz de atingir Tel Aviv e outras cidades importantes do país com mísseis em maior quantidade e precisão. Um barril de pólvora com potencial de atrair não só os persas e sírios como afetar o relacionamento com outros países árabes, em um momento em que Netanyahu busca consolidar os Acordos de Abraão. Assinado em 2020, o tratado firmou laços diplomáticos com Emirados Árabes Unidos, Bahrein, Sudão e Marrocos. Até então, apenas Jordânia e Egito reconheciam o Estado judeu. Rabat condenou "firmemente" a invasão da mesquita e pediu "respeito pelo estatuto jurídico, religioso e histórico" de Jerusalém e dos lugares sagrados. Cabe lembrar ainda que recentemente Arábia Saudita e Irã estabeleceram relações diplomáticas.

É bem verdade que uma guerra aberta tampouco seria conveniente para o Hezbollah. Neste momento, sua prioridade é garantir um nome apoiado por eles para a Presidência do Líbano, cargo destinado a um cristão maronita, segundo o acordo selado em 1943 que dá aos muçulmanos sunitas o posto de primeiro-ministro muçulmano e aos xiitas, a chefia do Legislativo. As três vertentes religiosas representam, cada uma, cerca de 25% da população, mas milícia não é bem vista entre os adeptos das outras duas e as minorias drusa e cristã ortodoxa. As consequências para uma economia já debilitada reforçaria essa imagem, emparedando seu Estado paralelo, flanco também para uma possível nova guerra civil. Um quadro que explica sua posição ambígua acerca dos ataques e a razão pela qual Israel não os acusou.

No último domingo, enquanto judeus rezavam a Birkat Kohanim no Muro das Lamentações, tradição realizada sempre entre a Pessach e a Sukkot (a Festa dos Tabernáculos), a imprensa israelense noticiava a montagem de barricadas palestinas no interior da mesquita de Al-Aqsa, informação negada pelos jordanianos. A distância entre os dois locais é de apenas 200 metros. Por hora, as forças de segurança decidiram não invadir o santuário muçulmano, mas um adolescente e uma britânica de origem israelense morreram nesta segunda-feira, dia 11. Ela, mãe das duas irmãs mortas no atentando de semana passada na Cisjordânia, em decorrência dos ferimentos sofridos; ele, assassinado por tropas israelense em um campo de refugiados nesse mesmo território ocupado. 

No mesmo dia, Netanyahu, em entrevista coletiva, anunciou a volta de Gallant ao Ministério da Defesa, acusou o governo anterior pelos foguetes recebidos e responsabilizou os manifestantes "pelo entendimento de nossos inimigos de que somos fracos". Bibi está emparedado. Cortes nos orçamentos de outras pastas já foram anunciados, com intuito de viabilizar a prometida Força Nacional de Ben-Gvir. Sua concretização, contudo, é politicamente difícil, dada a forte a rejeição no Shin Bet e por altos oficiais da polícia. O casamento com os Estados Unidos está abalado. Em tese, as negociações sobre a reforma judicial continuam, mas poucos são otimistas sobre consensos. 

Pesquisas revelam que, se as eleições fossem hoje, o Likud, partido do premiê, cairia para terceira posição, e a coalizão governista despencaria de 64 para 46 assentos, 15 a menos do que o necessário para a formação de um governo. Diante desse quadro, pode não ser vantajoso um acordo para oposição, caso ela vislumbre uma breve queda do Gabinete atual. Cancelar a reforma poderia ajudar na pacificação doméstica, fundamental para o enfrentamento com o inimigo externo. Netanyahu, porém, precisa de seus radicais para se manter no poder. “Netanyahu não quer guerra em um momento de embate com o ministro da Defesa, em meio à Pessach e sem pontes com a oposição, que não vê nele credibilidade. Mas membros importantes do seu governo querem, porque vivem do confronto”, afirma João Koatz Myragaia, morador de Tel Aviv e editor do site "Conexão Israel" e do podcast "Do lado esquerdo do muro". 

Em 2000, Ariel Sharon, líder do à época partido de oposição Likud liderou uma comitiva de parlamentares de direita à Esplanada das Mesquitas, ocasião em que afirmou que "o Monte do Templo está em nossas mãos e permanecerá em nossas mãos". Foi o estopim para a segunda Intifada palestina, cujo resultado foi mais de três mil palestinos e cerca de mil israelenses mortos. As sinalizações são as de que as feridas de uma guerra com o Hezbollah não serão reabertas. É mais provável a eclosão de uma terceira Intifada, mas cenários instáveis assim fogem muitas vezes à racionalidade.

Era previsível que a crise interna se entrelaçasse à política externa. Como vemos no Brasil, ainda que em níveis menos violentos, a instrumentalização radical da religião turva o debate e cinde o tecido social. O discurso de defesa de valores religiosos se reflete em práticas opostas. O bom jornalismo pede que se evite clichês, mas, na Questão Palestina, parafraseando aquele velho chavão, mais do que nunca e do que em qualquer lugar, os extremos se atraem. Uma retroalimentação danosa para a paz, seja lá o Deus em que você acredita.