quarta-feira, 23 de novembro de 2011

A conexão iraniana

Por Martin Indyk ( Foreign Policy, 12/10/2011)*

Qual a ligação entre as denúncias de atentado contra o embaixador da Arábia Saudita e a libertação de Gilad Shalit? O Irã parece fraco - e isto é assustador.

Embora possa não ser imediatamente óbvia, existe uma ligação importante entre as duas grandes histórias que romperam no Oriente Médio Médio terça-feira, 11 de outubro - o acordo de transferência de prisioneiro negociada entre o Hamas e Israel para a libertação de Gilad Shalit e a detenção de Manssor Arbabsiar, agente da força iraniana Quds. Uma conexão que demonstra o esvaecimento da influência do Irã desde o surgimento da Primavera árabe.

Raramente a mão iraniana no terrorismo é revelada de forma tão clara como foi terça-feira, com os detalhes cuidadosamente fornecidos pelo Departamento de Justiça dos Estados Unidos. O regime iraniano, operando através de Guarda Revolucionária Isâmica (IRGC), faz o melhor para operar sem impressões digitais, na implantação do terrorismo como ferramenta de sua própria marca política. Mas aqui as transcrições de telefone e de correspondências são provas de que "elementos do governo iraniano" — especificamente oficiais superiores da Quds do IRGC - foram responsáveis por encomendar e orquestrar um descarado atentado terrorista contra o embaixador saudita nos Estados Unidos, Adel al-Jubeir, no centro de um restaurante, em Washington.

A mão iraniana em atividades terroristas do Hamas também foi revelada no passado, especialmente durante a interceptação de armas para Gaza interceptadas pela Marinha israelense. Mas o papel do Irã nas negociações do caso Shalit  foi menos óbvia e pouco observada. As negociações para a sua libertação foi tortuosa e prolixa, mediada por oficiais da inteligência alemã e egípcia. Em momentos críticos no passado, o Irã interveio através de Khaled Meshaal, líder externo do Hamas, para facilitar o acordo. Os motivos de Teerã eram bastante óbvios: a melhor maneira para espalhar sua influência sobre os corações árabes é manter acesas as chamas do conflito com Israel. Qualquer acordo de troca de prisioneiros entre Hamas e Israel diminuiria o combustível para o fogo.

Mas a influência do Irã sobre liderança externa do Hamas tem sido enfraquecida ultimamente. Com base em Damasco, na Síria, Meshaal e seus colegas encontraram-se em uma posição estranha como o despertar sírio que se desencadeou em torno deles. Como parentes da Irmandade muçulmana sunita, cujo ramo sírio tornou-se alvo dos bandidos alauitas do presidente Bashar al-Assad, eles não poderiam apoiar o regime, mesmo que seus mestres iranianos exigissem. Em vez disso, Meshaal iniciou conversações com o governo militar provisório egípcio sobre a transferência de Damasco para Cairo (onde, como resultado da revolução, a Irmandade Muçulmana egípcio ganhou nova influência). O preço: a reconciliação com Abu Mazen (primeiro-ministro palestino) e a aquiescência ao acordo de troca de prisioneiros com Israel.
O acordo de reconciliação do Fatah com o Hamas foi anunciado no Cairo em maio. Em meados de julho, mediadores egípcios transmitiram uma nova e mais razoável oferta do Hamas a Israel. Proposta que disparou as negociações que culminaram no anúncio da troca de prisioneiros. Em suma, o acordo do Hamas-Israel pode ser uma vitória para o Hamas, para as relações do Egito-Israel - e para a família de Shalit, naturalmente - mas é também um golpe para o Irã. Ele indica que os iranianos perderam o controle de uma de suas principais arterias terroristas árabes para o Egito, seu arqui-rival de influência no mundo árabe.

Outro arqui-rival árabe do Irã é a Arábia Saudita. Os americanos tendem a conspiração terrorista iraniana através do prisma de uma tentativa descarada de promover um ataque em solo americano. Mas o IRGC claramente projetou-o de forma matar dois coelhos de uma cajadada só: assassinaria um símbolo do regime Saudita ao mesmo tempo em que comensais americanos morreriam no centro de Washington. Já vimos isso antes: o bombardeio das Torres Khobar, em 1996, pelo Hezbollah Saudita matou 19 soldados norte-americanos em território saudita.

O que podemos concluir de conexões bizantinas entre dois eventos de terça-feira? Contrariamente às previsões confiantes de que o Irã seria o beneficiário da Primavera árabes, seus esforços para espalhar sua influência para o coração de árabes estão agora em apuros. Ele está perdendo sua artéria Hamas para o Egito. Seu aliado sírio está cambaleando. A Turquia virou-se contra ele. Quando o regime iraniano encontra-se emparedado, ele normalmente ataca. Talvez isto que explique por que os mandantes iraniano de Arbabsiar disseram-lhe para "apenas fazê-lo rapidamente. Já é tarde....

Martin Indyk is vice-presidente e diretor do Foreign Policy Program no Brookings Institution.

*Tradução livre do blog

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Influência crescente do Brasil preocupa países vizinhos

Do The New York Times (reproduzida na Veja, 11/11/2011)

Manifestantes indígenas da Bolívia escolheram um novo apelido para o presidente Evo Morales: "lacaio do Brasil". Em frente à embaixada brasileira em La Paz, eles denunciam as tendências "imperialistas" do vizinho gigante. Intelectuais bolivianos recriminam a 'burguesia paulista' comparando-a aos bandeirantes caçadores de escravos do período colonial.

Há menos de uma década, esse discurso exaltado era dirigido exclusivamente aos Estados Unidos. Com seu emergente avanço econômico e político na região, o Brasil começa a conhecer as armadilhas que acompanham um papel de liderança. "O poder simplesmente atravessou a Avenida Arce", diz Fernando Molina, um colunista local, se referindo à rua de La Paz onde a residência do embaixador do Brasil se encontra do outro lado da rua da gigantesca Embaixada dos Estados Unidos.

Projetos brasileiros têm sido recebidos com desconfiança em vários países da América Latina. A proposta de construção de uma estrada que atravessaria as florestas da Guiana até o Amapá foi paralisada por causa da preocupação de que o Brasil pudesse sobrepujar seu pequeno vizinho com a imigração e o comércio. Na Argentina, as autoridades suspenderam um enorme projeto de uma mineradora brasileira, acusando-a de não contratar trabalhadores locais. A tensão com o Equador em relação a uma usina hidroelétrica levou a uma batalha jurídica. Protestos dos índios Ashaninka na Amazônia peruana ameaçam a concretização da construção de uma barragem hidrelétrica.

Empresas de outros países, especialmente da China, também expandem rapidamente seus negócios no continete - e tamém são hostilizadas. Porém, as companhias brasileiras, e o próprio governo do Brasil, são os principais alvos de protestos.

Centenas de milhares de imigrantes brasileiros, chamados de brasiguaios, estabeleceram-se no Paraguai, muitas vezes comprando terras para agricultura em larga escala. Eles foram reconhecidos por ajudar no crescimento econômico do país, mas também demonizados por controlar grandes lotes. O cenário levou ativistas paraguaios a queimar bandeiras brasileiras.

"Quando Kissinger veio ao Brasil, há mais de três décadas, alertou seus anfitriões de que eles poderiam acabar temidos por seus vizinhos, e não amados", diz Matias Spektor, professor da Fundação Getúlio Vargas, referindo-se ao antigo secretário de estado dos Estados Unidos, Henry A. Kissinger. "Hoje, o Brasil está mais presente na América Latina, mas não possui uma política clara a respeito de como lidar com a ansiedade que acompanha este processo", diz Spektor. "Há um perigo real de nos tornarmos alvo de ódio em determinados lugares."

Talvez nenhum outro projeto tenha causado tanta revolta quanto o da construção de uma estrada na Bolívia. Financiando pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), o plano previa fazer uma rodovia que atravessasse um território indígena boliviano. A proposta causou descontentamento. Centenas de indígenas marcharam até La Paz por dois meses, por meio dos Andes, para reclamar do projeto.

"Llunk'u do Brasil", dizia um dos cartazes, chamando Evo Morales de subordinado do Brasil em quíchua, um idioma indígena. Morales, o primeiro presidente indígena da Bolívia e um ambientalista declarado, de repente se encontrou em desacordo com uma importante parcela de seu eleitorado, Depois de um desgastante processo, por fim, Morales cedeu às exigências dos manifestantes e cancelou o projeto da estrada.

Ao mesmo tempo em que marcha contra a estrada avançava, em agosto, o ex-presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva viajou até a Bolívia para discursar a empresários e encontrar-se com Morales. A viagem, patrocinada pelas empreiteiras OAS e Queiroz Galvão, incluía no roteiro ainda Costa Rica e El Salvador - e nada foi feito para diminuir a tensão provocada pelo protesto de construção da estrada.

"Está claro que o Brasil só está interessado em nossos recursos", diz Marco Herminio Fabricano, artesão de 47 anos do grupo indígena Mojeno que participou da marcha para La Paz. "Evo acredita que pode nos trair para ajudar seus aliados brasileiros". As autoridades brasileiras insistem em afirmar que a estrada não tem nada a ver com traição ou apropriação de recursos. "Queremos que o Brasil esteja cercado por países prósperos e estáveis", disse Marcel Biato, embaixador do Brasil na Bolívia, a respeito do financiamento brasileiro de infraestrutura na Bolívia e em outros países da América do Sul.

Antes da eleição de Morales, em 2005, os Estados Unidos exerciam uma influência muito maior que qualquer outro país sobre a Bolívia. Desde então, Morales confrontou Washington diversas vezes, e se aproximou de outros países, especialmente Brasil, Venezuela, Cuba e Irã. Desde 2008, quando Morales expulsou o emissário dos Estados Unidos, Philip S. Goldberg, o país não tem sequer um embaixador na Bolívia.

O Brasil tem elaborado planos em conjunto com a Bolívia, incluindo projetos hidrelétricos e uma ambiciosa política antidrogas, que envolve o envio de veículos não tripulados através da fronteira e o treinamento e armamento das forças de segurança bolivianas. Os conflitos gerados pelo debate a respeito da estrada geraram desconfianças da população boliviana em relação ao Brasil. "Assim como a China está consolidando seu poder hegemônico na Ásia, o Brasil está tentando fazer o mesmo na América Latina", disse Raul Prada Alcoreza, que trabalhou como alto funcionário do governo boliviano e é hoje um forte crítico de Morales.

"Os movimentos sociais que tornaram este governo possível", disse Prada, "acabam sendo atropelados pelos interesses brasileiros".

domingo, 30 de outubro de 2011

Barack "Kissinger" Obama, o presidente voltado para políticas externas

Por Thomas Friedman (New York Times, reproduzido no UOL, 28/10/2011)

Quem teria previsto isso? Barack Obama acabou se mostrando mais favorável à implementação da política externa de George W. Bush do que o próprio Bush. Mas Obama demonstra menos entusiasmo no que se refere a implementar a sua própria política externa. Os motivos, porém, são óbvios.

Da sua maneira própria, Obama fez com que o país adotasse a estratégia correta para a “guerra contra o terrorismo” de Bush. Essa estratégia consiste de uma combinação séria e focada de coordenação de inteligência global, assassinatos premeditados de terroristas conhecidos e intervenções limitadas – como na Líbia – que mobilizam forças populares e aliados, bem como um uso ponderado do poder dos Estados Unidos, de forma a manter os custos e os riscos em um nível baixo. Na Líbia, Obama salvou vidas e proporcionou aos líbios uma oportunidade de construir uma sociedade decente. Cabe a eles agora decidir o que irão fazer com essa oportunidade. Eu ainda estou cauteloso, mas Obama desempenhou o seu papel de forma excelente.

Não há dúvida de que George Bush e Dick Cheney acreditavam que tanto o Iraque quanto o Afeganistão iriam se constituir exatamente nos alvos dessas operações focadas e limitadas. Porém, as campanhas militares nestes dois países acabaram lembrando mais uma hipoteca subprime – uma pequena entrada e uma enorme dívida a ser paga em cinco anos.

Eles achavam que seriam capazes de “transferir” a casa antes que chegasse a cobrança. Mas, em parte devido à incompetência e à falta de planejamento daquela dupla, foi necessário muito mais tempo do que se esperava para transferir a casa para os novos proprietários, e o preço pago pelos Estados Unidos foi enorme. A campanha do Iraque ainda poderá ter um bom desfecho – eu espero que sim, e isso seria importante –, mas mesmo se aquele país se transformar em uma Suíça, nós pagamos um preço caro demais.

Portanto, sejamos claros: até o momento, como comandante-em-chefe na guerra contra o terrorismo, Obama e a sua equipe de segurança nacional têm sido muito mais inteligentes, duros e financeiramente eficientes na tarefa de manter o país seguro do que os “adultos” que eles substituíram. Os republicanos não chegaram nem perto, e é por isso que os veteranos do Partido Republicano têm tanta dificuldade em admitir isso.

Mas, embora Obama tenha se mostrado talentoso em implementar a política antiterrorista de Bush, ele tem tido menos sucesso quanto à sua própria política externa. A política de Obama para o conflito árabe-israelense tem sido um desastre. As suas esperanças de encontrar uma solução para a questão do Irã naufragaram, bem, nos rochedos do Irã. Ele pouco se empenhou em criar uma coalizão multilateral para fortalecer o Despertar Árabe, em países como o Egito, a fim de lidar com os desafios pós-revolucionários.

A sua decisão de assumir um risco extra no Afeganistão poderá se revelar fatal. Ele está mergulhado em uma guerra de palavras com o Paquistão. A sua política relativa ao clima global é marcada por uma invisibilidade embaraçosa. E os frios e calculistas chineses e russos, embora de vez em quando lhe ofereçam um petisco, buscam os seus próprios interesses, tendo pouca consideração pelas preferências de Obama. Por que isso está ocorrendo?

Bem, eu vou defender Obama, e não condená-lo. É verdade que ele foi ingênuo ao achar que o seu poder de estrela, ou o da sua secretária de Estado, faria com que outros países nos apoiassem incondicionalmente. Mas as frustrações de Obama no que se refere à criação de uma política externa de grande magnitude e não militar estão enraizadas em um problema social bem mais amplo – uma política que também explica o motivo pelo qual nós não produzimos nem um só secretário capaz de mudar a história desde a época dos titãs da Guerra Fria, Henry Kissinger, George Shultz e James Baker.

A razão para isso é que o mundo se tornou mais caótico, e os Estados Unidos perderam a sua influência. Quando Kissinger estava negociando no Oriente Médio na década de setenta, ele teve que persuadir apenas três pessoas a firmar um acordo: um todo poderoso ditador sírio, Hafez Assad; um faraó egípcio, Anwar Sadat; e uma primeira-ministra israelense que contava com uma maioria esmagadora no parlamento, Golda Meir.

Para fazer história, Obama e a secretária de Estado Hillary Clinton, de forma contrastante, precisam extrair um acordo de um regime sírio que está desmoronando, de um regime egípcio que desmoronou, de uma coalizão israelense fragmentada e fraca e de um movimento palestino cindido em duas partes.

Os Estados Unidos sequer se dão mais ao trabalho de negociar com o fraquíssimo governo civil do Paquistão. Nós nos dirigimos diretamente às forças armadas do país, que só desejam perpetuar o conflito com a Índia – e tirar proveito do Afeganistão como um trunfo nessa guerra – para justificar o interminável consumo de tantos recursos do Estado por parte do exército paquistanês.

“Fazer história por meio da diplomacia é algo que depende de fazer acordos com outros governos”, diz Michael Mandelbaum, especialista em Política Externa da Universidade Johns Hopkins (e coautor, comigo, do livro “That Used to Be Us”). “Mas atualmente, para fazer tais acordos, nós temos de fato que criar governos com os quais desejamos negociar – e não é possível fazer isso.” De fato, em diversas áreas problemática atuais, nós precisamos criar nações antes de fazer diplomacia. Uma grande quantidade de Estados que nasceram devido à Guerra Fria está fracassando.

E, no caso de Estados mais fortes – como a Rússia, a China e o Irã –, nós temos menos influência porque influência é, em última instância, uma função do poder econômico. E, embora várias companhias norte-americanas ainda sejam vigorosas, o nosso governo está mergulhado em dívidas. Quando uma nação se encontra tão profundamente endividada quanto nós nos encontramos – uma situação na qual profundos cortes das despesas militares são inevitáveis – o seu latido é sempre mais forte do que a sua mordida.

A melhor maneira de obtermos influência em relação à Rússia e ao Irã seria adotar uma política energética que reduzisse o preço e a significância do petróleo. A única forma de obter influência em relação à China é aumentar a nossa poupança e o nosso índice de graduação de estudantes universitários – bem como exportar mais e consumir menos. Mas nada disso faz parte do jogo atual.

Portanto, mamãe, diga ao seu filho que quando crescer não se torne um secretário de Estado ou um presidente voltado para políticas externas – pelo menos não antes que outros países construam mais nações no exterior e nós nos empenhemos mais em construir a nossa própria nação.

Tradução: UOL

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

"O Brasil Vai Chegar Lá"

Por Bruno Borges (Blog Os Capitalismos, 26/09/2011)*

Um dos grandes chavões que ouço repetidamente é a ideia de que o Brasil “nunca vai chegar lá”. Geralmente a frase vem acompanhada por explicações que tentam “qualificar” a afirmativa com alguma pseudo-teoria. Entre elas, posso citar algumas: “no Brasil só tem corrupto” ou “fomos colonizados por portugueses” ou “o Brasil tem muitos partidos políticos”, entre outras pérolas. No fim das contas, as pessoas que dizem isso estão certas, mas certamente não pelos motivos que acreditam ser verdadeiros.

Em dias em que estou de bom humor, peço às pessoas que me expliquem melhor o que querem dizer. Nunca consegui mais do que olhares perdidos. No entanto, o que mais gostaria de saber é o que “chegar lá” significa. Talvez se soubesse melhor do que estamos falando pudéssemos decidir sobre caminhos para atingir essa meta. Mas nunca fui muito adiante na minha empreitada e suponho por que.

Tenho pra mim que isso é decorrente de um enorme déficit democrático que ainda não conseguimos superar. Apesar dos 25 anos de democracia consolidada, uma boa parte das pessoas ainda acha que a democracia funciona (e deve funcionar) no piloto-automático: basta votar de vez em quando, esperar resultados e reclamar dos políticos que, em algum momento, como num passe de mágica, o Brasil se transformará de maneira tão radical que não nos reconheceremos mais: seremos a Suécia com praias.

Enfim, esperamos tanto da democracia que quando não conseguimos rapidamente atingir um determinado tipo-ideal, nos desesperamos e achamos que nunca dará certo. Esse imediatismo e essa impaciência se prestam a salvacionismos de várias espécies e ao mesmo tempo escondem e empobrecem as soluções de verdade.

Eu costumo dizer o seguinte: as pessoas em todo o mundo estão insatisfeitas com a democracia. Mas o paradoxal é que a democracia é feita exatamente para isso! A democracia está longe de ser um sistema acabado — ela é um sistema em construção permanente. É como se tivéssemos um canteiro de obras que não acaba nunca. O que precisamos entender é que não existe “a obra acabada”. Nunca vamos chegar lá. E isso é bom.

Quando pararmos de pensar em termos absolutos e entendermos melhor o pragmatismo da política, viveremos a democracia de um modo muito mais realista e verdadeiro (“vamos acabar com a corrupção” se transformar por exemplo em “vamos monitorar constantemente aqueles que usam verbas públicas para que a corrupção diminua”, um objetivo bem mais viável). Seremos mais céticos, mas seremos mais vigilantes, seremos menos idealistas, mas seremos mais ativos.

“Chegar lá” não é importante. O importante é sempre andar. E pra frente.

*Bruno Borges é doutor em Ciência Política, professor da PUC-Rio

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

A nuvem palestina

Por Murillo Victorazzo

"Política é como nuvem. Você olha e ela está de um jeito. Olha de novo e ela já mudou". Cunhada pelo ex-governador mineiro Magalhães Pinto, a analogia há décadas serve para explicar por que os prognósticos políticos, ainda que possam guardar alguma lógica, são, quase sempre, de difícil precisão. A recente libertação do militar israelense Gilad Shalit, sequestrado há mais de cinco anos pelo Hamas, em troca de cerca de mil prisioneiros palestinos mais do que ratifica a máxima. Mostra que ela se aplica tanto nas disputas nacionais como internacionais em muito por serem estas frequentemente influenciadas pelas primeiras.

Por envolver dois lados que sempre resistiram a qualquer contato mútuo, a negociação causou, de certa forma, surpresa ao mundo. O governo linha dura de Israel sempre se negou a fazer concessões à organização terrorista, que, por sua vez, sempre teve nas armas o único meio de lutar pelo seu objetivo: a criação do Estado palestino através da eliminação do Estado judeu. Os motivos que levaram o Hamas e o primeiro-ministro israelense, Benjamim Netanyahu, a ceder, porém, têm mais a ver com as disputas internas do que com eventuais inflexões mais consistentes no modo dos inimigos se verem.

Há menos de um mês, numa ousada estratégia, o presidente da Autoridade Nacional Palestina (ANP), Mahmoud Abbas, cético quanto a retomada das negociações com Israel, levou à ONU o pedido de reconhecimento formal da Palestina como Estado. Um atitude que esgarçou a débil comunicação com Netanyahu e reacendeu o receio de uma nova espiral violenta entre os dois lados inclusive uma terceira Intifada.

O governo de Israel e seu maior aliado, os Estados Unidos, defenderam que o Estado palestino deveria vir em consequência de negociações diretas entre os dois lados, e não por ações unilaterais. A tese é respeitável, mas, refém de ideologias e visões religiosas estreitas, a direita israelense, representada por Netanyahu e seu chanceler, Avigdor Lieberman, não levou em conta que o pedido, por outro lado, nada mais era do que a legitimização de Israel pela moderada e secular Fatah, partido que comanda a ANP. Ao contrário do Hamas, Abbas aceitara implicitamente a coexistência entre os dois Estados, incorporando de vez o uso exclusivo da diplomacia na busca por seu objetivo.

Nos dias que se seguiram a Assembleia Geral da ONU, o diagnóstico unânime foi de que prestígio de Abbas havia aumentado, em contraste com um provável isolamento de Israel na figura de seu premiê. Este, por sinal, enfrentava ainda desgastes internos, como as manifestações populares contra os resultados econômicos de seu governo, em especial o crescente nível de desemprego e o alto custo de vida. Na gangorra política do Oriente Médio, o líder palestino subia, enquanto o israelense e o grupo radical desciam.

Mas então veio a troca de prisioneiros e o cenário mudou. Tudo indica que os recentes movimentos de Netanyahu. e do Hamas foram uma resposta à jogada de Abbas. Na tentativa de sair da defensiva interna e externa, o governante israelense aceitou fazer algo que, segundo pesquisas, era apoiado por dois terços do eleitorado local. Como disse Diego De Ojeda, diretor da Casa Sefarad-Israel, ao jornal espanhol "El País", "Netanyahu dá uma mostra de generosidade em um momento de debilidade  interna, diante da maré ´indignada` que reclama uma melhor divisão da enorme riqueza gerada em Israel durante os últimos anos".

Outra análise mais arriscada é ter Netanyahu preferido dar os anéis para ficar com as mãos no front externo. Diante do fortalecimento de Abbas, cuja proposta pode levar os Estados Unidos a ficarem sozinhos no Conselho de Segurança, em um constrangimento que certamente refletiria em pressões ainda maiores do governo Obama e da União Europeia para estancar a  expansão de colônias judias na Cisjordânia e em Jerusalém Oriental, o líder direitista teria preferido forçar um reequlíbrio de forças palestinas.

Para um governo acusado de não querer negociar qualquer acordo mais profundo que envolva territórios, o fortalecimento da facção terrorista seria, até certo ponto, conveniente. Reforçaria a imagem de fraqueza do moderado Abbas, único com legitimdade internacional para tentar um verdadeiro acordo de paz, em um ótimo pretexto para justificar suas inflexibilidades futuras, que acabariam por serem respeitadas pelas potências ocidentais. Portanto, a percepção pela opinião pública palestina de que o Hamas é mais efetivo em sua demandas, o que poderá fortalecer a resistência armada, em detrimento da ponderada e diplomática tática da ANP, cujo pedido à ONU ainda é uma incógnita tanto em termos de tempo como de resultado, lhe seria útil.

A mesma lógica cabe aos objetivos do Hamas, indiscutivelmente o grande vencedor do episódio. Crítico da estratégia de Abbas, justamente por não reconhecer Israel e se negar a largar as armas, a organização nada perde com a pequena concessão. Ao contrário. Trocar mil pessoas por uma, ainda que esta seja um membro das poderosas Forças Armadas inimigas, é uma troca vantajosa e principalmente vitoriosa, em termos políticos. Segundo o "Globo", pela primeira vez em anos, bandeiras verdes da organização foram vistas tremulando em Ramallah, Cisjordânia, região onde o Fatah é dominante. Seu maior prestígio interno dificultaria ainda mais qualquer proposta que levasse em conta os direitos de existência do inimigo.

Não é de hoje que radicais de campos opostos se unem, conscientemente ou não, quando o inimigo é a paz e o consenso. Segundo suas óticas obtusas, seus objetivos inflexíveis serão alcançados apenas à força, como se a disputa fosse entre o bem e o mal dos filmes de super heróis. Não por outro motivo, em editorial, o "New York Times" criticou a postura de Netanyahu, dizendo não entender por que o premiê "não negocia seriamente com a ANP", se é capaz de negociar com uma organização que "lança foguetes contra Israel, recusa-se a reconhecer sua existência e prometeu mais sequestros". Na mesma linha, o diário israelense "Haaretz", ao acusar o premiê de estar "fazendo um esforço para retratar o Fatah como desprovido de propósito", defendeu que ele evite "tomar medidas que minem o status do nosso parceiro palestino e o status internacional de Israel".

Ainda que os otimistas defendam "que a troca de prisioneiros removeu um grande obstáculo de qualquer futuro de paz entre israelenses e palestinos", como opinou Ronald Zweig, professor de Estudos Israelenses da Universidade de Nova York, ao "Globo", as perspectivas são, para muitos, angustiantes. A sensação é de que o radicalismo foi revigorado. Como metaforizou o ex-ministro israelense Yossi Beilin, a bomba-relógio foi ativada, e só se conseguirá desligá-la caso Netanyahu reative o processo de paz com seu parceiro legítimo, Abbas.

O fato é que, embora não se possa dizer até quando, o líder israelense e o Hamas escaparam do canto do ringue. Se a inconstância é marca da política, ela, sempre intensa no Oriente Médio, ganhou tons ainda mais preocupantes. As nuvens que no início do mês desenhavam um quadro a favor de Abbas agora ganharam feições desejadas pelo fundamentalismo. E, neste caso, o céu se encontra especial e perigosamente cinzento.

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Dez Livros sobre Política Internacional

Por Mauricio Santoro (Blog Todos os Fogos o Fogo, 07/10/2011)

Em discussão recente no meu perfil do Twitter, me foi sugerido indicar livros sobre ciência política e relações internacionais. A idéia é excelente e me baseio em sites como o Five Books para recomendar obras para os leitores interessados no tema. Minha lista é formada em parte por clássicos de história e teoria, mas também por escolhas bastante pessoais que incorporam debates sobre desenvolvimento, democracia e política comparada – ferramentas que considero essenciais para compreender relações internacionais, e que gostaria de ver utilizadas com mais frequência em cursos acadêmicos da área. Sugiro também a consulta de lista anterior que publiquei no blog, com 10 filmes clássicos sobre estes mesmos assuntos. Ainda postarei a respeito de romances e músicas – me cobrem!

O Homem, o Estado e a Guerra, Kenneth Waltz.

As relações internacionais nasceram como disciplina acadêmica após a I Guerra Mundial, mas dialogam com uma tradição muito mais antiga de filosofia e ciência política que no Ocidente remonta à Grécia clássica. Este livro é um estupendo apanhado teórico de três maneiras de se pensar a guerra, da Antiguidade ao fim da década de 1950, quando foi publicado: correntes que acreditam que a violência é parte inescapável da natureza humana, os que defendem que a guerra é característica de alguns tipos de Estado mas não de todos, e o que Waltz chamou de “terceira imagem”, e que localiza a origem primordial dos conflitos na maneira como a política internacional está estruturada como sistema, mais do que nos componentes individuais que a compõem. Desenvolveu essa idéia em seu livro posterior e mais famoso, ainda que em minha avaliação esta seja sua obra-prima.

After Victory, G. John Ikenberry.

Por que países vitoriosos em grandes guerras se dão ao trabalho de construir instituições internacionais que irão regular e limitar sua vontade, em vez de simplesmente impô-la pela força bruta? Ikenberry analisa três grandes momentos de redesenho da ordem mundial: o Congresso de Viena após a derrota de Napoleão (1815) e as conferências que se seguiram às duas guerras mundiais do século XX. Sua conclusão é que arranjos “quase-constitucionais” são vantajosos para as potências vitoriosas, que abrem mão de parte de seu poder em troca da estabilidade de longo prazo trazidas por regras e normas. Ele contrasta essa situação com o pós-Guerra Fria, onde não houve negociações semelhantes.

After Hegemony, Robert Keohane.

Na década de 1970, os Estados Unidos viviam sérias crises, pela derrota no Vietnã, pela estagnação econômica e inflação, pelos conflitos sociais internos e o escândalo do Watergate. Muitos acreditavam que o declínio do país seria também o das instiuições internacionais, mas Keohane argumenta que não, teorizando sobre por que é racional cooperar, mesmo na ausência de uma potência hegemônica que garanta o sistema.

Ascensão e Queda das Grandes Potências, Paul Kennedy.

Outro clássico oriundo da preocupação com o declínio dos Estados Unidos. Kennedy examina 500 anos de história e identifica o padrão da “sobreextensão imperial”: grandes potências expandem-se, passam a gastar cada vez mais com poder militar, para garantir seus domínios, e se vêem envolvidas em conflitos tão numerosos e diversos que terminam por perder recursos econômicos e capacidade de manterem-se competitivas tecnologica e cientificamente. A melhor introdução para a história diplomática das grandes potências (“Diplomacia”, de Henry Kissinger, é rival à altura).

O Mundo Pós-Americano, Fareed Zakaria.

Se você quer entender a ascensão dos BRICS, este é o livro, que se concentra na Índia (vista como futura aliada dos Estados Unidos) e na China (desafiadora e rival). Zakaria é indiano radicado nos EUA e argumenta que Washington tem que aprender a conviver com a inevitável perda de sua hegemonia, até porque continuará a ser um país muito importante. Ele acabou de lançar a 2ª edição do livro. Em ótima entrevista à Globo News, explica suas idéias.

A Grande Transformação: as origens de nossa época, Karl Polanyi.

Nascido na porção húngara do império Hapsburgo, Polanyi escreveu durante a Segunda Guerra Mundial, tentando entender como o mundo chegara à beira do apocalipse após um século de paz. Sua conclusão: a crise social ocasionada pela expansão da Revolução Industrial e da economia de mercado, com as pressões para transformar em mercadorias três pilares da vida cotidiana – terra, mão-de-obra e moeda. O resultado foi o surgimento de um “duplo movimento” de contenção, de criar proteções sociais domésticas (por meio de reformas na sociedade e aumento das tarifas) ou mercados externos protegidos (imperialismo, colônias). A rivalidade internacional crescente solapou as instituições do século XIX e com frequência adquiriu tons totalitários, com o nazi-fascismo e o comunismo. Polanyi propõe uma versão democrática, antecipando o Estado de Bem-Estar Social do pós-guerra.

As Origens Sociais da Ditadura e da Democracia, Barrington Moore Jr.

Outra brilhante análise das grandes crises da primeira metade do século XX. Barrington Moore identifica diversas trajetórias pelas quais nações agrárias tornaram-se potências industriais, observando que a democracia só prosperou onde a classe média burguesa tomou o poder pelas armas e a agricultura assumiu feição capitalista, livre de amarras feudais (Inglaterra, França e EUA). Onde a burguesia era frágil, tornou-se sócia minoritária dos grandes senhores de terra, com modelos de desenvolvimento liderados pelo Estado autoritário (Alemanha e Japão) ou sucumbiu diante de revoluções comunistas (Rússia e China). Este trabalho seminal gerou diversos estudos que procuram aplicar, complementar ou refutar suas teses, sobretudo pela análise de potências médias, com trajetórias menos turbulentas. Sugiro “Nacionalism: five roads to modernity”, Liah Grenfeld, "Os Alemães", Norbert Elias, “Economic Origins of Ditactorship and Democracy”, de Daron Acemoglu e James Robinson e “Modelos de Democracia”, de Arent Lijphart.

Genocídio, Samantha Power

Este estudo inovador sobre o pior crime inventado pelo século XX é aula magna de política internacional e comparada, jornalismo de guerra e análise primorosa dos novos atores como organizações não-governamentais de direitos humanos, cadeias de mídia e complexas redes transnacionais que atuam em casos de invervenções. Para quem se interessar pelo tema, recomendo também "Activists Beyond Borders" de Margareth Keck e Kattryn Sikkink, e “The First Casualty”, de Phillip Knightley.

The Sino-Soviet Split, Lorenz Luthi.

Muitos dos livros acima abordam a Guerra Fria e suas crises, como a divisão da Alemanha, as guerras do Vietnã e da Coréia, o impasse nuclear em Cuba etc. Mas só este o faz da perspectiva das duas grandes potências comunistas, mostrando como as disputas por influência nos novos países surgidos da descolonização afro-asiática e divergências ideológicas sobre como lidar com os EUA e o Ocidente levaram à ruptura e uma quase-guerra entre ambas. Brilhante trabalho de pesquisa nos arquivos recém-abertos e belo exemplo dos novos trabalhos sobre história internacional, de ênfase mais cosmpolita que as tradicionais análises baseadas na política externa de um só país.

Latin America´s Cold War, Hal Brands.

Minha lista não estaria completa sem uma recomendação sobre a América Latina e este lançamento recente, que já resenhei no blog, é fruto de excelente pesquisa em vários arquivos nacionais, de um jovem autor que promete muito. Em linha semelhante, mas dedicado a outro continente, é “States and Power in Africa”, de Jeffrey Herbst, que mistura teoria de relações internacionais e política comparada para analisar a dinâmica diplomática dos novos Estados surgidos naquela região com a descolonização.

sábado, 15 de outubro de 2011

Carlos Lessa e Jorge Castanheira debatem a economia do carnaval

Do Extra (

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

A Guerra Fria do Oriente Médio

Por Angus McDowall (Reuters/O Globo, 13/10/2011)*

A rivalidade entre os vizinhos Arábia Saudita e Irã entrou numa nova e perigosa fase depois de os EUA acusarem Teerã de planejar a morte do embaixador saudita em Washington. O suposto complô, negado com veemência por Teerã, ocorre num momento crítico na chamada guerra fria do Oriente Médio, que opõe o reino árabe sunita da Arábia Saudita contra a majoritariamente persa e xiita República Islâmica do Irã.

Ainda é cedo para dizer se o aumento da tensão entre os dois principais países produtores de petróleo da Opep levará a retaliações, mas com os dois apoiando lados contrários nas confusas lutas sectárias que envolvem Iraque, Líbano e Bahrein, as apostas na estabilidade do Oriente Médio dificilmente seriam altas.

Reforçando as preocupações sauditas há o medo de que o Irã possa estar usando o programa de energia nuclear para desenvolver uma bomba atômica que alteraria a dinâmica do poder no Golfo Pérsico. Teerã afirma que o seu programa nuclear tem apenas fins pacíficos.

Foi a Revolução Islâmica no Irã, em 1979, que repentinamente modificou as relações entre os dois países, antes descritos como “pilares gêmeos” que garantiam a segurança americana no Golfo. Embora os poderosos clérigos wahhabistas da Arábia Saudita tenham sempre considerado herege a escola xiita de islamismo, eles viam o xá como uma barreira contra qualquer incursão comunista de inspiração soviética no Oriente Médio.

Para os revolucionários que criticavam o imperialismo ocidental nas mesquitas de Teerã, a família governante saudita representava uma monarquia corrupta que protegia interesses ocidentais. Mas nos palácios de mármore de Riad, o temor de que a República Islâmica pudesse exportar sua revolução no Oriente Médio estimulou uma estratégia de contenção, que incluiu o apoio a Saddam Hussein no Iraque nos oito anos de guerra contra o Irã.

Quando os EUA e seus aliados derrubaram o regime sunita de Saddam Hussein em 2003, a Arábia Saudita e o Irã trocaram acusações de apoio a grupos que defendiam seus interesses em meio ao caos. Teerã emergiu como vencedor estratégico com a saída de seu inimigo mortal Saddam e a eleição de um governo xiita em Bagdá. Um dos temores agora é que a tensão possa se traduzir em violência em países nos quais o Irã e a Arábia Saudita apoiam facções rivais.

Com os levantes árabes desafiando a ordem estabelecida ao longo do Oriente Médio, o confronto entre a Arábia Saudita e o Irã se aguçou. Protestos da maioria xiita contra a monarquia sunita no Bahrein foram vistos em Riad como prova da interferência iraniana. Em Teerã, as autoridades divulgaram informes de diplomatas americanos, revelados pelo grupo WikiLeaks, de que líderes sauditas pediram que Washington atacasse suas instalações nucleares. Segundo o WikiLeaks, um defensor de uma postura mais dura dos EUA contra o Irã era o embaixador saudita Adel al-Jubeir, o alvo do suposto complô de assassinato.

“Tiraram as luvas”, disse Ali Ansari, diretor do Instituto para Estudos Iranianos na Universidade St. Andrews, na Escócia. “O risco no momento é que não se tenha um confronto EUA-Irã, mas um confronto Arábia Saudita-Irã, que é mais perigoso porque os sauditas são mais agressivos ao defenderem suas posições.”

*Angus McDowall é jornalista especializado em Oriente Médio

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Não brinquem com Dilma

Uma mulher é presidente no crescente e machista Brasil. E ela não está para brincadeira

Por Mac Margolis (Newsweek, 18/09/2011)*

Das muitas histórias de guerra que Dilma Vana Rousseff fala em sua ascensão de revolucionária para burocrata de carreira até presidente do Brasil, uma em especial merece destaque. Foi no início da corrida para suceder Luiz Inácio Lula da Silva, quando a maioria dos brasileiros estavam acordando para a idéia da vida sem o seu líder hiperpopular, o "pai dos pobres." Um dia, em um aeroporto lotado, uma mulher e sua filha timidamente se aproximaram de Rousseff para olharem mais atentamente a candidata feminina favorita. "Uma mulher pode ser presidente?", quis saber a menina, cujo nome, muito apropriadamente, era Vitória. "Pode", respondeu Dilma. Vitória agradeceu Rousseff, ergueu o queixo e saiu poucos centímetros mais alta.

Dilma sorriu ao lembrar o episódio durante a entrevista à Newsweek, no palácio presidencial de Brasília. Eram cerca de seis horas, e o forte sol do planalto central brasileiro já estava se pondo. Mas o dia de Rousseff estava longe de acabar. Enchentes no sul haviam deixado milhares de desabrigados. O trabalho de construção para a Copa do Mundo, que o Brasil sediará em 2014, estava atrasado. A imprensa ainda repercutia os escândalos de corrupção e as consequências em seu gabinete, que tinham custado cinco de seus ministros em menos de nove meses. E, mesmo assim, Rousseff, em uma jaqueta roxa, calças pretas, e grandes brincos de pérolas, olhava tranquilamente enquanto falava sobre o Brasil, a economia mundial, a pobreza e a corrupção.

Seu cabelo era espesso e brilhante; suas bochechas, rechonchudas, sem nenhum traço de moagem das sessões de quimioterapia a que fora submetida para tratar de um linfoma descoberto em 2009. Por quase uma hora ela falou, com firmeza, sobre diversos pontos. De dados de criação de emprego ("Geramos 1.593.527 nos primeiros seis meses") até como as mulheres podem rescrever as regras de engajamento político, passando por TS Eliot ("Ash Wednesday" é um dos favoritos). "Quando eu era pequena, queria ser bailarina ou bombeira, e ponto", disse. "Eu não sei se é um mundo novo, mas o mundo está mudando. É um sinal de progresso até mesmo uma menina perguntar sobre ser presidente".

Para aqueles que ainda duvidam, a Assembléia Geral da ONU, reunida em Nova York esta semana, é o retrato de uma nova ordem mundial. Hillary Clinton vai estar lá. Do mesmo modo, Angela Merkel, a chanceler alemã cuja palavra pode vir a determinar o destino da fragilizada União Europeia. Talvez ainda mais notável seja o fato de quatro das 20 mulheres chefes de estado hoje (12 dos quais são esperadas na Assembléia) virem das Américas. As outras são Cristina Kirchner, da Argentina; Laura Chinchilla, da Costa Rica; e Kamla Persad-Bissessar, de Trinidad e Tobago. E, em 21 de setembro, quando Rousseff subir à tribuna, ela será a primeira mulher a fazer o discurso de abertura neste mar global de ternos que foi a ONU desde fundada.

O crescimento de Dilma coincide com o do Brasil. Antes um fracassado crônico, hoje o Brasil se encontra em rota ascendente. No ano passado, a economia cresceu 7,5%, o dobro da média mundial. Em 2011, conseguirá um respeitável 3 ou 3,5%. Enquanto as nações mais ricas lutam para evitar uma dupla recessão, o Brasil tenta esfriar a sua economia aquecida. Sua moeda é estável, seu sistema de justiça, mesmo falho e lento, funciona, e seus meios de comunicação estão entre os mais independentes do hemisfério.

Com as nações mais ricas paradas e o mundo árabe em revolta, esta expansiva e democrática nação está rompendo seus limites hemisféricos. Na semana passada, chegou a sugerir a idéia de unificar um pacote de socorro da zona do euro. "Precisamos estudar uma maneira de as nações emergentes com maior poder de fogo ajudarem a Europa", disse o ministro das Finanças de Dilma, Guido Mantega, que se reunirá com companheiros de BRICs (Brasil, Rússia, Índia e China) na reunião anual do FMI- Banco Mundial, em Washington, esta semana. "Em 2008, ajudamos a elevar a capacidade de financiamento do FMI de US$ 250 bilhões a US$ 1 trilhão. Podemos fazer algo assim hoje".

Ninguém espera seriamente que o Brasil salve a Grécia. (A Reuters chamou a oferta de Mantega de um "jogo de poder oco" e uma maneira pouco arriscada de "melhorar o status internacional do Brasil.") Mas quem teria imaginado isso de um país que há 15 anos era um frágil elo na ordem financeira mundial? "Por muito tempo, vocês foram chamados de o país do futuro", disse Barack Obama a um embalado Teatro Municipal, no Rio de Janeiro, em março, citando o velho ditado de que o Brasil era o país do futuro e sempre seria. "O povo do Brasil deve saber que o futuro chegou. Ele está aqui agora. "

*Tradução livre do blog

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Volta, Lula!

Por Ricardo Noblat (O Globo, 15/08/2011)

Um dos donatários do Poder, ocupante de amplo e luxuoso imóvel numa das áreas mais nobres de Brasília, registra com letra miúda em um caderno de capa preta dura os relatos que lhe chegam regularmente sobre memoráveis reprimendas aplicadas por Dilma Rousseff em seus auxiliares desde que tomou posse há oito meses como presidente da República.

Não. Não peçam que eu revele o nome do (a) aplicado (a) cronista da Corte. Ele (a) cumpre sua missão com gosto, paciência e de olho na posteridade. Adianto apenas que é partidário (a) de Dilma. E que a ajuda vez por outra. Jamais foi alvo de uma descompostura presidencial. Não teria cabimento. E pronto. Mais não digo.

O “Caderno das Reprimendas de Dilma Rousseff”, inaugurado em fevereiro último, reúne 16 histórias até agora. Acompanha cada uma delas uma espécie de ficha técnica com data, hora, local e personagens. Três histórias seguem contadas aqui de forma resumida, suprimidos ou trocados alguns dos seus termos menos elegantes.

Dilma despacha com Maria do Rosário, ministra da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Em discussão, a Comissão da Verdade a ser criada pelo Congresso para esclarecer casos de violação de direitos humanos durante a ditadura militar (1964-1985). Diante de algo que a ministra diz, Dilma perde a paciência: "Cale sua boca. Você não entende disso. Só fala besteira".

Dilma despacha com Ideli Salvatti no dia seguinte à sua nomeação para o ministério das Relações Institucionais. Leitora atenta de jornais, ela sabia o que Ideli dissera na véspera aos jornalistas. E não gostara. Queixou-se: “Na primeira coletiva que você dá vai logo dizendo bobagem... Imagine nas próximas".

Dilma despacha com Antonio Patriota, ministro das Relações Exteriores. Quer saber em que pé andam as discussões na ONU sobre países fornecedores de insumos nucleares. Lá pelas tantas, irritada, interrompe Patriota e o adverte: “Ou você e sua turma dão um jeito nisso ou então demito toda aquela itamarateca".

Sarney foi um presidente de fino trato. Assim como FH. Collor era formal. Contrariado, ficava pálido. Mas não estourava com seus auxiliares. Lula estourava, sim. Não o constrangia destratar Gilberto Carvalho, seu assessor mais próximo, em meio a uma reunião ministerial. Depois pedia desculpas.

Por ora, não há registro de pedido de desculpas feito por Dilma. Nem mesmo ao ministro Cezar Peluso, presidente do Supremo Tribunal Federal. Outro dia, Peluso telefonou duas vezes para Dilma. Que não lhe deu retorno. Devia estar muito ocupada, suponho. Ou sua assessoria falhou.

O estilo Dilma tensiona o governo e assusta os políticos em geral. A maioria deles está convencida de que ela enveredou por um caminho perigoso. Qual? O de posar de guardiã do interesse público em oposição a uma classe política que só pretende dilapidá-lo. O governo é bom. O Congresso está repleto de vilões.

De mãos postas, o ex-ministro José Dirceu nega a autoria de uma previsão que circulou em Brasília na semana passada: “Se Dilma continuar assim, correrá o risco de não concluir o mandato”. Mas a frase que ele não disse está na boca de políticos de partidos que apoiam o governo. Eles só não têm coragem de repeti-la em voz alta.

Estão acuados por uma presidente que não disfarça seu desprezo por eles, que os mantém à distância, que resiste a atender aos seus pedidos por cargos e dinheiro para pequenas obras, e que, por último, parece gostar de se exibir fantasiada de “faxineira ética”. É verdade que a faxina estancou às portas dos redutos do PMDB...

Os partidos que apoiam o governo não querem briga com Dilma. Querem o que tiveram em todos os governos: fatias do poder, respeito e afagos. Dispensam beijo na boca. Se não forem capazes de se entender com Dilma mesmo assim não a abandonarão. Não têm para onde ir. De resto, 2014 é logo ali. E Lula... Ah, Lula, suspiram os partidos da base aliada! Que falta você faz!







sábado, 13 de agosto de 2011

O risco Marta e a obrigação da vitória

Por Murillo Victorazzo

A 14 meses das eleições municipais, o PT começa a montar seu tabuleiro de xadrez. Detentor da Presidência da República há quase nove anos, do maior números de ministérios e da maior bancada na Câmara Federal, os petistas não escondem ao incômodo com a hegemonia da oposição no governo paulista e na prefeitura paulistana. Tornou-se questão de honra para eles conquistar o posto principal da cidade de São Paulo ano que vem. Alguns nomes já se movimentam para ser o representante do partido nesta  missão. O ex-presidente Lula, por exemplo, banca a candidatura do ministro da Educação, Fernando Haddad. Mas, por hora, a favorita parece ser a ex-prefeita e senadora Marta Suplicy.

Marta se viu, na última semana, politicamente acuada. Seu ex-assessor Mario Moysés foi preso pela Polícia Federal acusado de ter integrar um esquema de desvio de dinheiro de emendas parlamentares no Ministério do Turismo. Moysés foi levado para  o segundo escalão da pasta por ela, então ministra, tendo sido ainda seu auxiliar na prefeitura paulistana. O líder tucano na Câmara, Duarte Nogueira, logo subiu à tribuna para ressaltar essa relação e tentar empurrar para o período em que Marta comandou o ministério a roubalheira. Sinal óbvio de que a oposição usará o caso para tentar enfraquecê-la eleitoralmente. Não se sabe ainda se a tática dará certo e qual seria a dimensão do estrago. Mas o fato, por si só, é mais um ingrediente na salada de erros que a militância petista engolirá caso insista em embarcar no projeto da senadora.

Um dos argumentos que Marta usa para se cacifar como candidata são as pesquisas correntes que lhe dão o primeiro lugar nas intenções de voto. Baseada nelas, garante ser a única capaz de derrotar os tucanos, principalmente se o candidato destes for o ex-governador José Serra. Sua gestão (2000-2004), afirma, deixou marcar fortes, principalmente nas regiões mais pobres da cidade. Se olharmos o mapa de votação do pleito de 2004, quando Marta perdeu a reeleição justamente para Serra, sua lógica parece certa. Ela venceu com folga nas zonas eleitorais dos bairros menos nobres. Porém, no processo de escolha, outros senões deveriam ser levados em conta pela cúpula e militância petistas.

Naquela eleição, Marta consolidou alta taxa de rejeição entre as classes média e alta, o que alavancou para 45% do eleitorado total os que não admitiam votar nela. Segundo especialistas, um índice que inviabiliza qualquer chance de vitória em pleitos com dois turnos. Foi quase consenso entre jornalistas e cientistas sociais que houve, naquela votação, descolamento entre a avaliação sobre candidata Marta e o nível de aprovação de seu governo. A imagem contraditória de uma mulher independente e socialmente liberal se misturava a sua oratória e a seus trejeitos e vestuário presunçosos. Uma "dondoca" arrogante cuja gestão priorizou áreas carentes é uma personagem tão complexa que, se, por um lado, pode agregar méritos, por outro, cria antipatias em diferentes nichos sócio-econômicos.

Em 2008, Marta tentou novamente voltar à prefeitura paulistana. Venceu o primeiro turno, mas acabou perdendo por boa margem para o prefeito Gilberto Kassab, então no DEM. Derrota que deve ter surpreendido, se tanto, apenas a cúpula petista. Poucas capitais brasileiras sedimentaram um antipetismo tão amplo como São Paulo. Junte a esse traço ideológico o peculiar perfil da candidata e a equação para o fracasso tornava-se fácil de ser resolvida. Na época, o quadro agravou-se com a constante lembrança pelos adversários de sua atuação como ministra do Turismo durante a crise aérea, em 2007. Ao ser questionada sobre os percalços dos passageiros, Marta disparara a infeliz e cínica expressão "relaxa e goza".

A petista saiu daquela campanha menor do que entrou. Não apenas pelos votos insuficientes, mas pelo tipo de estratégia adotada. Na reta final, chegou a apelar para insinuações sobre a vida pessoal de Kassab. Retóricas conservadoras deveriam sempre causar asco; vindo de uma sexóloga feminista que ganhou projeção na defesa dos direitos dos homossexuais, o desprezo ganhou contornos insuperáveis de hipocrisia e desespero. Logo ela que tanto sofrera preconceitos em eleições passadas. Além da derrota eleitoral, Marta sofreu uma derrota política que alavancou ainda mais sua rejeição. Nem mesmo sua eleição para senadora, ano passado, deveria ocultar tal fato, já que, por pouco, consegue a proeza de não conseguir nenhuma das duas vagas em jogo. Carregaria, durante bom tempo, o fardo de se ver ultrapassada pelo ex-pagodeiro Netinho.

Todas essas sinalizações não parecem ter tirado o seu salto alto. Ela e seu grupo acreditam que, com Lula em seu palanque, seria possível mudar, desta vez, o final da história. Sua autoconfiança não chega a surpreender, mas as bases irem por esse caminho, sim. Estar em primeiro lugar em pesquisar nesse momento não é prova cabal de popularidade. Neste momento, suas intenções de votos em muito se devem também ao que os analistas chamam de "recall", ou seja, a lembrança de um nome bastante conhecido. É claro que Marta tem seu eleitorado cativo e não se nega, como já dito, que sua gestão tem o que mostrar. Mas a insistência com um nome que já demonstrou ter dificuldades de ampliar seu teto de votos é temerária.

Lula, raposa política que é, parece ter entendido a situação. Insiste no nome de Haddad, que, porém, peca pela falta de traquejo político e de vida partidária, ainda que seja filiado ao partido há um bom tempo. Não à toa, pressiona para não haver prévias internas. Sabe que, além de propiciar uma cisão interna que levaria a uma derrota certa em outubro de 2012, seu preferido teria enormes dificuldades em bater chapa com Marta, experiente conhecedoras dos corredores da máquina petista. E que é mais fácil usar sua força para impedir a votação interna do que, esta decidida, arregimentar votos de centenas ou milhares de filiados para um "novato".

Haddad deu o pontapé inicial em sua pré-candidatura semana passada, quando participou de caravanas que o PT faz pela cidade. Nem as menções ao seu trabalho nos governos Lula e Dilma e os fartos elogios a estes impediram a militância de sair entediada com suas frases repletas de conceitos e números. Um discurso "muito administrativo e pouco político", como afirmou um líder da sigla. A seu favor, a inevitável comparação com a presidente Dilma, também considerada, no início da campanha do ano passado, excessivamente modorrenta e corpo estranho à base petista.

Lula certamente usará o exemplo de Dilma para convencer os petistas a abraçar seu pupilo. Lembrará ainda inúmeros casos de políticos que, embora inicialmente desconhecidos, chegaram, com apoios de nomes e máquinas fortes, à vitória. O grupo de Marta, por sua vez, defende que, em São Paulo, onde o petismo é mais fraco, apenas a capacidade de transferência de votos de Lula não seria suficiente para o ministro triunfar. Para eles, Marta iniciará a campanha já com cerca de 30%. Se conseguir diminuir em apenas cerca de 10% a antipatia a seu nome, terá ótimas chances de  vitória. Já Haddad teria que começar praticamente do zero, sendo que sua rejeição é uma incógnita. Alguns "martistas", aliás, gostam, sutilmente, de lembrar fatos controversos ocorridos em sua gestão no MEC. Polêmicas como a fraude no ENEM e os erros em cartilhas e livros didáticos, asseguram, seriam empecilhos à conquista dos setores médios da população.

Na verdade, o dilema petista é reflexo da falta de novas lideranças regionais fortes. Algumas das mais experientes foram se queimando com o passar dos anos e dos escândalos. Outras acabaram por sair do partido. É por isto que boas razões não faltam a Lula quando tenta tirar o partido da cantilena em que se transformaram os últimos processos decisórios paulistanos, com Marta e o ex-senador Aloísio Mercadante sempre se confrontando. Mercadante, inclusive, só refugou de mais uma pré-candidatura devido à volta  do escândalo dos "aloprados" ao noticiário.

O quadro geral do próximo pleito ainda está indefinido. Não se sabe quem Kassab apoiará nem se a candidatura do deputado Gabriel Chalita, do PMDB, é para valer. Se for, ainda é difícil assegurar sua dimensão. No ninho tucano, exceto José Serra, os demais tampouco podem ser considerados nomes fortes. A possibilidade de prévias para escolher entre José Aníbal, Andrea Matarazzo e Bruno Covas, caso Serra não queira disputar, é sinal da falta de um candidato natural. Mas, diferente do nível nacional, em que a prévia, ano passo, chegou a ser cogitada por ter o PSDB dois candidatos de peso para a Presidência, no plano municipal, a razão é oposta: falta de densidade eleitoral.

PT e PSDB estão em situações parecidas: um nome de peso e outros poucos conhecidos. Mas as semelhanças são apenas aparentes. Serra, ao contrário de Marta, tem menor rejeição e suas administrações, tanto com prefeito como governador, causam melhores lembranças a setores mais diversos da população. E São Paulo é considerado praticamente um reduto tucano. Além de a sigla comandar o Palácio Bandeirantes desde 1995, Lula e Dilma perderam em 2006 e 2010 tanto no estado como na capital. Precedentes que servem, não sem sentido, de argumento para os dirigentes do PSDB considerarem o apoio do governador Geraldo Alckimim tão importante quanto o de Lula em 2012. A viabilidade de um desconhecido do PSDB tende, por isso, ser maior, ainda mais que  um deles é dono de sobrenome com insuspeito potencial de votos: Bruno é neto do ex-governador Mario Covas.

Ainda que, como dizia o ex-governador mineiro Magalhães Pinto, a política seja como as nuvens, com os seus desenhos mudando a cada hora, alguns nortes prováveis ela sempre tem. É certo que o candidato petista, seja lá qual for, não terá vida fácil, ainda mais com as restrições econômicas com que o governo Dilma terá de lidar ano que vem. Uma conjuntura que, aliada às peculiaridades locais e pessoais, torna qualquer tentativa de inversão de rejeição pouco possível.  Por outro lado, além de permitir formatar um candidato mais palatável a outros setores sem perder seus redutos, a renovação sempre nos suscita esperanças. Já um nome fadigado nos traz perspectivas mais rígidas.

Diante desse cenário, o risco de atirar no escuro com um "desconhecido" não será muito diferente do de insistir em Marta. Mas o fracasso terá implicações bem maiores para ela. Com três derrotas seguidas para a prefeitura, verá inevitavelmente seu capital político despencar, levando junto suas aspirações maiores a cargos executivos. O PT, por sua vez, rifará de vez uma liderança regional e terá perdido a chance de mostrar ao eleitorado uma nova cara. Além de não poder apelar a desculpas tão comuns no futebol: "jogamos com o time reserva" ou "o atleta ainda tem muito que aprender; é um projeto para quatro anos".



quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Amorim rebate críticas e defende general do Exército

Por Eliane Cantanhêde (Folha de S.Paulo, 10/08/2011)

Em resposta aos seus críticos militares, o novo ministro da Defesa, ex-chanceler Celso Amorim, provoca: "Você não pode fazer das Forças Armadas uma coisa partidária nem para a esquerda, nem para a direita".  Em entrevista no novo gabinete, Amorim, 69, disse que o comandante do Exército, general Enzo Peri parece uma pessoa "não apenas ilibada, mas até um asceta". Um relatório do TCU (Tribunal de Contas da União), como a Folha revelou na terça-feira, diz que Enzo favoreceu firmas ligadas a militares ao dispensá-las de licitação entre 2003 e 2007.

Folha de S.Paulo - Quem convidou o sr. a presidente Dilma ou o ex-presidente Lula?
Celso Amorim - A presidente Dilma, claro. Fui sendo prevenido aos poucos, ela me ligou poucos minutos antes do anúncio, e eu só falei com o presidente Lula no domingo, depois de conversar pessoalmente com ela.

Folha - O sr. tinha mágoa de não ter sido convidado para nada por ela na troca de governo?
Amorin - Mágoa nenhuma. Sou a favor da renovação e eu não podia querer me perpetuar num cargo ou disputar outro. Já tinha até alugado apartamento em Brasília para o depois. Essa coisa de que não nos damos bem é do imaginário. Ao contrário, nós nos damos excelentemente bem.

Folha - O seu nome foi cogitado para a Defesa quando o ministro Waldir Pires caiu e depois no início do governo Dilma. O sr. tinha a expectativa de assumir a pasta?
Amorim - Nunca tive essa expectativa, nem era uma aspiração, mas há uma relação óbvia entre as funções dos ministérios das Relações Exteriores e da Defesa. Eu já considerava minha carreira de homem público completa, esperava ser professor, colunista, palestrante.

Folha - Aliás, o sr. mantém a crítica que fez na revista "Carta Capital" ao voto favorável do governo Dilma a um relator especial da ONU para apurar abusos contra Direitos Humanos no Irã?
Amorim - Hoje, eu sou parte do governo e tenho de participar solidariamente das decisões do governo, e essa pasta pertence a outro ministro. Como intelectual independente, o que eu escrevi e disse claramente é que, se fosse eu, não teria tomado aquela atitude.

Folha - Uma das mais fortes críticas que oficiais militares fazem ao sr. é justamente a ligação com o Irã.
Amorim - Nós nunca ficamos amiguinhos do Irã, e o Irã jamais foi uma prioridade da nossa política externa. O que foi uma prioridade, sim, num determinado momento, foi resolver um problema grave para o mundo que, aliás, continua existindo: o problema do programa nuclear do Irã. Como resguardar de um país ter um programa país e ao mesmo tempo resolver as desconfianças que havia? Tentamos viabilizar uma proposta dos países do Ocidente, a começar dos Estados Unidos, que depois mudaram de posição e acharam que não era mais assim. Mas a verdade é que tivemos estímulo deles. Ou seja: nunca houve uma aventura iraniana, como alguns querem fazer crer. Houve uma atitude independente e transparente nossa.

Folha - O sr. é "esquerdista"?
Amorim - Esses rótulos, é melhor deixar os outros colocarem. Uns dizem que fui colocado pela presidente Dilma por ser nacionalista, o que agrada aos militares. Outros, que foi porque sou esquerdista, o que não agrada a eles. Mas, no Brasil, nacionalismo não é confundido com esquerdismo?

Folha - A presidente disse que o sr. é patriota. Como o sr. define esse conceito?
Amorim - Nossa ideologia é a pátria e a Constituição. Fui sempre um profissional do interesse nacional. Uma coisa é você ficar trancado na sua casa, torcendo para o Brasil num jogo de futebol, o que é muito bom e todos nós fazemos isso. Mas outra é você ser um profissional do interesse nacional. Acho que sempre fui e de várias maneiras, em negociações comerciais, políticas, de segurança nacional. Você não descreve com palavras e sim com atitudes.

Folha - A brincadeira automática, depois que a presidente disse que o sr. é patriota é que o Patriota não é nenhum Amorim... Já disseram até que ele volta na prática a ser secretário-geral do Itamaraty.
Amorim - Isso não tem nenhum sentido. Eu tenho muito o que aprender aqui na minha pasta, nem vou ter tempo para olhar para a dos outros. Eu e o Patriota trabalhamos juntos quinze anos e, desse susto, nem ele nem vocês morrem.

Folha - O sr. vai trazer diplomatas?
Amorim - Não estou pensando nisso.

Folha - Vai trocar eventualmente algum comandante militar?
Amorim - Não é minha intenção nem recebi nenhuma orientação nesse sentido, ao contrário.

Folha - Num dos seus artigos, o sr. também escreveu que não são satisfatórias as relações entre o poder civil e os militares e a responsabilidade por atos cometidos na ditadura. Como pretende avançar nos dois casos?
Amorim - Não me recordo exatamente das palavras que usei nesse artigo, que era sobre como o Brasil pode ajudar na transição dos países árabes e comento o que ocorreu no Brasil, inclusive sobre as relações de civis e militares. Não é que eu disse que não são satisfatórias, mas que talvez algumas pessoas não vejam como satisfatórias. É uma constatação de um fato, mais do que um juízo de valor. Mas sei que a subordinação das Forças Armadas ao poder civil é clara e que a presidente Dilma exerce esse comando obviamente, e o ministro da Defesa é um instrumento dessa hierarquia.

Folha - Por que o sr. não fez nenhuma referência no seu discurso à Comissão da Verdade negociada entre civis e militares?
Amorim - Fiz referências a Direitos Humanos, e acho que esse assunto, da Comissão da Verdade, está bem encaminhado. Acabei de chegar, hoje é meu primeiro dia de trabalho, e não tenho todas as respostas, mas tenho grande esperança de que a Comissão da Verdade possa ajudar a resolver essas questões. Vai ter algum reclamo de um lado e de outro? Não sei, mas sei que é uma boa base para aplainar a questão no futuro.

Folha - O sr. defende a responsabilização dos militares por atos cometidos na ditadura, como houve na Argentina, no Uruguai, no Chile?
Amorim - Nem as situações que geraram os fatos nem as soluções foram idênticas. O mais importante é o restabelecimento da verdade. Acho que esse assunto está bem encaminhado. Se houver bom senso de todos os lados e uma boa articulação política, que cabe ao ministro da Justiça [José Eduardo Cardozo, do PT], nós chegaremos a uma boa conclusão.

Folha - O general Augusto Heleno...
Amorim - A quem aprecio, pelo bom trabalho que fez no Haiti e que eu acompanhei, porque nós trabalhamos juntos...

Folha -... disse que o comprometimento ideológico tem repercussão altamente negativa entre os militares. O sr. concorda?
Amorim - Acho que você não pode fazer das Forças Armadas uma coisa partidária, mas acho que nem para a esquerda, nem para a direita, nem para o centro. Agora, patriotismo é patriotismo. Cada um interpreta a seu modo, e para isso nós temos a presidente da República, que é quem escolhe, quem decide e quem foi eleita pelo provo brasileiro.

Folha - E as reações de setores militares contra a escolha de um novo diplomata, depois da passagem do embaixador José Viegas pela Defesa?
Amorim - Não fui escolhido por ser um diplomata. Fui ministro por nove anos e meio, no governo Itamar e nos oito anos do presidente Lula, e ministro é um cargo político. Estou assumindo um lugar novo que tem muitos desafios para mim, como teria para qualquer outro. Mas a gente aprende, se trabalhar com afinco e souber ouvir.

Folha - Vou lhe repassar uma pergunta que me foi feita por um oficial: e se fosse um general mandando no Itamaraty, os diplomatas iriam gostar?
Amorim - Os diplomatas são muito disciplinados, a tradição era que os ministros não fossem da carreira e houve mesmo um que vinha da carreira militar, o general da reserva Juracy Magalhães. Então, o importante é ser patriota, ter humildade para ouvir e capacidade para decidir.

Folha - Se a gente somar tudo o que o sr. disse no seu discurso de posse sobre soldos, equipamentos, investimentos, o sr. vai precisar de muitos bilhões de reais, mas os tempos não são justamente de corte?
Amorim - Bem, eu não vou resolver isso sozinho. O que eu disse é que vou me empenhar e que percebo uma sensibilidade grande da presidente para a Defesa.

Folha - Ela deu algum sinal de que vai descontingenciar recursos para facilitar sua chegada?
Amorim - Acho que não seria correto eu falar sobre isso, mas certamente vou falar com os ministros da área econômica. Qual a solução? Quando será a solução? Não sei. Vamos ver. E a questão do investimento na indústria de defesa faz parte da solução, não do problema. Nos EUA, a empresa privada é responsável pelos investimentos em ciência e tecnologia, mas, ora, tudo por encomenda do Pentágono. Isso mostra a importância que a Defesa tem para a indústria, para o desenvolvimento, para os empregos, para a tecnologia de ponta. A aviação brasileira nasceu dessa forma.

Folha - E o outro lado da moeda? Boa parte, ou a maior parte, da responsabilidade da crise norte-americana é justamente pelos gastos na área militar.
Amorim - Mas ninguém fala que vamos nos envolver em aventuras militares como os EUA se envolveram. Eles estão com duas a três guerras ao mesmo tempo.

Folha - No domingo, antes mesmo da sua posse, mulheres de militares fizeram manifestação por aumento de soldos. Os comandantes lhe pediram isso na reunião do fim de semana?
Amorim - Foi mais geral. Vamos esperar um pouquinho.

Folha - E os caças, vêm ou não vêm?
Amorim - Os caças terão que vir. Achava isso como ministro das Relações Exteriores e continuo achando agora como ministro da Defesa. Mas o momento exato ainda não dá para dizer.

Folha - Nisso, o sr. e o ministro Jobim combinam? Ambos querem os Rafale franceses?
Amorim - Havia um problema de preços e toda uma discussão sobre transferência de tecnologia. Naquela época, no governo Lula, parecia que o que tinha mais condições de fazer essa transferência era o francês. Se ainda é, não sei, porque não acompanhei o desenrolar das discussões sobre isso e sobre uma renegociação de preços.

Folha - Naquele momento, o recuo não foi por causa de cortes no Orçamento, mas sim a chateação do presidente Lula porque o Sarkozy tirou o tapete do Brasil na discussão sobre Irã na ONU?
Amorim - O presidente Lula disse isso para você? Para mim não disse...

Folha - Como fazer com o programa nuclear da Marinha, se não há dinheiro para mais nada?
Amorim - A última visita interna que fiz como chanceler foi justamente a Aramar, até porque sempre fui um entusiasta do programa nuclear da Marinha. O Brasil tem de ter independência nessa área, ter capacidade de dominar o ciclo completo. Acho que vai ter recursos, sim. A presidente é nacionalista, patriota e sabe da importância de proteger os nossos recursos, principalmente agora com o pré-sal.

Folha - Como o Brasil, com uma dimensão continental, com Amazônia, pré-sal e água, não tem satélite até hoje? É possível falar em soberania?
Amorim - São projetos que continuarão a ser desenvolvidos, em conjunto com o Ministério de Ciência e Tecnologia. Há sensibilidade para isso. Quanto à soberania, o mais importante é a atitude psicológica. Você tem de acreditar que é soberano. Você pode ter satélite, foguete, o que quiser, mas sem atitude sua soberania não vale nada. Se tiver atitude certa, vai ter o satélite certo, mas você pode ter o satélite certo e não ter a atitude certa.

Folha - E o acordo com os EUA para o uso da base de Alcântara, vai avançar?
Amorim - Foi paralisado no Congresso Nacional e não se trata de questão ideológica. Não tem muito cabimento brasileiros não terem acesso a certos lugares dentro do território nacional. É uma questão de soberania inegociável.

Folha - O ministro Jobim e o sr. estabeleceram uma linha de distanciamento dos EUA, mas o chanceler Patriota faz uma linha de aproximação. Onde o sr. se encaixa agora?
Amorim - Você faz uma pergunta com várias premissas que comportam discussão. O ministro Jobim até patrocinou, junto conosco, um acordo militar com os EUA... Não percebi nenhum distanciamento enquanto fui ministro. Acho que o ministro Patriota faz jus ao nome, e o ministro Jobim também agiu patrioticamente. O que nós temos que ver é o interesse brasileiro. Às vezes, será interessante fazer acordo com os EUA e, em outras, com outros países. Temos de ter a cabeça aberta. É preciso acabar com essa mania de que o que é a favor do Brasil é contra os EUA.

Folha - Por que o sr. defende a saída do Haiti?
Amorim - Defendo uma saída gradual do Haiti, pois cumprimos bem nossa missão lá, quero dizer, as Forças Armadas cumpriram. Dizem que democracia é quando um presidente eleito passa o governo para um outro presidente eleito, e foi isso o que ocorreu lá. Então, é hora de discutir uma saída organizada, inclusive com as Nações Unidas, claro. Não sei se em agosto, dezembro, janeiro, não é o que importa. O que importa é como. Uma possibilidade é sair, mas deixando um batalhão de engenharia do Exército lá, por exemplo.

Folha - Por que o sr. citou especificamente a África no seu discurso?
Amorim - Cabo Branco é o ponto mais oriental do Brasil. Fica mais perto de Dacar e Cabo Verde do que de Porto Velho ou Rio Branco, provavelmente. Então, são nossos vizinhos. As águas territoriais brasileiras e da África ficam muito perto umas das outras, quase se tocam. Então, são vizinhos de Além-Mar, como diziam os militares, e isso exige cooperação.Trabalhamos juntos na área militar com Angola, Guiné Bissau, Namíbia. Mas nossa prioridade era e é a Unasul, para assegurar a paz que gera desenvolvimento.

Folha - Segundo reportagem da Folha, o comandante do Exército, Enzo Péri, é investigado pelo TCU pois, quando diretor do Departamento de Engenharia e Construção da Força, assinou 27 contratos sem licitação com um instituto que subcontratava empresas ligadas a militares. Que providências o sr. vai tomar?
Amorim - Bom, o próprio general me disse que já há investigações militares e tomadas de conta iniciadas por ele próprio em relação a possíveis.... Não sei nem que termo usar, vamos falar possíveis irregularidades.

Folha - O comandante vai investigar ele próprio?
Amorim - Essas coisas são muito difíceis de a gente falar, mas é preciso separar o joio do trigo. A minha forte impressão é de que estamos com o trigo. Estou há muito pouco tempo aqui, mal cheguei, mas tenho 50 anos de serviço público e conheço as pessoas pelo olho. Às vezes a gente erra, mas quase sempre. O general Enzo me dá a impressão de uma pessoa não apenas ilibada, mas até de um asceta. Minha impressão é totalmente positiva. O que tiver de ser investigado será investigado, mas é preciso ver isso tudo direito, sem precipitação.

Folha - Como o sr. pretende contribuir para a faxina ética que a presidente determinou em outras áreas?
Amorim - Moralidade é importante em qualquer governo. As denúncias aparecem e são comprovadas? Têm de ter consequência. A presidente Dilma, me parece, vai aprofundar a inclusão social, o desenvolvimento e a moralidade pública.

Folha - Como foi seu encontro de hoje [ontem] de manhã com o antecessor Jobim?
Amorim - Fui ao apartamento dele, porque ele está doente, com o rosto inchado, mas tivemos uma boa conversa sobre os projetos que estão em andamento.

Folha - Se houver resistências públicas de oficiais, como já houve nos bastidores, como o sr. pretende agir?
Amorim - Não fique me colocando alçapões inexistentes...

Folha - Qual sua ambição no Ministério da Defesa? Quando o sr. sair, o que pretende deixar para dizer que a missão foi cumprida?
Amorim - Ter deixado o Brasil mais capacitado a se defender, ter uma atitude ainda mais altiva, sem abaixar a cabeça.

Folha - O deputado José Genoino vai continuar na Defesa?
Amorim - Vai. Se quiser, pode botar um ponto de exclamação.



sábado, 6 de agosto de 2011

O drama norte-americano

Por Mauricio Santoro (Blog Todos os Fogos o Fogo, 03/08/2011)

O Acordo da Dívida e a Derrota de Obama

O acordo entre governo e oposição para elevar o teto da dívida pública dos Estados Unidos evitou o apocalipse financeiro que seria a primeira moratória da história americana, mas é uma derrota para o presidente Barack Obama. Ele teve que abrir mão do aumento de impostos e precisará cortar gastos públicos, provavelmente na área social. Desde o início das negociações, sua popularidade caiu 5%, para apenas 40%. A Câmara dos Deputados e o Senado ainda precisam aprovar o acordo firmado pelas lideranças. É provável que isso aconteça, mas com tensões e fricções vindas da parcela mais conservadora dos republicanos (que não queria elevação do teto da dívida) e do grupo mais à esquerda entre os democratas (irritados pela iminente redução nos gastos sociais).

O acordo aumenta o teto em US$2,4 trilhões mas prevê igual corte nas despesas do governo, começando por US$900 bilhões ao longo da próxima década. Basta olhar o gráfico do orçamento dos Estados Unidos para ver que as principais despesas estão na área social e na Defesa. É muito difícil reduzir os gastos militares, embora isso tenha ocorrido no governo Clinton e mais recentemente, na própria presidência Obama. Pesam as eternas preocupações com segurança nacional (com três guerras simultâneas!) e a força dos lobbies da indústria bélica, e mesmo das bancadas regionais. A maior parte das bases militares americanas estão no sul e são importantes para a economia local, fechá-las signfica problemas para essas áreas. Politicamente, é mais fácil cortar de grupos com baixa representação política, como os mais pobres, reduzindo o orçamento da seguridade social, como auxílio-desemprego. Naturalmente, isso agravará os efeitos da crise econômica na população mais vulnerável.

Os republicanos ganharam a batalha, mas ainda não está claro se essa vitória irá beneficiá-los nas eleições presidenciais de 2012. Os eleitores americanos, tradicionalmente, apóiam compromissos e barganhas. É certo que a ascensão do Tea Party desequilibrou essa equação e colocou forte pressão sob os republicanos moderados.

Mesmo evitando a moratória, o status financeiro dos Estados Unidos foi reduzido e os títulos da dívida do país devem perder a classificação AAA, como aconteceu neste ano com Japão e Itália. Isso é um enorme problema, pois TODO o sistema financeiro global está estruturado na dívida americana como o ativo mais seguro. Os investidores já começam a buscar opções. Com muitas economias européias em dificuldades, alternativas têm sido títulos emitidos por empresas e por pequenas e estáveis nações, como Suíça, Suécia e Dinamarca. Os mercados reagem bem ao acordo, mas entramos numa nova etapa de incerteza na economia global. Mais mudanças e turbulências nos esperam próximos meses.

A Lógica do Impasse nos EUA

O impasse político entre democratas e republicanos, que ameaça levar os Estados Unidos à moratória também tem origens mais antigas do que as discordâncias atuais ente Obama e a oposição (na foto, o presidente e o republicano John Boehner, que preside a Câmara). Remonta à crescente divergência ideológica entre os dois partidos, da década de 1980 em diante. Entre a Segunda Guerra Mundial e aquele período, havia amplo grau de consenso entre democratas e republicanos com relação à política interna e externa. Naturalmente, existiam diferenças entre os dois partidos, mas não faltavam líderes moderados e pragmáticos capazes de construir alianças que atravessavam as divisões entre as siglas, e garantiam apoio para iniciativas fundamentais como o Plano Marshall, as leis dos direitos civis ou as decisões de desenvolvimento econômico (“Somos todos keynesianos agora”, na célebre declaração de Nixon).

A sucessão de crises da década de 1970 mudou isso, e a partir da presidência de Ronald Reagan houve uma forte reação conservadora que desmontou parte da estrutura criada pelo New Deal, sobretudo a regulação do setor financeiro e os pactos políticos com os sindicatos. Temas ligados à sexualidade ganharam proeminência, em longa série de batalhas em torno do aborto, do casamento gay e de assuntos semelhantes. Simultaneamente, acabou a Guerra Fria. A União Soviética foi desmantelada e os Estados Unidos perderam o inimigo externo que, bem ou mal, ajudou a dar coesão às suas elites, por meio de uma ameaça que as incentivava a formular acordos bipartidários. Essa cola não existe mais.



A polarização da década de 1990 foi amarga, mas o ótimo crescimento econômico dos anos Clinton amenizou muitas tensões. O presidente não conseguiu aprovar a reforma da saúde e quase perdeu o cargo por uma estagiária. E ainda assim, entregou o país emsuperávit (acima).  Os anos Bush foram de turbulência extrema: atentados terroristas, duas custosas guerras na Ásia, cortes de impostos e uma política montária descuidada que alimentou a bolha imobiliária – agravada pelos problemas na regulação e nas agências de classificação de risco.

O Tea Party surgiu em 2009 não só como reação à vitória de Obama, mas como rebelião das bases republicanas contra os erros do governo Bush, particularmente pelo aumento descontrolado da dívida pública. O sucesso eleitoral do movimento nas eleições legislativas de 2010 criou a necessidade de que os líderes do Partido Republicano endossem sua agenda, ou pelo menos demonstrem simpatia por suas idéias. Como no manifesto dos parlamentares que se recusam a apoiar alta de impostos, embora os ricos paguem o menor percentual dos últimos 80 anos (abaixo).



Os democratas controlam a Presidência e o Senado, os republicanos, a Câmara dos Deputados. Pela lógica básica da barganha política, um acordo bipartidário significaria algo como cortar gastos sociais caros a um dos grupos e alterar as leis tributárias valorizadas por outro, em prol de algo que beneficie os dois: a estabilização da economia. Certo, 2012 é ano de disputa presidencial, o que torna os prêmios mais elevados. No entanto, mais que o cálculo político de custos e benefícios, o que predomina é uma rigidez ideológica danosa não só para a condução da economia, mas para a própria democracia nos Estados Unidos. Regimes autoritários precisam de Fuhrers, Duces e Profetas, governos democráticos funcionam melhor com líderes pragmáticos capazes de jogar o toma-lá-dá-cá tão menosprezado mas tão necessário para o cotidiano.

Impostos e Desenvolvimento

Na crise da dívida dos Estados Unidos, todos concordam que é preciso cortar gastos, mas o debate sobre a necessidade de aumentar impostos tornou-se muito amargo e polarizado. Até o início do século XX, a carga tributária costumava ser muito baixa, porque os Estados tinham relativamente poucas responsabilidades, fora manutenção da lei e da ordem e defesa nacional. O espantoso crescimento da abrangência das políticas públicas, culminando na formação do Estado de Bem-Estar Social na Europa, após a Segunda Guerra Mundial, mudou isso. Nos EUA, o percurso foi um tanto diferente, começou com a chamada “Era da Reforma”, há cerca de 100 anos, e expandiu-se em duas grandes ondas, no New Deal e nas iniciativas da década de 1960.

A tabela abaixo mostra a carga tributária para um conjunto de países. Notem que os Estados Unidos, com 24% do PIB em impostos, são a nação desenvolvida com o fardo mais leve. Na Europa, o percentual oscila entre 30% e 48%. Na América Latina em geral se situa em torno de 15% - o Brasil não está na tabela, mas é notável exceção, com espantosos 36%, dignos do modelo escandinavo. A China tampouco aparece, e sua carga tributária é controversa, entre 25% e 32%, de acordo com as estimativas.



Ninguém gosta de pagar impostos, mas já foi dito que eles são o tributo exigido para termos civilização. Em termos teóricos, para que o Estado possa fornecer bens públicos, dos quais todos usufruímos, e que beneficiam a população em geral: ordem pública, meio ambiente preservado, boa infra-estrutura etc. Dificilmente teríamos esses benefícios amplos se indivíduos fossem responsáveis por eles. Outra categoria importante é a dos bens meritórios, como educação e saúde, que podem perfeitamente ser fornecidos pela iniciativa privada, mas que com frequência são assumidos também pelo Estado por seu impacto generalizado no desenvolvimento social e econômico. Aos interessados na discussão teórica sobre o tema, recomendo o excelente “Economics of the Public Sector”, de Joseph Stiglitz.

Não há modelo científico que defina o que cada sociedade espera do Estado em termos de políticas públicas, a resposta está nas tradições históricas e culturais, no equilíbrio de forças políticas, nas alianças e enfrentamentos que configuram a arena pública. Em suma, do quanto os cidadãos estão dispostos a pagar, em impostos, para financiar sua civilização. E também, claro de quem paga. Sistemas tributários como o dos Estados Unidos e os do Brasil são regressivos, isto é, os mais ricos pagam menor percentual de sua renda em tributos do que os mais pobres. Esses arranjos são característicos de sociedades muito desiguais, nos quais – para citar o jornalista Elio Gaspari – o andar de cima é bastante forte para impor sua vontade sobre a choldra.

Defensores de impostos baixos acreditam que eles estimulam a economia e o empreendedorismo, os partidários de maior carga tributária crêem que ela é necessária para financiar um Estado capaz de prover bens públicos e meritórios que facilitem o desenvolvimento. A correlação entre impostos e crescimento é escorregadia, há de tudo nos exemplos internacionais, em grande medida porque para além da carga tributária pura e simples, há outros fatores essenciais, como a eficiência do serviço público. No limite, temos a curva de Laffer. Para além de certo ponto, os impostos tornam-se contraproducentes e causam tanto dano que terminam por reduzir as receitas. Não é fácil identificar o ponto ótimo, pois tributos baixos demais podem resultar num poder público tão frágil que acaba por prejudicar a sociedade – debate comum em vários países latino-americanos.

sexta-feira, 29 de julho de 2011

Conquistas de Zapatero foram ofuscadas pela crise

Por Priscila Guilayn (O Globo On, 29/07/2011)

O presidente do governo que antecipou na sexta-feira as eleições gerais , reduzindo em quatro meses seu segundo mandato, não é o mesmo José Luis Rodríguez Zapatero que encerrou o primeiro governo em 2007. As mudanças no Código Civil que permitiram o casamento entre homossexuais e a adoção; a Lei de Igualdade, que contribuiu para diminuir as diferenças entre mulheres e homens; a nova Lei de Divórcio, eliminado a necessidade prévia de separação e a lei sobre o aborto, impondo prazos para evitar a interrupção de gestações em fase avançada, foram recebidas com entusiasmo por um grande setor da sociedade. Mas os sucessos do autor das medidas sociais acabou ofuscado pela grave crise econômica. "Em 2008, houve o erro que fez com que esta segunda legislatura se arrastasse até agora: Zapatero não reconheceu as verdadeiras dimensões da crise. Este erro fez todo mundo esquecer do seu primeiro mandato", opina o cientista político Oriol Bartolomeus, da Universidade Autônoma de Barcelona.

À assustadora taxa de desemprego, que neste mês caiu de 21,29% para 20,89%, uniram-se medidas de ajuste fiscal (em maio do ano passado) - na contramão do que Zapatero vinha pregando no governo anterior. Para o analista Fernando Harto de Vera, da Universidade Complutense, Zapatero também foi vítima de um ciclo: "Seu primeiro mandato foi uma legislatura política, no melhor sentido da palavra, progressista, de esquerda. Já o segundo, foi uma legislatura econômica, no pior sentido da palavra. Zapatero perdeu gás, em parte pela crise, mas também pelo próprio ciclo da democracia que, ao esgotar as energias reformistas, acaba sucumbindo ao pior que há em seu interior: ser conservador".

Seguindo as exigências de Bruxelas, a Espanha deveria reduzir o déficit público (naquele momento previsto para fechar o ano em 9,4%) a 3% do PIB até 2013 - de acordo com o Pacto de Estabilidade da União Europeia. Para perseguir a meta, o governo anunciou o congelamento das aposentadorias, o corte de 5% do salário de todos os funcionários públicos, a eliminação do "cheque-bebê" (um subsídio de 2.500 por nascimento), entre outras medidas nada populares. Naquele momento, Zapatero passou a ser criticado por dizer-se de esquerda e atuar como se fosse de direita.

Um elemento que acabou por colocar em evidência o descontentamento social não só com o Partido Socialista, mas com toda a classe política, foi o surgimento do Movimento 15-M (15 de março), uma semana antes das eleições municipais e regionais. Acampados em praças de toda a Espanha, os chamados "indignados" fizeram, aos poucos, sua lista de reivindicações - embora com pouca precisão. "Quando Alfredo Pérez Rubalcaba apresentou sua candidatura, parecia oferecer um "new deal" político. Falava de reformas do sistema eleitoral e constitucional, e de novas vias de participação politica. Parecia querer atender às demandas do Movimento 15-M, mandando um recado para eles e para os que os apoiam. Mas o que pesa para os cidadãos, muito mais do que essas reformas, é o impacto da crise econômica no Estado de bem-estar social", afirma Alfredo Retortillo, da Universidade do País Basco.