sexta-feira, 29 de março de 2024

Religião e política, ontem e hoje

Murillo Victorazzo*

Religião e política, ainda que de formas distintas, sempre estiveram correlacionadas, sendo quase sempre instrumentalizadas uma pela outra. Mesmo nas antigas civilizações indígenas, na América, ou africanas, imperadores e reis eram considerados deuses, semideuses ou representantes deles. No entanto, é na Idade Média que a religião torna-se o centro político e ideológico das sociedades europeias.

Durante os cerca de mil anos daquela era marcada pela descentralização feudal, a Igreja católica não só se encontrava no topo da ordem sociopolítica como detinha o monopólio do saber. “Assim como a lua empresta do sol o seu brilho, o rei recebe da igreja seu esplendor”, disse o papa Inocêncio III no início do século XIII. Transição entre feudalismo e capitalismo, a Idade Moderna rompe com essa lógica, o que, porém, não significará a dissociação completa entre Coroa e fé.

Ainda na Baixa Idade Média, no século XIV, estudos, descobertas e obras na filosofia, cultura e ciências começam a romper a hegemonia intelectual cristã, tendência que se solidifica com o Renascimento no dois séculos posteriores. O conhecimento, a partir de então, não servia mais como canal auxiliar para a leitura das Escrituras, a fim de se desvendar a palavra de Deus, e passava a emergir de “necessidades da vida cotidiana comum” (Valverde, 2003). 

A Revolução Científica derruba o geocentrismo, o que, ao se oporem a interpretações literais da Bíblia, torna seus expoentes, como Copérnico e Galileu Galilei, alvos da Inquisição de Roma. A Terra não ser o centro de um Universo  a partir de então visto como diverso e infinito diminuía a importância do homem, principal criação de Deus e feito em sua imagem e semelhança - dentre eles, por consequência, Jesus. O “novo conceito de verdade” ameaçava assim os pilares do sistema. “Ao lado da verdade revelada, haverá agora uma verdade da natureza, autônoma, com sua própria linguagem e leis, ao alcance do homem”. (Falcon, 2014, p.12)

O heliocentrismo repercutiu em diversos campos do conhecimento, cuja secularização significou o fim da tutela da teologia. Em oposto à visão teocêntrica medieval, o humanismo, um dos principais traços renascentistas, defendia a capacidade da razão humana em transformar a realidade natural e política. Refletindo essa nova concepção, Maquiavel teoriza uma nova relação entre ética e política, na qual a eficácia da ação política se sobrepõe a idealizações éticas medievais.

Não por acaso, o Renascimento, em paralelo ao declínio do poder papal, tem como pano de fundo o crescimento do poder político dos monarcas e do poder econômico da burguesia embrionária, de onde sai grande parte dos mecenas do movimento. Durante o período, “com o aparecimento dos ciclos burgueses de acumulação, surgiu uma interação constante entre as necessidades criadas pelo desenvolvimento dos meios de produção, por um lado, e a evolução da ciência, por outro”. (Valverde, 2003).

Nesse mesmo contexto, em protesto especialmente contra as vendas de indulgência por uma Igreja considerada corrompida e “parasita”, Martinho Lutero dá início, em 1517, à Reforma Protestante. Marx e historiadores marxistas entendem a cisão como “filha” da novo modelo econômico que surgia – o capitalismo. As religiões, segundo eles, eram “filhas do seu tempo”, mais concretamente filhas da economia, “mãe universal de toda sociedade humana”. (Delumeau, 2014, p.103) Assim, por ser ligada às estruturas feudais, o clero católico havia sido superado pela ascendente economia urbana burguesa – uma consequência, conforme diz o materialismo histórico, da evolução linear inevitável da História. E todas as guerras religiosas dos séculos XVI e XVII teriam sido lutas de classe “dissimuladas por uma capa religiosa”. (Delumeau, p.104).

Outros historiadores, contudo, refutam essa interpretação por verem mais nuances no movimento. Para eles, a Reforma se deu por uma conjunção de fatores socioeconômicos catalisadores específicos a cada lugar. No entanto, com causas primordialmente religiosas e disseminada por todas as classes sociais. Na França, por exemplo, foi conduzida por artesões e camponeses, enquanto, na Itália, berço renascentista e onde a burguesia era mais forte à época, não prosperou. Os abusos do clero se somavam à miséria e injustiça: “Na Bíblia não buscavam unicamente a doutrina da salvação pela fé, mas também a prova da igualdade original de todos os homens”. (Delumeau, p.107) Um movimento fruto de uma “vontade de renovação espiritual” decorrente de uma época onde o individualismo realizava grandes progressos. “Os fiéis sentiram a necessidade de uma teologia mais sólida e mais viva que aquela ensinada por um clérigo pouco instruído e rotineiro”. (Delumeau, p.112)

Seja como for, essa teologia nascente teve consequências políticas e econômicas. Lutero ajudou a colocar abaixo a ordem medieval na qual a Igreja encontrava-se no topo da hierárquica. Para ele e seus seguidores, não havendo nenhum intermediário entre o homem - dono de sua livre consciência - e Deus, o povo deveria ocupar essa posição, abrindo espaço também para o rebaixamento do clero em relação à Coroa. Uma nova ordem sociopolítica surgia resultante da religião. 

Tão ou mais importante foram as consequências das ideias de João Calvino, outro expoente da Reforma. Considerado um dos três pais fundadores da sociologia, Max Weber, em sua clássica obra “A ética protestante e o espírito do capitalismo” sustenta que o calvinismo, por sua valorização do trabalho, a defesa da vida frugal e a não condenação do lucro – para Roma, fruto do pecado da usura - foi alicerce para o desenvolvimento do sistema econômico ascendente.

Ao contrário do catolicismo, para o qual o trabalho, embora indispensável para a reprodução da humanidade, era indesejável, um castigo, pois advinha da condenação pelo pecado original, Calvino o entende como exaltação à “obra criadora divina”. Cada fiel recebia um “dom” de Deus e deveria colocá-lo em prática. Ao valorizá-lo, justificava o acúmulo de capital consequente. “O lucro é encarado como fruto do esforço do cristão para agradar a Deus através do seu trabalho”. (Maspoli, 2002) A riqueza era uma benção de Deus, porém a Ele pertence: “O crente é apenas um mordomo de Senhor aqui na terra, evitando a luxuria e os prazeres mundanos. A única fonte divina de prazer é o trabalho”. (Maspoli, 2002). O modo de vida protestante - seu ethos -, isto é a formação de poupança e o estímulo ao empreendedorismo, teria, deste modo, sido fundamental para a expansão do capitalismo.

Weber, em seu livro escrito no início do século XX, analisava as raízes da Revolução Industrial, momento quando o capitalismo alcança dimensões e características diferentes das do embrionário capitalismo comercial da época da Reforma. Calvino não se atém às questões sobre posse dos meios de produção e venda da força de trabalho, sendo também por isso controverso assegurar algum intuito prévio de legitimar o capitalista. "O calvinista ama trabalhar porque assim glorifica a Deus. O capitalista ama trabalhar porque assim obtém lucro", compara o teólogo presbiteriano Gerson Leite de Moraes em entrevista à BBC Brasil. No entanto, é indiscutível a aversão da burguesia à Igreja católica, “ociosos” que se interpunham entre eles e Deus. “Que trabalhem em vez de receber dízimo de quem labuta”. (Fevbre, 2014, p.118) Almejando ou não, Calvino serviu ao interesses da classe ascendente e dela se serviu, pois, como diz Fevbre (p.112), “os pregadores da Reforma não precisavam de apoio político para atrair seus partidários, mas era necessário para consolidar seus ataques iniciais”.

O crescimento do capitalismo ocorreu concomitantemente ao das religiões protestantes; crescimento que resultou em guerras nas quais interesses políticos se mesclavam a religiosos. Um exemplo é a Guerra dos 30 anos, eclodida em 1618 no Sacro Império Romano-Germânico. O conflito, que se iniciou como um levante dos estados germânicos protestantes contra o imperador católico, que descumprira garantias de liberdade religiosa, ultrapassou fronteiras e ganhou contornos essencialmente políticos, colocando em lados opostos monarcas da mesma religião. 

A vitória inicial do imperador representava seu fortalecimento político e territorial, o que alterava o equilíbrio de poder europeu, desbalanceamento preocupante não apenas monarcas protestantes mas principalmente o rei católico da França, cujo chanceler era inclusive um cardeal, o notório Cardeal Richelieu, um dos arquitetos do Absolutismo. 

A derrota do Sacro-Império após a entrada na guerra dos franceses, apoiados pelos Países Baixos e escandinavos, representou um ponto de inflexão na História e nas relações internacionais. A Paz de Vestefália, assinada em 1648, é considerada o gene do Direito Internacional, pois marca a oficialização de um sistema de equilíbrio de poder, a diplomacia permanente e a consolidação dos soberanos Estados nacionais modernos.

Oito anos antes, na Inglaterra, dava-se início a Revolução Inglesa, processo histórico emblemático por significar a construção da primeira monarquia parlamentar. O estopim de sua primeira fase, a Revolução Puritana (1640), foi a cobrança de impostos pelo rei Carlos I sem a anuência do Parlamento, formado basicamente pela burguesia. A guerra civil que se sucedeu representava o choque entre a ordem feudal que ainda perdurava e uma classe social ascendente. “O aumento da riqueza nacional não cabia mais naquela ordem”. (Selke; Ellos, 2017) Ao mesmo tempo, contudo, continha traços religiosos: os parlamentares eram calvinistas (“puritanos”), enquanto o monarca, um anglicano casado com uma católica e próximo ao Papa. Com a execução de Carlos I, assume o poder sob a forma de uma república ditatorial o “puritano” Oliver Crowell. Sua morte, em 1658, leva à “Restauração monárquica”, embora com poderes reais mais restritos.

O Absolutismo havia ficado para trás, mas, quando Jaime II assume a Coroa após a morte de seu irmão Carlos II, os atritos com o Parlamento ressurgem: tentativas de isentar católicos de impostos e distribuir-lhes cargos no governo fazem os parlamentares “puritanos”, temerosos também por entenderem as atitudes do novo monarca como pressão pela volta de poderes absolutistas, a conspirar por sua derrubada. A subida ao trono dos protestantes Guilherme de Orange e Maria Stuart através da Revolução Gloriosa marca a consolidação definitiva da monarquia constitucional, simbolizada pela Lei dos Direitos (Bill of rights) que os novos reis tiveram que assinar de serem coroados, em 1689. 

Entre outros pontos, a declaração exigia aprovação parlamentar para aumento de impostos e proibia o monarca de expropriar propriedade privada e coibir a liberdade de expressão. Simbolizava, portanto, maior poder político à burguesia e a vitória de seus valores liberais. Por outro lado, era não apenas a fragilização do rei e da aristocracia rural como da Igreja Luterana, braço auxiliar do Absolutismo inglês – “o direito divino dos reis”.

Se, ao final da Idade Média, a burguesia, diante da fragmentação feudal prejudicial ao comercio, aliara-se ao reis a fim de maior centralização política e administrativa, a Idade Moderna retrata a necessidade burguesa de romper com o regime que ajudara a criar mas que passara a ser empecilho ao livre mercado. O liberalismo foi a base teórica que a sustentou nesse processo e teve em John Locke seu principal ideólogo.

Para Locke, o Estado não deve impor uma religião oficial, sendo a fé uma escolha individual e voluntária. A religião, que na era medieval fora o topo da hierarquia sociopolítica, recebendo os reis o “esplendor” da Igreja, como afirmou Inocêncio III, e depois, em uma relação simbiótica com a Coroa, legitimara o Absolutismo, perdia assim, mais do que muito de seu poder político, sua conexão com a estrutura estatal. A partir dessa visão, a constituição de Estados laicos tornou-se progressivamente traço essencial das democracias contemporâneas.

É impossível a dissociação completa entre política e religião. Mesmo inconscientemente os cidadãos mais religiosos acabam por ver o mundo sob a ótica de algumas interpretações de sua fé. E é aqui que essa interligação se torna perigosa, pois, como se viu, quando dogmas religiosos entram na esfera política, eles acabam instrumentalizados e distorcidos por agentes políticos, mesmo os travestidos de religiosos. Além do passado, o Brasil atual é repleto de exemplos, com líderes evangélicos agindo de forma oposta  à defesa de Lutero por vida frugal, livre consciência do homem e elo direto com Deus, em posturas que nos remetem a às do clérigo medieval. Fatos históricos e presentes corroboram Emir Sader (2010), quando ele afirma que “Estados religiosos desembocam em visões ditatoriais – até mesmo totalitárias”. O Irã está aí hoje para provar.

A laicidade é a garantia de direitos individuais e coletivos para todos. “Ninguém deve ter mais direitos ou ser discriminado por suas opções individuais ou coletivas, desde que não prejudique os direitos dos outros”. (Sader, 2010). É importante lembrar: “Quem não conhece a História está condenado a repeti-la”, disse, ainda no século XVIII, o filósofo Edmund Burke.

* Murillo Victorazzo é jornalista, com Especialização em Política & Sociedade ( Iesp-UERJ) e MBA em Relações Internacionais ( FGV-Rio)


Referências bibliográficas:

Delumeau, J. As causas da Reforma. In Marques, A.M; Berutt, F.C; Faria, R.M (Orgs). História moderna através de textos. São Paulo: Contexto, 2014

Falcon, F. J.C. Introdução à História Moderna. In: Marques, A.M; Berutt, F.C; Faria, R.M (Orgs). História moderna através de textos. São Paulo: Contexto, 2014

Febvre, L. A Alemanha de 1517 e Lutero. In: Marques, A.M; Berutt, F.C; Faria, R.M (Orgs). História moderna através de textos. São Paulo: Contexto, 2014

Maspoli, A. O pensamento de João Calvino e a ética protestante, aproximações e contrastes, 2002. Disponível em: Untitled Document (mackenzie.br)Links para um site externo.

Sader, E.. Política e Religião, 2010. Disponível em: Emir Sader: Política e religião - VermelhoLinks para um site externo.

Selke, R.; Ellos, N. História social e econômica moderna. Curitiba: Intersaberes, 2017

Valverde, A.J.R. Humanismo, ciência, cotidiano - sob o Renascimento. Margem, São Paulo, jun.2003
Religião e política, ainda que de formas distintas, sempre estiveram correlacionadas, sendo muitas vezes instrumentalizadas uma pela outra e vice-versa. Mesmo nas antigas civilizações indígenas, na América, ou africanas, imperadores e reis eram considerados deuses, semideuses ou representantes deles. No entanto, é na Idade Média que a religião torna-se o centro ideológico das sociedades europeias. A Igreja católica detinha o monopólio do saber e a preponderância do poder político, em uma época marcada pela descentralização feudal. “Assim como a lua empresta do sol o seu brilho, o rei recebe da igreja seu esplendor”, disse o papa Inocêncio III no início do século XIII. Transição entre feudalismo e capitalismo, a Idade Moderna rompe com essa lógica, o que, porém, não significará a dissociação completa entre coroa e fé.


Ainda na Baixa Idade Média, no século XIV, estudos, descobertas e obras na filosofia, cultura e ciências começam a romper a hegemonia intelectual cristã, tendência que se solidifica com o Renascimento no dois séculos posteriores. O conhecimento, a partir de então, não servia mais como canal auxiliar para a leitura das Escrituras, a fim de se desvendar a palavra de Deus, e passava a emergir de “necessidades da vida cotidiana comum” (Valverde, 2003). A Revolução Científica derruba o geocentrismo, o que, ao se oporem a interpretações literais da Bíblia, leva seus expoentes como Copérnico e Galileu Galilei a entrarem em choque com Roma. A Terra não ser o centro de um Universo agora visto como infinito sacava também a importância do homem – inclusive Jesus - como criação em imagem e semelhança de Deus. O “novo conceito de verdade” revelado por Galileu ameaçava os pilares do sistema. “Ao lado da verdade revelada, haverá agora uma verdade da natureza, autônoma, com sua própria linguagem e leis, ao alcance do homem”. (Falcon, p.12)

O heliocentrismo repercute em diversos campos do conhecimento, cuja secularização significava o fim da tutela da teologia. Em oposto à visão teocêntrica medieval, o humanismo, um dos principais traços renascentistas, defendia a capacidade da razão humana em transformar a realidade natural e política. Refletindo essa nova concepção, Maquiavel teoriza uma nova relação entre ética e política, na qual a eficácia da ação política se sobrepõe a idealizações éticas medievais.

Não por acaso, o Renascimento, em paralelo ao declínio do poder papal, tem como pano de fundo o crescimento do poder político dos monarcas e do poder econômico da burguesia embrionária, de onde sai grande parte dos mecenas do movimento. Durante o período, “com o aparecimento dos ciclos burgueses de acumulação, surgiu uma interação constante entre as necessidades criadas pelo desenvolvimento dos meios de produção, por um lado, e a evolução da ciência, por outro”. (Valverde, 2003).

Nesse mesmo contexto, em protesto especialmente contra as vendas de indulgência por uma Igreja considerada corrompida e “parasita”, Martinho Lutero dá início, em 1517, à Reforma Protestante. Marx e historiadores marxistas entendem a cisão como “filha” da novo modelo econômico que surgia – o capitalismo. As religiões, segundo eles, eram “filhas do seu tempo”, mais concretamente filhas da economia, “mãe universal de toda sociedade humana”. (Delumeau, p.103) Assim, por ser ligada às estruturas feudais, o clero católico havia sido superado pela ascendente economia urbana burguesa – uma consequência, conforme diz o materialismo histórico, da evolução linear inevitável da História. E todas as guerras religiosas dos séculos XVI e XVII teriam sido lutas de classe “dissimuladas por uma capa religiosa”. (Delumeau,104).

Outros historiadores, contudo, refutam essa interpretação por verem mais nuances no movimento. Para eles, a Reforma se deu por uma conjunção de fatores socioeconômicos catalisadores específicos a cada lugar. No entanto, com causas primordialmente religiosas e disseminada por todas as classes sociais. Na França, por exemplo, foi conduzida por artesões e camponeses, enquanto, na Itália, berço renascentista e onde a burguesia era mais forte à época, não prosperou. Os abusos do clero se somavam à miséria e injustiça: “Na Bíblia não buscavam unicamente a doutrina da salvação pela fé, mas também a prova da igualdade original de todos os homens”. (Delumeau, p.107) Um movimento fruto de uma “vontade de renovação espiritual” decorrente de uma época onde o individualismo realizava grandes progressos. “Os fiéis sentiram a necessidade de uma teologia mais sólida e mais viva que aquela ensinada por um clérigo pouco instruído e rotineiro”. (Delumeau, p.112)

Seja como for, essa teologia nascente teve consequências políticas e econômicas. Lutero ajudou a colocar abaixo a ordem medieval na qual a Igreja encontrava-se no topo da hierárquica social. Para ele e seus seguidores, não havendo nenhum intermediário entre o homem - dono de sua livre consciência - e Deus, o povo deveria ocupar essa posição, abrindo espaço também para o rebaixamento do clero em relação à Coroa. Uma nova ordem sociopolítica surgia resultante da religião. Tão ou mais importante foram as consequências das ideias de João Calvino, outro expoente da Reforma. Max Weber, em sua clássica obra “A ética protestante e o espírito do capitalismo” sustenta que o calvinismo, por sua valorização do trabalho, a defesa da vida frugal e a não condenação do lucro – para Roma, fruto do pecado da usura - foi alicerce para o desenvolvimento do sistema econômico que começava a surgir.

Ao contrário do catolicismo, para o qual o trabalho, embora indispensável para a reprodução da humanidade, era indesejável, pois advinha da ideia de condenação pelo pecado original, Calvino o entende como exaltação à “obra criadora divina”. Cada fiel recebia um “dom” de Deus e deveria colocá-lo em prática. Ao valorizar o trabalho, legitimava o acúmulo de capital consequente. “O lucro é encarado como fruto do esforço do cristão para agradar a Deus através do seu trabalho”. (Maspoli, 2002) A riqueza era uma benção de Deus, porém a Ele pertence: “O crente é apenas um mordomo de Senhor aqui na terra, evitando a luxuria e os prazeres mundanos. A única fonte divina de prazer é o trabalho”. (Maspoli, 2002). A formação de poupança e o estímulo ao empreendedorismo presente no modo de vida protestante – seu ethos – teria, por isso, sido fundamental para a expansão do capitalismo.

Weber, em sua obra escrita no início do século XX, analisava as raízes da Revolução Industrial, momento quando o capitalismo alcança dimensões e características diferentes das do embrionário capitalismo comercial da época da Reforma. Calvino não se atém às questões sobre posse dos meios de produção e venda da força de trabalho, sendo também por isso controverso assegurar algum intuito prévio de legitimar o capitalista. "O calvinista ama trabalhar porque assim glorifica a Deus. O capitalista ama trabalhar porque assim obtém lucro", compara o teólogo presbiteriano Gerson Leite de Moraes em entrevista à BBC Brasil. No entanto, é indiscutível a aversão da burguesia à Igreja católica, “parasitas” que se interpunham entre eles e Deus. “Que trabalhem em vez de receber dizimo de quem labuta”. (Fevbre, p.118) Almejando ou não, Calvino serviu ao interesses da classe ascendente e dela se serviu, pois, como diz Fevbre (p.112), “os pregadores da Reforma não precisavam de apoio político para atrair seus partidários, mas era necessário para consolidar seus ataques iniciais”.

O crescimento do capitalismo ocorreu concomitantemente ao crescimento das religiões protestantes; crescimento que resultou em guerras nas quais interesses políticos se mesclavam a religiosos. Um exemplo é a Guerra dos 30 anos, eclodida em 1618 no Sacro Império Romano-Germânico. O conflito, que se iniciou como um levante dos estados germânicos protestantes contra o imperador católico, que descumprira garantias de liberdade religiosa, ultrapassou fronteiras e ganhou contornos essencialmente políticos, colocando em lados opostos monarcas da mesma religião. A vitória inicial do imperador representava seu fortalecimento político e territorial, o que o equilíbrio de poder europeu, desbalanceamento que preocupava não apenas monarcas protestantes mas principalmente o rei católico da França, cujo chanceler era inclusive um cardeal. A derrota do Sacro-Império após a entrada na guerra dos franceses, apoiados pelos Países Baixos e escandinavos, representou um ponto de inflexão na História e nas relações internacionais. A Paz de Vestefália, em 1648, marca a oficialização de um sistema de equilíbrio de poder, a diplomacia permanente e a consolidação dos soberanos Estados nacionais modernos.

Oito anos antes, na Inglaterra, dava-se início a Revolução Inglesa, processo histórico emblemático por significar a construção da primeira monarquia parlamentar. O estopim de sua primeira fase, a Revolução Puritana (1640), foi a cobrança de impostos pelo rei Carlos I sem a anuência do Parlamento, formado basicamente pela burguesia. A guerra civil que se sucedeu representava o choque entre a ordem feudal que ainda perdurava e uma classe social ascendente. “O aumento da riqueza nacional não cabia mais naquela ordem” (Selke; Ellos, 2017) Ao mesmo tempo, contudo, continha traços religiosos: os parlamentares eram calvinistas (“puritanos”), enquanto o monarca, um anglicano casado com uma católica e próximo ao Papa. Com a execução de Carlos I, assume o poder sob a forma de uma república ditatorial o “puritano” Oliver Crowell. Sua morte, em 1658, leva à “Restauração monárquica”, embora com poderes reais mais restritos.

O Absolutismo havia ficado para trás, mas, quando Jaime II assume a Coroa após a morte de seu irmão Carlos II, os atritos com o Parlamento ressurgem: tentativas de isentar católicos de impostos e distribuir-lhes cargos no governo fazem os parlamentares “puritanos”, temerosos também por entenderem as atitudes do monarca como pressão pela volta de poderes absolutistas, a conspirar pela derrubada de Jaime II. A ascensão dos protestantes Guilherme de Orange e Maria Stuart através da Revolução Gloriosa marca a consolidação definitiva da monarquia constitucional, simbolizada pela Lei dos Direitos (Bill of rights) que os novos reis tiveram que assinar antes de subir ao trono em 1689. Entre outros pontos, a declaração previa a exigência de aprovação parlamentar para aumento de impostos e proibia o monarca de expropriar propriedade privada e coibir a liberdade de expressão. Simbolizava, portanto, maior poder político à burguesia e a vitória de seus valores liberais. Por outro lado, não apenas a fragilização do rei e da aristocracia rural como da Igreja Luterana, braço auxiliar do Absolutismo inglês – “o direito divino dos reis”.

Se, ao final da Idade Média, a burguesia, diante da fragmentação feudal prejudicial aos seus negócios, aliara-se ao reis a fim de maior centralização política e administrativa, a Idade Moderna retrata a necessidade burguesa de romper com o regime que ajudara a criar mas que passara a ser empecilho a sua livre acumulação de capital. O liberalismo foi a base teórica que a sustentou nesse processo e tinha em John Locke seu principal ideólogo. Para ele, o Estado não deve impor uma religião oficial, sendo a fé uma escolha individual e voluntária. A religião, que na era medieval fora o topo da hierarquia política, recebendo os reis o “esplendor” da Igreja, como afirmou Inocêncio III, e, em uma relação simbiótica, legitimara o Absolutismo, perdia assim, se não totalmente, muito de sua conexão com a estrutura estatal. A partir dessa visão, a constituição de Estados laicos tonou-se progressivamente traço primordial das democracias contemporâneas.

É impossível a dissociação completa entre política e religião. Mesmo inconscientemente os cidadãos mais religiosos acabam por ver o mundo sob a ótica de algumas interpretações de sua fé. E é aqui que a correlação se torna delicada, pois, como se viu, quando dogmas religiosas entram na esfera política, eles acabam instrumentalizados e distorcidos por agentes políticos, mesmo os travestidos de religiosos. O passado e o Brasil atual são repletos de exemplos, com líderes religiosos evangélicos agindo de forma oposta a defesa de Lutero por vida frugal, livre consciência do homem e elo direto com Deus. Fatos históricos e presentes corroboram Emir Sader (2010), quando ele afirma que “Estados religiosos desembocam em visões ditatoriais – até mesmo totalitárias”.

A laicidade é a garantia de direitos individuais e coletivos para todos. “Ninguém deve ter mais direitos ou ser discriminado por suas opções individuais ou coletivas, desde que não prejudique os direitos dos outros”. (Sader, 2010). É importante lembrar: “Quem não conhece a História está condenado a repeti-la”, disse, ainda no século XVIII, o filósofo Edmund Burke.



Referências bibliográficas:

Delumeau, J. As causas da Reforma. In Marques, A.M; Berutt, F.C; Faria, R.M (Orgs). História moderna através de textos. São Paulo: Contexto, 2014

Falcon, F. J.C. Introdução à História Moderna. In: Marques, A.M; Berutt, F.C; Faria, R.M (Orgs). História moderna através de textos. São Paulo: Contexto, 2014

Febvre, L. A Alemanha de 1517 e Lutero. In: Marques, A.M; Berutt, F.C; Faria, R.M (Orgs). História moderna através de textos. São Paulo: Contexto, 2014

Maspoli, Antonio. O pensamento de João Calvino e a ética protestante, aproximações e contrastes, 2002. Disponível em: Untitled Document (mackenzie.br)Links para um site externo.

Sader, Emir. Política e Religião, 2010. Disponível em: Emir Sader: Política e religião - VermelhoLinks para um site externo.

Selke, R.; Ellos, N. História social e econômica moderna. Curitiba: Intersaberes, 2017

Valverde, Antonio J.R. Humanismo, ciência, cotidiano - sob o Renascimento. MARGEM, SÃO PAULO, No 17, P. 63-71, JUN. 2003.

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